Passados 48 anos após a independência nacional o 5 de Julho deve ser o dia em que a comunidade política nacional, enquanto república soberana, reafirma que as suas bases são a dignidade humana e a vontade popular. E que entre os seus objectivos fundamentais estão a inviolabilidade e a inalienabilidade dos direitos fundamentais, a igualdade de todos os cidadãos sem qualquer tipo de discriminação, a realização da democracia plena e de uma sociedade livre, justa e solidária, e ainda a criação de condições para a realização pessoal e participação efectiva de cada cidadão.
Com a celebração do 5 de Julho deve-se procurar reforçar a unidade da nação para poder enfrentar, num ambiente de pluralismo e de diversidade de interesses, os extraordinários desafios que se colocam no presente e no futuro próximo. O que não deve ser é a oportunidade para se pôr em causa os valores da república e da democracia e para validar anos de ditadura e os projectos de poder de um grupo e seus protagonistas.
A verdade é que o 5 Julho, a república, enquanto produto de uma situação histórica específica de desmoronamento tardio de um império colonial e em que movimentos de libertação reivindicavam exclusivo direito de representar povos e a legitimidade histórica para governar, levou tempo para cumprir as suas promessas de liberdade, de autogoverno e de cidadania plena. Só 15 anos depois com o 13 de Janeiro de 1991 é que, recuperado o protagonismo popular, se amarraram os alicerces da república na Constituição de 1992 e se reacendeu a esperança num futuro de prosperidade. Para trás então ficou o tempo dos obstáculos à iniciativa individual e desenvolvimento da pessoa humana, de ausência da participação efectiva e de constrangimentos na relação com o mundo. Também se abriu o caminho para libertar o país do peso de ideologias que justificaram aventuras insensatas como a unidade com a Guiné, que procuraram estatizar tudo na economia e na sociedade e que tomaram a legitimidade histórica como fonte primária do poder.
Chegado ao dia de hoje, é preciso ter em perspectiva o caminho percorrido, as insuficiências existentes e em que medida está-se a utilizar o potencial despoletado pela democracia, pelo Estado de Direito e pela livre iniciativa e maior autonomia de acção das pessoas para manter acesa a esperança. Alguns sinais preocupantes, designadamente a perda de população revelada no último Censo e a pressão cada vez maior de uma parte da população, em particular dos jovens em emigrar para a Europa e para os Estados Unidos, sugerem que não se está a fazer o melhor. É verdade que nas últimas três décadas mais do que se triplicou o rendimento per capita do país, mas, por outro lado, as desigualdades sociais aumentaram e bolsas de pobreza subsistiram apesar de programas repetidos dirigidos para combater as vulnerabilidades das populações.
Não se conseguiu modernizar suficientemente a agricultura para fazer o melhor uso da água e da terra arável disponível, nem se conseguiu desenvolver canais de escoamento dos produtos agrícolas para um melhor aproveitamento do mercado nacional, já naturalmente fragmentado nas ilhas, nem do novo mercado criado pela procura externa via turismo. A população que deixa os campos e as ilhas mais agrícolas à procura de emprego não é absorvida por unidades indústrias porque a industrialização, por razões ideológicas, veio tarde e posteriormente não resistiu às mudanças nas cadeias de valor. O turismo afirmou-se como motor da economia, mas, sem uma estratégia consistente e um comprometimento nacional com a actividade turística, continua dominado por alguns operadores e cria milhares de postos de trabalho, mas de baixos salários com o agravante dos trabalhadores, na maioria vindos de outras ilhas, arcarem com o custo das insuficiências existentes em infraestruturas e habitação.
Outros sectores, que foram alvo de projectos estratégicos dos sucessivos governos apresentados na forma de clusters, hubs e plataformas, não tiveram o retorno prometido apesar dos grandes investimentos feitos. Acabaram por contribuir para o aumento substancial da dívida pública conjuntamente com o crédito conseguido para financiar um conjunto de infraestruturas que também em boa medida ficaram subutilizadas. A pesca que podia beneficiar da vocação secular das ilhas e da instalação de grandes conserveiras com mercado certo na União Europeia também não foi foco de uma estratégia para aumento da capacidade de captura com impacto em produtos que mais peso têm nas exportações do país.
A percepção da população que as medidas políticas ficaram aquém do prometido em termos de dinâmica da economia e de criação de emprego cria alguma ansiedade, agravada pela expectativa de mobilidade social dos jovens e das suas famílias que resulta da massificação do ensino primário e secundário e da disponibilidade crescente de ensino superior no país. Perante isso o trabalho no Estado surge como o mais seguro devido à precariedade que rodeia os outros sectores. Mas a cada vez menor oferta de empregos no Estado e na administração acaba por provocar a corrida feroz aos lugares na função pública seguindo linhas partidárias e consequente ambiente político mais crispado e menos compromissório. Para muitos que não conseguem de uma forma ou outra singrar nesse ambiente resta o sector informal que cresce rapidamente, particularmente depois das crises sucessivas dos últimos anos, ou a possibilidade de emigrar como se pode ver pela pressão cada vez mais notória para conseguir vistos para a Europa. E a promoção de um empreendedorismo massificado não provou que é a panaceia para a falta de emprego e de oportunidades.
Claramente que as opções que se colocam a muitos cabo-verdianos e principalmente aos jovens não as mais consentâneas com as grandes promessas da república e com a esperança de uma vida melhor. A celebração do 5 de Julho deve também ter como objectivo renovar o comprometimento de todos e em particular dos governantes para mobilizar a energia e a vontade da colectividade na procura de soluções para os grandes desafios e para renovar a confiança no futuro. As crises sucessivas foram um forte estímulo para se mudar a atitude geral no sentido de uma mais “perfeita união” como diria Abraham Lincoln. Infelizmente não tiveram o impacto esperado e nota-se isso na tendência crescente para o divisionismo interno, para a descredibilização das instituições, para a falta de civismo e criminalidade.
O espectáculo que se vem assistindo na França nos últimos dias vem relembrar que emigrar para Europa também não é uma opção segura e tende a tornar-se pior ou pela reacção a incidentes similares ou pelo aproveitamento que políticos de outros países, caso do Primeiro-ministro polaco, fazem dos acontecimentos. Tudo isso vem relembrar a importância de se acreditar no Cabo Verde de esperança como cantava Norberto Tavares e da urgente necessidade de, e na república democrática que hoje todos celebram no 5 de Julho, se ultrapassar os obstáculos que ainda impedem a realização plena das suas promessas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1127 de 05 de Julho de 2023.
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