segunda-feira, agosto 29, 2022

Conter as derivas

 Na semana passada o ex-candidato presidencial Casimiro de Pina em declarações à imprensa contestou a deliberação da Comissão Nacional de Eleições que lhe recusou o pagamento da subvenção eleitoral a ser feito pelo Estado.

A CNE baseou- -se no artigo 390 da lei eleitoral que determina que só têm direito a apoio público os candidatos que tiverem pelo menos 10% dos votos e ele só tinha conseguido 3.346 votos correspondente a 1.8% dos votos válidos. Acontece que, em 2018, em resposta a uma acção colocada pelo candidato Joaquim Monteiro a posição do Tribunal Constitucional, enquanto tribunal de recurso eleitoral, foi de revogar a deliberação da CNE por considerar inconstitucional o preceito que condiciona o acesso a subvenção à obtenção de mais de 10% dos votos. O caso repetiu- se agora porque a norma constante do artigo 390º se manteve inalterável no código eleitoral. 

No acórdão de 11 de Abril de 2018 o TC não chegou a declarar a inconstitucionalidade da norma. Não lhe cabia essa função enquanto tribunal de recurso eleitoral. Depois da decisão, a iniciativa para qualquer solução mais definitiva do assunto só podia ser do legislador que com um voto qualificado de mais de dois terços dos deputados presentes podia alterar a lei eleitoral. Uma outra via podia ter sido uma iniciativa do Procurador-geral da República com vista à fiscalização abstracta da constitucionalidade que levasse à declaração da inconstitucionalidade da norma. 

Ninguém agiu e algo que pode configurar um sério obstáculo a candidaturas não apoiadas por estruturas políticas com uma base financeira mais sólida numas eleições que se quer supra partidárias ficou sem o tratamento devido. Omissões similares, além do desgaste provocado às pessoas que repetidamente são forçadas a recorrer do mesmo para verem os seus direitos protegidos também acabam por afectar as instituições. Deixam transparecer uma certa indiferença perante a necessidade de eficiência e eficácia no funcionamento do sistema político que é essencial para o reforço da confiança na democracia. 

Não espanta que após vários exemplos de situações, que podem configurar descaso, prioridades trocadas ou até o entendimento da política como bloqueio, as instituições se descredibilizem, queixas da morosidade de justiça aumentem e o sentimento difuso de insegurança a vários níveis se instale. Permite-se, por exemplo, que se deixe arrastar para além do tempo estabelecido o mandato de titulares de órgãos eleitos como a alta autoridade para a comunicação social, a comissão nacional de protecção de dados, o conselho superior de magistratura e o conselho do ministério público. Aconteceu mais uma vez. A última sessão legislativa terminou em Julho último sem que as partes no parlamento tenham chegado a acordo para a eleição desses órgãos. Como resultado, continuaram numa espécie de limbo com membros desmotivados, legitimidade algo limitada e alguma fragilidade no planeamento e na resposta às novas realidades de uma sociedade cada vez mais complexa e desafiante. 

E a verdade é que não funcionando em pleno as diferentes partes do sistema, seja porque falta de colegialidade e unidade no exercício das suas competências, seja porque não há assunção plena das responsabilidades intrínsecas aos cargos, é a efectividade e accountability do todo que fica posta em causa. Os cidadãos acabam por sentir isso e, perante o progressivo descrédito das instituições, exacerbado não poucas vezes pelo protagonismo excessivo de governantes e de outras figuras na esfera pública, por práticas eleitoralistas e crispação entre os partidos políticos , se deixam atrair por movimentos inorgânicos de contestação, como ficou evidente nas manifestações recentes em vários pontos do país. O problema é o que vem depois, ao não acontecerem as mudanças pretendidas. A tendência é instalar-se a frustração e o ressentimento acompanhado de perda de confiança no presente e futuro do país. 

Em situações normais tais derivas é o que de pior pode acontecer porque minam as energias do país, enfraquecem o sentido do bem comum e deixam as pessoas expostas a apelos populistas de todo o tipo que já de outras realidades se sabe que não levam a nada, senão à autocracia e ao desespero. Na actual situação, com a gravidade conhecida devido à sobreposição de várias crises em que as incertezas são muitas, deveria haver um esforço excepcional de carácter nacional para conter tais derivas. Infelizmente, não é o que se vê. Os apelos feitos ao governo a partir de vários quadrantes para efectivamente se estruturar para liderar nestes tempos excepcionais aparentemente caem em saco roto. 

Pelo que se assiste pela televisão e principalmente nas redes sociais com a sucessão de visitas de governantes às ilhas e concelhos, participação em eventos repetidos e movimentações de vária ordem nem sempre pelas melhores razões, não é claro que fique muito tempo para reflexão estratégica, actuação concertada e devidamente ponderada. Aliás, não se nota unidade e colegialidade na acção do governo. Mesmo quando se quer caminhar na direcção certa, a tentação de fazer navegação à vista e empurrar com a barriga leva a falhas custosas como as que se verificam nos transportes aéreos e marítimos e já dão sinais em outros sectores. Num ambiente desses fica difícil fazer o apelo à solidariedade tão necessário para se reunir as energias e conter os efeitos das crises que afectam o país. 

É por isso imperativo que haja uma inflexão da actual situação. O sistema político tem que funcionar e inspirar confiança. A todos os partidos políticos e titulares de órgãos de soberania deve-se exigir responsabilidade constitucional. A sociedade civil e os cidadãos devem ter bem presente que os seus direitos e a sua autonomia dependem do sistema democrático liberal que existe no país. A atitude deve ser de garantir o funcionamento pleno do sistema político, obrigar os eleitos e os detentores de cargos públicos a exercer em plenitude as suas competências e exigir responsabilidade pelo exercício do poder. Como se pode ver do que acontece noutros países, fazer diferente e descredibilizar as instituições, deixar-se apanhar pelas paixões e apelos às emoções dos populistas é um caminho que o país, com as fragilidades e vulnerabilidades de Cabo Verde, nunca devia arriscar-se. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1082 de 24 de Agosto de 2022.

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