Já nos últimos dias antes do voto de 18 de Abril que vai determinar o rumo do novo ciclo governativo no país a grande questão a pôr aos cabo-verdianos devia ser similar à colocada por John Kennedy na sua tomada de posse como presidente dos Estados Unidos da América, em Janeiro de 1961: “Pergunta não o que o teu país pode fazer por ti, mas o que tu podes fazer por ele”.
De facto, os tempos actuais marcados pela pandemia do coronavírus e pela recessão económica global e pelo contínuo descrédito das instituições nas democracias clamam por outra atitude das pessoas. Querer-se-ia uma atitude que fosse mais altruística e tivesse como base a crença num destino comum e não aquela que prevalece hoje e é egoísta, do tipo “cada um por si”, e orienta-se para extrair do Estado o máximo, sem olhar a meios.
Nos pequenos países frágeis e sem recursos como Cabo Verde a mudança no sentido apontado por Kennedy é claramente mais urgente. Sem mais cooperação entre as pessoas, mais engajamento cívico e mais esforço individual e colectivo para elevar a qualidade e os níveis das competências produzidas no sistema de ensino e formação dificilmente se conseguirá estar à altura dos extraordinários desafios que o futuro comporta. Infelizmente, os sinais vindos de todos os lados, especialmente nos momentos eleitorais em forma de promessas de campanha e propostas de políticas, vão no sentido contrário. Tendem a consolidar e a revalidar a condição de dependência do Estado e a postura de feroz concorrência entre indivíduos e grupos para acesso aos recursos.
Cabo Verde está numa encruzilhada com um futuro desafiante e incerto como diz o FMI e o mais normal é que houvesse um apelo ao engajamento de todos para que com um outro espírito o país possa enfrentar as dificuldades do mundo pós-covid e preparar-se para aproveitar oportunidades que eventualmente surjam. Nesse sentido o discurso que menos se deveria ouvir é o que faz crer que a salvação está no Estado a funcionar paternalisticamente como antes a “realizar sonhos” de uns e a contemplar outros com ganhos. Já se vai na segunda eleição deste ciclo eleitoral que se iniciou em Outubro último com as autárquicas e não há sinal que o discurso vá mudar. A pandemia pode até estar a dar sinais que poderá agravar-se numa nova onda provavelmente induzida por uma variante mais contagiosa do vírus como vem acontecendo na Europa e na América nestes primeiros meses de 2021. Mas ninguém parece dar atenção especial a isso para além de se repetir as já habituais recomendações de uso da máscara, distanciamento social e higienização pessoal e do espaço físico.
A verdade é que pelo que se tem visto neste ano sem paralelo de pandemia do coronavírus e de recessão global nada parece suficientemente forte para alterar as formas de estar, de pensar e de fazer política neste país. A crispação política não baixou de intensidade para criar espaço para compromissos fundamentais num momento único de grandes constrangimentos tanto no país como no mundo. Não se deu pausa às reivindicações laborais e às greves e ameaças de greve particularmente no sector público como se não tivesse qualquer relevância a paralisação de sectores importantes da economia como o turismo com reflexo no desemprego de milhares de pessoas, perda de mais de 40% das receitas do Estado e diminuição drástica das exportações.
Nem tão pouco se fez um compasso de espera para perceber o que poderá ser o mundo pós covid-19 antes de continuar a promover os mesmos projectos de infraestruturas, de criação de plataformas, hubs ou clusters, de expansão de portos e aeroportos e de terminais de cruzeiros. Com promessas novas como levar o ensino superior a todas ilhas deu-se mais um impulso à deriva de se ver Cabo Verde como nove países multiplicando as dificuldades já existentes e diminuindo a possibilidade de potenciar devidamente a diversidade das noves ilhas. É evidente que na insistência em fazer o mesmo apesar de mudanças profundas a verificarem-se a nível local e global o mais provável é que se esteja a perder a oportunidade de avançar com reformas que noutras circunstâncias seriam mais difíceis. Um exemplo são os transportes, seja o aéreo, o marítimo e o interurbano que em todo o lado vão ser alvo de reformas por forma a poder se adaptar às exigências de viajar no “novo normal”. Aqui tudo ficou praticamente como estava. As crises têm sempre custos, mas ficam mais caras quando as oportunidades que eventualmente ofereçam não são aproveitadas.
A campanha eleitoral devia incluir momentos únicos para a apresentação e discussão de propostas para se adaptar o país aos rigores dos novos tempos. Seriam ocasiões certas para mobilizar vontades para se fortalecer os alicerces da nação e com novas perspectivas adequar o país de instrumentos necessários para construir prosperidade sustentável. Não é, porém, fácil fugir do que sempre se fez. Numa certa perspectiva podia-se até considerar normal que os partidos do chamado arco do poder não conseguissem afastar muito do tipo de discurso e de promessas que reconfirmam no essencial o modo de funcionamento do país enquanto economia pequena e frágil e dependente da ajuda externa. Esse é o paradigma na base do qual o Estado vem funcionando há décadas e que já se provou no essencial resistente a intenções reformistas vindas de todos os quadrantes.
Estranho é o facto de pequenos partidos aparentemente sem qualquer possibilidade de ganhar as eleições, se juntarem ao coro dos que fazem promessas nessa mesma linha. Acabam por exagerar nas medidas propostas só para se diferenciarem e supostamente ficarem em posição de criticar, mas sem acrescentar praticamente nada de novo. Pontualmente dão guarida a sentimentos anti-sistémicos que de uma forma ou de outra procuram descredibilizar as instituições da democracia representativa e do Estado de Direito constitucional. A verdade é que não se revelando portadores de políticas alternativas, nem conseguindo afirmar-se como partidos de protesto, acabam por ser ignorados pelo eleitorado. Aconteceu nas autárquicas e poderá verificar-se outra vez nas legislativas.
As pessoas no meio dessas lucubrações partidárias, que em geral se mostram aquém dos enormes desafios que se colocam ao país, não vêem como outra saída se não a de se desenrascarem e com sorte ou com os contactos certos serem bem-sucedidos num sistema que por si próprio tende a reproduzir a dependência de todos em relação ao Estado e a manter a posição sobranceira e paternal do Estado em todos os domínios da vida do país. Quando as dificuldades aumentam, como acontece actualmente com a pandemia, tudo fica muito pior. Inflectir a situação significaria cortar com uma espécie de “cinismo cívico” que alguns anos depois da independência se instalou no país após o desencanto com o regime de partido único.
Dizia-se amiúde que “militância dja kaba” para justificar ausência de sentido de serviço público e “N ka mata Cabral” para fugir a qualquer tipo de responsabilidade. Ou seja, legitimava-se atitude de tudo ir buscar ao Estado que detinha os recursos, fazia os favores e propiciava os acessos. Deixar para trás esse cinismo que até hoje perdura é fundamental para se ter de facto um Estado de Direito com servidores a todos os níveis cumpridores de uma ética republicana. Passa por responder ao apelo de John Kennedy de uma outra relação com o país e o Estado que reforce a confiança nas instituições, valorize a auto-responsabilidade e a autonomia individual e promova a cooperação entre as pessoas. São os ingredientes que se precisa para construir uma comunidade mais forte e resiliente e que mesmo nas maiores dificuldades sempre encontrará vias para prosperar e ser livre.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1011 de 14 de Abril de 2021.
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