A intervenção de cerca de mais de vinte minutos da Dra. Janira Hopffer Almada durante o debate sobre o Estado da Nação despertou atenção pelo seu carácter anómalo. Não foi discurso da Ministra do Emprego e da Juventude. Pretendeu ser algo mais. Para qualquer observador a intenção era dar protagonismo à presidente do Paicv. Só que na Assembleia Nacional e no debate sobre o Estado da Nação o destaque é para a intervenção do primeiro-ministro cujo governo é politicamente responsável perante o Parlamento. O facto porém de o ter feito e também do que depois se seguiu de quase despedida do PM, em plena sessão parlamentar, e ainda a mais de sete meses do fim da legislatura, não abona muito a favor do “regular funcionamento das instituições” que todos esperam e desejam.
A público tem chegado por várias vias indícios de tensões nas relações entre a nova liderança do Paicv, o seu grupo parlamentar e o governo. Este jornal em editorial por várias chamou a atenção para a necessidade de clarificação dessas relações. O nosso sistema de governo tem um primeiro-ministro nomeado pelo presidente da república sob proposta do partido vencedor das eleições. O novo governo só assume plenas funções depois de o parlamento ter aprovado uma moção de confiança por maioria absoluta dos deputados. Se no decorrer da legislatura há uma mudança na liderança do partido que suporta o governo ou uma outra alteração nas condições iniciais do mandato, o mais normal é que se enverede por um processo de reconfirmação do governo e da sua relação com a sua base parlamentar. Assim evitam-se quaisquer dúvidas quanto à sua legitimidade e assegura-se o normal funcionamento das instituições. Ninguém terá dúvidas onde reside o poder.
Ao não proceder desta forma, o sistema político sujeita-se a “ruídos” que com o passar do tempo tendem a ficar piores. Em Março deste ano o país assistiu ao espectáculo do posicionamento público da nova líder do Paicv e dos seus próximos no partido contra posições do grupo parlamentar maioritário e do próprio primeiro-ministro mesmo depois de a lei sobre o estatuto dos titulares de cargos políticos ter sido aprovada por unanimidade na AN. A questão para o sistema político não são as diferenças de opinião e a falta de alinhamento pontual nas estruturas partidárias. De facto, o que perturba é a forma como foram arejadas publicamente com ganhos para o populismo e para as forças anti-partido e anti-pluralismo e com perda e humilhação para o parlamento cabo-verdiano.
Mesmo depois de tudo o que se passou não houve preocupação de seguir os procedimentos previstos na Constituição para relegitimar o governo. Informalmente a presidente do Paicv reafirmou a sua confiança no Dr. José Maria Neves enquanto primeiro-ministro e o líder parlamentar no seu discursos do 5 de Julho reiterou também a confiança da maioria parlamentar no governo. É evidente que seguir simplesmente por essas vias não é suficiente. Se momentaneamente traz alguma acalmia no seio do partido, a realidade é que o governo sem uma moção de confiança e sem o programa actualizado não tem a energia, o foco e a coesão interna que os momentos difíceis do país exigem. Quase que fica em formato de “governo de gestão”, com uma agenda que mais parece ser uma agenda eleitoral e sempre sujeita a sobressaltos causados por quem anseia antes de tempo governar ou já mostrar peso político. É só ver o que se passa no INPS e na TACV. Ruídos persistem e notam-se disputas por protagonismos nos actos do Estado. A coroar, o insólito como foi descrito acima acontece no debate sobre o estado da Nação.
Depois da “dispidida” do PM, que governo vai se ter? Um governo mais engajado na campanha eleitoral e com mais protagonismo da futura candidata do partido ao cargo de PM? Um PM em “modo” de saída a par com ministros ansiosos por chegar ao fim do seu tempo no governo? E o país como fica nesta corrida disparada para o poder que está a acontecer antes do tempo?
Uma das particularidades da democracia é o mandato certo. A renovação do mandato acontece num momento pré-estabelecido e em que por um tempo limitado alternativas são apresentadas e as disputas eleitorais têm lugar. Com este sistema garante-se a possibilidade de alternância, mas evita-se que a sociedade esteja a todo o momento sob as tensões extremadas do período eleitoral. Há tempo para governar e há tempo para campanha. Cria-se uma disfunção grave quando em vez de governar, ou seja, de trabalhar para o bem comum, se envereda pela campanha em que os interesses partidários se sobrepõem e condicionam tudo o resto. Ter o governo quase um ano antes das eleições numa postura em que a agenda eleitoral parece prevalecer sobre tudo o resto não é bom nem para o país nem para a democracia. Ao Presidente da República cabe o papel de assegurar o regular funcionamento das instituições. Depois do advento do populismo e do afundamento do Parlamento não podemos ter governo a meio gás, com ministros sem alento e a funcionar como veículo de interesses eleitorais.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 5 de Agosto de 2015