Na sua intervenção nas cerimónias comemorativas do dia 5 de Julho o presidente da república trouxe à baila mais uma vez a questão da não partidarização da Administração Pública. É uma matéria recorrente nos discursos de outros titulares de órgãos de soberania, dos partidos políticos e de personalidades, académicos e activistas sociais.Todos parecem estar de acordo que o problema da partidarização existe, mas aparentemente ninguém sabe como ultrapassá-lo porque, apesar dos partidos se alternarem na governação do país, os seus efeitos não desaparecem, nem se atenuam. Como solução vai-se sugerindo entre outras acções a obrigatoriedade de concursos públicos para os cargos na administração do Estado, mas, enquanto panaceia, é evidente que essa medida não satisfaz, porquanto as denúncias de partidarismo na função pública continuam.
A chamada de atenção do PR, quarenta e oito anos após a independência e trinta anos depois da adopção de uma Constituição democrática talvez seja um sinal de que se vai tornando cada vez mais difícil ignorar as consequências do país ter uma “administração pública sobre a qual recai a desconfiança de não funcionar de acordo com princípios de justiça, isenção e imparcialidade e de igualdade de tratamento de todos os utentes”, como prevê a Constituição da República. E também que em acréscimo não há garantia que os funcionários e demais agentes do Estado são pessoalmente “beneficiados ou prejudicados ou se beneficiam ou prejudicam outrem em virtude das suas opções partidárias”. De facto, um Estado que funciona com tais constrangimentos, com impacto inevitável na sua eficiência e eficácia, não deixa de acarretar custos consideráveis para a sociedade e para a economia, afectando negativamente a competitividade do país.
Pôr cobro a esta situação devia ser uma prioridade fundamental quando o foco é desenvolver o país e a realidade é difícil e complexa e os recursos são escassos. Num momento crucial da ascensão à independência, Singapura, também uma realidade insular, erigiu através do seu líder Lee Kuan Yew como objectivos fundamentais o comprometimento com a meritocracia e a luta contra a corrupção. Nem todos podem repetir o feito de Singapura de passar de um rendimento per capita de 517 dólares em 1965 para 59 mil dólares em 2020, mas é um facto que isso só foi possível com uma administração pública competente e eficaz e a utilizar de forma eficiente os recursos públicos. Vários exemplos por todos os continentes têm demonstrado a importância para o desenvolvimento de um país de um serviço público com base em critérios meritocráticos e uma ética e um ethos a condizer, em que o utente não têm que se colocar na posição de quem está a receber favores e até mesmo de mostrar-se politicamente grato.
Infelizmente não é o que se conseguiu erigir ainda em Cabo Verde. Com a independência em 1975 a administração pública que se pretendeu construir foi a que melhor se adequava ao regime de partido/Estado. O critério de base era aderência aos princípios do partido único e naturalmente que a carreira na administração pública teria que se orientar mais pela fidelidade ao regime do que por considerações de competência técnica e profissional. Com o advento da democracia, 15 anos depois, o problema que se colocou ao novo governo era como conciliar a cultura de militância partidária dos funcionários herdada do outro regime com a necessidade de cumprir o seu programa sufragado nas urnas. A dificuldade aumentou com a liberdade de exercício de direitos políticos quase sem limites garantida aos funcionários públicos pela Constituição de 1992. Não é de estranhar que na ausência de constrangimentos efectivos houvesse a desconfiança que o fervor partidário em determinadas situações pudesse sobrepor-se ao sentido de dever enquanto funcionário público e que, em reacção, com a colocação de quadros de confiança política se procurasse minimizar os riscos.
A dificuldade com essa solução é que, como veio a se verificar, ficou quase impossível construir uma administração pública competente, experiente, com memória institucional e com outros valores e outra cultura ao nível que seria desejável para responder com a maior eficácia aos desafios de desenvolvimento do país. As alternâncias no governo acabaram por normalizar as nomeações e as carreiras na base partidária, mas ainda sem eliminar as vantagens iniciais dos que mais tempo tiveram no aparelho do Estado, facto que continua a alimentar ressentimentos de parte a parte e a desconfiança que bloqueia as tentativas de adopção de critérios meritocráticos. A grande apetência por cargos públicos acirrada por alguma precariedade de outros sectores de actividade e pela continuada ascendência do papel do Estado no domínio socioeconómico favorece a crispação política e retroalimenta todos os impulsos para não se chegar a compromissos que pudessem alterar a situação existente.
Apesar das denúncias de partidarismo na administração pública e dos apelos à despartidarização toma-se de alguma forma como normal a situação existente porque em boa medida responde à ideia do exercício de poder com base em clientelas, fazendo favores, garantindo acessos e reproduzindo dependências várias. A cumplicidade é geral como se pode constatar pelos conteúdos transmitidos na rádio e na televisão, pelo número de eventos em que autoridades nacionais e locais doam alguma coisa e as pessoas mostram-se gratas frente às câmaras e aos microfones. Num ambiente de campanha permanente e lutas por ganhos eleitorais futuros quando se fala de despartidarização está-se, de facto, a querer pôr em cheque quem está, no momento e no local em posição de dar, mas não a forma como está a exercer o poder.
As críticas aí, assim como com as denúncias sobre os resultados das inspecções aos fundos do turismo e do ambiente, são fundamentalmente para conseguir vantagem política sobre o adversário. Não para pôr em causa o sistema que permite que falhas similares tenham acontecido no passado, estejam a acontecer no presente e voltem a verificar-se no futuro. Aliás, percebe-se perfeitamente que muitos desses jogos de poder acontecem no lidar com os municípios e o normal seria melhorar e tornar mais rigorosos os processos decisórios e de fiscalização e controlo nos órgãos do poder local e na administração local. Pelo contrário, nota-se uma preocupação para aumentar ainda mais os poderes dos presidentes das câmaras municipais contribuindo eventualmente para mais exemplos de caciquismo local.
A incongruência é reveladora de como o tema da partidarização é tomada pelas forças políticas em presença como simples pretexto para ganhos tácticos contra o adversário e não para se juntar esforços e construir o Estado e a Administração Pública que o país precisa para enfrentar os extraordinários desafios do seu desenvolvimento. Na mesma linha vai a moção de censura ao governo que foi apresentada esta terça–feira. À partida não terá no parlamento a maioria necessária para ser aprovada, mas de qualquer maneira vai cumprir o seu propósito. No texto repetem-se todos os velhos clichés ideológicos e os argumentos e supostos factos que os sustentam ou justificam simplesmente para tentar conseguir ganhar alguns pontos políticos. O debate político não vai elevar o seu nível, o país não fica melhor preparado para enfrentar os desafios e afirma-se mais uma vez que não há nenhuma base para construir os acordos e compromissos para fazer o país avançar. Os apelos de despartidarização da administração pública serão mais uma vez levados pelo vento.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1128 de 12 de Julho de 2023.
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