sexta-feira, setembro 09, 2016

Todos os ovos no mesmo cesto?

As eleições autárquicas de 4 de Setembro surpreenderam toda a gente. Num caso único entre os sete pleitos eleitorais do Cabo Verde democrático, um partido, o MpD, arrebatou 18 câmaras, e a Oposição, o PAICV, ficou com apenas duas câmaras. As restantes duas câmaras foram para dois grupos independentes que resultaram de dissensões internas do MpD.
O desequilíbrio no controlo partidário das autarquias nunca se tinha verificado mesmo nos casos extremos de vitória nas legislativas com maiorias de dois terços em 1991 e 1996. Nesses dois momentos a repartição das câmaras foi respectivamente MpD 10, PAICV 3 e MpD 9 e PAICV 5, com a particularidade de as autárquicas de 1996 terem sido realizadas um mês após as legislativas, sem sinal de contágio. Aliás o fenómeno de contágio nunca foi realmente reconhecido nas eleições autárquicas, por exemplo, durante os quinze anos de governo do Paicv em que o MpD sucessivamente assegurou  9 câmaras em 17, 11 em 22 e 13 em 22.   As populações nas autarquias sempre deixaram perceber que distinguiam perfeitamente as eleições ao nível do poder central das que tinham lugar para órgãos do poder local. O insólito do que se passou no domingo passado deve ser matéria para reflexão profunda.
Aparentemente aconteceu o que os partidos da oposição e certos observadores da vida nacional mais receavam: os ovos foram todos para o mesmo cesto. Mas estão equivocados. De facto, a presença forte do presidente do MpD nas campanhas eleitorais nos municípios poderia sugerir que alguma estratégia nesse sentido estivesse a ser implementada. Até aí não há nada de anormal considerando que a lógica dos partidos é ganhar sempre. Os líderes partidários são muito activos em todas as eleições partidárias e o estranho é quando não o são com a energia e intensidade esperadas como parece ter sido o caso da líder do PAICV. Por outro lado, quando o líder também é primeiro-ministro fica naturalmente no ar a sugestão de eventuais ganhos para o município se for o mesmo partido a suportar o governo e a câmara municipal. Da experiência vivida, sabe-se, porém, que isso não afecta significativamente os resultados e muito menos se alteram as relações de força ao nível do Poder Central entre o governo e a oposição como parece sugerir a ideia de “todos os ovos na mesma cesta”. A realidade é que não é por ganhar mais câmaras que um partido no governo se torna hegemónico da mesma forma que não por ter menos câmaras que alguma vez o PAICV se sentiu constrangido nos seus quinze anos de governação.
Os municípios são entidades com história e identidade próprias que vêm nalguns casos de séculos. Mesmo os novos que já foram freguesias no passado têm os seus atributos identitários e histórico-culturais que condicionam as suas escolhas, não obstante os candidatos serem apresentados por partidos políticos nacionais, e dão especial coloração e intensidade às suas espectativas em relação ao futuro. Aliás, são essas especificidades que justificam a existência do município. Daí que não estranha que manifestações dessa autonomia local se faça sentir nas escolhas de dirigentes locais nem sempre coincidentes quanto à linha partidária com as escolhas que se verificam a nível nacional. Quando a excepção acontece, como é caso do alinhamento actual, deve-se questionar as razões: se foi produto do acaso, uma opção ou manifestação de perda de autonomia. 
Cabo Verde encontra-se numa encruzilhada. Chegou-se ao fim de 15 de uma governação do PAICV auto rotulada de agenda de transformação com crescimento de menos de 2% do PIB. O desemprego mantém-se alto e o país acumulou uma das maiores dívidas públicas do Mundo. Os vários sectores da economia, designadamente a agricultura não consegue suster-se apesar dos investimentos feitos, a indústria não tem dimensão para absorver grande parte da mão-obra desempregada e os serviços mostram dificuldade em internacionalizar-se, em ter acesso aos mercados e em se capacitarem para melhor servir o turismo. No meio destas incertezas, o Estado parece constituir a única fonte de rendimento com alguma previsibilidade tanto directa em forma de salário como indirecta via transferências, financiamentos e facilidades.
Talvez seja essa a herança real recebida dos 15 anos de governo de José Maria Neves. O afunilamento das expectativas no Estado por falta de confiança na sustentabilidade de outros sectores da economia transforma tudo numa corrida para se apossar do que pode oferecer. Isso já é notório na inquietação que se sente nos partidos com os muitos aspirantes a políticos freneticamente a procurar o seu lugar ao sol e também na procura de trabalho certo que faz milhares de jovens dirigirem-se para a capital. Também poderá ter-se manifestado na reacção às promessas eleitorais de mais transferências para os municípios, deixados exangues pelo definhamento da economia nas ilhas e a excessiva centralização do país, provocando o realinhamento dos municípios com o partido no governo numa escala nunca antes verificada.
A “corrida ou debandada para o Estado” não é, porém, a atitude que melhor serve o país. Não há recursos nem internos nem externos em forma de ajuda que a poderão alimentar. A estratégia nacional terá que incidir na produção, na diversificação da economia e nas exportações para que os cabo-verdianos tenham possibilidade de emprego e realização pessoal, para que as ilhas e municípios possam atingir seu ideal de desenvolvimento e autonomia e para que o país tenha recursos para investir e estender a mão em solidariedade aos mais vulneráveis e permitir a todos a participação plena na vida nacional.
Se há uma consequência imediata dos resultados eleitorais de 4 de Setembro é o facto de forçar o governo do MpD a ter resultados palpáveis com impacto em todas ilhas, em quatro anos. As próximas eleições autárquicas vão-se verificar alguns meses antes das legislativas. Aí provavelmente não se deixará de sentir algum contágio. Por todas essas razões e também para se tirar Cabo Verde com sucesso desta encruzilhada é de lançar mãos à obra com visão, dedicação e espírito de servir e não se deixar tentar pelas ondas de populismo e de demagogia que como um tsunami ameaçam varrer todo o sentido de decência e honestidade no mundo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 771 de 07 de Setembro de 2016

sexta-feira, setembro 02, 2016

O Dia da luta pelos direitos fundamentais

O 31 de Agosto de má memória que tanto impacto teve sobre a gente de Santo Antão e sobre todos os cabo-verdianos aconteceu há 35 anos, em 1981. Na época, a tentativa de implementação da reforma agrária, “um acto eminentemente político que se situa na luta de classes”, segundo um dirigente de então, tinha encontrado hostilidade imediata da população rural. À reacção dos populares em reuniões e manifestações contra a reforma agrária, consideradas ilegais pelas autoridades, seguiram confrontos com militares armados dos quais saiu um morto civil. Ainda no mesmo dia e noutros seguintes procedeu-se a prisões arbitrárias com invasão de domicílios à noite, espancamentos, humilhações e transporte para cadeia militares em S. Vicente. Depois de seis meses de encarceramento e vários episódios de torturas foram julgados em tribunal militar, “acusados de tentativa de alteração da Constituição por rebelião armada”, e condenados a penas da mínima de 6 meses à máxima de 10 ano de prisão.
A máquina brutal que nesse dia fatídico pôs-se em movimento cumpria as leis que desde a independência o regime de partido único tinha imposto ao país com o objectivo de se eternizar no poder. De facto, ao declarar-se Único esvaziou a vida política de qualquer sinal de pluralismo, suprimiu a liberdade de expressão e de imprensa e criminalizou reuniões e manifestações não autorizadas. Com o decreto-lei nº 95/76 de Outubro de 1976, a polícia política, conhecida por Segurança, poderia prender qualquer pessoa por um total de cinco meses e só depois a entregar ao Ministério Público. Quem fosse acusado de “crime contra a segurança do Estado” deveria ser julgado pelo tribunal militar de acordo com o decreto-lei nº 121/77 de Dezembro de 1977. Nada do que ali aconteceu foi por acaso. Aliás, em outros momentos como em S.Vicente em 1997, na Brava em 1979, na Praia em 1980, e outra vez em S.Vicente em 1987 viu-se que a máquina estava sempre pronta para entrar em funcionamento e sempre capaz de ir até às últimas consequências com torturas e mortes.
As leis que legitimavam a máquina repressiva do regime só começaram a ser desmanteladas a partir de Maio de 1990 quando a então Assembleia Nacional Popular revogou disposições legais “restritivas dos direitos, liberdades e garantias” que segundo o presidente da ANP “perderam actualidade” designadamente a Lei do Boato (decreto-lei 37/75 de 1975) e a lei de prisão preventiva (decreto-lei nº 95/76). Os factos desmentem aqueles que consideram que os quinze anos do regime de partido único em Cabo Verde era uma espécie de ditadura “soft” e que o 31 de Agosto de 1981 foi uma espécie de acidente. A realidade da presença ao longo de todos esses anos do aparato legal para repressão de qualquer acto que atentasse contra o regime ou o questionasse prova precisamente o contrário. A qualquer momento situações idênticas poderiam ter acontecido. Os ingredientes sempre estiveram lá: as forças policiais e militares, as leis, a atitude repressiva e a motivação política.
O que nem os presos do 31 de Agosto nem os restantes milhares de cabo-verdianos beneficiavam na época era da plenitude dos seus direitos civis e políticos. Só o vieram a ter com a Constituição de 1992. E esse facto deixava-lhes completamente à mercê de um poder estatal determinado em se manter indefinidamente. O alvo num determinado momento podia ser um proprietário agrícola em Santo Antão a quem queriam tomar as terras. Num outro dia poderia chegar a vez do estudante rebelde a quem foi recusado bolsa de estudo por razões políticas, ou do emigrante que fez algumas críticas, ou de um comerciante suspeito por razões de classe ou de um intelectual crítico que para viajar precisava de uma autorização de saída. Na ausência de direitos, liberdades e garantias tudo foi permitido ao Estado. E se nem todos sofreram da mesma forma, não significa que sem aviso prévio qualquer um não passasse à condição de vítima de abusos sem possibilidade de recorrer à justiça.
Casos de abuso de poder verificam-se em qualquer regime político. A diferença é que quando há unicidade do poder, o Estado ergue-se no alto do seu poder sem limites, o indivíduo reduz-se à sua insignificância e abuso de poder é a regra, não excepção. Na democracia os autores do abuso em qualquer posição do Estado podem ser investigados, responsabilizados e punidos pelos desmandos porque há pluralismo político, alternância democrática no governo e independência dos tribunais.
Mas mesmo nas democracias a tensão entre o exercício dos direitos e o poder do Estado não deixa de existir. É só ver a batalha com contornos épicos que tem sido travada nos Estados Unidos pelos direitos fundamentais desde que se adoptou o Bill of Rights, em 1791, incluindo as lutas pelos direitos das minorias, contra a discriminação racial, pela igualdade das mulheres, pela não discriminação sexual e recentemente contra a violência policial. Mas também a luta travada na preservação da liberdade de expressão, na defesa da igualdade de oportunidades e na salvaguarda dos direitos de defesa e do due process.
Também em Cabo Verde a defesa dos direitos fundamentais não deve ficar pelo conhecimento do que está Constituição da II República. É preciso incentivar o exercício pleno desses direitos que são os da cidadania plena e estar alerta em relação a acções dos poderes públicos que tendem a diminui-los. Nunca se deve é a assumir que estão completamente garantidos e que nada os ameaça. Por isso que é de maior importância relembrar sempre o caminho penoso que os cabo-verdianos fizeram, passando sucessivamente pelas ditaduras de Salazar e do Partido Único para hoje gozar dos benefícios da liberdade. O dia 31 de Agosto devia ser consagrado como o dia da luta pelos direitos fundamentais em Cabo Verde. O nosso Bill of Rights Day.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 770 de 31 de Agosto de 2016

sexta-feira, agosto 26, 2016

Maior dinâmica e autonomia para os municípios

A campanha eleitoral para o sétimo ciclo de eleições autárquicas já está em andamento. Por todas as ilhas os candidatos na maior parte dos casos apresentados pelos principais partidos políticos – só quatro candidaturas foram formalmente apresentadas por grupos de cidadãos –  desdobram-se por todos os pontos dos municípios a mobilizar para o voto no dia 4 de Setembro próximo. Comícios, arruadas e acções porta-a-porta são as formas preferidas de aproximação dos eleitores. O discurso político toca em várias teclas com particular enfase na futura relação com o governo. Consoante quem o produz vê-se vantagens ou desvantagens em ter o mesmo partido no governo e no município. A forte dependência do município das transferências do Estado para o desenvolvimento, por todos vigorosamente evidenciada, revela o quão distante se está de uma verdadeira autonomia municipal e quão frágil é a base para a progressiva descentralização que o país tanto reclama.  
As eleições autárquicas não são a repetição das eleições legislativas ou a confirmação dos seus resultados como alguns pretendem que sejam. Por isso, discursos como “evitar pôr todos os ovos na mesma cesta” ou” aprofundar vitória nas legislativas com vitória autárquica”  não têm muita razão de ser. Pode-se até compreender que do ponto de vista de ganho político partidário se queira ir pela via fácil de explorar eventuais receios dos eleitores quanto à concentração do poder para melhorar na nova votação e dar aparência de recuperar terreno perdido. Ou, em sentido contrário, de aproveitar o entusiamo deles para ganhar mais uma vez. O problema são os custos para o processo democrático designadamente de distorção do sistema político eleitoral, de deseducação dos cidadãos e dos equívocos criados que responsavelmente os partidos políticos não deveriam ignorar. Custos por sinal inúteis quando se sabe da experiência dos últimos 25 anos que os desejados benefícios de contágio eleitoral na maior parte dos casos não se materializam e que há limites para a influência dos líderes nacionais nos resultados autárquicas mesmo quando se encontram no auge da sua popularidade.
As populações têm demonstrado sistematicamente conhecer a diferença entre a eleição autárquica e a legislativa e nada indica que foi esquecida. No que respeita à relação entre o governo e as autarquias já deu para todos perceberem que é nas legislativas que é decidida a sua natureza e não em qualquer eleição local. De facto, há governos que procuram ampliar o processo de descentralização, dar um conteúdo mais dinâmico ao princípio de subsidiariedade, alargar as atribuições dos municípios e associar-se às câmaras para implementar certos programas e ser mais eficaz em chegar às populações. Há outros que tendem ficar pela essência do que está nos estatutos dos municípios e até se retraem nas experimentações já feitas de cooperação entre câmaras e governo central.
O país já tem 25 anos de poder autárquico e não tem como enganar-se quanto às opções dos partidos em matéria de descentralização e de reforço de autonomia municipal. Em qualquer circunstância, o tratamento que se espera do Estado é que, dentro das opções de cada governo, seja igual para todos, não privilegiando uns nem penalizando outros. O mesmo se exige que aconteça com a distribuição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios que a Constituição determina que seja justa. Também aqui vai depender de cada governo a sua compreensão do que num determinado momento é o mais justo na repartição dos recursos.
Com isto bem claro na mente dos eleitores e dos candidatos podia-se esperar que todos se focalizassem realmente na questão autárquica, no reforço da autonomia e na preparação das comunidades para melhor aproveitar oportunidades de crescimento económico e de desenvolvimento nos diferentes domínios. Mas perde-se de algum modo o foco quando se extravasa nas promessas feitas e deixa-se no ar expectativas que dificilmente as câmaras estarão em posição de concretizar.
Em alguns programas de “governação” apresentados por candidatos autárquicos nota-se a tendência em ir além do que são as atribuições e as competências dos municípios e, ao mesmo tempo, a falta de minúcia nas respostas aos problemas mais de cunho municipal. A deriva na gestão que aí é gerada, para além de outras consequências, tem o efeito de não deixar que se concentre em pressionar o governo no sentido de inverter o processo de centralização e de activamente atrair investimento nacional e estrangeiro para melhor diversificar e potenciar a economia das ilhas. Mas a viabilidade dos municípios e sua autonomia depende do sucesso conseguido nesse empreendimento. Para isso, de todos os actores devia-se esperar o maior comprometimento em ter municípios dinâmicos, com uma democracia local viva e sem dependência de transferências extraordinárias do governo central. Muito do debate nestas eleições autárquicas podia centrar-se em como fazer desses objectivos uma realidade num futuro próximo.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 769 de 24 de Agosto de 2016

sexta-feira, agosto 19, 2016

Rever a actuação policial

A Segurança em Cabo Verde e, em particular na Capital, consti­tui um problema sério que deverá merecer do novo Governo medi­das urgentes. Quase todos os fins­-de-semana há registos de desaca­tos e mortos em assaltos, em guer­ras de gang ou em encontros com a polícia. Homicídios acontecem com uma frequência preocupante. Assaltos com utilização de armas de fogo passaram a ser o mais co­mum. Tem-se a impressão de que ataques dirigidos aos polícias com intenção de morte aumentam. O número de armas a circular desde as artesanais às mais sofisticadas é cada vez maior, indiciando cres­cente procura para compra das mesmas. A falta de cooperação das populações, se não mesmo hostilidade das pessoas em rela­ção à polícia torna o combate con­tra o crime ainda mais difícil. O acontecimento do fim-de-semana passado em São Pedro na cidade da Praia é paradigmático do que se nota em outros momentos em vários outros pontos do país. Dis­paros são feitos contra policiais, há uma resposta policial robusta, feridos são levados ao hospital, a população reage e desenvolve-se uma tensão entre a população e as forcas policiais que mina a con­fiança e diminui as possibilidades de cooperação para a manutenção de ordem e tranquilidade pública nas comunidades suburbanas.
O Governo já anunciou que vai avançar com a videovigilância no âmbito de um programa chama­do Cidade Segura e com a polícia municipal na luta contra as incivi­lidades. Poderão ser medidas sen­síveis que em articulação com ou­tras mais compreensivas tragam mais eficácia para a acção policial. As respostas, porém, quase nun­ca são simplesmente de natureza tecnológica, mas fundamental­mente de natureza organizacio­nal, de cultura institucional e de capacidade técnico-operacional para responder à complexidade dos problemas. Por outro lado, a experiência de outros países têm demonstrado que o restabeleci­mento da confiança na relação com as comunidades nos bairros periféricos das cidades deve ser um dos grandes objectivos a atin­gir para que, de facto, se consiga resultados duradoiros na preven­ção e na luta contra o crime.
As informações que são avan­çadas na página da Polícia Na­cional na internet revelam que a PN continua com as práticas an­teriores de, nos bairros, parar e revistar “stop and frisk” particu­larmente os jovens. São práticas que têm lugar no quadro das polí­ticas chamadas de tolerância zero e de “broken windows” e cujos resultados são hoje muito contes­tados. Não provam que realmen­te fizeram diminuir o crime, mas constata-se que aumentaram as denúncias de violência policial, os casos de descriminação (profiling) e também os sinais de degradação da relação com as comunidades. Os métodos militarizados das uni­dades tácticas da polícia envolvi­das nessas operações podem ser efectivas numa resposta pontual ao crime, mas não são os melho­res para desenvolver a relação de confiança que a polícia precisa de­senvolver com as comunidades. A proximidade das populações tem que ser feita de outra forma para que o objectivo fundamental de se ter ordem e tranquilidade pública seja atingido e reforçado nas pes­soas o sentimento de segurança.
Nos Estados Unidos, onde essa doutrina policial de tolerância zero surgiu e foi aplicada em vá­rias cidades a começar por Nova Iorque desde dos anos noventa, há anos que tem sido revista e em alguns casos completamente descartada. Os resultados mis­tos obtidos com a sua aplicação acabaram por revelar suas insu­ficiências e o seu lado negativo de discriminação social e racial e também da alienação das popula­ções que a polícia devia proteger. A última investigação feita pelo Departamento de Justiça à polí­cia da cidade de Baltimore divul­gada na semana passada trouxe a público com particular acuidade os problemas graves de violência policial, os efeitos nocivos da cres­cente militarização da polícia e as consequências do distanciamen­to das comunidades. Os recentes ataques a polícias em várias ci­dades, transformados em alvo a abater, constituíram um sinal de alerta de que se deve proceder a mudanças urgentes na actuação da polícia.
Também em Cabo Verde, em que o crime continua a aumen­tar, a sensação de insegurança é cada vez maior e até polícias são alvos de assaltos e de agressões a tiro, impõe-se que se reveja com urgência as práticas policiais. Cla­ramente que não estão a resultar, pelo contrário, tendem a provocar uma escalada de violência entre a polícia e os gangs ficando a po­pulação no meio sem segurança e sem confiança que a situação irá melhorar. As mudanças na polí­cia não podem ficar só pela troca de pessoas nas chefias. Há que mudar de atitude, de estratégia e da forma como se relaciona com o público e se utilizam os meios postos à disposição. Ponto assen­te é que não se pode deixar tudo na mesma e esperar que alguma coisa mude.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 768 de 17 de Agosto de 2016

sexta-feira, agosto 12, 2016

Autarquias e contrapoder

Sempre pelas eleições autárquicas surgem discursos que tendem focalizar o debate político na relação entre o Governo/Estado e os municípios. Há quem queira fazer das câmaras centros de contrapoder e há quem faça promessas de maior disponibilidade de recursos em caso de ser a mesma força política a suportar o governo e a câmara municipal. Ainda, de tempos em tempos, aparece quem tenha ambições mais paroquiais e se esforça por se apresentar como o salvador regional contra a opressão e o abandono do governo. Com tais discursos o pleito eleitoral é enviesado, questões mais importantes das comunidades passam para o segundo plano e marcas muitas vezes profundas são deixadas entre os protagonistas. Não é de admirar que, na sequência das eleições, o futuro das relações institucionais fique comprometido com custos significativos na eficácia global do Estado, com descoordenação nos serviços prestados à população e com impacto negativo no desenvolvimento futuro do município.
A experiência autárquica no Cabo Verde independente faz 25 anos no final de 2016. Vai-se iniciar o sétimo ciclo de eleições dos órgãos municipais e seria da maior importância que as “doenças infantis” do processo de consolidação do Poder Local ficassem para trás. Não há ganho algum em continuar com as lutas de protagonismo entre os governos e os municípios. Funcionam em planos diferentes e têm níveis de competências e de responsabilidade diferentes que não os devia fazer rivais mas sim cooperantes na consecução do interesse público. Também não ajudam os pronunciamentos às vezes cáusticos de autarcas a clamar contra o abandono, a discriminação e humilhação a que os seus municípios sofrem nas mãos do Estado. Só servem para reproduzir a mentalidade de vítima que ao gerar ciclos alternados de indignação e frustração nas pessoas não lhes deixa energia para procurar saídas além daquela de culpar outros pelos seus males.
Infelizmente deixar de trilhar o caminho que já levou muitos ao poder e os ajudou a manterem-se lá mandatos seguidos não é fácil. Todos querem ganhar e o caminho mais fácil para isso é o de mobilizar paixões, agitar bandeiras identitárias e mostrar indignação. O problema com estas tácticas é que, além de desviar dos problemas locais invariavelmente, acabam por deixar todos pior do que no ponto de partida. Abrem caminho para caciquismos, culto de personalidade, bairrismos e políticas populistas e demagógicas que desperdiçam recursos e não capacitam para reconhecer nem para aproveitar oportunidades. Também há quem procure atrair eleitores para o seu campo em nome de se evitar a hegemonia do partido no governo. Compreende-se que quem tenha perdido eleições nacionais procure com vitórias noutras eleições demonstrar que continua a ser um grande partido. É um facto que os eleitores em meio de uma legislatura queiram demonstrar desagrado com a maioria no governo votando nos partidos da oposição. Mas fazer dessas constatações motivo para erigir as câmaras municipais em contrapoder em relação ao governo é excessivo e as consequências gravosas.
A luta política em Cabo Verde às vezes parece uma guerra sem quartel porque não se reconhecem como distintos os diferentes níveis do exercício de poder e os seus respectivos espaços de actuação e mecanismos de fiscalização política. No Parlamento perdem-se horas a discutir questões que melhor enquadramento teriam no debate nas diferentes assembleias municipais do país. Em várias ocasiões o governo e sua maioria parlamentar respondem a interpelações da oposição referindo-se a posicionamentos e actos de presidentes de câmara de cor política diferente. Nos municípios que o partido no governo é minoritário há a tentação de se criar estruturas paralelas, designadamente organizações comunitárias munidas de recursos dados directamente pelo Estado e incumbidas de realização de tarefas de natureza municipal. Em ambiente de crispação as estruturas desconcentradas do Estado não desenvolvem as melhores relações com as estruturas municipais e tendem a piorar porque é notório como certos funcionários em pontos- chave da vida do concelho, designadamente delegados de serviços desconcentrados tornam-se em activistas partidários dos mais frenéticos. No processo é evidente que a eficácia da actuação dos poderes públicos sofre grandemente com toda a descoordenação e a má vontade que é gerada.
Há que normalizar tudo isto e abrir uma nova fase de maior eficiência e eficácia na actuação dos poderes públicos mas de também de menor crispação. Cabo Verde tem 22 municípios. A lógica que está por detrás da criação dos municípios, da eleição dos seus órgãos e da garantia da sua autonomia administrativa é o reconhecimento que, como dizem os entendidos, os interesses das comunidades são específicos e diferenciados dos de outras comunidades locais e dos da colectividade nacional global. Também a Constituição consagra o Poder Local como um dos pilares do Estado de Direito democrático e o respeito pela autonomia das autarquias como um princípio basilar que nem pode ser matéria de revisão constitucional. Daí que se pode concluir que é de maior importância que todos os actores políticos respeitem os diferentes e diferenciados espaços de actuação política de forma a optimizar a actuação de cada um e garantir a complementaridade e solidariedade que entre si o sistema pressupõe e propugna para que o interesse público nacional e local seja plenamente realizado.

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 767 de 10 de Agosto de 2016.

sexta-feira, agosto 05, 2016

Nada para debaixo do tapete

Nos últimos dias tornaram-se conhecidos os resultados dos inquéritos feitos a dois acontecimentos trágicos que abalaram a sociedade cabo-verdiana: O afundamento do navio Vicente e o massacre do Monte Tchota. Praticamente ficou-se na mesma. Para o Ministério Público o único culpado pelo acidente do “Vicente” foi o capitão do navio e como se encontra entre os mortos dá-se por concluído o inquérito. Para as Forças Armadas, o responsável pelo massacre que se saldou em oito mortos militares e três civis agiu por razões pessoais e será julgado no devido tempo. O comunicado das FA acrescenta ainda que será instaurado um processo disciplinar a um militar não identificado por “incumprimento de deveres militares”.  
A reacção geral perante essas declarações tem sido de incredibilidade. Sente-se que mesmo quando se trata de situações extremas e trágicas não se consegue conhecer o que realmente aconteceu, quem são os responsáveis e que lições se pode retirar do caso para se evitar repetições no futuro. O caso do Monte Tchota é paradigmático.
Cinco dias depois do massacre, o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas demitiu-se e a sua demissão foi aceite pelo Presidente da República. Depreendeu-se do acto a gravidade do que se tinha passado e a necessidade de mudanças na instituição militar para evitar que a sua credibilidade, em termos operacionais e como força dissuasora de eventuais ameaças à soberania e à sua própria integridade, seja posta em causa. Mas pelo comunicado das FA divulgado, fica-se a saber que afinal  que “o moral e o nível de disciplina dos efectivos destacados para Monte Tchota são aceitáveis”. Também que em relação a “alegados maus-tratos” existe uma preocupação em cumprir as normas existentes. E quanto ao “uso de álcool e outros estupefacientes” são casos esporádicos. Por todas essas conclusões quase inócuas do inquérito e que não tocam na instituição é de se perguntar porque o então Chefe de Estado Maior teve necessidade de pedir a sua demissão.
Demasiadas vezes fica-se com a impressão que há uma tendência generalizada em fazer a sociedade cabo-verdiana caminhar algures entre um país ficcionado e o país real. E todas as vezes que alguma informação ou acontecimento lança as pessoas em direcção aos factos e para além das ilusões sistematicamente criadas e recriadas ou se faz tudo para os ignorar ou aparece uma diversão, um “sideshow”, que não deixa que a aproximação da realidade se concretize. Se nos casos referidos do Monte Tchota e do afundamento do navio Vicente tudo parece confluir para dizer que nada de fundamental se passou ou precisa ser mudado, já no debate sobre o estado da Nação do dia 29 de Julho o expediente foi vitimização para polarizar paixões.
O primeiro estado da Nação a verificar-se depois das eleições legislativas e já com um novo governo podia ter sido o momento ideal para se conhecer a situação actual do país e em sede do contraditório definir os contornos dos problemas existentes e pôr a teste as visões do governo e das outras forças políticas. Infelizmente o que se viu e se ouviu foi um exercício de descredibilização do Parlamento e o toque de clarim para cada partido meter-se na sua trincheira política. Comprometeu-se logo o diálogo político que o país tanto precisa neste momento de encruzilhada no seu desenvolvimento. É interessante contatar que as posições dos diferentes partidos durante o período eleitoral pareciam em várias matérias convergirem em relação a diagnóstico e a soluções. Até houve acusações de plágio mas parece que tudo foi esquecido. Prefere-se voltar ao antagonismo habitual em que se discutem governos de décadas diferentes ao mesmo tempo que se deixa o país num mundo virtual enquanto os problemas continuam a ser varridos para debaixo do tapete.
O facto é que são varridos mas não desaparecem. Particularmente agora que amortecedores externos em termos de ajuda internacional diminuem e as iniciativas económicas internas precisam de mais do que um bom começo, ignorá-los, falseá-los ou adiá-los indefinidamente traz consequências cada vez mais gravosas. As eleições de 20 de Março foram para colocar Cabo Verde num outro caminho que lhe permita ultrapassar a estagnação económica, recuperar o tempo perdido e crescer suficientemente para manter em bases sólidas a esperança de todos no futuro. Para isso porém há que começar por ter os pés bem firmes na realidade actual do país e do mundo com quem interagimos na procura das melhores vias para o sucesso e prosperidade.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 766 de 03 de Agosto de 2016.

sexta-feira, julho 29, 2016

Estado da Nação: Priorizar a economia privada

Aparentemente há consenso geral entre as forças políticas e na sociedade que o sector privado nacional deve ter um papel central no desenvolvimento do país. Alguns terão chegado a essa conclusão recentemente com o esgotamento do modelo de gestão das ajudas externas. Outros quererão dar continuidade ao esforço de reestruturação da economia que acompanhou o processo de democratização do país nos anos noventa. Outros ainda fazem o discurso politicamente correcto para os parceiros internacionais enquanto na prática prefeririam continuar com a situação actual de preponderância estatal na economia que garante rendimento seguro, estatuto social e influência política à chamada “classe média” do Estado. Em qualquer dos casos, a questão que se coloca actualmente é como proceder para realmente atingir esse objectivo e fazer do sector privado o motor do crescimento e de criação de empregos.
Vislumbrar um caminho para alcançar esse desiderato poderia ser um dos grandes resultados do debate sobre o Estado da Nação que vai ter lugar na Assembleia Nacional no dia 29 de Julho. Claramente que não é uma tarefa fácil mas é de uma urgência sem paralelo. É urgente porque o país, depois de anos a viver numa estagnação económica e com uma dívida pública pesada que diminui a capacidade de mobilização do investimento público, exige que se encontre a breve trecho uma alternativa de financiamento da economia que necessariamente inclua a mobilização do investimento directo estrangeiro. E não será fácil porque esse esforço de atracção de capital deverá articular-se virtuosamente com a promoção do sector privado nacional para se conseguir realizar o potencial do país. Logo à partida sente-se que fazer isso numa pequena economia arquipelágica e afastada dos grandes centros económicos mundiais é de uma complexidade extraordinária. O facto de nos últimos 15 anos Cabo Verde ter tido sete ministros de Economia ilustra bem os desafios enormes que se colocam no caminho da construção de uma estrutura produtiva no país capaz de fazer crescer a economia, criar empregos e exportar.
Quando os problemas são postos em cima da mesa evidenciam-se logo a questão do financiamento bancário, do custo de factores como energia e água e os de contexto designadamente os resultantes da interacção com a administração pública e as consequências da sua insensibilidade, burocracia e até favoritismo. Traz-se também à colação as dificuldades com os transportes aéreos e marítimos em realizar o velho sonho de unificação de um mercado fragmentado por nove ilhas. A todos estes empecilhos vieram juntar-se nos últimos anos as consequências de políticas governamentais no que respeita designadamente às obras públicas e habitação, ao fisco e à organização da actividade económica.
Assim, depois de centenas de milhões de contos investidos em obras públicas e habitação social por todo o país, o sector nacional de construção civil praticamente faliu ou ficou em sérias dificuldades financeiras. O aperto do fisco acompanhado das falhas na restituição do IVA pôs muitas empresas em sérias dificuldades financeiras e constituiu um factor de aumento da informalidade no país. A gestão do processo de integração na Organização Mundial do Comércio (OMC) deixou os operadores económicos completamente expostos à concorrência nem sempre leal de empresários estrangeiros à procura de fatias do já minguado mercado nacional, em particular do mercado do retalho sem que se vislumbre os benefícios da entrada na OMC. Mesmo no fornecimento de bens e serviços ao mercado criado pelo impulso do turismo não se desenvolveu qualquer estratégia discernível que acautelasse o interesse de operadores nacionais.
A história económica de países que foram bem-sucedidos no seu desenvolvimento evidencia muito bem o papel do Estado na promoção e expansão do sector privado nacional. O exemplo mais recente dos países do Sudeste asiático e também da Costa Rica, das Maurícias e das Seychelles mostram como, sem cair no proteccionismo estrito ou em políticas de substituição de importações, souberam equilibrar a opção pela exportação com a salvaguarda de condições para um sector privado nacional crescer, afirmar-se e estar posteriormente em posição de concorrer no mercado global. Liberalização económica do género que se optou na interpretação das normas da OMC nem nas grandes economias se faz. É só ver as barreiras tarifárias e outras não tarifárias que são erigidas,  nos Estados Unidos, mas também na Europa para proteger indústrias, por exemplo, de painéis solares ou outras nascentes em relação a produtos concorrentes de outros países. E são perfeitamente enquadráveis no âmbito da OMC.
Cabo Verde tem um especial desafio em desenvolver o seu sector privado. Vai ter que o fazer já bastante tarde e quando as condições lá fora não são as mais favoráveis e quando dentro país preconceitos, cultura institucional e práticas já existentes são particularmente prejudiciais à actividade empresarial e à inovação. Mas terá que o fazer porque o país não poderá viver eternamente da ajuda internacional, terá que saber produzir riqueza e saber exportar. E isso consegue-se com actividade privada dinâmica, criativa e ambiciosa. O Estado tem um papel fundamental em acarinhar todo esse processo com políticas “industriais”, com promoção do país e atração de capitais e com um envolvimento profundo no aumento de eficiência em todos os sectores de suporte da actividade económica no país. Já está atrasado em fazer isso. Que no novo ciclo político se procure recuperar o terreno perdido.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 765 de 27 de Julho de 2016.

sexta-feira, julho 22, 2016

Quer-se o PAÍS real ou fictício?

O debate sobre orçamento do estado de 2016 não foi ainda o momento para as forças políticas no Parlamento chegarem a acordo sobre o país que realmente temos. Para outros observadores institucionais, designadamente o Grupo de Apoio Orçamental (GAO), a situação vivida em Cabo Verde não deixa margens para dúvidas. Em comunicado emitido a 18 de Julho, O GAO foi directo em apontar que a “actividade económica permanece muito fraca”; que “os baixos níveis de confiança das empresas e dos consumidores não permite grande optimismo acerca das possibilidades de o país realizar completamente o seu potencial”; e que é preciso acelerar o “crescimento no médio prazo de forma a recuperar o tempo perdido durante o recente período de estagnação”. Para a maioria da população, as eleições legislativas de 20 de Março foram a oportunidade de demonstrar o descontentamento perante políticas que em anos sucessivos falharam em produzir os resultados prometidos em termos de crescimento, emprego e rendimento.
Não é uma atitude positiva continuar a insistir na ilusão que práticas e cultura institucionais chamadas “good governance” significam “boa política do governo” quando quem é governado mostra inequivocamente que quer mudar de políticas e de dirigentes. A confusão de conceitos foi deliberada e constituiu durante anos uma parte importante do exercício de ilusionismo que tinha como objectivo fazer acreditar ao povo de Cabo Verde que o governo de José Maria Neves recebia as melhores notas de países e de instituições estrangeiras. Como se fosse prática de governantes estrangeiros, particularmente de países democráticos, ajuizar quem melhor deve governar outro Estado de Direito democrático. Só a persistência em manter o equívoco pode justificar que ainda perante os últimos resultados eleitorais se venha argumentar com avaliações do Banco Mundial que dariam Cabo Verde como o segundo país africano melhor governado. E isso para rebater que o país depara-se actualmente com uma dívida pública pesadíssima, com um sector empresarial público num estado calamitoso e sem muita folga para investir e acelerar o crescimento económico.
Esconder a realidade do que se passa em vários sectores da vida do país tornou-se ao longo dos anos numa necessidade imperiosa para uma forma de governar que implicava empurrar os problemas com a barriga, simular soluções em múltiplos take-offs e largadas e, em geral, manter o manto da ilusão sobre as pessoas. Foram necessárias situações dramáticas como o naufrágio do navio Vicente, a má gestão dos evacuados de Chã das Caldeiras, o massacre de Monte Tchota para nos fazer cair na realidade das coisas. Os homicídios frequentes, a insegurança geral, assim como o desemprego persistente e a vida que não melhora deixam entender que muitas outras coisas não vão bem e que nem todas as instituições estão devidamente acauteladas. Mas como são de baixa intensidade diluem-se no quotidiano dos dias que passam e alimentam a apatia geral. Provavelmente foi a coincidência da gestão manifestamente desastrosa da TACV com o período eleitoral conjuntamente com a forte presença de uma alternativa estruturada que poderá ter contribuído para se soltar do “feitiço” da ilusão. Parece porém que se quer manter o jogo político que perpetua a ilusão e não deixa ver os problemas do país e nem discutir as vias para os resolver e identificar as oportunidades que poderiam permitir passar para um outro patamar de desenvolvimento.
 O GAO no seu comunicado fala do país real de “baixo crescimento económico, elevado défice fiscal e crescente dívida pública” para concluir que “só uma forte consolidação fiscal, reformas estruturais e uma cuidada sucessão de medidas” de política poderá reduzir o impacto de um ambiente externo e interno em vários aspectos adverso. De facto, incertezas na frente externa como o Brexit, os efeitos do terrorismo na Europa e o impacto da chamada estagnação secular somam-se a constrangimentos no plano interno, a começar pelo que o GAO considera ser a grave situação financeira de empresas públicas designadamente a TACV e a IFH. Neste particular, constata que pelo impacto na dívida pública que já têm há limitadas possibilidades de o governo as viabilizar e aconselha medidas decisivas sob pena de o governo ver a sua capacidade de implementar o seu programa “afectada negativamente”. Para conseguir a aceleração do crescimento no médio prazo sugere que se melhore o ambiente de negócios para atrair investimento directo estrangeiro (IDE) o qual deverá estimular o dinamismo do sector privado nacional já em tempo livre de dificuldades como o crédito, custos elevados de factores e de outros custos de contexto.
Devia ser evidente para todos que Cabo Verde não tem muito tempo a perder e que o mundo não está parado à sua espera. O tempo das ilusões, da possibilidade de sobrevivência na base da ajuda externa e da boa vontade dos outros vai inexoravelmente acabar. Quem faz parte do arco da governação seja no governo ou na oposição tem o dever através das suas iniciativas, debates e actos de fiscalização de levar o país pelo caminho onde possa ver claramente o ponto onde se encontra, os obstáculos a ultrapassar e os perigos a confrontar. Por outro lado, para dar resultados que afectam positivamente a todos, toda essa interacção e dinâmica tem que passar no país real e não no país fictício criado por ilusões que outrora sustentaram uma lógica de poder e que ainda hoje insistem em fazer de Cabo Verde um “país sempre adiado”.  
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 764 de 20 de Julho de 2016.

sexta-feira, julho 15, 2016

Para uma nova administração pública

Mudanças e nomeações nos organismos do Estado têm monopolizado a atenção e o discurso político nas últimas semanas. Não é caso para espanto, considerando que um outro partido esteve 15 anos interruptos a dirigir a Pública (AP) e o novo governo esforça-se por se posicionar para melhor passar as suas orientações e atingir os objectivos preconizados junto ao eleitorado. Tensões são inevitáveis enquanto uns cedem lugares a outros, certas entidades desaparecem algumas novas são criadas e outras ainda são reestruturadas.
Isso passa-se mesmo em países como o Reino Unido que goza da famosa neutralidade do seu Civil Service. Na sequência de longos períodos de governo conservador ou trabalhista não se deixa de notar as “marcas” deixadas. Em Portugal nem a criação em 2012 da Autoridade de Contratação Pública com os seus concursos públicos para dirigentes da Pública evitou acusações de contracto de “boys and girls” pelo anterior governo ou impediu nomeações tidas do governo de António Costa vistas geralmente como partidárias. Noutros países assume-se mais ou menos frontalmente que há um número de altos funcionários ou dirigentes que são removidos ou emprateleirados conforme as alternâncias na governação. Nos Estados Unidos com o seu “spoil system” há mil e poucos lugares nomeados ao prazer do presidente e que deixam o cargo no fim da sua . Na Alemanha reservam-se por alguns anos “prateleiras douradas” para altos funcionários que foram cooptados para posições politicamente sensíveis por governos anteriores.
Cada país tem seu modelo de relação entre poder político e pública o qual na generalidade dos casos tem a ver com o seu específico percurso histórico e de desenvolvimento institucional. Há quem diga, por exemplo, que a quase ausência de restrições para a actividade política do funcionário português prescrita na Constituição é uma reacção à neutralidade política da AP que vinha dos anos do salazarismo. Em Cabo Verde fez-se um desvio: entre o salazarismo e a democracia houve o partido-Estado em que a pública deu uma viragem para o extremo oposto e foi completa e ostensivamente partidarizada. Dificilmente as soluções ideais para um serão também para o outro, não querendo isso dizer que não se possa aprender e mesmo apropriar-se das experiências dos outros.
A tendência geral nos estados modernos é a de convergir no mesmo objectivo: ter uma pública eficiente e eficaz, profissional, “amiga” da iniciativa individual e empresarial e fornecedora de serviço de qualidade aos utentes. Para isso, primeiro tem que encontrar formas de ser efectiva em seguir a orientação e implementar as políticas do governo legitimamente constituído e, ao mesmo tempo, ser profissional, isenta, imparcial e não discriminatória na prestação de serviço aos cidadãos. Não é tarefa fácil muito menos quando como em Cabo Verde ainda é bem presente uma cultura de partidarismo. O direito de acesso à Função Pública garantido pelo Constituição a todos os cidadãos não deve significar possibilidade de fazer carreira com base no cartão partidário nem direito de se excluir às directrizes legalmente transmitas pelo governo o e nem de se subtrair às exigências também constitucionais de isenção e imparcialidade. Para se conseguir esse nível de profissionalismo há que se fazer um esforço muito dirigido. Vários países optaram por formação dos seus funcionários ao mais alto nível em escolas especiais da do tipo Ecole Nationele d’Administration francesa ou College of Civil Service inglês.
A apreciação negativa da pública que se ouve de todos os lados designadamente de todos os partidos políticos, das organizações empresariais e de cidadãos comuns deve ser motivo suficiente para convergir esforços para se ultrapassar os constrangimentos actuais. Os ganhos de se conseguir uma confluência de vontades nessa matéria podem ser enormes porque pôr a AP no caminho certo irá afectar positivamente o ambiente de negócios e a competitividade do país. Torná-la mais eficiente e eficaz significará maior poupança nos recursos do Estado e mais qualidade nas despesas. Fazê-la mais profissional conduzirá a melhores políticas públicas e a mais accountability. Conseguir esses resultados porém implicarão reformas, legislação adequada e formação especializada. Não serão atingidos certamente com medidas unilaterais de entrega de cartões partidários e de outras medidas possivelmente limitadoras dos direitos políticos.
A verdade é com a economia mais dinâmica poder-se-ia entrar num círculo virtuoso que deixará para trás a cultura burocrática, centralizadora e não facilitadora de iniciativas que vem dominando o país desde dos seus primórdios. Ficará o caminho aberto para a cultura de serviço e de resultados que o país tão precisa e também para se adoptar uma atitude de mais cooperação entre as pessoas com impacto directo em mais civismo, mais confiança e menos conflitualidade.
          Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de  13 de Julho de 2016

sexta-feira, julho 08, 2016

Patriotismo inclusivo

Em mais um aniversário da Independência Nacional, o quadragésimo primeiro, as comemorações foram marcadas por ritos, cerimónias e discursos de exaltação patriótica que apelam ao renovar do patriotismo em particular junto das novas gerações. O espírito patriótico resulta da consciência de pertença a uma comunidade política nacional irmanada por princípios e valores da liberdade, da democracia, de justiça e de solidariedade. Renová-lo nas datas nacionais e mantê-lo vivo ao longo de todo o tempo é essencial para o ambiente político, económico, social e cultural, que se quer de afirmação do indivíduo, da promoção da diversidade, de livre manifestação de interesses, do pluralismo político e de incentivo à criatividade e que já mostrou ser indispensável para gerar dinâmica sustentada e atingir o grau de desenvolvimento almejado por todos.
O discurso do patriotismo tem experimentado nos últimos tempos em vários países um inesperado ardor e contundência que preocupa, porque em vez de reafirmar a unidade da nação e a importância da contribuição de todos para o bem comum, tende a dividir, a vitimizar uns e a culpar outros. Ouvir Marine Le Pen e outros políticos da extrema-direita europeia a apelar aos “patriotas” em contraposição aos que seriam os “globalistas” relembra processos de divisão nas sociedades e nas democracias que no passado desemborcaram em regimes totalitários, fascistas e comunistas, e em guerra mundial. Discurso similar ouviu-se durante todo o processo que levou ao referendo no Reino Unido. À volta da questão de imigrantes procurou-se dividir as pessoas exacerbando as diferenças entre as gerações e entre uma elite cosmopolita e europeia e outras classes mais nativistas e patrióticas. Viu-se o resultado no Brexit e no espanto e consternação pela saída do Reino Unido da União Europeia. O mesmo também está acontecer nos Estados Unidos da América com o fenómeno Donald Trump que já se posicionou com candidato do partido republicano para o cargo de presidente nas eleições de Novembro. As consequências de uma eventual vitória de Trump seriam simplesmente desastrosas a nível global afectando as relações entre os países, e a paz e a segurança mundial.
Robert Reich, ex-Secretário de Trabalho no governo Clinton e Chanceler na Universidade da Califórnia chamou recentemente a atenção para a ascensão de um certo discurso político que ele classificou de “patriotismo exclusivo”. Um discurso de certos sectores que se consideram os mais puros e defensores dos valores nacionais em contraposição com os que supostamente se vendem ao estrangeiro porque são cosmopolitas, ou são multiculturalistas ou tolerantes das diferenças raciais, sexuais e religiosas. Para eles as regras e as instituições democráticas e os princípios da liberdade e da igualdade de oportunidades não têm de ser respeitados a todo o momento em particular quando o que consideram altos valores se alevantam. Justificam o seu patriotismo exclusivo com o novo ambiente mundial criado pela globalização que destrói milhares de postos de trabalho nos países desenvolvidos, pelas migrações massivas que sobrecarregam os sistemas de segurança social e introduzem forte concorrência no mercado de trabalho e pelo terrorismo que cria insegurança e deixa os cidadãos desamparados sem a protecção do Estado. A fragilização e quase colapso dos partidos colocados ao centro, seja ao centro-esquerda seja ao centro-direita, têm sido acompanhados da ascendência dessas forças políticas situadas nos extremos da vida política com discursos que cada vez mais se reclamam deste patriotismo exclusivo.
Cabo Verde conhece bem as consequências de se persistir na reivindicação da condição de patriotas só para alguns quando há muito se deixou para trás a polarização política inicial dos tempos da independência. Em condições ideais instala-se um regime antidemocrático em que os autoproclamados “melhores filhos” acham-se no direito de governar sem necessidade de consentimento dos outros como aconteceu nos primeiros quinze anos da independência. No regime democrático que se seguiu ao 13 de Janeiro, a persistência de resquícios desse patriotismo exclusivo dificultou a consolidação do regime democrático, desincentivou o diálogo, impediu compromissos e não deixou muito espaço para negociações entre as forças políticas. Quantas vezes no embate parlamentar não se consegue avançar no debate e chegar a acordo porque uma das partes considera a sua posição patriótica e portanto superior, subentendendo-se que tem razão e que a outra parte estaria ao serviço de causas contrárias ao bem público.
É um facto histórico incontornável que as sociedades, que conseguem mobilizar as pessoas individualmente ou organizadas em empresas ou outras entidades ligadas à produção de riqueza para perseguir os seus interesses e realizar as suas ambições, ficam em melhor posição de colher os frutos do esforço de todos e de, colectivamente, fazer a comunidade avançar a um passo sem precedentes. Também sabe-se que contribui extraordinariamente para o sucesso nessa via, se no plano político de determinação da orientação a dar à sociedade, vigorarem os princípios da concorrência, da igualdade de oportunidades, do pluralismo, do primado da lei e da resolução pacífica de conflitos. O pressuposto básico para isso é que todos se sintam cidadãos em pleno, unidos pelos princípios e valores plasmados na Constituição da República.
É esse sentimento que constitui o patriotismo inclusivo que há que promover para que o desenvolvimento do país prossiga sem querelas inúteis. Porque ninguém é mais patriota que o outro e patriotismo não é argumento quando todos, seguindo as regras do contraditório, estiverem engajados na consecução do bem comum e do interesse público.
          Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 6 de Julho de 2016