No dia 22 de Janeiro, Dia do Município de S. Vicente,
o governo pela voz do ministro de Estado Fernando Elísio Freire
anunciou o reforço da descentralização no ano 2020 com a introdução de
várias iniciativas legislativas. Ao longo dos meses e supõe-se até
Julho, considerando que as eleições autárquicas terão lugar em meados de
Outubro, deverão ser apresentados à Assembleia Nacional propostas de
lei do novo estatuto dos municípios, do novo regime financeiro das
autarquias locais, da nova lei de bases do orçamento municipal, da nova
lei de impostos sobre o património e do regime de projectos de mérito
diferenciado.
Entretanto, o governo já
fez chegar à Assembleia Nacional a proposta de lei que dota a Praia de
um estatuto administrativo especial.
Mesmo pondo de lado a questão se as iniciativas são ou não exequíveis ou podem ser levadas a bom termo num quadro temporal razoável, o momento escolhido não pressagia nada de bom. Conseguir, em cima de um pleito autárquico, acordos alargados das forças políticas sobre matéria de poder local e da sua relação com o governo central não é tarefa fácil. Em 2015, um pacote similar de leis incluindo um novo estatuto dos municípios também tinha sido apresentado pelo então governo do Paicv e foi de todo impossível reunir a maioria necessária para ser aprovado. Algo semelhante tinha acontecido cinco anos antes, em 2010, quando uma lei da descentralização que previa a criação de regiões e freguesias foi contestada pelos partidos da oposição por entre outras razões por não ter sido aprovada por maioria qualificada. Se se ajuntar a todo este historial de desencontros em matéria de descentralização os episódios recentes (2019) que marcaram o processo da regionalização e a discussão da proposta de lei no parlamento não é de se esperar muito dessas iniciativas. No mínimo vai-se constatar mais um pico no ambiente de crispação política. O que ainda poderá ser mais custoso é o país ficar sujeito a um quadro institucional criado por leis que não foram suficientemente debatidas nem devidamente ponderadas as opções de políticas nelas consagradas.
O que aconteceu com a lei da regionalização não deve repetir-se. Então ficou claro para todos que os propósitos eleitoralistas eram mais do que evidentes e que por isso o debate sobre toda a matéria ficou prejudicada. Daí que as soluções encontradas, seguindo essa lógica e que fixavam o princípio de ilha-região (desafiando a realidade de regiões sócio-económicas já existentes como S.Antão-S.Vicente, ignorando a fragilidade humana e material das ilhas com população diminuta e não tendo em devida conta a complexidade da situação vivida pelas ilhas alvo de grandes investimentos e de migrações massivas) geraram tanta controvérsia. O interessante é que depois de todo esse exercício contradizia-se o princípio de ilha-região e duas regiões eram criadas na ilha de Santiago. Não é de estranhar que no fim de tudo isso só tenha ficada a dúvida se os posicionamentos dos partidos em relação à proposta de lei eram sobre a substância da mesma ou se se tratava de um jogo para ver quem ficava com o ónus de ter bloqueado a sua aprovação. Também não espanta a perda subsequente de credibilidade das instituições e em particular do parlamento. Nesse sentido, introduzir outra vez leis sobre a descentralização sem uma discussão prévia entre os partidos e entre estes e a sociedade corre-se o risco de só acumular perdas como foi de outra vez.
Como se constatou em vários momentos, 2010, 2015 e 2019, quando propostas de lei sobre a descentralização foram presentes ao parlamento, torna-se claro que não há uma visão coerente e compartilhada sobre a matéria e que se age fundamentalmente para favorecer interesses reais ou tidos como tal de certos segmentos do eleitorado. O facto de essas datas situarem-se próximas das eleições, deixam transparecer a motivação dos governantes do momento e por isso mesmo a reacção de quem estiver na oposição. O resultado é que nunca há a serenidade necessária para discussão de uma matéria que se revela de extrema importância num país que todos reconhecem como altamente centralizado. E quando, por razões nem sempre claras, se chega a algum tipo de consenso, como aconteceu em 2005, também nas vésperas de eleições, e cria-se de uma assentada mais seis municípios o que se consegue é discutível. As dificuldades em matéria de autonomia, sustentabilidade, capacidade de investimento e de gestão numa perspectiva de futuro, que os novos municípios enfrentam, deviam ter sido equacionadas no âmbito de uma lei-quadro de criação de municípios o que até hoje não existe.
Medidas de grande alcance e impacto sobre o país, em particular na forma como se gerem os recursos disponíveis, se faz a redistribuição, se mantém a coesão nacional, se investe na competitividade e se aposta no futuro deviam ser discutidas em sede mais adequada – seja ela no quadro da aprovação de leis ou mesmo de uma revisão da Constituição – para se poder fazer a melhor ponderação e aprofundar as questões resultantes. Quando não se vai por essa via, porque se está pressionado pelo eleitoralismo, a democracia revela-se no seu pior em termos de ineficiência e a credibilidade das instituições e da política sofre. É nesse sentido que a proposta do novo estatutos dos municípios com mudanças na forma de constituição dos órgãos municipais e eleições para uma única lista para a assembleia municipal e assunção pelo primeiro da lista do cargo de presidente da câmara devia ser precedida de uma alteração na Constituição que contemplasse essa solução. A Constituição portuguesa permitiu uma solução similar, mas só depois da revisão constitucional feita em 1997. Insistir em avançar com a lei, sem clarificar em sede constitucional, pode levar ao mesmo impasse sofrido pela lei de igual teor em 2015. Do mesmo modo também, em sede constitucional, podia-se densificar a questão do Estatuto Administrativo Especial para a Praia para se evitar as controvérsias à volta da lei e suprir a deficiência original deixada pelo legislador constituinte que ao aditar do artigo não o acompanhou de uma justificação.
Por estas e outras razões parece pertinente que se faça proximamente uma revisão da Constituição. Desde Maio de 2015 que já é possível avançar com uma revisão ordinária da Constituição. Em causa está a descentralização que é uma questão central do país e que merece ser tratada em tudo o que implica com a seriedade e as devidas cautelas que se aconselham num país arquipélago de parcos recursos e diminuta população. É fundamental manter a ideia global do país ao mesmo que se assegura a diversidade propiciada pelas suas ilhas que o enriquece culturalmente e potencia o desenvolvimento do todo nacional. O consultor das Maurícias Dev Chamroo, ao observar certas derivas já tinha alertado que “se Cabo Verde acreditar que é 10 ilhas diferentes não vai a lado nenhum”. Por isso, todo o processo de descentralização incluindo a questão do Estatuto Administrativo Especial da Praia, que originalmente era inseparável das opções em matéria de regionalização, deve ser discutido aprofundamento em sede própria, com serenidade e sem pressão eleitoral em cima. É fundamental que, uma vez por todas, prevaleça o bom senso e que ao invés de se multiplicar ineficiências se tenha um país mais ágil, mais competitivo e com visão para agarrar as oportunidades.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 948 de 29 de Janeiro de 2020.
Mesmo pondo de lado a questão se as iniciativas são ou não exequíveis ou podem ser levadas a bom termo num quadro temporal razoável, o momento escolhido não pressagia nada de bom. Conseguir, em cima de um pleito autárquico, acordos alargados das forças políticas sobre matéria de poder local e da sua relação com o governo central não é tarefa fácil. Em 2015, um pacote similar de leis incluindo um novo estatuto dos municípios também tinha sido apresentado pelo então governo do Paicv e foi de todo impossível reunir a maioria necessária para ser aprovado. Algo semelhante tinha acontecido cinco anos antes, em 2010, quando uma lei da descentralização que previa a criação de regiões e freguesias foi contestada pelos partidos da oposição por entre outras razões por não ter sido aprovada por maioria qualificada. Se se ajuntar a todo este historial de desencontros em matéria de descentralização os episódios recentes (2019) que marcaram o processo da regionalização e a discussão da proposta de lei no parlamento não é de se esperar muito dessas iniciativas. No mínimo vai-se constatar mais um pico no ambiente de crispação política. O que ainda poderá ser mais custoso é o país ficar sujeito a um quadro institucional criado por leis que não foram suficientemente debatidas nem devidamente ponderadas as opções de políticas nelas consagradas.
O que aconteceu com a lei da regionalização não deve repetir-se. Então ficou claro para todos que os propósitos eleitoralistas eram mais do que evidentes e que por isso o debate sobre toda a matéria ficou prejudicada. Daí que as soluções encontradas, seguindo essa lógica e que fixavam o princípio de ilha-região (desafiando a realidade de regiões sócio-económicas já existentes como S.Antão-S.Vicente, ignorando a fragilidade humana e material das ilhas com população diminuta e não tendo em devida conta a complexidade da situação vivida pelas ilhas alvo de grandes investimentos e de migrações massivas) geraram tanta controvérsia. O interessante é que depois de todo esse exercício contradizia-se o princípio de ilha-região e duas regiões eram criadas na ilha de Santiago. Não é de estranhar que no fim de tudo isso só tenha ficada a dúvida se os posicionamentos dos partidos em relação à proposta de lei eram sobre a substância da mesma ou se se tratava de um jogo para ver quem ficava com o ónus de ter bloqueado a sua aprovação. Também não espanta a perda subsequente de credibilidade das instituições e em particular do parlamento. Nesse sentido, introduzir outra vez leis sobre a descentralização sem uma discussão prévia entre os partidos e entre estes e a sociedade corre-se o risco de só acumular perdas como foi de outra vez.
Como se constatou em vários momentos, 2010, 2015 e 2019, quando propostas de lei sobre a descentralização foram presentes ao parlamento, torna-se claro que não há uma visão coerente e compartilhada sobre a matéria e que se age fundamentalmente para favorecer interesses reais ou tidos como tal de certos segmentos do eleitorado. O facto de essas datas situarem-se próximas das eleições, deixam transparecer a motivação dos governantes do momento e por isso mesmo a reacção de quem estiver na oposição. O resultado é que nunca há a serenidade necessária para discussão de uma matéria que se revela de extrema importância num país que todos reconhecem como altamente centralizado. E quando, por razões nem sempre claras, se chega a algum tipo de consenso, como aconteceu em 2005, também nas vésperas de eleições, e cria-se de uma assentada mais seis municípios o que se consegue é discutível. As dificuldades em matéria de autonomia, sustentabilidade, capacidade de investimento e de gestão numa perspectiva de futuro, que os novos municípios enfrentam, deviam ter sido equacionadas no âmbito de uma lei-quadro de criação de municípios o que até hoje não existe.
Medidas de grande alcance e impacto sobre o país, em particular na forma como se gerem os recursos disponíveis, se faz a redistribuição, se mantém a coesão nacional, se investe na competitividade e se aposta no futuro deviam ser discutidas em sede mais adequada – seja ela no quadro da aprovação de leis ou mesmo de uma revisão da Constituição – para se poder fazer a melhor ponderação e aprofundar as questões resultantes. Quando não se vai por essa via, porque se está pressionado pelo eleitoralismo, a democracia revela-se no seu pior em termos de ineficiência e a credibilidade das instituições e da política sofre. É nesse sentido que a proposta do novo estatutos dos municípios com mudanças na forma de constituição dos órgãos municipais e eleições para uma única lista para a assembleia municipal e assunção pelo primeiro da lista do cargo de presidente da câmara devia ser precedida de uma alteração na Constituição que contemplasse essa solução. A Constituição portuguesa permitiu uma solução similar, mas só depois da revisão constitucional feita em 1997. Insistir em avançar com a lei, sem clarificar em sede constitucional, pode levar ao mesmo impasse sofrido pela lei de igual teor em 2015. Do mesmo modo também, em sede constitucional, podia-se densificar a questão do Estatuto Administrativo Especial para a Praia para se evitar as controvérsias à volta da lei e suprir a deficiência original deixada pelo legislador constituinte que ao aditar do artigo não o acompanhou de uma justificação.
Por estas e outras razões parece pertinente que se faça proximamente uma revisão da Constituição. Desde Maio de 2015 que já é possível avançar com uma revisão ordinária da Constituição. Em causa está a descentralização que é uma questão central do país e que merece ser tratada em tudo o que implica com a seriedade e as devidas cautelas que se aconselham num país arquipélago de parcos recursos e diminuta população. É fundamental manter a ideia global do país ao mesmo que se assegura a diversidade propiciada pelas suas ilhas que o enriquece culturalmente e potencia o desenvolvimento do todo nacional. O consultor das Maurícias Dev Chamroo, ao observar certas derivas já tinha alertado que “se Cabo Verde acreditar que é 10 ilhas diferentes não vai a lado nenhum”. Por isso, todo o processo de descentralização incluindo a questão do Estatuto Administrativo Especial da Praia, que originalmente era inseparável das opções em matéria de regionalização, deve ser discutido aprofundamento em sede própria, com serenidade e sem pressão eleitoral em cima. É fundamental que, uma vez por todas, prevaleça o bom senso e que ao invés de se multiplicar ineficiências se tenha um país mais ágil, mais competitivo e com visão para agarrar as oportunidades.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 948 de 29 de Janeiro de 2020.