O orçamento do Estado para o ano 2017 era para ser o grande acontecimento da sessão do parlamento em Novembro. Infelizmente, a apresentação do verdadeiro primeiro orçamento do novo governo foi obscurecido por um conjunto de incidentes e situações anormais ao longo do debate na plenária que deixou patente, perante todos, a fragilidade da instituição parlamentar. Além das já habituais, e muitas vezes sem sentido, interrupções de trabalho com interpelações à Mesa, veio-se a constatar que a Assembleia Nacional esteve a trabalhar out of order, ou seja, sem que as exigências formais para o seu funcionamento estivessem a ser integralmente cumpridas. A Ordem do Dia não tinha sido de facto aprovada e o presidente da AN, a partir de um certo momento já suspenso do seu mandato de deputado por razões de ausência do país do presidente da república (artigo 131º da Constituição), continuou a dirigir os trabalhos. No domingo seguinte, a televisão pública, TCV, não se coibiu de apresentar trechos do debate do Orçamento do Estado com o trilho sonoro que acompanha a actuação de palhaços no circo.
Nunca é demais salientar a gravidade do que ali se passou. A proposta de orçamento do Estado para 2017 estava agendada para ser discutida e aprovada. Para isso devia constar da ordem do dia aprovada por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções, ou seja, pelo menos por 37 deputados. O Presidente da mesa proclamou a Ordem do Dia aprovada com 36 deputados a favor, 26 contra e 3 abstenções, como se pode comprovar no vídeo da AN de 21 de Novembro, período da manhã (1:08:00). Deu por aberto o período da ordem do dia, que é, segundo o regimento, o período durante o qual o parlamento exerce as suas funções constitucionais, sem que realmente tivesse sido aprovado. A questão que se coloca é se são válidos os actos seguintes, como sejam a votação e aprovação de leis, particularmente quando a dirigir os trabalhos esteve, durante algum tempo, um presidente em situação irregular porque estava suspenso das suas funções de deputado.
O facto do parlamento e dos sujeitos parlamentares não contestarem a validade dos actos praticados durante a sessão pode não fazer com que o problema desapareça. Como diz o constitucionalista Jorge Miranda “o Presidente da República pode impugnar a constitucionalidade de diplomas, por preterição de requisitos formais”. Tratando-se do Orçamento do Estado, que deve vigorar logo a partir de 1 de Janeiro de 2017, há que evitar quaisquer contratempos ou dúvidas no processo da sua aprovação e posterior promulgação pelo PR. Muito menos ainda permitir que o contribuinte alimente alguma desconfiança quanto ao processo em que se criam impostos e mecanismos de cobrança e liquidação dos mesmos.
O formalismo, ou o respeito pelos procedimentos, é fundamental em democracia. Não é à toa que sempre que se procura minar as instituições democráticas, ou se quer impor a tirania de uma maioria, ou a vontade de um chefe, criam-se atalhos para não se seguir escrupulosamente as normas, fazem-se apelos para não se perder tempo em debates e formalidades, aponta-se a conveniência de não cumprir com certos requisitos e cortam-se a meio deliberações com declarações de confiança na futura decisão de um pequeno comité, ou do chefe. A democracia entra em crise quando práticas semelhantes começam a verificar-se dentro dos parlamentos e no interior dos partidos. Essa acção corrosiva, muitas vezes provocadas por pressão de movimentos populistas tanto dentro como fora, aumenta a disfuncionalidade dessas mesmas instituições num crescendo que conduz a ainda maior descrédito das mesmas e maior adesão aos impulsos populistas.
O sucesso de movimentos populistas em vários países, acompanhado de subsequente degradação da democracia e das suas instituições, tem lançado dúvidas sobre a capacidade de resiliência da democracia. Com o que se passa actualmente, por exemplo, na Hungria, na Polónia e na Turquia ninguém já diz que o processo de consolidação da democracia é irreversível. Também ninguém garante que a América com Donald Trump, ou a França com Marine Le Pen, vão manter a mesma face democrática que hoje apresentam. O mundo actual da globalização, de fácil comunicação e alta conectividade e de mudanças disruptivas no mercado de trabalho devido ao passo acelerado de inovações tecnológicas cria muitas oportunidades, mas também frustrações, ressentimentos e ansiedades. As pessoas tornam-se mais facilmente permeáveis a fenómenos como xenofobia, racismo e misoginia e iludem-se rapidamente com apelos anti-partidos e anti-política vindos de um auto intitulado chefe. A complexidade da vida, da economia e da democracia é reduzida a uma visão simplista dos problemas para os quais há soluções a encontrar, de preferência sem demasiados procedimentos e sem deliberações numa base plural.
Cabo Verde também não deve tomar a democracia como algo seguro e garantido. As dificuldades demonstradas no funcionamento do parlamento, os efeitos visíveis de atitudes populistas no seio dos partidos e a prevalência em certos sectores de discursos anti-política e anti-partido não podem ser tomadas com ligeireza. Como também noutros países disfarça-se o ataque populista contra a democracia representativa com propostas de democracia plebiscitária que põem uns contras outros, acabam com o pluralismo e promovem o aparecimento de chefes e cultos de personalidade. Um aviso do que pode trazer o futuro é o espectáculo que se assistiu do parlamento “out of order” e de uma TCV pública ostensivamente a denegrir a imagem do órgão de soberania representativo de todos os cidadãos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 783 de 30 de Novembro de 2016.