É crença geral que face à desgraça ou mesmo a situações complicadas o espírito de solidariedade dos cabo-verdianos vem ao de cima. Séculos de secas e fomes teriam criado esse reflexo que ao longo dos tempos e no limiar da sobrevivência tornou possível a emergência nas ilhas de uma sociedade com uma natureza, uma cultura e uma fisionomia própria. Seria de esperar que, perante as três crises da seca, da pandemia e da guerra de Ucrânia, que se conjugam e se reforçam numa ameaça quase existencial, tal reflexo ancestral se revelasse mais uma vez.
Aparentemente os tempos são outros e a ausência desse espírito solidário transversal à toda sociedade sente-se no estado da Nação, hoje dominado por polarização extrema, excesso de protagonismo pessoal e partidário e corrida interesseira aos recursos públicos por vários actores.
É verdade que se continua a ver sinais múltiplos de solidariedade vindos de diferentes quadrantes da sociedade com particular destaque para os provenientes das comunidades emigradas que aumentaram significativamente as suas remessas para os familiares. Da parte do governo foi oficialmente declarada a situação de emergência social e económica há cerca de um mês com o objectivo principal de sensibilizar e canalizar a ajuda Internacional ao país. Posteriormente o primeiro-ministro avançou com a proposta de uma frente comum de organizações da sociedade civil, confissões religiosas, ONGs e câmaras municipais para enfrentar as crises. Mas os resultados dessas iniciativas e de eventuais gestos de solidariedade não serão devidamente potenciados se não houver uma viragem fundamental na forma como as pessoas, a sociedade e o Estado encaram a actual situação da tripla crise.
De facto, na ausência de um consenso básico quanto à natureza excepcional do desafio actual e quanto aos compromissos a serem assumidos para o enfrentar interesses divisivos irão limitar o impacto das medidas tomadas e levar ao desperdício de recursos. Na generalidade das democracias como por exemplo na Itália, na França, nos Estados Unidos acontece algo similar. A disputa entre os partidos e o activismo de grupos com posições extremas em matéria cultural e social não deixam espaço para muitos compromissos. Questões existenciais como a pandemia e alterações climáticas e desafios como a transição energética, utilização de energias renováveis e os efeitos de digitalização não são enfrentados com a urgência que merecem e de forma consistente e sistemática como seria de exigir. A diferença é que nesses países há alguma capacidade de acomodação dos prejuízos que advêm dessa atitude.
Em Cabo Verde, essa capacidade é mínima por razões designadamente de dimensão do país e do mercado, de localização e de fragilidade da base produtiva. Se em tempos normais esse facto deve ser sempre considerado, na situação actual é algo crítico que devia compelir os actores políticos, mas também os sociais como os sindicatos a uma outra atitude. De facto, não é comportável ter todos a guerrearem-se à volta de sectores-chave como transportes aéreos, transportes marítimos, electricidade e água com exigências irrealistas, posições rígidas e soluções fantásticas. Os dois maiores partidos já se alternaram no governo mais do que uma vez e deviam conhecer as limitações sérias do país para não se enveredarem por caminhos que só eternizam os problemas e têm levado repetidamente a perdas avultadas de recursos.
Infelizmente até agora as alternâncias não têm trazido mais maturidade para a governação do país no sentido de maior disposição para negociar e chegar a compromissos com outros actores políticos e sociais. Quem vai para o governo ou passa a ser oposição, tende a repetir as mesmas atitudes que anteriormente criticava. É facto que as repetidas maiorias absolutas têm garantido estabilidade governativa ao país e permitido cumprir mandatos de cinco anos, mas paradoxalmente não se têm prestado a uma governação em que as políticas implementadas a curto, médio e longo prazo se traduzam em ganhos estratégicos e sustentáveis. Pelo contrário, insiste-se num eleitoralismo quase permanente que faz de cada acto ou realização um ganho para o governo e uma perda para oposição e o resultado, para além do crescimento económico que ainda não satisfaz, são os elefantes brancos, as reformas inacabadas ou desconexas e o aumento da dívida pública.
Mais do que nunca urge ultrapassar a actual situação de deficiente cooperação, da falta de confiança e de solidariedade muito aquém do que historicamente o país se reclama e que justifica o epíteto de nação resiliente. Toda ajuda disponibilizada ao país e todo o esforço posto pelas pessoas só terão impacto se uma ordem social e legal for efectivamente mantida. Sentimento de insegurança a todos os níveis tem que diminuir e atentados à autoridade pública como o roubo escandaloso de energia eléctrica não podem continuar. Mas para se ter a ordem social indispensável para enfrentar a crise sem precedente vivida actualmente há que primeiro pôr fim à tensão perniciosa nas instituições que apaga aos olhos das pessoas as virtudes do pluralismo e as deixa expostas aos discursos anti-sistema e anti-partido de populistas e outros actores políticos com tendências autocráticas.
O exemplo deve vir das lideranças que devem primar pela verdade e pela aderência aos factos nas suas intervenções na esfera pública. Verdade e confiança andam juntos e não se compadecem com ilusionismos, ambições desenfreadas e arrogância de poder. O estado da Nação deve melhorar no sentido de valorizar mais a liberdade, a autonomia e a solidariedade para que a esperança de uma via melhor realmente se concretize.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1078 de 27 de Julho de 2022.
Sem comentários:
Enviar um comentário