Ontem dia 7 de Novembro, 25 de Outubro no calendário juliano, completaram-se cem anos da revolução russa que, parafraseando o escritor americano John Reed, em dez dias abalou o mundo. De facto depois da tomada de poder em S. Petersburgo pelos bolcheviques comandados por Lenine nunca mais o mundo foi o mesmo. A luta de ideias a que deu origem, opondo o comunismo à democracia liberal e constitucional e a economia estatal à economia de mercado, marcou todo o século 20. Surgiram rivalidades geopolíticas em todos os continentes à medida que revoluções similares eram tentadas e a partir da segunda guerra mundial materializou-se a divisão do mundo em dois blocos político-militares com capacidade nuclear de destruição de toda a humanidade. O ciclo de antagonismo ideológico aberto pela revolução russa só viria a fechar-se em 1991 com o desmoronar da União Soviética após acontecimentos como a Queda do Muro de Berlim em 1989 e libertação de toda a Europa de Leste do jugo soviético.
As promessas da revolução de uma sociedade sem classes, sem exploração do homem pelo homem e com garantia que todos receberiam segundo as suas necessidades seduziram muitos não só na Rússia como em todo o mundo designadamente intelectuais, artistas e jovens. Também provocaram reacções que depois viriam a revelar-se de grande impacto na forma de organização da sociedade e na relação entre os povos. Nas democracias mais frágeis, a resposta ao desafio comunista levou em alguns casos ao fascismo e noutros a derivas autoritárias de toda a espécie com custos humanos e de liberdade sem precedentes, como foi o caso da Alemanha Nazi. Nas democracias consolidadas, o desafio comunista foi respondido com dinâmica económica que alargou a classe média e com a edificação do Estado social que procurou acautelar os interesses dos trabalhadores e estendeu a todos os serviços sociais de saúde, da educação e da protecção da infância e da velhice. Já o confronto com os países detentores de impérios coloniais contribuiu para fazer do comunismo a grande referência ideológica de muitos nacionalistas na África, Ásia e na América Latina na luta pela independência e posterior utilização das suas soluções na condução da economia e na organização da sociedade.
O falhanço do comunismo em trazer a prometida prosperidade económica acrescido dos extraordinários sacrifícios impostos com a perda da liberdade, a perseguição política dos opositores, os milhões enviados para trabalhos forçados e outros milhões condenados à morte em fomes artificialmente criadas precipitou o seu desmoronamento em todo o mundo nos últimos anos da década de oitenta e início dos anos noventa. O fenómeno da queda em cadeia de regimes totalitários em todo o mundo foi chamado de grande extinção leninista por alguns autores. Lembrou a desaparição rápida dos dinossauros no Jurássico. Para autores como Fukuyama o fim do combate ideológico com a vitória da democracia liberal e da economia de mercado sobre o comunismo na época configurava simultaneamente o fim da história em que já não haveria alternativa aos princípios e valores da dignidade humana, da liberdade individual, do pluralismo e do primado da Lei. Os factos porém vieram posteriormente confirmar que, como há dias escreveu Anne Applebaum no Washington Post, as ideologias totalitárias nunca morrem e nem acaba a sua capacidade de seduzir.
Cabo Verde também viu o regime de partido único soçobrar e desaparecer nessa grande extinção leninista. Quinze anos antes o país tinha ganho a independência ficando sob a direcção do PAIGC, um movimento de libertação que como vários outros se inspirou na ideologia e nos métodos organizativos do partido de Lenine. Como seria de esperar, o regime cerceou as liberdades, hostilizou o sector privado e consolidou o poder único do partido numa perspectiva totalitária. Como partido de inspiração leninista via-se como intérprete do devir histórico do país, único conhecedor dos reais interesses dos caboverdianos e um demiurgo criador de nações à maneira como foram criados o povo soviético e o povo ioguslavo: a luta de libertação é, como não deixava de repetir, um acto de cultura. Ainda predispunha-se a criar um chamado homem novo ideologicamente educado, livre de complexos burgueses ligados à propriedade e à família e sem nenhum interesse pela democracia representativa com as suas eleições livres e plurais e seu Estado de Direito. Curiosamente o fim do regime, como aconteceu noutras paragens, acelerou com o fracasso repetido em ultrapassar as dificuldades económicas seguida de estagnação no fim dos anos oitenta. Quando se quis reestruturar para ganhar espaço político, perdeu ostensivamente.
O centenário da revolução russa é um dos tais momentos para relembrar o quanto prejudicial e mesmo catastrófico foi o facto das pessoas se deixarem levar por uma ideologia que prometeu tudo e só, de facto, matou a liberdade, substituiu a verdade pela mentira e na sua ânsia de poder orientou-se pelo princípio segundo o qual os fins justificam os meios, abrindo caminho para regimes cruéis e responsáveis pelas maiores mortandades na História. Como diz Anne Applebaum no artigo citado há sempre que explicar às novas gerações as consequências do desvio iliberal e assegurar-se que saberão reconhecer as tácticas de quantos denigrem a democracia representativa e procuram nas várias estratégias de reprodução do actual modelo de desenvolvimento manter a dependência das pessoas, fragilizar as instituições e minar a confiança nos procedimentos democráticos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 832 de 08 de Novembro de 2017.