Cabo Verde, através da resolução nº 80/2022 de 10 de Agosto, criou um Dia da Diplomacia referenciada à data de 16 de Setembro da aceitação do país na Organização das Nações Unidas. Com a escolha feita do dia para celebrar a diplomacia cabo-verdiana e o trabalho realizado pelos seus profissionais destacados no país em missões estrangeiras provavelmente se quis destacar a importância do multilateralismo nas relações internacionais e a pertença a uma comunidade de valores suportada na Declaração Universal dos Direitos Humanos adoptada em 1948 pela ONU. Também se quis afirmar a adesão forte e engajada a princípios e valores, cujo substrato bebe numa longa tradição de luta pela liberdade e de respeito pelas minorias que vem da Magna Carta, do Bill of Rights inglês, da declaração universal dos direitos do homem da revolução francesa e da declaração da independência dos Estados Unidos da América.
O momento para a criação do Dia da Diplomacia é a vários títulos especial. Antes de mais o mundo está numa encruzilhada em que há previsões de desglobalização, de um mundo multipolar e de alinhamento económico políticos para resiliência com reforço global de segurança e das cadeias de abastecimento e um redireccionamento do investimento para os países que comungam dos mesmos valores. As ofensivas diplomáticas a que se vem assistindo por todo o mundo e em particular em direcção à África vão no sentido de atrair países para os campos político-económicos já em emersão. Nesse sentido é que se compreende a digressão do Ministro dos Negócios Estrangeiros russo por vários países africanos assim como as visitas do presidente francês e do chanceler alemão e ultimamente do secretário de estado americano, da embaixadora americana na ONU e de delegações de congressistas e senadores à Africa.
Cabo Verde também tem sido alvo dessas visitas porque entre outras razões é referenciado, quando comparado com outros países africanos, pela qualidade da sua democracia, pelo nível de governança visto na gestão da pandemia e da vacinação e pela resposta que tem dado na mitigação dos efeitos sociais das crises sucessivas que têm assolado o país e o mundo. Durante a visita da embaixadora americana na ONU deu-se a conhecer o incentivo e o apoio americano a uma eventual candidatura de Cabo Verde a membro da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Nas circunstâncias actuais o convite provavelmente estaria a confirmar o reconhecimento da pertença de Cabo Verde à comunidade de valores que passa pelo nome de Ocidente e que defende uma ordem mundial com regras, vê os direitos humanos como valores universais e se opõe à ofensiva das autocracias suportada por um nacionalismo que ameaça a liberdade e a autodeterminação de povos vizinhos.
A oportunidade da adopção do Dia da Diplomacia devia ser aproveitada para uma reflexão aprofundada sobre o que tem sido as linhas gerais da diplomacia cabo-verdiana e como foi condicionada pelo contexto histórico marcado pela Guerra Fria e pelo ideal do pan-africanismo. Também para se saber como a acção diplomática de Cabo Verde se deixou moldar para atrair ajuda externa e como, considerando as várias tentativas de avançar com uma diplomacia económica, ela tem ficado aquém do desejável no apoio aos esforços de atracção de investimentos, no desenvolvimento de mercados e na cooperação tecnológica e científica. A encruzilhada em que o mundo se encontra actualmente perante o provável fim de uma ordem mundial e a emergência de outras realidades político- -económicas, marcada pelo “decoupling” da economia chinesa e uma espécie de ostracismo da Rússia, requer uma outra abordagem talvez mais subtil que não se compagina com as posições de não alinhamento de outrora e as fantasias da cooperação Sul-Sul que resultaram em muito pouco.
Da máxima que em matéria de relações externas os países não têm sentimento e só procuram os seus interesses pode-se extrair que para se ter uma diplomacia consistente e efectiva é fundamental que o país tenha conhecimento de si próprio, da sua história e da sua cultura e tenha controlo da narrativa que perpassa a sua acção e o seu relacionamento com o mundo. De outro modo, é a ambiguidade e ineficácia nas relações como por exemplo tem acontecido com a relação com a Guiné-Bissau.
A adopção por Cabo Verde de figuras, símbolos e narrativas da história moderna guineense tem levado durante décadas a tensões, mal-entendidos e até a hostilidades abertas a começar pelo fracasso do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde, passando por momentos de relações frias ou quase inexistentes entre os dois países como aconteceu nos anos oitenta. Ainda hoje não se pode dizer que na interacção sócio-económica e cultural se conseguiu o que seria previsível, considerando o historial comum no quadro do império português. Aparentemente há demasiados óbices para uma relação normal e não se consegue potenciar proximidades de relacionamento que eventualmente existam.
O outro lado do imbróglio é a própria insegurança identitária que gera em Cabo Verde e que acaba por afectar a relação com os países vizinhos no continente africano. Procura-se durante décadas uma integração económica que até para os países continentais se está longe de atingir enquanto que as relações económicas ligadas à importação, exportação, investimentos, fluxos turísticos e ajuda externa são essencialmente com o espaço europeu onde sempre se situaram. Recentemente isso foi outra vez comprovado com as ofertas de milhares de empregos vindas do sector turístico de Algarve. Uma relação com sucesso com os países africanos terá que ser em outros moldes como por exemplo as Maurícias fizeram.
Depois de terem perdido o acesso especial que os seus fundos de investimento tinham ao mercado indiano, as Maurícias voltaram- se com sucesso para a África tornando-se num hub de investimento. As ilhas em geral, pela sua própria natureza e sem possibilidades de economia de escala em vários sectores, têm que saber prestar serviço para países continentais e um deles é o de minimizar riscos nas transacções. Teimar em seguir as vias de sempre como parece ser a intenção na criação do ministério de integração regional só desvia a atenção de onde relações económicas diversificadas já foram desenvolvidas e há potencial para se aprofundar mais com visão, qualificação de mão- -de-obra, diversificação da oferta e serviço de qualidade.
Para isso, porém, é fundamental um sentido de unidade, a assunção de uma narrativa que explica o país ao mundo e ambição de vencer. Também essencial é nunca se deixar apanhar pela vitimização e pelo ressentimento. Essa deve ser a postura a adoptar pela diplomacia do país e também pelas pessoas e pela sociedade civil. Ambiguidades identitárias devem ser ultrapassadas porque como disse Elisabeth Moreno, ex-ministra da França de ascendência cabo-verdiana, em entrevista à TCV, a força de Cabo Verde é manter-se unido e que é “estupidez” insistir com a caracterização de cabo-verdianos em “badios e sampadjudos” porque o povo é um só e as exigências de um mundo de hoje de “terrível competição” são imensas. Vários sinais de líderes dos países do Ocidente apontam para uma nova ordem internacional organizada sobre uma comunidade de valores e privilegiando resiliência sobre eficiência. Investimentos em cadeias de valor e de abastecimento serão feitos tendo em conta a segurança e a confiança que países parceiros poderão proporcionar na base do chamado friend-shoring. A diplomacia de um pequeno país para funcionar neste novo contexto onde já não servem as experiências dos países não-alinhados entre dois blocos militares e ideológicos terá que ser subtil, mas inevitavelmente engajada.
A assinalar o que será esse novo contexto vê-se no conceito estratégico da NATO segundo o qual parceiros são os que compartilham os mesmos valores e interesses na defesa da ordem da internacional baseada em regras e que com esses a abordagem será orientada por interesses, flexível, focada e capaz de se adaptar às realidades geopolíticas em mudança. Ser bem-sucedido neste processo exigirá reflexão séria sobre o futuro da diplomacia do país. Que a data criada sirva de estímulo para isso.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1081 de 17 de Agosto de 2022.
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