2017 já está a perfilar-se como um dos anos terríveis de seca. De acordo com as declarações à imprensa do ministro Gilberto Silva pluviosidade neste ano ficou pelos 109 mm quando a média das precipitações no país é inferior a 300 mm. Calcula-se em mais 17.000 as famílias afectadas pela crise gerada pela falta de chuvas que directamente prejudica tanto a agricultura como a criação de gado. Devido à escassez geral, culturas tradicionais de sequeiro não foram feitas, os regadios estão a sofrer com a diminuição drástica de água disponível e o gado sem o precioso líquido fica em risco de sucumbir e não tem pasto para se sustentar. O rendimento de muita gente no mundo rural, que normalmente depende do que pode extrair da terra e da criação de animais para completar outros benefícios que recebe designadamente as remessas de familiares, de repente ficou sem um dos seus pilares. Todo o país se alarmou. O governo promete avançar com programas de emergência e diligências já foram feitas para mobilizar ajuda internacional. O que ficou claro mais uma vez foi que, 42 anos após a independência nacional, a vida continua tão precária como antes para muita gente em Cabo Verde.
Anos de seca não são novidade no país. Séculos de existência pontuados por crises periódicas, que em vários momentos resultaram em fomes mortíferas, dão conta da fragilidade das ilhas. A irregularidade das chuvas contribuiu para manter a população pequena e nunca deixou que uma economia agrária realmente se viabilizasse. Com a independência a ajuda internacional passou a contribuir decisivamente para que as secas não se transformassem em momentos de calamidade para as populações. Já na edificação de uma economia rural que diminuísse a precariedade da existência das pessoas, a ajuda não foi tão bem sucedida, não obstante os muitos milhões gastos na construção de estradas de desencravamento, de diques e barragens e ainda nos mil e um projectos dirigidos às populações ao longos dos anos cujos resultados muitas vezes não se viam depois de terminado o financiamento. Vários factores contribuíram para que dos enormes investimentos feitos se obtivessem os magros resultados hoje constatados e que aparecem nas estatísticas oficiais como, por exemplo, as que põem o interior de Santiago com o menor rendimento per capita do país.
O principal factor seguramente foram as políticas públicas que se revelaram incapazes de criar uma outra base de sustentabilidade que permitisse ao país crescer e criar empregos fora do mundo rural. Aparentemente a história das sucessivas secas ao longo dos séculos não serviu muito para desencorajar tentativas de reviver o mundo rural quase nos mesmos moldes de sempre. As opções de política desde o início focalizaram-se nas populações lá onde viviam com intervenções e projectos ostensivamente anunciadas para aumentar a autonomia e melhorar a base de existência das pessoas mas que na prática serviram essencialmente para tornar as pessoas dependentes do Estado. Explicitamente com essas políticas procurava-se evitar o êxodo rural mas empregos suficientes para reter as pessoas dificilmente podiam ser criados. A estrutura da propriedade não se alterou significativamente, persistindo as pequenas explorações familiares, as culturas continuaram basicamente as mesmas salvo algumas inovações e os constrangimentos de transportes, distribuição e de acesso a mercados mais alargados não foram ultrapassados. A produção agrícola do país continuou a ser essencialmente de subsistência. Por isso que qualquer quebra nas precipitações expõe tão abertamente a precariedade dos rendimentos das pessoas que dela vivem.
A opção pelo desenvolvimento com base na reciclagem da ajuda externa alimentou-se durante anos dessa precariedade, tanto induzida como reproduzida, mobilizando a generosidade internacional para responder às situações de emergência que ciclicamente surgiam. Embalados nessa via os governantes não procuraram durante largos anos criar alternativas efectivas de emprego na indústria e nos serviços. Constrangimentos ideológicos e outros impediram que se adoptassem políticas de atracção de investimento directo estrangeiro, que se fomentasse o turismo e se desenvolvessem indústrias viradas para a exportação como aconteceu nas Maurícias e em vários outros países que originariamente tinham uma economia predominantemente agrária. Pagou-se essa “negligência” com o chamado desemprego estrutural que andou sempre nos dois dígitos e entre os jovens à volta dos 40% e com a persistência da vulnerabilidade da população que segundo o Ministro de Finanças ainda alberga no seu seio 170 mil pobres e 50 mil pessoas em estado de pobreza absoluta.
A facilidade com que recentemente muitos se deixaram levar pelo ilusionismo das barragens que mobilizavam toneladas e mais toneladas de água para suportar clusters de agronegócios e criar emprego no mundo rural mostra o quanto é arreigado o sonho em certos círculos que se Cabo Verde chovesse, acabavam os problemas e seriamos todos felizes. Muita política faz-se explorando esses sentimentos. O resultado é que muitos recursos que podiam ser aplicados em sectores da economia capazes de criar emprego, aumentar a produtividade e contribuir mais para a produção da riqueza nacional, são investidos nos mesmos projectos que já provaram não ter retorno significativo. Não é à toa que após muitos milhões de contos aplicados no mundo rural em Cabo Verde grande parte da agricultura não passa de uma agricultura de subsistência incapaz de se suster sem subsídio do Estado e muito pouco resiliente face a quebras na pluviosidade.
Devia-se esperar que esta crise, ao revelar de forma dramática a fragilidade da abordagem que se tem feitos dos problemas do país, servisse de alerta e de convite à uma mudança de atitude. É um facto que crises similares no passado não tiveram esse efeito. Espera-se que desta vez, em que claramente o país está numa encruzilhada, se veja a luz. É urgente uma nova atitude que finalmente ponha o país no caminho da modernização em que, a exemplo de outros países que souberam abandonar a postura nostálgica em relação a um passado muitas vezes fictício, o foco seja colocado nos sectores de mais peso na economia e com maior potencial de crescimento. A agricultura deverá ter sempre um papel importante mas há que ultrapassar os constrangimentos da distribuição, transporte e acesso a mercados, focalizar em produtos de maior valor acrescentado e inovar para a tornar mais produtiva, a fim de libertar mão-de-obra para sectores mais dinâmicos. Talvez assim se construa uma nação em que, com o poeta, se pode dizer: “…as estiagens já não nos metem medo”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 833 de 15 de Novembro de 2017.