A reacção de alguns actores políticos face ao acórdão n.º 17/2023 do Tribunal Constitucional (TC), que considerou constitucional a resolução da Assembleia Nacional autorizando a detenção do deputado Amadeu Oliveira para efeito de interrogatório judicial, não tem sido particularmente construtiva. De facto, reagir a uma decisão do TC com declaração política no parlamento e pedido de audiência ao presidente da república não é o que se espera de quem com responsabilidade deve velar pela integridade do sistema político suportado pelo princípio da separação e interdependência dos poderes.
O Tribunal Constitucional é o órgão supremo da justiça constitucional no país e, enquanto tal, é o regulador do processo político-constitucional. Como dizem os constitucionalistas, a começar pelos obreiros da Constituição americana Madison e Hamilton, numa democracia liberal e constitucional não se pode fazer a interpretação da Constituição depender do tumulto e conflito do processo político nem permitir que todas as questões constitucionais fossem decididas no âmbito da barganha política. Daí a necessidade da existência de um tribunal formado por juízes independentes que, segundo John Marshall, juiz presidente do supremo tribunal dos Estados Unidos, tido como o fundador do “judicial review”, deve “enfaticamente dizer o que a Lei é”. E nesse sentido a sua decisão é virtualmente final.
O acatar da decisão judicial, porém, não tem que significar para os outros poderes inibir-se ou limitar-se a manifestações públicas, às vezes patéticas, que só descredibilizam o sistema ou o deixam exposto a ataques dos descontentes e inimigos da democracia. Os deputados podem, por exemplo, ter a iniciativa de rever o regimento da assembleia nacional e tornar a actuação da Comissão Permanente mais conforme ao que está na Constituição. Em matéria de gestão de mandatos dos deputados pode-se ir em sede de revisão dos estatutos dos deputados para uma solução que, a exemplo do que existe em outras paragens, exige para autorização para a suspensão de mandato uma maioria absoluta de votos por escrutínio secreto no plenário da assembleia nacional. Aliás, ela já existe nos estatutos actuais para os casos de autorização de prosseguimento de procedimento criminal (nº 4 do artigo 11º) e bastaria alargar para todas as autorizações de levantamento da imunidade. Também podia-se legislar para que com os pedidos vindos do poder judicial se suspender o tempo de prescrição do procedimento criminal e na passagem de uma legislatura para outra não permitir que caducassem.
Seguir pelo caminho de legislar ou mesmo de introduzir projectos de revisão constitucional serviria para credibilizar o parlamento não permitindo que a imunidade parlamentar fosse confundida com impunidade ou que a imagem de ser joguete de outros poderes passasse. Infelizmente, a via por que aparentemente se quer ir é a de contestar a decisão do TC, que se devia tomar como final em matéria de interpretação constitucional, com acusações até de estar a rever informalmente a Constituição. E tudo por uma prática institucional, há mais de trinta anos estabelecida, que atribui à Comissão Permanente da Assembleia Nacional, funcionando entre as reuniões plenárias e sessões legislativas, a gestão do mandato dos deputados.
Quantas vezes a Comissão Permanente já deu autorização para deputados serem ouvidos como declarantes, testemunhas e até como arguidos nos meses entre Outubro e Julho em que decorre a sessão legislativa. Quantas vezes autorizou a saída do país do presidente da república. Até já autorizou o PR a declarar pela primeira vez o estado de emergência a 28 de Março de 2020. Em todas as situações sempre houve possibilidade de recurso para a plenária e no caso da autorização do estado de emergência foi posteriormente ratificada pela plenária.
Com uma prática tão consolidada de uso de várias competências entre as reuniões e as sessões plenárias durante três décadas não se vê que haja costume contra a Constituição, ou costume limitador de direitos fundamentais ou mesmo de polémica aberta sobre o papel da Comissão Permanente. O que se vê é a reacção de um partido contra as instituições porque perdeu uma jogada política de alinhamento com um discurso populista e contra o sistema judicial que acreditou podia ter-lhe dado mais deputados, deputados em mais de um círculo e número de deputados suficiente para criar um grupo parlamentar. Repete-se o padrão de tomar como os principais alvos no questionamento da democracia liberal o sistema de justiça e o parlamento e é curioso que em boa parte das vezes são os próprios partidos os principais promotores dessa descredibilização das instituições.
No parlamento a degradação do discurso político tem sido agravada com a introdução cada vez mais frequente de questiúnculas municipais em debates que deviam ser de políticas nacionais. De facto, nem os deputados nacionais são representantes das câmaras municipais, nem a assembleia nacional tem a tutela sobre os municípios e muito menos a tutela de mérito. Em consequência todos perdem. Não se respeita a autonomia dos municípios que têm os seus próprios órgãos de poder político devidamente eleitos e responsáveis perante os respectivos munícipes, desperdiça-se o tempo parlamentar, alimenta-se um protagonismo deslocado de deputados que na realidade não representam municípios e cria-se mais oportunidade de crispação entre os partidos ao se ter todos a se esforçarem por dar cobertura política às câmaras municipais onde são maioria.
Acusações de corrupção mútuas tanto no passado como no presente alargadas também às câmaras municipais contribuem para degradar o discurso político e tornar as posições ainda mais irreconciliáveis. No cômputo global tais acusações de falta de transparência e não prestação de contas acabam por não corresponder à imagem que o país projecta em vários rankings internacionais sobre corrupção e governança, mas não deixa de afectar negativamente o ambiente político. E o resultado é que os partidos cada vez menos se mostram disponíveis para equacionar e resolver os problemas reais do país. Tendem a agravá-los como acontece nos dois maiores municípios onde se mostram incapazes de influenciar os seus representantes nos órgãos de poder local de forma a terminar com a crise institucional instalada e funcionarem dentro da legalidade, respeitando os procedimentos de há muito estabelecidos.
A Cabo Verde, ainda a sofrer o impacto da tripla crise causada pelas secas, pandemia e guerra na Ucrânia e preocupado com um futuro de incertezas, o que menos precisa é de um quadro de enfraquecimento das suas instituições e da sua liderança devido a excesso de protagonismo, ambição desenfreada e insuficiente comprometimento com a democracia, o Estado de Direito e a procura do bem comum. Evitar que o Tribunal Constitucional também se transforme em alvo de ataques é fundamental para que o país mesmo em ambiente de sobressaltos e crispação tenha as referências para se equilibrar e prosseguir o caminho de consolidação da sua democracia.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1111 de 15 de Março de 2023.
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