O confronto sobre as políticas de transporte seja marítimo, seja aéreo tem aumentado de intensidade e de virulência à medida que os problemas vão se agravando e possibilidades de resolução à altura das expectativas criadas se tornam cada vez mais remotas.E é assim porque, como não se consegue discutir o presente e o futuro, vasculha-se o passado da governação dos dois partidos do arco do poder enquanto as perdas se acumulam tornando os problemas praticamente intratáveis. Hoje são os transportes e também a habitação e o programa Casa para Todos que têm ocupado muito do debate político nas últimas sessões do parlamento. Amanhã e depois chegará a vez de outros sectores como a agricultura, a pesca, a energia, segurança, educação, saúde etc. a serem submetidos ao mesmo tipo de discurso crispado e estéril que simplesmente vai adiando a abordagem séria dos problemas e a discussão de eventuais soluções.
Varrer problemas para debaixo do proverbial tapete sem o conhecimento prévio das suas causas e sem ponderar devidamente sobre as consequências de não acção ou de abordagem não suportada por uma visão estratégica torna-os a prazo extremamente difícil de tratar e resolver. Sem uma cultura de se apoiar nos factos para fazer a análise da realidade do país e para se debater perspectivas plurais de como estrategicamente agir para alterar o estado de coisas, corre-se o risco de se ter uma democracia em que a imagem do político cada vez mais se aproxima da do “vendedor de ilusões”. Vários factores, incluindo tabus em relação ao conhecimento do passado, reminiscências de ideologias de há muito datadas e partidarização fracturante do próprio regime político, não permitem que a democracia enquanto conjunto de procedimentos se revele como a via para se chegar à verdade partindo do princípio que ninguém a detém em exclusivo. Em tais circunstâncias verdade é conveniência de cada um e fica impossível seguir o conselho do historiador e autor do livro “Sobre a Tirania”, Timothy Snyder, que “é preciso aprender a história, desafiar os mitos para se chegar a um futuro democrático”.
O facto da intratabilidade de muitos problemas com que o país se confronta estar a se revelar com maior acuidade nos últimos anos que também têm sido de policrise torna ainda mais urgente que o país arrepie caminho do que tem sido a sua forma de fazer política. De facto, a sequência de três anos de uma crise pandémica, alta inflação e guerra na Ucrânia devia ter tido o efeito transformativo na forma de actuar da liderança do país e da sua classe política. Infelizmente, o que se notou foi o acentuar dos aspectos performativos da actuação dos titulares dos órgãos de soberania, em detrimento de substância, amplificados por uma presença não poucas vezes excessiva dos próprios nas redes sociais.
As consequências vêem-se na crispação política a exacerbar-se ainda mais, na crise institucional que já quase paralisa os dois maiores municípios do país, no baixar do nível dos trabalhos parlamentares e nas crescentes fricções com o presidente da república. Também se manifestam na dificuldade em confrontar as fortes limitações de país arquipélago, a perder população, com uma reduzida estrutura produtiva e uma história de precariedade que a dependência do turismo em 25% do PIB só realça. Querer resolver problemas do transporte aéreo ou marítimo sem ter presente estas realidades é o que de há muito vem sendo feito nas múltiplas tentativas de reorganização do sector e o resultado vê-se nas dívidas acumuladas e na dificuldade até em garantir o mínimo. Algo similar, mas menos visível, talvez não por muito tempo, acontece noutros sectores como se pressente nas recentes críticas dirigidas aos sectores da segurança, saúde e educação.
O que não parece afectado pelo estado da política no país é o optimismo que emana de certos sectores da governação que põe como objectivo mobilizar 5 mil milhões de euros, duas vezes e meia o valor do PIB, junto de parceiros públicos e privados até 2030 e que para isso organiza-se uma conferência de parceiros na ilha da Boa Vista em finais de Abril, como já se tinha feito em Paris, em 2018, e outras vezes na ilha do Sal. De acordo com o vice-primeiro-ministro e ministro de finanças a transição energética, climática, a economia circular são temas que, no fundo, acabam por ‘facilmente’ convencer parceiros a injectarem recursos para que sejam concretizados.
O problema com esses expedientes, que já tiveram exemplos similares no passado movidos com agendas da altura, é que no fundo muito pouco acaba por se realizar: elefantes brancos proliferam; a dívida pública aumenta e qualquer choque externo põe a nu as vulnerabilidades do país e a precariedade das populações. Viu-se isso recentemente com a crise provocada pela seca a partir de 2017 que deixou claro o fraco retorno dos enormes investimentos que tinham sido feitos a partir de 2008 em estradas, barragens e Casa para Todos. Com o fim do período de carência em 2022 aumentou em cerca de 9 milhões de contos o serviço da dívida contraída.
A repetição periódica dessas situações incluindo prejuízos sucessivos e cumulativos de natureza económica e social indiciam que algo está errado na abordagem das questões de desenvolvimento e que provavelmente há uma desconformidade entre a realidade perspectivada por políticos e governantes e os dados concretos do país. Cabo Verde, sequestrado que foi por circunstâncias históricas que acompanharam o desmantelamento do império colonial português, parece estar enredado em contos, mitos e narrativas que não deixam o país revelar-se na plenitude da sua história e do processo secular de construção de uma identidade própria.
Sem conhecimento integral da real história do país, recursos que podiam ser capitalizados para o desenvolvimento não são reconhecidos, alertas quanto aos percalços de desenvolvimento num país pequeno e arquipelágico não são escutados e conflitos artificiais podem ser criados. Neste particular, o conflito que se instalou entre o crioulo e a língua portuguesa é o exemplo de como às enormes dificuldades de um país como Cabo Verde se pode somar artificialmente mais um entrave ao seu desenvolvimento. Todos os cabo-verdianos falam o crioulo e pelo seu uso em cerimónias oficiais e momentos solenes pelo presidente da república, pelo governo e pelos deputados vê-se que não é ameaçada nem ostracizada.
A cabo-verdianidade, porém, não é expressa somente em crioulo como comprova todo o espólio literário que foi instrumental para a emergência da consciência da nação e que na sua quase totalidade resulta do uso criativo do português. Se conflito existencial entre as duas línguas não se verificava antes, não se compreende que quase cinquenta anos depois e com toda a gente a falar crioulo o presidente da república se sinta na necessidade de declarar que “N ta ben sta na linha di frénti di konbáti pa ofisializason plénu di nos Kriolu”. O posicionamento do PR levanta uma série de questões. Para começar no sistema constitucional cabo-verdiano só os deputados têm iniciativa em matéria de revisão constitucional. Sendo representante da unidade da nação e guardião da Constituição vigente não se vê como é que o PR vai ser parte no debate público e proceder para influenciar deputados que também representam os partidos no parlamento. Por outro lado, se houver revisão constitucional e qualquer que for a direcção tomada pelo legislador constituinte o PR não pode recusar a promulgação das leis de revisão (Artº 291 da CRCV).
De facto, nas circunstâncias e nos termos em que se referiu, o posicionamento do PR foi desnecessário: o crioulo só ainda não é oficial porque não se consensualizou uma versão estandardizada e escrita e desde de 1999 que há um comando constitucional a obrigar o Estado a criar as condições nesse sentido. Também foi pernicioso porque, pela linguagem utilizada, alimenta-se a conflitualidade linguística com consequência para disposição dos alunos em aprender o português e serem proficientes na língua oficial do país enquanto cidadãos plenos. Uma conflitualidade que não se pode negar considerando a hostilidade dirigida por certos sectores contra a Escola Portuguesa de Cabo Verde porque procura fazer o óbvio que é criar um meio imersivo para mais rápida aprendizagem da língua e suprir o facto que praticamente fora da escola só se fala o crioulo.
Neste início do segundo ano da guerra na Ucrânia, em que incertezas e imprevistos toldam a imagem do que pode vir à frente, o foco devia estar em conduzir o país com base segura, sem realidades ficcionadas, e pôr a democracia a funcionar de forma a encontrar soluções duradoiras para os problemas de desenvolvimento. Humildade, competência e procura da verdade deviam caracterizar a actuação dos actores de forma a se diminuir os conflitos e, com confiança e solidariedade se enfrentar os grandes desafios que o país tem para frente.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1109 de 1 de Março de 2023.
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