As eleições autárquicas de 4 de Setembro surpreenderam toda a gente. Num caso único entre os sete pleitos eleitorais do Cabo Verde democrático, um partido, o MpD, arrebatou 18 câmaras, e a Oposição, o PAICV, ficou com apenas duas câmaras. As restantes duas câmaras foram para dois grupos independentes que resultaram de dissensões internas do MpD.
O desequilíbrio no controlo partidário das autarquias nunca se tinha verificado mesmo nos casos extremos de vitória nas legislativas com maiorias de dois terços em 1991 e 1996. Nesses dois momentos a repartição das câmaras foi respectivamente MpD 10, PAICV 3 e MpD 9 e PAICV 5, com a particularidade de as autárquicas de 1996 terem sido realizadas um mês após as legislativas, sem sinal de contágio. Aliás o fenómeno de contágio nunca foi realmente reconhecido nas eleições autárquicas, por exemplo, durante os quinze anos de governo do Paicv em que o MpD sucessivamente assegurou 9 câmaras em 17, 11 em 22 e 13 em 22. As populações nas autarquias sempre deixaram perceber que distinguiam perfeitamente as eleições ao nível do poder central das que tinham lugar para órgãos do poder local. O insólito do que se passou no domingo passado deve ser matéria para reflexão profunda.
Aparentemente aconteceu o que os partidos da oposição e certos observadores da vida nacional mais receavam: os ovos foram todos para o mesmo cesto. Mas estão equivocados. De facto, a presença forte do presidente do MpD nas campanhas eleitorais nos municípios poderia sugerir que alguma estratégia nesse sentido estivesse a ser implementada. Até aí não há nada de anormal considerando que a lógica dos partidos é ganhar sempre. Os líderes partidários são muito activos em todas as eleições partidárias e o estranho é quando não o são com a energia e intensidade esperadas como parece ter sido o caso da líder do PAICV. Por outro lado, quando o líder também é primeiro-ministro fica naturalmente no ar a sugestão de eventuais ganhos para o município se for o mesmo partido a suportar o governo e a câmara municipal. Da experiência vivida, sabe-se, porém, que isso não afecta significativamente os resultados e muito menos se alteram as relações de força ao nível do Poder Central entre o governo e a oposição como parece sugerir a ideia de “todos os ovos na mesma cesta”. A realidade é que não é por ganhar mais câmaras que um partido no governo se torna hegemónico da mesma forma que não por ter menos câmaras que alguma vez o PAICV se sentiu constrangido nos seus quinze anos de governação.
Os municípios são entidades com história e identidade próprias que vêm nalguns casos de séculos. Mesmo os novos que já foram freguesias no passado têm os seus atributos identitários e histórico-culturais que condicionam as suas escolhas, não obstante os candidatos serem apresentados por partidos políticos nacionais, e dão especial coloração e intensidade às suas espectativas em relação ao futuro. Aliás, são essas especificidades que justificam a existência do município. Daí que não estranha que manifestações dessa autonomia local se faça sentir nas escolhas de dirigentes locais nem sempre coincidentes quanto à linha partidária com as escolhas que se verificam a nível nacional. Quando a excepção acontece, como é caso do alinhamento actual, deve-se questionar as razões: se foi produto do acaso, uma opção ou manifestação de perda de autonomia.
Cabo Verde encontra-se numa encruzilhada. Chegou-se ao fim de 15 de uma governação do PAICV auto rotulada de agenda de transformação com crescimento de menos de 2% do PIB. O desemprego mantém-se alto e o país acumulou uma das maiores dívidas públicas do Mundo. Os vários sectores da economia, designadamente a agricultura não consegue suster-se apesar dos investimentos feitos, a indústria não tem dimensão para absorver grande parte da mão-obra desempregada e os serviços mostram dificuldade em internacionalizar-se, em ter acesso aos mercados e em se capacitarem para melhor servir o turismo. No meio destas incertezas, o Estado parece constituir a única fonte de rendimento com alguma previsibilidade tanto directa em forma de salário como indirecta via transferências, financiamentos e facilidades.
Talvez seja essa a herança real recebida dos 15 anos de governo de José Maria Neves. O afunilamento das expectativas no Estado por falta de confiança na sustentabilidade de outros sectores da economia transforma tudo numa corrida para se apossar do que pode oferecer. Isso já é notório na inquietação que se sente nos partidos com os muitos aspirantes a políticos freneticamente a procurar o seu lugar ao sol e também na procura de trabalho certo que faz milhares de jovens dirigirem-se para a capital. Também poderá ter-se manifestado na reacção às promessas eleitorais de mais transferências para os municípios, deixados exangues pelo definhamento da economia nas ilhas e a excessiva centralização do país, provocando o realinhamento dos municípios com o partido no governo numa escala nunca antes verificada.
A “corrida ou debandada para o Estado” não é, porém, a atitude que melhor serve o país. Não há recursos nem internos nem externos em forma de ajuda que a poderão alimentar. A estratégia nacional terá que incidir na produção, na diversificação da economia e nas exportações para que os cabo-verdianos tenham possibilidade de emprego e realização pessoal, para que as ilhas e municípios possam atingir seu ideal de desenvolvimento e autonomia e para que o país tenha recursos para investir e estender a mão em solidariedade aos mais vulneráveis e permitir a todos a participação plena na vida nacional.
Se há uma consequência imediata dos resultados eleitorais de 4 de Setembro é o facto de forçar o governo do MpD a ter resultados palpáveis com impacto em todas ilhas, em quatro anos. As próximas eleições autárquicas vão-se verificar alguns meses antes das legislativas. Aí provavelmente não se deixará de sentir algum contágio. Por todas essas razões e também para se tirar Cabo Verde com sucesso desta encruzilhada é de lançar mãos à obra com visão, dedicação e espírito de servir e não se deixar tentar pelas ondas de populismo e de demagogia que como um tsunami ameaçam varrer todo o sentido de decência e honestidade no mundo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 771 de 07 de Setembro de 2016