segunda-feira, julho 03, 2023

Tempo para debater o papel do Estado

 

No dia 28 de Junho iniciou-se a segunda sessão plenária do mês com o debate com o Primeiro-ministro sobre “os negócios do Estado e a protecção do interesse público” proposto pelo maior partido da oposição.Vindo na esteira do imbróglio à volta das inspecções ao Fundo do Ambiente e ao Fundo do Turismo, o mais certo é que rapidamente o debate irá degradar-se pelas habituais acusações e as incursões ao passado que não deixam ninguém incólume. Por causa disso, normalmente desses debates só resulta o aumento do stock do cinismo nacional relativamente à política e aos políticos. Fica por avaliar, por exemplo, o quanto que o país já evoluiu na institucionalização dos seus mecanismos de responsabilização e prestação de contas nas últimas três décadas de democracia.

Também não se faz o suficiente por identificar os sectores da vida nacional onde o nível de acountability é mais baixo, a fiscalização política é mais frágil e a cultura política e administrativa favorece a falta de rigor no uso dos recursos públicos apesar das pistas que serão deixadas ao longo do debate. Prefere-se ficar por suspeições de corrupção que vão reforçar narrativas da existência de dois campos opostos: um que se reclama de estar num plano moral superior e diz querer preservar os recursos do Estados em nome do interesse público e outro que é acusado de querer delapidá-los em negócios que favorecem, acima de tudo, interesses privados.

É evidente que nesse tipo de confrontos põe-se de lado qualquer discussão compreensiva sobre o que deve ser o papel do Estado numa pequena economia insular e arquipelágica como Cabo Verde. Designadamente, não se procura descortinar que dimensão deverá ter o sector estatal e em que áreas económicas envolver-se. Ou como articular uma intervenção qualificada do Estado com a promoção do sector privado nacional e a atracção de investimento estrangeiro. Ou ainda como construir um sector público e administrativo que, regendo-se pelos princípios de eficiência e eficácia, contribua para a diminuição dos custos de contexto e também um sector público empresarial que mantenha a um nível adequado certos custos como os de energia, água e transportes.

Numa realidade como a cabo-verdiana, de uma pequena estrutura produtiva e um mercado minúsculo e fragmentado onde economias de escala não existem e falhas de mercado são inevitáveis, não é tarefa fácil determinar qual a dimensão e o papel certo do Estado. Como em qualquer democracia sempre vai haver um campo a propor mais Estado e outro a querer posturas menos intervencionistas. O debate fundamental que daí resulta, traduzido nos embates eleitorais em alternâncias na governação, serve para adaptar a condução da política económica aos desafios do momento e periodicamente fazer as correcções que se mostrarem necessárias. Diminui-se a utilidade do debate quando uma das partes trata propostas de diminuição da intervenção estatal vindas de outros actores políticos como inimigas do interesse público.

Ora, sabe-se de experiência directa duas coisas muito importantes: uma que ter o Estado a dominar toda a economia não é garantia que se está a proteger o interesse público. Ao estatizar tudo sacrifica-se em simultâneo a liberdade e a iniciativa individual e, por aí, a capacidade de inovação e produtividade de qualquer país. Uma outra consequência é que se limita o acesso aos recursos externos para financiamento da economia e não se consegue chegar aos mercados, constrangendo severamente as possibilidades do país se desenvolver. O crescimento verificado em Cabo Verde nos últimos trinta e dois anos na sequência da desestatização da sua economia, com todas as suas vicissitudes, testemunha a necessidade de se encontrar o equilíbrio adequado entre o público e o privado. E não é só uma questão que se coloca a economias frágeis como a cabo-verdiana.

A discussão à volta da intervenção do Estado na economia reentrou recentemente na ordem do dia na generalidade dos países democráticos. Os múltiplos problemas de circulação criados pela pandemia da Covid-19 e as perturbações graves na cadeia de abastecimentos de produtos essenciais e estratégicos obrigaram a repensar a integração na economia mundial numa perspectiva mais de resiliência do que de eficiência. Neste sentido, políticas de onshoring e de friend-shoring têm sido propostas por governos dos Estados Unidos e da União Europeia que, aliadas a iniciativas de financiamento de sectores estratégicos chamadas de “política industrial”, procuram dar um outro sentido à globalização.

Com isso, quer-se diminuir os riscos (de-risking) ligados às mudanças geopolíticas precipitadas pela invasão da Ucrânia pela Rússia e pelas tensões entre a China e o Estados Unidos. Também quer-se dar uma resposta a alguma desindustrialização e consequente erosão da classe média e aumento das desigualdades sociais que a globalização na base da procura de eficiência tinha gerado nas últimas décadas. Para muitos observadores, o novo intervencionismo do Estado traduzido na Europa entre outras iniciativas pela “bazuca financeira” e nos Estados Unidos pela lei das infraestruturas e pelo investimento nos semicondutores acaba por simbolizar uma nova era que se está a abrir e que põe fim à chamada globalização neoliberal iniciada nos anos noventa.

Repensar o país para os novos tempos é fundamental. No quadro mundial que se desenha há que procurar o melhor papel para o Estado de forma a ser não um entrave, mas sim um promotor e facilitador da economia de base privada que deverá criar prosperidade para todos. Para isso, preconceitos ideológicos de antigamente devem ser ultrapassados designadamente os que não vêem possibilidade de convergência entre o interesse público e o interesse individual e também os que consideram que qualquer redefinição do papel do Estado abre portas à corrupção. Aliás neste quesito era bom relembrar que, como diz o Lord Acton, o poder corrompe, mas que o poder absoluto corrompe absolutamente. Ou seja, mesmo que aparentemente invisível, está lá bem presente e tem custos, de uma forma ou de outra.

Em democracia, e com uma economia de mercado, querendo pode-se assumir colectivamente um comprometimento geral para a construção da indispensável máquina do Estado competente e eficiente e com cultura de serviço público que o país precisa. E para combater a corrupção, ciente das deficiências ainda existentes, em parte derivadas de uma cultura política de crispação permanente que urge ultrapassar e que alimenta desconfiança, devia-se agir com firmeza e determinação para aprimorar os mecanismos de controlo e prestação de contas. Com isso, o país ganharia com os custos mais baixos, maior confiança e atraindo mais investimento.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1126 de 28 de Junho de 2023.

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