O 31 de Agosto de má memória que tanto impacto teve sobre a gente de Santo Antão e sobre todos os cabo-verdianos aconteceu há 35 anos, em 1981. Na época, a tentativa de implementação da reforma agrária, “um acto eminentemente político que se situa na luta de classes”, segundo um dirigente de então, tinha encontrado hostilidade imediata da população rural. À reacção dos populares em reuniões e manifestações contra a reforma agrária, consideradas ilegais pelas autoridades, seguiram confrontos com militares armados dos quais saiu um morto civil. Ainda no mesmo dia e noutros seguintes procedeu-se a prisões arbitrárias com invasão de domicílios à noite, espancamentos, humilhações e transporte para cadeia militares em S. Vicente. Depois de seis meses de encarceramento e vários episódios de torturas foram julgados em tribunal militar, “acusados de tentativa de alteração da Constituição por rebelião armada”, e condenados a penas da mínima de 6 meses à máxima de 10 ano de prisão.
A máquina brutal que nesse dia fatídico pôs-se em movimento cumpria as leis que desde a independência o regime de partido único tinha imposto ao país com o objectivo de se eternizar no poder. De facto, ao declarar-se Único esvaziou a vida política de qualquer sinal de pluralismo, suprimiu a liberdade de expressão e de imprensa e criminalizou reuniões e manifestações não autorizadas. Com o decreto-lei nº 95/76 de Outubro de 1976, a polícia política, conhecida por Segurança, poderia prender qualquer pessoa por um total de cinco meses e só depois a entregar ao Ministério Público. Quem fosse acusado de “crime contra a segurança do Estado” deveria ser julgado pelo tribunal militar de acordo com o decreto-lei nº 121/77 de Dezembro de 1977. Nada do que ali aconteceu foi por acaso. Aliás, em outros momentos como em S.Vicente em 1997, na Brava em 1979, na Praia em 1980, e outra vez em S.Vicente em 1987 viu-se que a máquina estava sempre pronta para entrar em funcionamento e sempre capaz de ir até às últimas consequências com torturas e mortes.
As leis que legitimavam a máquina repressiva do regime só começaram a ser desmanteladas a partir de Maio de 1990 quando a então Assembleia Nacional Popular revogou disposições legais “restritivas dos direitos, liberdades e garantias” que segundo o presidente da ANP “perderam actualidade” designadamente a Lei do Boato (decreto-lei 37/75 de 1975) e a lei de prisão preventiva (decreto-lei nº 95/76). Os factos desmentem aqueles que consideram que os quinze anos do regime de partido único em Cabo Verde era uma espécie de ditadura “soft” e que o 31 de Agosto de 1981 foi uma espécie de acidente. A realidade da presença ao longo de todos esses anos do aparato legal para repressão de qualquer acto que atentasse contra o regime ou o questionasse prova precisamente o contrário. A qualquer momento situações idênticas poderiam ter acontecido. Os ingredientes sempre estiveram lá: as forças policiais e militares, as leis, a atitude repressiva e a motivação política.
O que nem os presos do 31 de Agosto nem os restantes milhares de cabo-verdianos beneficiavam na época era da plenitude dos seus direitos civis e políticos. Só o vieram a ter com a Constituição de 1992. E esse facto deixava-lhes completamente à mercê de um poder estatal determinado em se manter indefinidamente. O alvo num determinado momento podia ser um proprietário agrícola em Santo Antão a quem queriam tomar as terras. Num outro dia poderia chegar a vez do estudante rebelde a quem foi recusado bolsa de estudo por razões políticas, ou do emigrante que fez algumas críticas, ou de um comerciante suspeito por razões de classe ou de um intelectual crítico que para viajar precisava de uma autorização de saída. Na ausência de direitos, liberdades e garantias tudo foi permitido ao Estado. E se nem todos sofreram da mesma forma, não significa que sem aviso prévio qualquer um não passasse à condição de vítima de abusos sem possibilidade de recorrer à justiça.
Casos de abuso de poder verificam-se em qualquer regime político. A diferença é que quando há unicidade do poder, o Estado ergue-se no alto do seu poder sem limites, o indivíduo reduz-se à sua insignificância e abuso de poder é a regra, não excepção. Na democracia os autores do abuso em qualquer posição do Estado podem ser investigados, responsabilizados e punidos pelos desmandos porque há pluralismo político, alternância democrática no governo e independência dos tribunais.
Mas mesmo nas democracias a tensão entre o exercício dos direitos e o poder do Estado não deixa de existir. É só ver a batalha com contornos épicos que tem sido travada nos Estados Unidos pelos direitos fundamentais desde que se adoptou o Bill of Rights, em 1791, incluindo as lutas pelos direitos das minorias, contra a discriminação racial, pela igualdade das mulheres, pela não discriminação sexual e recentemente contra a violência policial. Mas também a luta travada na preservação da liberdade de expressão, na defesa da igualdade de oportunidades e na salvaguarda dos direitos de defesa e do due process.
Também em Cabo Verde a defesa dos direitos fundamentais não deve ficar pelo conhecimento do que está Constituição da II República. É preciso incentivar o exercício pleno desses direitos que são os da cidadania plena e estar alerta em relação a acções dos poderes públicos que tendem a diminui-los. Nunca se deve é a assumir que estão completamente garantidos e que nada os ameaça. Por isso que é de maior importância relembrar sempre o caminho penoso que os cabo-verdianos fizeram, passando sucessivamente pelas ditaduras de Salazar e do Partido Único para hoje gozar dos benefícios da liberdade. O dia 31 de Agosto devia ser consagrado como o dia da luta pelos direitos fundamentais em Cabo Verde. O nosso Bill of Rights Day.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 770 de 31 de Agosto de 2016