Na semana passada, a propósito de um parecer do Instituto do Património Cultural (IPC) sobre um projecto de lei na assembleia nacional a classificar a língua portuguesa como património nacional, o país, estupefacto, passou a saber que afinal nem os deputados nacionais nem a assembleia nacional têm competência para isso.Segundo o ministro, a iniciativa só pode partir do ministério da cultura e do IPC. Não se sabe é onde fica o princípio de que o parlamento pode legislar sobre toda e qualquer matéria, exceptuando o que é de reserva exclusiva do governo, e que no processo pode revogar qualquer dispositivo legal contrário, designadamente o que eventualmente se encontrar nos estatutos do IPC. Um outro aspecto que não se compreende é qual a razão para o alvoroço sobre considerar a língua portuguesa como património quando a na lei de bases do Património Cultural nº 102/III/1990, em que o decreto regulamentar nº 3/2020 de 17 Janeiro que cria o actual IPC, se enquadra explicitamente inclui “a língua nacional e a oficial” entre os bens imateriais que devem ser preservados, defendidos e valorizados (artigo 3º, alínea d).
É ainda curioso que três meses depois, em Abril de 2020, através da lei da A.N. 85/IX/2020 que aprova o Regime Jurídico de Protecção e Valorização do Património Cultural, finalmente se revogou a lei de bases de 1990 com o argumento, entre outros, de no articulado estar plasmado o “carácter estatizante da cultura”, ou seja, de na prática se governamentalizar a cultura. Passados quase três anos parece que não se sentiu a necessidade de mudar os estatutos do IPC para “desgovernamentalizar” e adequar-se à nova lei e o resultado é a interpretação que que só o IPC pode identificar, documentar, inventariar a classificação de bens a património imaterial, com exclusão até da própria Assembleia Nacional. Nem se conseguiu flexibilizar essa postura rígida com a abertura já presente na nova lei (artigo 17º) de o processo de classificação de bens culturais também poder ser desencadeado “pelas administrações locais ou por qualquer pessoa singular ou colectiva”, cabendo ao ministério prestar o apoio técnico requerido.
A estatização da cultura nacional pela via da monopolização governamental do que deve ser considerada cultura cabo-verdiana, história de Cabo Verde e património é uma realidade incontornável que a lei referida de Abril de 2020 pretende inflectir. Os seus efeitos notam-se, por exemplo, na insipiência no ensino da história do país, que é feito à mistura com a cultura cabo-verdiana a todos os níveis do sistema do ensino e também na ausência de departamentos e cursos de história nas universidades. Nas duas últimas décadas a estatização ganhou um outro ímpeto com a criação do Instituto de Investigação e Património Cultural, em 2004, e depois do IPC, em 2014, com atribuições na investigação nos domínios da história, sociologia, antropologia, linguística e arqueologia com vista à promoção e divulgação do que nos estatutos referiam-se como a “própria História da Nação” e “estabelecer cientificamente os verdadeiros contornos da antropologia cabo-verdiana”.
Ou seja, estudos que normalmente deviam ser feitos em meios académicos com autonomia própria das universidades e liberdade intelectual eram entregues a instituições governamentais com o objectivo de posterior divulgação junto dos canais tradicionais como escolas e comunicação social e eventual condicionamento de agentes e eventos culturais. Não estranha que com esse tipo de dirigismo do Estado em matéria de investigação histórica e cultural, contrariando o princípio constitucional de que o Estado não “programa a educação e o ensino segundo directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”, se esteja a cavalgar ondas identitárias polarizadoras da sociedade a partir das quais se quer ver relações de dominador e dominado e se promove o sentimento de vitimização. O conflito aberto entre o crioulo e o português é uma manifestação clara disso.
Muito dessas dinâmicas polarizadoras não deveriam ser esperadas em Cabo Verde, um arquipélago onde vários séculos antes da independência desenvolveu consciência de nação e não tem divisões de natureza rácica, étnica ou linguística. De facto, no quadro democrático actual, globalmente ninguém é preterido no acesso a cargos políticos e outros cargos públicos por razões de tonalidade da pele, religião ou origem social e ninguém duvida que oportunidades de carreira profissional ou empresariais estão abertos a todos sem discriminação. A dificuldade que, porém, persiste e que é fracturante foi introduzida no acto da proclamação da independência com a afirmação que no âmbito do projecto do PAIGC da Unidade Guiné/ Cabo Verde se escolheu o destino africano para o povo as ilhas.
Em consequência, como o professor doutor Gabriel Fernandes explica no seu livro “Em busca da Nação” pag. 202: No novo contexto, em que a política, mais do que a cultura, é o que passa a nortear sua luta emancipatória, os cabo-verdianos não se concebem a partir de dentro, da sua peculiaridade cultural, mas sim de fora, da sua compartilhada situação de africanos e dominados”. E continua, “…os actores políticos cabo-verdianos acabaram por exacerbar as diferenças internas abrindo um fosso entre os próprios cabo-verdianos, doravante percebidos, não em termos culturais-unitários, como parte integrante de uma entidade peculiar, mas sim político-dualísticos, sob o rótulo de anticolonialista ou de colaboracionista”. Hoje, já se sabe que que o projecto da unidade tinha ficado completamente comprometida com a morte de Amilcar Cabral e prisão dos cabo-verdianos em Conacri, mas como esse facto, de acordo com as declarações, em 1990, na ilha do Sal, de um alto dirigente do PAICV, foi ocultado aos cabo-verdianos o seu impacto devastador na sociedade cabo-verdiana continua a fazer-se sentir até hoje.
Toda a política cultural estatizante ou governamentalizada e a apetência para a doutrinação em particular de crianças e jovens via o sistema de ensino, a comunicação social pública, instituições do Estado e até aulas magnas proferidas por actores políticos continuam. O que se pode chamar de uma idolatria do Amilcar Cabral e da luta de libertação acompanhado de fervor na “reafricanização dos espíritos” prossegue com os sucessivos governos independentemente da cor partidária sem que se tenha em conta os seus efeitos perniciosos de polarização da sociedade, de restrição da liberdade intelectual e do despojar do país da plenitude da sua história.
A esperança que o 13 de Janeiro poderia corrigir o grave desvio verificado em 1975 não se concretizou. Parte das razões da população para a rejeição da ditadura de partido único perdeu-se pelo caminho. O episódio inusitado à volta da classificação da língua portuguesa confrontando governo e deputados é o exemplo de como se pode ficar refém do passado e condenar-se a um círculo vicioso onde se alimentam mitos, dificuldades reais acumulam-se e problemas tornam-se progressivamente intratáveis.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1110 de 8 de Março de 2023.
Sem comentários:
Enviar um comentário