Recorrentemente em Cabo Verde a questão da autonomia das universidades, da qualidade do ensino e da capacidade de investigação e produção científica é trazida à discussão pública.
O país diz-se detentor de cerca de dez universidades, mas é impressão generalizada que o impacto do ensino superior é ainda bastante fraco. Em particular não parece contribuir para elevação do nível do debate na esfera pública, nem se mostra capaz de propiciar às instituições do país expertise em várias áreas de forma sistemática e perceptível como seria de esperar. O que as pessoas notam em relação ao papel das universidades vai de encontro em grande medida com o que ficou exposto na resolução do congresso dos doutorados realizado a 11 de Março em Mindelo quando diz que “a falta de um projecto universitário que valorizasse desde a sua génese a função criativa da Universidade impediu a emergência de uma comunidade científica em Cabo Verde”.
Para os participantes no congresso a falha vem de longe, em particular na universidade pública, a Uni-CV, segundo os quais “foi marcada na sua génese pelo facto de o corpo docente ter sido recrutado de entre professores formatados nos anos 1975-1980 nas escolas do Partido Único”. Acrescentam ainda que a “corrupção sistémica” que daí resultou “conseguiu asfixiar a crítica aos poderes públicos pela Academia” e que a “centralização da autoridade académica na administração universitária converteu a instituição em mera extensão da administração pública, retirando-lhe a função de Casa do Saber”. Não é nada que se desconhecia considerando o que se sabe do processo de instalação do ensino universitário nos últimos anos.
Em alguns momentos, por altura de eleição para o cargo de reitor, ou em artigos de jornal, questões semelhantes foram levantadas, mas como de há muito se tornou habitual em Cabo Verde são logo desvalorizadas ou esquecidas, ou varridas para “debaixo do tapete”. Entretanto recursos públicos consideráveis são gastos em manter tal sistema sem que se vislumbre retorno adequado que os justifique. Também milhares de estudantes e seus familiares investem parte importante dos seus rendimentos e muito das suas esperanças de uma vida melhor sem de facto qualquer garantia de atingir os seus objectivos particularmente quando escasseiam empregos do Estado a exigir licenciatura, o mercado de trabalho não é suficientemente dinâmico e as qualificações existentes não são as mais procuradas por potenciais empregadores. Com o país a viver uma pandemia sem precedentes podia ser uma oportunidade para a Uni-CV desempenhar um papel de relevo como acontece em outros países. Aqui, pelo contrário, está-se por saber o papel da universidade em apoiar o esforço de combate ao coronavírus e as contribuições no estudo da epidemia, sua evolução e seu impacto nas populações.
Este jornal em vários editoriais e reportagens ao longo dos últimos dez anos procurou chamar a atenção para a problemática que rodeou todo o processo de instalação do ensino universitário. Já em 2010 este semanário alertava que as universidades enquanto bastiões do conhecimento, do ensino superior e da investigação precisam para realizar a sua missão da mais ampla liberdade intelectual e liberdade de expressão e de ser funcional num quadro de autonomia administrativa e financeira e independência do poder político. E que a forma como foi criada a universidade pública de Cabo Verde determinou que muito do que se esperava de uma instituição de ensino superior fosse sacrificado. Compreende-se a motivação e a urgência expressas nos alertas que se sucederam vindos de diferentes quadrantes. Tratava-se de uma instituição nova chamada a desempenhar um papel crucial para vida de gerações de jovens e a ser central para o desenvolvimento do país enquanto produtor e disseminador do conhecimento e criador do ambiente propício para a inovação. Se falhasse em realizar a sua missão como tudo parece indicar os estragos seriam consideráveis e os custos para reverter a situação teriam que ser suportados por gerações.
Infelizmente o que aparentemente acabou por acontecer com a universidade pública é análogo ao que vem acontecendo com outras instituições no país e com a generalidade da administração pública. A dependência do país da ajuda externa, o historial de partidarização da administração pública a partir das suas origens no partido/Estado e a presença forte do Estado na economia entre outros factores garantiram que se reproduzisse ao longo de décadas, não obstante as tentativas de reforma, a figura do Estado centralizador, burocrático e pouco sensível às necessidades dos utentes. Com a crescente incapacidade do sector privado nos vários domínios, seja industrial, seja o do turismo e dos serviços em ganhar proeminência e em inflectir a posição do Estado no topo da proverbial “cadeia alimentar” a tendência de muitos tem sido de encontrar a melhor forma de se colocarem sob a sombra protectora do sector público.
Naturalmente que isso tem consequências tanto pelo impacto sobre as instituições e a administração pública no que concerne à composição dos órgãos, nível de funcionamento e comprometimento com o serviço público como sobre o tipo de discurso e de campanha eleitoral que é produzido no processo de acesso ao poder político. A situação de crise que se vive actualmente devido à Covid-19 só agrava a tendência e torna mais saliente essa evolução negativa no seio das instituições. A cada dia que passa fica mais difícil tentar inflectir o caminho de uma certa desinstitucionalização, quase sempre acompanhada de centralização do poder no chefe e a transformação de outros titulares de cargos ou dirigentes em variantes de facilitadores, bajuladores e vendidos. E isso acontece quando precisamente a pandemia em todo o mundo veio relembrar a importância de se ter um Estado competente, comprometido com a verdade dos factos e congregador de vontades para mitigar os efeitos das crescentes desigualdades sociais, combater os efeitos das alterações climáticas e garantir a sustentabilidade do processo de desenvolvimento.
Para um pequeno país como Cabo Verde deixar-se levar num processo em que as suas instituições enfraquecem ou não estão à altura do que é delas esperado como parece acontecer com a universidade pública é de uma gravidade enorme. De facto, não há muito espaço para cometer erros que levam gerações a corrigir particularmente quanto desafios como pandemias, alterações climáticas e dívida pública em crescendo podem constituir uma mistura potencialmente perigosa nos próximos anos. Neste sentido é de maior importância identificar as razões profundas por que reformas não são feitas, instituições enfraquecem e descredibilizam-se e elementos da sociedade civil não conseguem sair de uma espécie de modorra para forçarem mudanças.
No processo talvez se descubra – parafraseando o economista Paul Samuelson que não se importava com quem escrevia as leis de uma nação conquanto ele pudesse escrever os manuais escolares – que a raiz do problema esteja no que em termos de princípios e valores e de perspectiva histórica da nação cabo-verdiana é passado às novas gerações através designadamente do sistema de ensino. Tudo indica que há uma tensão entre o substracto cultural inculcado e os valores vertidos na Constituição e nas leis e o resultado não tem sido positivo para as instituições, para a cidadania e para a própria democracia. Para se ter mudança, há que encarar isso frontalmente como fizeram os participantes do segundo congresso dos doutorados na resolução que trouxeram a público.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1010 de 7 de Abril de 2021.
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