O FMI na sua última comunicação sobre as perspectivas económicas de Cabo Verde para o futuro próximo foi peremptório a dizer que se mantêm desafiantes e incertas. Para começar, a Covid-19, em 2020, provocou uma contracção de 14% da economia. Parou praticamente tudo, seja o turismo, a aviação e a exportação de vários bens e serviços.
O resto da economia nacional limitou-se a concentrar no fornecimento do essencial para o país funcionar mesmo quando a braços com estados de emergência e outros graus de confinamento. Nunca se tinha visto algo semelhante. Em 2009 na sequência da crise financeira de 2007/2009 a contracção da economia tinha sido de 1,3% do PIB e, aquando da retoma, depois de um primeiro ano de 2010 com 4% de crescimento, seguiram-se quase cinco anos de estagnação com a taxa do crescimento do PIB à volta de 1%. A expectativa de todos é que esse padrão não se repita e que o crescimento retome a dinâmica iniciada a partir do último trimestre de 2015 e que perdurou até Março de 2020.
O FMI, apesar de prever que o país possa crescer 5,8% do PIB em 2021 e que o crescimento a médio prazo chegue a 6%, não deixa de constatar que os riscos de uma evolução no sentido negativo são reais considerando a pandemia do coronavírus e a suas ramificações globais. Na sua comunicação faz qualquer avanço na economia depender de vários factores de entre os quais uma retoma mundial, o aumento do turismo e de investimentos, a execução de projectos de infraestrutura já identificados, reformas estruturais decisivas no Estado e no sector empresarial do Estado, acesso de pequenas e médias empresas ao crédito e políticas de apoio à estabilidade macroeconómica em particular em sede da gestão orçamental e da dívida pública. Alguns desses factores são externos e dependem de como irá ser o novo normal nas relações entre países, em como as viagens vão ficar condicionadas e em como vão ser reorganizadas as cadeias de valor e estruturados os canais de aprovisionamento de bens essenciais e estratégicos.
Os outros factores, aqueles que dependem do país, constituem provavelmente uma complicação maior. Pô-los a funcionar exigiria “reformas estruturais decisivas” como diz o FMI, reformas que implicariam a despartidarização do aparelho do Estado, descentralização e desburocratização dos serviços e adopção generalizada de uma cultura de serviço público e de um ethos de servidor público que até agora se revelaram praticamente impossíveis de implementar. E sem elas não há redefinição do papel do Estado para além da sua função na reciclagem da ajuda externa, nem diminuição dos custos de contexto que retira competitividade à economia, nem uma aposta consequente e estratégica na potenciação dos recursos do país a começar pelos recursos humanos que devia ser o pilar fundamental do desenvolvimento.
O falhanço na realização dessas reformas estruturais terá contribuído para que depois da crise financeira de 2008 a entrada de fluxos externos em doações e empréstimos só tenha feito crescer a dívida externa para cerca de 120% do PIB sem que a economia por largos anos conseguisse descolar. E quando depois de 2015 a conjuntura internacional se tornou mais favorável com todas as grandes economias e em particular a União Europeia a crescer as taxas do PIB aumentaram consideravelmente de uma média de 1% nos anteriores 5% até que chegou a pandemia. Provavelmente não atingiu os 7% que tinham sido previstos devido a ineficiências várias, à produtividade baixa e à fraca competitividade derivadas da ausência de reformas em sectores-chave e também a prioridades trocadas em matéria de investimento público e de recursos humanos.
Compreender as dificuldades com que a economia cabo-verdiana se depara e os constrangimentos que tem que vencer para poder crescer a taxas que permitam retirar pessoas da pobreza extrema, diminuir as vulnerabilidades das populações e abrir o caminho para uma prosperidade que chegue a todos é fundamental para a paz e a concórdia na sociedade cabo-verdiana. Há quem aponte um crescimento acima de 7% como meta a atingir para que esse desiderato seja possível. Falta é identificar os obstáculos para lá chegar e mobilizar vontades para os ultrapassar. É verdade que se até agora não se conseguiu fazer as reformas estruturais que se impõem é por não ser tarefa fácil e também por se tratarem de medidas que provavelmente mexem com interesses entrincheirados ou que não são de imediato populares em alguns sectores. Não se pode deixar de notar é que, com tentativas de reforma sucessivamente fracassadas, mais longínqua se torna a possibilidade de realizar uma mudança de fundo com impacto visível na eficácia da acção do Estado. Em simultâneo e contribuindo para ineficácia estatal nota-se também o crescente poder de corporativismos diversos que já se tornaram em verdadeiros empecilhos para quem tem legitimidade democrática para governar.
A política devia ser a via para se debater como ultrapassar as dificuldades referidas. Infelizmente cada vez mais passa-se a impressão é de que se quer o poder para tentar manipular o status quo a favor de clientelas próprias sem uma grande preocupação com a realização do interesse geral. O ambiente de crispação que se instala na esteira do que parece uma autêntica corrida para abocanhar recursos do estado não deixa espaço para posições mais equilibradas. Períodos eleitorais deviam ser momentos cruciais para se dar o passo em frente. Por isso a urgência devia ser maior em procurar reconhecer onde estão os obstáculos e inventariar vias para os ultrapassar.
O FMI ao caracterizar como desafiantes e incertas as perspectivas de Cabo Verde no futuro próximo chama a atenção para não se tomar os tempos que vêm aí como algo seguro e previsível e confiar que simplesmente se pode recomeçar do ponto onde se ficou há um ano atrás. Dificilmente será assim e o facto de o coronavírus constituir uma ameaça global ninguém pode ter a pretensão de ficar aquém dos seus efeitos devastadores. Em Cabo Verde reina a crença que a solidariedade é mais forte em momentos de desgraça porque é preciso cooperação de todos para minorar os estragos e encontrar uma saída. Em tempos de pandemia as pessoas, os candidatos e os partidos deviam se mostrar mais abertos ao diálogo político que pode levar a soluções duradoiras e consistentes e mobilizar energias para fazer as reformas que todos esperam.
Nos tempos que correm não há, porém, certeza que depois da tempestade venha imediatamente a bonança. Mais uma razão para apelos à solidariedade ao longo do processo eleitoral que vai culminar nas eleições legislativas de 2021. A democracia e a liberdade vão depender dos muitos problemas colocados no dia-a-dias e de como as reformas foram encetadas e as soluções foram encontradas. Do sucesso nas reformas, de um renovado papel do Estado e de um maior foco em construir pontes entre as pessoas irá depender a prosperidade geral, o rendimento individual e familiar e maior proximidade na relação entre as pessoas. As eleições de 18 de Abril deviam ser pretexto para uma nova abordagem dos problemas de Cabo Verde. Vamos esperar que seja desta.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1009 de 31 de Março de 2021.
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