Cada vez mais os sentimentos de indignação e as manifestações de ressentimento que fazem vibrar as redes sociais e tornam certas matérias virais são absorvidos e amplificados pelos média tradicionais em particular a rádio e a televisão, acabando por condicionar todo o discurso na esfera pública.
Intervenções no parlamento marcadas pela excessiva polarização, a pouca preocupação com a contextualização das matérias e juízos sobre a motivação dos deputados dão conta dessa influência. Também grandemente afectadas são as reacções dos outros órgãos de soberania apanhados no torvelinho das paixões destiladas nas redes sociais e obrigados a comentar e a posicionar-se quase instantaneamente e muitas vezes sem a devida ponderação sobre questões que no momento prendem a atenção das pessoas. A completar o quadro notam-se as vozes de movimentos inorgânicos galvanizados pela expressão de indignação nas redes sociais que não poucas vezes tomam a forma de contestação anti-sistema, demagógica e populista.
É evidente que daí só pode resultar o empobrecimento do discurso público, tensões políticas desgastantes entre os poderes e tratamento imperfeito ou superficial de matérias cruciais devido à incapacidade de se chegar a compromissos e firmar acordos. Os problemas do país continuam sem serem devidamente equacionados e na falta de consenso sobre os seus contornos não se vê a possibilidade de se desenvolver um diálogo construtivo para os resolver definitivamente. Pior ainda, é que quando por alguma razão se consegue algum grau de clarificação de algum assunto como que se quer voltar atrás e deixá-lo outra vez indefinido e dessa forma propício para ser arma de arremesso, alvo de suspeições e material para teorias de conspiração.
Viu-se isso recentemente na reacção altamente negativa de certos sectores de opinião ao acto clarificador que foi o voto da suspensão do deputado em prisão preventiva. A verdade é que com a resolução da Assembleia Nacional já foi possível marcar o julgamento para o fim de Agosto e abrir o caminho para se ultrapassar a situação de desgaste das instituições que a perpetuação do problema estava a criar. Outros problemas com impacto gravoso a vários níveis têm sido trazidos à praça pública no meio desse mar de paixões como se pôde verificar ao longo da semana com as denúncias do sindicato de pilotos, as vicissitudes dos barcos da empresa CV Interilhas e a morte do adolescente evacuado por bote da Ilha Brava. São oportunidades de manifestação de indignação sobre matérias como os transportes aéreo e marítimo, evacuação médica e emergências nas diferentes ilhas e consequências de movimentação de mão-de-obra dentro do país e para o exterior, mas que depois não conduzem a praticamente nada. Não se traduzem em novas abordagens e disponibilidade para se chegar a entendimentos e resolvê-los. Simplesmente tendem a repetir-se quando o momento se oferecer.
Romper com este círculo vicioso implicaria disposição para clarificar as questões, contextualizá-las e abrir-se ao diálogo para as resolver. Em relação, por exemplo, à TACV já se vai em mais de três comissões parlamentares de inquérito nos últimos anos e certamente que como das outras vezes muito pouco vai sair daí. Na realidade, devia-se assumir que é praticamente impossível gerir uma empresa em que, entre várias coisas, ministros anunciam rotas, deputados fazem anúncios de actos de gestão da empresa, sindicatos montam uma feroz resistência a qualquer mudança e uma multidão de ex-trabalhadores faz valer os seus direitos adquiridos logo que a empresa tenta levantar-se de mais um revés. Não é à toa que a TACV acumula dívidas derivadas de todas essas ineficiências que continuam a ser ignoradas quando devia ser claro que o mercado da aviação dirigido fundamentalmente para nacionais e emigrantes dificilmente tem escala ao nível do tráfico para, sem subsídios, alimentar rotas para Europa, África e Américas como se insiste em apregoar.
No mesmo sentido devia-se ter em devida conta a natureza e dimensão do mercado cabo-verdiano quando se opta por um serviço público de ligação entre as ilhas. Há que assumir que com os enormes constrangimentos em termos de número de pessoas e de volume de carga expectável dificilmente será uma operação possível sem subsídios. Nunca é possível nas ilhas como bem mostram outros arquipélagos da Macaronésia. Isso, porém, tem que ser dito e assumido e não escamoteado para depois não se ter serviço de qualidade e muito ruído. Também deve-se ter uma visão compreensiva das necessidades de evacuações médicas, emergências e acções de busca e salvamento para não se estar com soluções ad hoc como fazer barcos comerciais pernoitar em ilhas mais isoladas para responder a eventuais acidentes ou usar aviões de passageiros para o mesmo fim.
Outras questões como as consequências da mobilidade da mão-de-obra no espaço nacional, os problemas criados tanto nas ilhas de origem das migrações como nas ilhas de destino devem ser encaradas com realismo e pragmatismo, visando a criação de empregos de qualidade e o desenvolvimento de uma base produtiva diversificada e geradora de riqueza. Da mesma forma deve ser vista a possibilidade da qualificação da mão-de- obra para emigração também numa perspectiva não estática, mas dinâmica com as vantagens que daí podem advir na diminuição do desemprego e no aumento das remessas. A opção por clarificar situações e evitar indefinições que deixam espaço para promessas fantasiosas e exploração demagógica retiraria pretexto para as ondas sucessivas de indignação que só servem para extremar posições, desgastar instituições e impedir soluções consensualizadas.
Outrossim, saber responder à ineficiência e a ineficácia de muitos serviços públicos essenciais ajudaria a conter a dívida pública e a melhorar a competitividade. Também seria essencial para renovar a confiança cívica tão necessária para acabar com o sentimento de insegurança e restaurar a autoridade pública sem a qual não irão diminuir os custos com os roubos sistemáticos de água e energia que têm reflexos transversais na economia e no bem-estar das pessoas. Já é claro que não é só com privatizações, identificação de parceiros e desagregação ou, no sentido inverso, com integração de empresas ou outras iniciativas similares que se vai conseguir os resultados pretendidos. Fazer as pessoas cair no real é essencial, mas o factor essencial para isso passa por confrontar os factos, ter o desejo de conhecer a realidade circundante e vontade para intervir e fazer as reformas necessárias.
Cada vez mais vai ser mais difícil fazer o que de necessário se impõe para que a esfera pública não se degenere mais nesses fitos de indignação e ressentimento. Como disse o filósofo canadiano Marshall McLuhan citado por Ezra Klein do New York Times “o meio é a mensagem” e assim como com o advento da televisão tudo se transformou em entretenimento também “as redes sociais nos ensinaram a pensar com a multidão”. Se não se souber comunicar de forma a focar a atenção no que interessa para além das paixões da multidão, os problemas vão-se manter. O esforço de quebrar o círculo vicioso é cada vez maior como se pode ver da actual situação em que se constata que nem com os efeitos gravosos da tripla crise há sinais de mudança de comportamento. Pior será se continuar com a tendência de exposição sem filtro aos efeitos das redes sociais como se pode depreender do entusiamo como são abraçadas por governantes e outros elementos da classe política do país. Razoabilidade e eficácia não se pode esperar muito daí.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1080 de 10 de Agosto de 2022.
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