segunda-feira, abril 06, 2020

Cabo Verde em lockdown

Cabo Verde encontra-se em estado de emergência desde de 29 de Março. Onze dias antes, a 18 de Março, o governo já tinha colocado o país em estado de contingência para melhor se preparar para o impacto do coronavírus. A forma como a epidemia se alastrava pelo mundo não tardaria muito a chegar a Cabo Verde. Dois dias depois foi confirmado um caso positivo na Boa Vista que acabou por resultar na primeira morte com Covid-19 seguido de mais um outro caso também de um turista.
Na ilha, entretanto posta de quarentena, acabou por aparecer um caso de contágio local obrigando o governo a elevar o nível de alerta para o de risco de calamidade pública com efeito a partir de 26 de Março. Na ocasião o primeiro-ministro fez saber a intenção do presidente da república em declarar estado de emergência, uma posição que ele logo prontificou-se a apoiar. Bastava então uma autorização da Assembleia Nacional que normalmente deveria ser concedida pelo plenário dos deputados depois do debate da proposta do PR. Optou-se por acelerar o processo recorrendo à Comissão Permanente da Assembleia Nacional, deixando para a reunião seguinte do parlamento a ratificação da autorização. A justificação por esse processo acelerado foi encontrada na necessidade de munir o governo dos instrumentos para enfrentar o coronavírus e implementar o distanciamento social indispensável para quebrar as cadeias de transmissão.
Como acontece nessas situações delicadas, nem todos estão de acordo com a forma como as coisas se passaram mesmo reconhecendo a urgência de acção para conter o vírus. Em pouco tempo foram percorridos todos os níveis de estado de alerta previstos pela lei de protecção civil para se concluir que afinal o que mais convinha era um estado de excepção que acarretaria a suspensão de direitos fundamentais. O problema é que já não se tratava de um simples agravamento no estado de alerta do país, mas de alterações temporárias na ordem constitucional para enfrentar uma calamidade pública. Por isso é que nos países democráticos a declaração do estado de emergência é sempre precedida de muito debate público apesar de todos reconhecerem a gravidade da situação actual marcada por centenas de milhares de infectados e dezenas de milhares de mortes. É o que se tem visto na Itália, Portugal, Espanha, Alemanha e nos Estados Unidos. As democracias liberais são ciosas das suas liberdades, do seu pluralismo e da separação de poderes e não dão acordo a estados de excepção sem um escrutínio apertado do processo de decisão seguido do controlo da implementação das medidas e de uma fiscalização rigorosa. E isso é particularmente verdade nestes tempos em que tentações diversas umas iliberais, outras autocráticas e outras ainda populistas proliferam por aí.
O presidente Jorge Carlos Fonseca na sua mensagem à Nação e em declarações posteriores para tranquilizar os críticos sentiu necessidade de assegurar a todos que não há apagão ou suspensão da democracia. Compreende-se que haja apreensões. Em Portugal a semana que antecedeu a declaração do estado de emergência foi extremamente rica em debates em todos os órgãos de comunicação social e com participação de constitucionalistas, personalidades diversas e jornalistas. O próprio primeiro-ministro manifestou as suas dúvidas quanto à necessidade de se ir para um estado de excepção logo que o presidente da república lhe manifestou a intenção de o declarar. O governo acabou por anuir e o parlamento a autorizar. Em Cabo Verde foi tudo muito rápido apesar da situação do coronavírus então com apenas três casos positivos ser muito diferente da encontrada nesses países quando foram forçados a declarar estado emergência. É verdade que se pode aprender com a experiência dos outros e antecipar na acção, mas há que ter atenção nos atalhos escolhidos que podem trazer consequências imprevistas e indesejáveis.
A rapidez pretendida não esperou que o parlamento se reunisse e apreciasse em plenário a proposta do PR. Embora a Comissão Permanente possa excepcionalmente substituir o plenário, o debate não é o mesmo e as decisões têm que ser posteriormente ratificadas. Uma primeira declaração de estado de emergência na democracia devia ser rodeada de cuidados especiais, particularmente quando até agora o país não foi dotado de um regime de estado de sítio e de estado de emergência que regulamentasse entre outros aspectos o processo de regresso à normalidade da ordem constitucional. Essa lei de competência absolutamente reservada da Assembleia Nacional e aprovada por uma maioria qualificada de dois terços dos deputados já deveria existir. Na sua ausência para uma maior lisura do processo devia ser o plenário da AN a tomar uma decisão de tão grande importância. A democracia cabo-verdiana ainda apresenta fragilidades com instituições condicionadas pela excessiva crispação política, uma cidadania não suficiente activa e atenta e uma estrutura económica e social dependente do Estado. E como se vê lá fora, apetites, tentações e protagonismos não são de ignorar principalmente quando face a calamidades o pânico pode levar as pessoas a sacrificarem a liberdade em nome de uma segurança ilusória.
A razão de fundo para o estado de emergência é conseguir o chamado ”distanciamento social” que permite que se quebrem cadeias de transmissão do coronavírus em todo o país. Para isso o governo precisa de meios para deixar a economia a funcionar apenas no essencial enquanto congela por completo eventos sociais e culturais que incentivam as pessoas a se encontrarem. No entrementes tem que encontrar recursos e criar canais de solidariedade para garantir o rendimento básico para todos ao mesmo tempo que cria incentivos e propõe medidas para o relançamento da economia. Não será uma tarefa fácil. A experiência de outros países mostra que algum sucesso nessa luta difícil de conter o contágio passa por, em simultâneo com o distanciamento social, ser-se capaz de identificar surtos do vírus na população, isolar os que não apresentam sintomas e tratar os casos complicados. Tem pois que haver uma acção proactiva muito forte das autoridades sanitárias para realizar testes e proceder em conformidade com os resultados com rapidez e competência. Assim o esperam todos os que nas próximas semanas procuram cumprir com as exigências do distanciamento social.
Felizmente que da China através da Fundação Jack Ma vieram 20 mil kits de testes, 100 mil máscaras cirúrgicas, mil máscaras faciais e mil fatos de protecção para os profissionais de saúde. Que as autoridades façam o melhor uso desse material para obter uma imagem mais precisa da situação do país e evitar uma sobrecarga dos serviços hospitalares. Mas a preparação para momentos mais difíceis deve continuar explorando o canal já aberto com a China e também com outros parceiros. Uma carência identificada por algumas empresas nacionais foi a dos ventiladores que num gesto de solidariedade forneceram algumas unidades. Espera-se que venham mais exemplos do mesmo tipo que ajudem os serviços de saúde a se equiparem adequadamente para responder em particular à população mais vulnerável do país que vier a ser afligida pelo coronavírus. O sacrifício que para todos significa o estado de emergência justificar-se-á se se traduzir em ondas de solidariedade que contribuirão para o sucesso de todo esse esforço colectivo para a contenção da Covid-19. Quanto melhor cada um fizer a sua parte, mais depressa se voltará à plena liberdade que todos acalentam e que não querem pôr em perigo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 957 de 1 de Abril de 2020.

segunda-feira, março 30, 2020

Solidariedade em tempos de coronavírus

A pandemia do novo coronavírus continua. Depois de ter tido o epicentro localizado na China em Janeiro/Fevereiro chegou agora à Europa e a OMS já avisou que proximamente estará nos Estados Unidos da América. Ninguém sabe dizer para onde se deslocará depois da passagem pela América, mas não faltam candidatos.
A Índia, depois do Reino Unido e de vários estados nos EUA, vai estar também em lockdown nos próximos 21 dias. No Brasil o vírus foi detectado nas favelas e na África já chegou a mais de 40 países. Tendo em conta o impacto terrível que o vírus já teve nos países desenvolvidos dotados de sistemas de saúde robustos, imagine-se o que não será nas regiões menos desenvolvidas do globo com problemas graves de pobreza e habitação e com estruturas sanitárias precárias. Depois de o novo coronavírus ter tratado todos por igual independente da nacionalidade, riqueza pessoal ou estatuto social, espera-se que um sentido de solidariedade reacenda em todo o mundo e se faça sentir com força e atempadamente nos países mais frágeis. O vírus da Covid-19 veio lembrar a todos a nossa humanidade comum. Há que assumi-la e agir em consequência encontrando as melhores formas de cooperação tanto entre as nações como entre as pessoas dentro de cada país.
Na situação difícil actualmente vivida em que por todo o lado se trava uma luta cerrada contra o novo coronavírus, uns apostados na supressão dos efeitos do vírus com a instauração do distanciamento social e outros na contenção via testes e identificação de surtos de transmissão, há uma preocupação comum: salvar vidas, mas também salvar a economia. Conciliar medidas num e noutro sentido de forma e atingir esses dois objectivos em simultâneo não é tarefa fácil. Haverá sempre sacrifícios e contrapartidas. Para os suportar há que procurar manter a coerência e a paz sociais necessárias para as pessoas continuarem confiantes e se disponibilizarem para mudar hábitos e aceitar restrições diversas. Contribuirá certamente para isso algum sucesso alcançado na contenção dos efeitos negativos do desemprego e da perda de rendimentos que resultaram da queda brusca da procura interna e externa provocada pela Covid-19 e do impacto dessa quebra no volume de negócios das empresas. Da eficácia das medidas preconizadas irá depender em muito que se mantenha a confiança das pessoas na governação e que se se consiga conservar o tecido empresarial necessário para depois de passada a crise se proceder à retoma da actividade económica. Considerando tudo o que está em jogo, não há dúvida que quebrar as redes de transmissão do coronavírus sem, no processo, paralisar a economia é sem dúvida o grande desafio com que os governantes em todos os países do se veem hoje confrontados.
Desde que a pandemia começou que tem sido assim. Em Cabo Verde a questão tem sido sempre até onde manter activos os fluxos turísticos que produzem milhares de postos de trabalho e têm efeito de arrastamento no resto da economia sem agravar excessivamente os riscos de contaminação. Infelizmente apesar das medidas tomadas semanas atrás de paralisar os voos para a Itália e de se ter aumentado o controlo sanitário nos aeroportos, o país nesta última semana teve que encarar o facto de que a Covid-19 já chegou aqui. Dos três casos positivos todos eles importados já se registou um morto. Não se sabe ainda se mais alguém foi infectado, se houve casos de transmissão do vírus e se tudo ficou na Boa Vista. A ilha foi posta em quarentena, mas ninguém pode garantir à partida que o vírus não foi levado para outras ilhas, considerando que não havia restrições nas comunicações inter-ilhas.
É verdade que tratando-se de uma pandemia era uma questão de tempo para que a doença chegasse cá. A forte ligação com o exterior através do turismo que move milhares de pessoas tornava o país permeável a uma importação directa da doença em particular nas ilhas de acolhimento dos turistas. Conhecendo os riscos, espera-se que as autoridades tenham um plano de acção com meios para identificar com rapidez eventuais surtos de contágio e que também inclua a capacidade de contenção dos mesmos de modo a evitar transmissão para as outras ilhas. Cabo Verde é um país arquipélago e todas as ilhas não têm os mesmos recursos para responder às epidemias. Por isso, há-que, perante qualquer ameaça, estabelecer atempadamente barreiras defensivas para as mais desprotegidas sob pena de o país vir a sofrer perdas humanas e materiais desproporcionais numa resposta apressada e não planeada. Neste sentido, o controlo aéreo e marítimo nas ligações inter-ilhas é fundamental assim como também o é ter os meios aéreos e marítimos para responder a qualquer emergência das ilhas. Infelizmente é um aspecto central da segurança nacional cuja realização tem sido sistematicamente protelada.
Depois dos casos positivos do novo coronavírus, o aparecimento de surtos nas diferentes ilhas coloca problemas extremamente complicados ao país considerando as fragilidades de que padece. O governo já declarou o estado de contingência, mas dependendo de como a situação vier a evoluir poderá ser elevado para o estado de emergência. Entretanto, já um forte apelo para o distanciamento social e medidas diversas foram tomadas em vários sectores da vida social e cultural para se evitar ajuntamento de pessoas e diminuir a circulação de pessoas. Ontem, terça-feira, o governo, os sindicatos e os representantes do patronato acordaram num conjunto de medidas que visam proteger os trabalhadores em vias de perder emprego e proteger empresas ligadas à aviação, turismo, hotelaria e restauração com problemas de liquidez nesta conjuntura caracterizada pela quebra acentuada no volume de negócios. Na calha para ser ajudados estarão muitos novos empreendedores nas pequenas e microempresas, os trabalhadores independentes e os muitos ocupados no sistema informal. A verdade é que é fundamental neste momento e nos próximos tempos garantir que todos tenham algum rendimento.
O problema são os custos disso tudo versus eventuais custos da inacção. É um facto que custos de fazer agigantam ainda mais a dívida pública externa num país sem muito espaço para se endividar. Para não ter que se ver nesse dilema é fundamental que o país aja rapidamente para conseguir ajuda junto das organizações multilaterais e internacionais ao mesmo tempo que deverá reforçar a cooperação bilateral com os parceiros mais próximos para poder enfrentar a pandemia e poder logo que a “tempestade” passar vir com outro ânimo e urgência retomar o processo de desenvolvimento. Simultaneamente um apelo forte deverá ser dirigido às comunidades cabo-verdianas no exterior no sentido de estreitar ainda mais os laços de solidariedade. Podia também ser uma oportunidade para os bancos e as telecom nacionais se abrirem a propostas inovadoras que facilitem transferências de pequenas quantias a baixo preço entre os residentes no país e as comunidades no exterior. Tempos de maior stress e necessidade sempre foram catalisadores de uma maior aproximação e identificação entre os cabo-verdianos. Já que os temos de enfrentar, procuremos fazer o nosso melhor no sentido de mais paz e solidariedade no mundo.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 955 de 25 de Março de 2020.

segunda-feira, março 23, 2020

Serenidade e autodisciplina precisam-se

O avanço do coronavírus continua e de uma epidemia localizada na China e países próximos transformou-se numa pandemia ameaçando toda a humanidade.
Actualmente o epicentro localiza-se na Europa, mas já é evidente o seu avanço pelos Estado Unidos e não tarda muito que o seu forte impacto seja sentido na África e América do Sul onde até agora não se verificaram grande número de casos para além dos importados. Em Cabo Verde os casos suspeitos têm-se revelado negativos, mas é uma questão de tempo para que também no país apareçam pessoas infectadas e na sequência casos derivados de contágio. Em todo o mundo a preocupação com a contenção do coronavírus e a mitigação dos seus efeitos na população tem conduzido a medidas cada vez mais exigentes a culminar no estado de emergência declarado primeiro na China e depois em vários países da Europa a começar pela Itália. Cabo Verde ciente dos riscos existentes e da possibilidade de contágio e tendo em conta eventuais transmissões furtivas a partir de pessoas sem sintomas, já declarou estado de contingência. Medidas efectivas a partir desta quarta-feira foram tomadas para provocar o social distanciamento necessário entre as pessoas e dificultar o quanto possível a progressão do vírus na população.
A híper conectividade das sociedades modernas determinou que o surto do vírus se transformasse em pandemia em menos de três meses. A contenção do contágio vai depender da disponibilidade de todos em contribuir para quebrar as cadeias de transmissão do vírus numa perspectiva de ganhar tempo. Ganhar tempo para proteger os mais vulneráveis entre os quais os idosos e os com outros problemas de saúde. Ganhar tempo para que se encontre tratamento específico para a doença e se desenvolva vacina contra o vírus. Ganhar tempo para que o sistema imunitário reaja ao novo vírus. E sobretudo importa, com o abrandamento do número de casos infectados, não sobrecarregar o sistema de saúde por forma a que esteja disponível para os que criticamente precisam de assistência. Para o sucesso nesse esforço colectivo de mitigação dos efeitos da Covid-19 vão contribuir todas as medidas tomadas de controlo das fronteiras, a proibição de entrada de cruzeiros e iates, o cancelamento de eventos, fecho de estabelecimentos e condicionamento de presença nas lojas, serviços e locais públicos de entretenimento. A contribuição maior virá da total disponibilidade de cada pessoa em cumprir com as regras de higiene e as regras de civilidade aplicáveis aos tempos extraordinários de hoje e também em demonstrar uma especial sensibilidade na protecção dos mais vulneráveis. Nos tempos actuais agir nesses termos é o maior acto de cidadania que se espera de todos e que todos esperam de cada um.
É evidente que as medidas tomadas para garantir esse distanciamento social são prenhe de consequências particularmente no domínio económico. Por exemplo, já se tem por garantido uma recessão mundial. Não se sabe até onde irá e qual será a duração, não obstante as iniciativas em curso de tentar imprimir alguma dinâmica à economia através da baixa nas taxas de juro e outras intervenções dirigidas para manter liquidez do sistema financeiro, garantir rendimentos a trabalhadores obrigados a ficar em casa e assegurar que as cadeias de abastecimento continuem abertas. Quanto às consequências políticas, uma questão que se coloca é como ficarão afectadas as relações entre os Estados no mundo pós-pandemia depois de na contenção do coronavírus se ter visto o ressurgimento do protagonismo do Estado-Nação com recurso a declarações de estado de emergência, fecho de fronteiras e limitação das viagens e outros intercâmbios. Um outro elemento novo a considerar é a ausência da liderança americana num problema global pela primeira vez depois da II Guerra Mundial e as dificuldades da União Europeia e de organismos multilaterais em articular uma resposta conjunta dos seus membros.
Numa nota mais positiva já se vê e se constata uma adesão das pessoas ao esforço da luta contra o coronavírus e uma disponibilidade em seguir as regras e em mudar os comportamentos. É uma nova atitude que pode vir a marcar o fim do período de egocentrismo levado ao extremo pela emergência das redes sociais e que não parecia esmorecer perante a evidência das alterações climáticas, dos extremos do consumismo e do aumento das desigualdades sociais. Também pode significar uma inflexão no que já parecia um enviesamento da relação com a verdade e com os factos e que alimenta fake news, cultiva posições anti-ciência e alicia muitos com realidades alternativas. De facto, não é possível continuar a alimentar esse tipo de posições perante a realidade incontornável de um vírus que pode vir a contaminar entre 60 e 70% da população mundial e que só poderá ser combatido com ciência pura e dura, com instituições confiáveis e com informação correcta. Espera-se também que pelas mesmas razões a conquista do poder fique mais difícil aos políticos e ao populismo que polarizam as sociedades, desprezam o conhecimento e descredibilizam as instituições.
Cabo Verde já se encontra em estado de contingência declarado ontem pelo governo. Imagine-se o quanto foi difícil decidir pelo “lockdown” de um país com as fragilidades de um país arquipélago dependente do turismo e com problemas de conectividade e uma base produtiva pobre e pouco diversificada. E isso acontece precisamente no momento em que globalmente se reduzem as comunicações, cadeias de abastecimento estão sob stress e a generalidade dos Estados que têm sido parceiros do desenvolvimento e são emissores dos fluxos turísticos estão concentrados na resolução dos seus próprios problemas de contenção da Covid-19. Na ponderação que antecedeu a decisão ter-se-á certamente levado em conta os efeitos no emprego em particular nas ilhas do Sal e da Boa Vista derivados da interrupção brusca de actividades nos sectores do turismo e da aviação e o facto que a recuperação ao nível actual poderá levar algum tempo. A prioridade em garantir a saúde pública no país e em particular dos mais vulneráveis prevaleceu, mas os problemas de hoje e de amanhã não desapareceram.
Tanto a eventualidade de elevado desemprego nessas duas ilhas como o aparecimento de fluxos migratórios em sentido inverso para as ilhas de origem irão exigir uma resposta pronta das autoridades. Problemas outros terão muitas empresas com falta de actividade e muitos dos novos empreendedores sobrecarregados com a amortização de investimentos feitos que também deverão merecer a atenção do governo. A verdade é que a paz social, confiança nas instituições e boas maneiras e civismo das pessoas são requisitos fundamentais para manter o ambiente de serenidade e autodisciplina que o país precisa neste momento. Garanti-los é o que vai permitir que se consiga o “distanciamento social” imprescindível para se ter sucesso na contenção do coronavírus e evitar que o sistema de saúde fique sobrecarregado.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 955 de 18 de Março de 2020.

segunda-feira, março 16, 2020

Preparar-se para o impacto do coronavírus

As consequências a todos os níveis do surto do coronavírus, Covid-19, estão a se revelar piores do que inicialmente se esperava. Nesta última semana assistiu-se a uma evolução dramática na disseminação do vírus. Não mais confinado a partes da China e a pequenos surtos na Coreia do Sul, Japão e Irão, o Covid-19 irrompeu-se nestes dias na Itália a ponto de todo o país ter sido posto em quarentena e vários caos surgiram noutros países da Europa.
Ao mesmo surgiram focos nos Estado Unidos e Brasil e casos mais isolados em alguns países da África subsaariana como o Togo, a Nigéria, os Camarões e também o Senegal. Parece inevitável que a epidemia se transforme numa pandemia com impacto tremendo em todo o mundo e particularmente onde o sistema de saúde não tem grande capacidade de resposta e a pobreza associada a problemas de habitação tornam difícil pôr em prática recomendações para contenção do vírus. A esperança é que com a subida da temperatura à medida que se aproxima o Verão no hemisfério Norte o vírus se torne menos activo e dê uma trégua no processo de contágio de forma a permitir que se desenvolva vacinas que o possam combater.
Já é óbvio o impacto que o vírus está a ter na economia e na interacção social e cultural das pessoas. Nos últimos dias viu-se o movimento negativo em todas as principais bolsas de valor a indiciar incertezas quanto ao futuro e antecipar uma possível recessão. Gita Gopinath, a economista-chefe do FMI num texto publicado no site dessa organização, fala de choques na oferta e na procura. Segundo a mesma, a convergência de disrupção na produção e no fornecimento de produtos intermédios com quebra na demanda dos consumidores e nos investimentos pode lançar a economia mundial numa recessão mundial similar à provocada pela crise financeira de 2008. De entre os sectores afectados, claramente que os da aviação e do turismo serão os primeiros a sofrer. Prevêem-se perdas de receitas na aviação entre 60 a 110 mil milhões de dólares. No turismo espera-se uma contracção nas receitas com perdas entre 30 a 50 mil milhões de dólares. E globalmente o sector de hospitalidade incluindo hospedagem, restaurantes, bebidas, parques recreativos, cruzeiros e outros transportes será o que mais irá ressentir das quarentenas, da proibição de eventos públicos e fecho de escolas, museus e outros sítios que possam aglomerar um elevado número de pessoas.
As dificuldades provavelmente não ficarão por aí. Ter-se-á ainda de contar com desenvolvimentos inesperados como o já em progresso na guerra dos preços de petróleo desencadeada pela Arábia Saudita. E sempre vai aparecer quem queira aproveitar das fragilidades criadas pela epidemia do coronavírus para se reposicionar no quadro das relações comerciais internacionais e ganhar vantagem numa perspectiva geopolítica. A questão que se poderá colocar é, se na sequência da crise que se avizinha, se a globalização será reforçada ou, se pelo contrário, haverá uma retracção nas relações entre as nações. Os governantes poderão ver-se pressionados a responder de forma substantiva e sem ambiguidade quando confrontados com interrogações sobre a livre circulação, migrações internacionais e dependência de fornecedores estrangeiros em produtos vitais.
As respostas não serão fáceis principalmente a meio da avaliação política que irá incidir na forma como terão gerido a epidemia e como o sistema de saúde nacional reagiu à ameaça. Nessas circunstâncias, poderá haver uma forte tentação para dar satisfação a sentimentos localistas em detrimentos dos globalistas até como subterfúgio para esvaziar soluções populistas vindas dos extremos do espectro político. O perigo de uma deriva nesse sentido é que certamente no futuro irão aparecer outras ameaças globais – sejam elas epidemias, alterações climáticas e constrangimentos energéticos a forçar transições para fontes renováveis e, quem sabe, emergências planetárias – que vão exigir uma abordagem compreensiva só possível se a política internacional não estiver dominada por interesses egoístas e pela lei do mais forte deixando de lado a cooperação entre as nações e o multilateralismo.
Para Cabo Verde, as notícias da epidemia do coronavírus não podiam ter vindo em pior momento. Actualmente a crescer acima dos 5% do PIB e com perspectivas positivas nos sectores do turismo e da aviação com o hub na ilha do Sal, nada é mais prejudicial do que o surto do Covid-19 precisamente nos países emissores de turistas e que também são destino dos passageiros aliciados a fazer o stopover no Sal nas viagens entre a América do Sul e a Europa e entre a África e os Estados Unidos. A expectativa de ver a economia nacional a ganhar maior dinâmica por arrastamento induzido por desses dois sectores corre o risco de, pelo menos por algum tempo, ficar frustrado. As vias para isso ainda não foram suficientemente desenvolvidas e uma perda da dinâmica pode constituir um sério retrocesso em particular no que respeita ao desenvolvimento do hub do Sal. Mais um exemplo que oportunidades quando aparecem devem ser aproveitadas com acções planeadas e encadeadas e com forte sentido do tempo certo para as implementar se realmente se se quiser atingir os objectivos de um desenvolvimento sustentável num país com as fragilidades de Cabo Verde.
De facto, não se pode continuar a agir como se o país tivesse todo o tempo do mundo, na expectativa de que oportunidades resultantes da dinâmica da economia mundial vão perdurar para sempre. É por se insistir nesse comportamento que há quem considere que Cabo Verde é o país das oportunidades perdidas. Não é fácil sacudir o espírito rentista induzido pela reciclagem da ajuda externa e que reproduz dependência e desigualdade na sociedade cabo-verdiana. Nem tão pouco se mostra prioritário Fazê-lo. Ficam-se pelos discursos que rotineiramente são feitos à volta da iniciativa individual, da meritocracia e da urgência em se ter uma base produtiva de criação de riqueza.
A opção assumida pelos dois grandes partidos nas suas reuniões magnas de Fevereiro e Março em manter em 2020 o essencial do discurso e as propostas de estratégia apresentadas em 2016 e sem um sinal forte de renovação da sua liderança não indicia que haja um forte empenho de fazer diferente. Não deram o melhor sinal de que os seus projectos políticos têm em devida atenção a realidade mundial, as oportunidades que se oferecem e as dificuldades internas em mobilizar vontades para fazer as reformas indispensáveis para o país se desenvolver e aproveitar as oportunidades oferecidas. Há sim vontade de chegar ao poder. Mas o poder só se legitima se é veículo para uma vida de liberdade e de prosperidade com dignidade e segurança. Algo a ter em devida conta nestes momentos de incerteza.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 954 de 11 de Março de 2020.

segunda-feira, março 09, 2020

Urgências

Nestes dias a atenção do mundo está centrada no coronavírus (Covid-19) e na forma como se alastra por vários países e continentes e ameaça transformar-se numa pandemia com consequências catastróficas globais a vários níveis. Aparentemente trata-se de mais um exemplo daquilo que o autor e professor de finanças Nassim Nicholas Taleb chamou de “cisne negro”, ou seja, um fenómeno raro e imprevisível cujo impacto é incerto e possivelmente de grande gravidade. No seu livro apontou o 11 de Setembro de 2001 e a crise financeira de 2008 como dois cisnes negros.
Tudo leva a crer que o surgimento do coronavírus e o impacto que já teve e presumivelmente vai ter nos próximos tempos o qualifica como mais um cisne negro. Milhões de pessoas na China estão há semanas de quarentena, cidades na Itália foram isoladas, eventos culturais e desportivos foram cancelados, ligações aéreas para os focos da epidemia têm sentido limitadas e cadeias globais de valor sofreram perturbações graves com fecho de fábricas, incerteza nas entregas e demora na prestação de serviços. Previsões de instituições internacionais como a OCDE já baixaram para metade as taxas de crescimento da economia mundial no ano 2020.
Até bem pouco tempo os efeitos da epidemia tinham-se concentrado na China onde o número de pessoas infectadas se situava em mais de quarenta mil e o número de mortos já tinha atingido os três mil. Neste preciso momento vive-se uma outra fase em que focos da doença já foram identificadas em 60 países com tendência para aumentar e provavelmente atingir países do continente africano e sul-americano que até agora praticamente têm sido poupados. Apesar do Covid-19 não ter revelado o nível de letalidade que outros vírus da mesma estirpe – SARS que apareceu em 2003 e MERS, em 2012 – dificilmente se poderá prever o efeito que terá em países com estruturas de saúde deficientes e capacidade de resposta limitada.
Nos países afectados é visível a correlação entre o número de mortos e qualidade da prestação global em matéria de saúde pública. Por isso mesmo é de esperar que as semanas de conhecimento prévio da epidemia ganhas em boa medida pela forma eficaz como a China impôs a quarentena na região de Wuhan tenham servido para que o resto do mundo elevar a qualidade e o nível de prontidão dos serviços de saúde e melhorar a articulação global na resposta à ameaça. Previsões de exposição ao vírus que atingem 40 a 70% da população mundial feitos pelo epidemiologista de Harvard Mark Lipsitch e corroborada por outros especialistas deviam inculcar um sentido de urgência que infelizmente nem sempre se adopta, em alguns casos por falta de meios, noutros por descaso das autoridades, noutros ainda por razões políticas.
Eventos do tipo “cisne negro”, não obstante os seus efeitos terríveis, servem muitas vezes de teste a sistemas, organizações e procedimentos. Tudo indica que, a se verificar, a pandemia do coronavírus será o primeiro grande teste do mundo globalizado, interdependente e altamente conectado que se esteve a construir nas duas décadas deste século. Pode ser a oportunidade de articulação global para evitar quebra excessiva na taxa de crescimento da economia mundial, para se fazer ajustes nas cadeias globais de valor e conter os seus efeitos negativos e ainda para limitar os efeitos nocivos de hiperconectividade e evitar o pânico, a desinformação e teorias de conspiração. O coronavírus não é a única ameaça global a despontar. Certamente outros vírus irão fazer o salto para o homem à medida que a população cresce e reduz o habitat animal e certos microorganismos são libertados na sequência do recuo dos glaciares. A aceleração das mudanças climáticas trará também o seu cortejo de secas, inundações, furações e elevação do nível do mar cujos efeitos para serem contidos vão exigir algum tipo de coordenação ao nível planetário. Por tudo isso o foco hoje deve ser aumentar resiliências e não ficar só pelos critérios de eficiência. Há que criar capacidade local, nacional e global não só para responder a fenómenos imprevisíveis e potencialmente catastróficos como também para “vir outra vez de baixo” quando o inesperado acontecer.
Em Cabo Verde, um país arquipelágico com uma história de secas e fomes, não devia faltar um forte espírito de resiliência. Infelizmente políticas de reprodução de dependência levadas a cabo durante décadas seguidas acabaram por enfraquecer esse espírito. Pior ainda, deixando-se seduzir pelo modelo de reciclagem da ajuda externa, esqueceu-se de construir diversidade e com isso reduziu as suas opções em caso de calamidades. A Standard & Poor’s já veio avisar do risco que o abrandamento do turismo pode constituir para o crescimento do país. E compreende-se que assim seja considerando que o turismo representa cerca de 40% da economia e o fluxo que gera revela-se contingente ao depender de vários factores não controláveis. Apesar dos discursos, não se pôs suficiente energia nem se foi perseverante na criação de uma base produtiva e exportadora de bens e serviços. Não se investiu o suficiente para fazer o país mais competitivo e mais produtivo.
Considerando a eventualidade dos cisnes negros se tornarem mais frequentes, há que procurar obter resiliência que permita enfrentar eventos e conjunturas adversas. Para isso é fundamental o investimento estratégico na segurança, na saúde e na educação com vista a construir diversidade e capacidade inovadora. E é bem claro que não basta dar continuidade ao que já existe e que não se adequa às exigências de um mundo caracterizado por constante conectividade tanto física como digital e como uma economia global e interdependente. O coronavírus está aí para lembrar da urgência do que se tem a fazer.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 953 de 4 de Março de 2020.

segunda-feira, março 02, 2020

Derivas linguísticas

Por altura da celebração do dia internacional da língua materna que acontece anualmente a 21 de Fevereiro mais uma vez vozes se fizeram ouvir a clamar pela “oficialização” do crioulo. De entre essas vozes soou mais alto a do Ministro de Cultura que no seu discurso disse que “consagrar a oficialização da língua cabo-verdiana como língua oficial em paridade com o português é o desígnio máximo do povo cabo-verdiano”.
O Presidente da República na sua mensagem instou a que se acelerem os mecanismos e se apurem os instrumentos para se cumprir a Constituição. Todos os anos repetem-se os apelos à oficialização, pede-se revisão constitucional urgente e deixa-se entender que há “opositores de oficialização” a enfrentar. Fica-se por saber é por que vias o Estado e o governo têm promovido as condições para uma oficialização em paridade com o português como comanda a Constituição. Pressionar todos anos para se rever a Constituição não é promover condições. É procurar impor “facto consumado” para além de passar a culpa da inacção ou de falta de acção consequente para outros.
A verdade é que a partir da revisão da Constituição em 1999 com a introdução do artigo 9º sob a epígrafe “línguas oficiais” passou-se a referenciar o crioulo como tal. Reconhecendo existir dificuldades no seu uso na plenitude nas funções do Estado por razões que, entre outras, advêm de não se ter uma forma estandardizada de escrita, ficou estabelecido no nº2 do mesmo artigo 9º que o Estado deveria tomar medidas para as ultrapassar. Já no nº 3 consagrou-se logo o direito de todos de conhecer e de usar as duas línguas. Por isso é que ninguém se sente impedido ou inibido de usar o crioulo no país. O PR faz declarações em crioulo, debate-se no parlamento em crioulo, pode-se depor nos tribunais em crioulo e a administração pública não deixa de responder se a solicitação vem em crioulo. Também não se pode falar de estigma social derivado do uso da língua, quando pessoas de todos os extractos sociais e em todas as ilhas falam variantes do crioulo nas mais variadas circunstâncias.
Por tudo isso é evidente que não faz sentido estar a apontar pessoas como opositores da oficialização do crioulo. Em relação ao que a Constituição estabelece há consenso geral. O problema surge quando não se cumpre a parte de “promover as condições” e se faz fuga em frente não só com propostas de alterações constitucionais mas também forçando a sua adopção como língua de ensino. A justificação pela sua introdução urgente nas escolas em nome da qualidade do ensino, da melhoria do sistema de educação e dos processos de aprendizagem não convence e isso já é notório na forte preferência de muitos pais e alunos pela escola portuguesa e outras escolas privadas. Aliás, aconteceu algo similar noutras paragens nomeadamente em Madagáscar, Haiti e Curaçau onde as elites moveram os filhos para escolas francesas e holandesas logo que se impôs a língua malgaxe o crioulo haitiano e o papiamentu nas escolas públicas. Insistir nessa via naturalmente que cria “opositores” em todos aqueles que aflitos e sentindo-se impotentes vêm todos os dias a degradação do ensino e aprendizagem do português e seu impacto na qualidade do ensino ministrado no país às novas gerações.
Em Cabo Verde o crioulo ainda oficialmente não é língua de ensino, mas na prática o seu uso em todos os níveis de ensino, do básico à universidade, à discrição do professor, já afecta negativamente todo o processo de aprendizagem. Contraposto ao português em termos identitários gera resistências que impedem que as horas dedicadas ao português nas escolas se traduzam num domínio da língua que seja considerado satisfatório. De alguma forma ter-se-á falhado em passar às novas gerações o papel que as duas línguas tiveram na sedimentação de uma identidade cabo-verdiana como se pode ver, por exemplo, no papel do português na criação de uma literatura genuinamente cabo-verdiana e do crioulo na expressão da morna. O uso das duas línguas por todos os extractos sociais também indicia que não há uma relação antagonística, nem há necessidade de exclusão de uma para afirmação da outra.
De facto não se é mais cabo-verdiano falando só o crioulo e hostilizando o português. Para todos devia ser evidente que o português não é ameaça para o crioulo. Diferente do que se passa no Brasil e cada vez mais em outros países de língua oficial portuguesa, em Cabo Verde o português não é língua materna, possivelmente nunca foi e certamente que no futuro não será. Há quem queira ver no crioulo cabo-verdiano o resultado de alguma espécie de resistência cultural. O mais provável é que seja um produto peculiar do isolamento e da precariedade destas ilhas. De outra forma não se compreenderia por que em países como o Brasil, os Estados Unidos e outros países os “afrodescendentes” não tenham criado uma qualquer língua de resistência e pelo contrário acabaram por adoptar a língua do colonizador como língua materna. E o facto não o terem feito não os impede de, por exemplo, fazer do samba um fenómeno cultural genuíno e expressão viva de uma cultura brasileira única também toda ela expressa em português.
Semanas atrás o VPM e Ministro das Finanças no parlamento constatou que não há competência linguística em francês e inglês que seria necessária para que Cabo Verde pudesse investir numa relação proveitosa com a África. A essas insuficiências acrescenta-se a cada dia que passa a manifesta dificuldade dos cabo-verdianos em fazer uso do português. Tanto no país como no estrangeiro essas dificuldades estão a prejudicar em particular os jovens no prosseguimento dos estudos e na procura de emprego. Perante uma situação dessas o país devia já estar num estado de alarme e especialmente proactivo e enérgico na identificação da raiz deste problema que ameaça confinar e limitar as suas possibilidades de desenvolvimento. Infelizmente o que se vê na utilização do sistema educativo e da comunicação social pública e nos discursos de políticos é o contrário. Nota-se uma convergência em fazer do crioulo uma questão identitária, em procurar engajar os jovens numa luta contra a sua suposta desvalorização ao mesmo tempo que se faz um alerta para a existência de opositores, nas entrelinhas mentes colonizadas. Enquanto no Ruanda de Kagame se adopta o inglês como língua oficial para aumentar as chances de desenvolvimento do país aqui celebra-se a vitória do paroquialismo mais crasso.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 952 de 25 de Fevereiro de 2020.

segunda-feira, fevereiro 24, 2020

Sonho adiado

A descentralização vai estar hoje, dia 19 de Fevereiro, mais uma vez em debate na Assembleia Nacional. É um tema que tem sido recorrente na agenda do parlamento através de várias iniciativas legislativas sobre a relação entre o poder central e poder local e que, por se tratar de um país arquipelágico capta a atenção geral das pessoas e facilmente mobiliza paixões.
Todos parecem perfilhar a ideia de que é urgente descentralizar, mas não há acordo sobre “quando e como proceder”. Recentemente, a lei da regionalização que deveria representar um grande passo em matéria de descentralização foi chumbada no parlamento deixando o governo, os deputados e os partidos a acusarem-se mutuamente pelo fracasso da iniciativa. Entretanto, outras propostas de lei sobre os municípios já foram apresentadas sem que aparentemente se tivesse trabalhado para limar as divergências entre as partes e abrir caminho para os compromissos necessários. Face a isso não é claro que mais um debate parlamentar com os holofotes focados sobre todos os protagonistas seja neste momento o melhor passo a dar, se realmente é a descentralização do país que se pretende.
No próximo ano completam-se trinta anos da realização das primeiras eleições autárquicas no país e da restauração das câmaras municipais anteriormente existentes com atribuições e órgãos representativos próprios. Apesar do extraordinário esforço de descentralização então realizado com o reconhecimento dos municípios como comunidades locais com interesses específicos que se diferenciam de outras comunidades e não se esgotam no interesse nacional, a verdade, que é percepção geral, é que Cabo Verde ainda continua altamente centralizado. Nota-se uma centralização que condiciona a tomada de decisões no que respeita ao timing e oportunidade, afecta a distribuição de recursos, impõe custos de contexto avultados e alimenta uma cultura administrativa mais virada para procedimentos do que para resultados que acaba por ser hegemónica no país. Aliás, uma primeira falha que se pode constatar no processo de descentralização é não ter produzido exemplos de administração municipal que não reproduzissem os defeitos centralizadores da administração central. Ou seja, que se tivesse uma administração com uma atitude mais facilitadora na resolução dos problemas dos munícipes e mais sensível às solicitações dos utentes dos serviços.
O crescimento exponencial da Cidade da Praia nos 45 anos de independência reflecte o processo de centralização que mesmo com o aumento do número dos municípios dos primeiros 14 para os actuais 22 não foi possível travar. A Praia concentra 45% do PIB nacional e tem problemas sérios designadamente em matéria de segurança, saneamento e habitação derivados da população que já se aproxima dos duzentos mil habitantes e do influxo de milhares de pessoas que todos dias entram e saem da cidade. A incapacidade ou a falta de vontade acrescida da falta de visão em mudar o modelo de desenvolvimento do país baseado na reciclagem de fluxos externos impediu que fossem criadas bases de sustentabilidade de uma verdadeira descentralização. A redistribuição de recursos para os municípios apesar de ter propiciado benefícios consideráveis para as ilhas nunca poderia ser suficiente para fazer desaparecer as vulnerabilidades e diminuir a precariedade da existência das populações, em particular as rurais. A história das ilhas mostra que momentos de alguma prosperidade no país só aconteceram quando de alguma forma o país pôde exportar, prestar serviços para o exterior ou servir de base logística para ligações entre os continentes.
Não ver isso e viver na ilusão que autonomias locais podem afirmar-se quando se privilegia gestão de ajudas e não criação de riqueza só levaria a que malefícios que eventualmente se desejaria ultrapassar viessem a se instalar de novo. Ao invés de câmaras municipais facilitadoras de actividades nos seus municípios teve-se de lidar com protagonismos de autarcas que se assenhoreavam de iniciativas, servindo-se de recursos via transferências estatais e outras fontes. Ao invés de uma administração municipal de proximidade reproduziu-se o espírito centralista da administração do Estado. Ao invés de órgãos eleitos com foco na resolução dos municípios com medidas de grande alcance deparou-se em muitos casos com uma atitude em relação ao mandato de na prática nunca deixar de fazer campanha e de permitir que o eleitoralismo condicionasse por completo a actividade autárquica.
Em tais condições, os objectivos da descentralização não se realizam, a utilização de recursos é ineficiente e a relação entre o poder central e o poder local tende a navegar por caminhos perversos. Um exemplo de desvios possíveis é a postura reivindicativa em relação ao Estado cujo objectivo central é conseguir meios e justificação para ser repetidamente eleito. Pode levar a derivas identitárias, trazendo à tona sentimentos bairristas e de vitimização, ao mesmo tempo que desvirtua a política local reduzindo-a a estar ou não alinhada com a estratégia de poder do partido no governo. Uma consequência directa desse tipo de desenvolvimento foi a pressão para o envolvimento do governo na política local e no quadro já estabelecido de campanha permanente. Não espanta que em muitos momentos a relação do governo com as câmaras se mostrasse benévola, renitente ou omissa conforme as conveniências eleitorais. E não tardaria muito que o peso para quem estivesse a governar não acabasse por fortemente condicionar quem ficaria no comando das câmaras municipais. Escusado dizer que o grande sacrificado no processo foi a autonomia municipal e a promessa de diversidade de perspectivas e de sensibilidade em relação às questões regionais e nacionais vindas das ilhas e dos municípios que à partida se quis assegurar e salvaguardar no tempo.
São óbvias as insuficiências do processo de descentralização que se manifestam na excessiva centralização do Estado ainda existente, na fragilidade da administração municipal e na real dependência financeira que limita a actuação dos municípios. Têm sido reconhecidas pelos governantes e pelos partidos quando, por um lado, se propõe dar um salto para cima criando regiões e, por outro, se experimenta com outras entidades designadamente sociedades de desenvolvimento regional e zonas económicas especiais (ZEE). Já se sabe qua a regionalização foi adiada e que presentemente está na forja uma lei sobre as ZEE. A exemplo do que aconteceu em outros países, o que no fundo se pretende com iniciativas similares dirigidas para a atracção de investimento externo e a constituição de bases exportadoras de bens e serviços central é contornar obstáculos e fragilidades institucionais ao desenvolvimento. Ter isso claro é fundamental para que na discussão da lei e na criação do quadro institucional próprio não se repitam erros ao tentar acomodar interesses já existentes que de facto as inviabilizem.
Falhou-se na descentralização, porque em muitos aspectos não se quis fazer o rompimento com práticas do passado e a dado ponto ficou impossível voltar atrás. Os custos do relativo fracasso do processo são pesados. Ultrapassá-los não é fácil, mas certamente que será mais difícil se o jogo for não negociar e de seguida posicionar-se para ver sobre quem cai a culpa de não se ter avançado com a descentralização efectiva do país. 

Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 951 de 19 de Fevereiro de 2020.

segunda-feira, fevereiro 17, 2020

Dilemas

Na primeira sessão plenária de Fevereiro da Assembleia Nacional reinou, pelo menos por uma vez, o unanimismo nas posições dos sujeitos parlamentares.
Deputados, bancadas parlamentares e governo em uníssono manifestaram o seu apoio à resolução que aprova o acordo de comércio livre continental africano. As razões apresentadas a favor do acordo salientaram o potencial de um mercado constituído por mais de mil milhões de pessoas e referenciaram que para muitos o futuro pertence à África e que depois de criado o mercado continental será possível negociar com outras potências económicas em melhores condições. Um senão do acordo é o facto de obrigar à liberalização de 90% da pauta aduaneira resultando em perdas significativas de receitas para financiamento do Orçamento do Estado. Na sua intervenção no parlamento o Vice-Primeiro-ministro (VPM) Olavo Correia disse que nessa liberalização a abordagem deve ser faseada, progressiva e nunca uma decisão abrupta. Acrescentou que estudos estão a ser feitos nesse sentido para que a integração efectiva de Cabo Verde vá ao encontro dos interesses específicos do país. Fica a dúvida, porquê a pressa em integrar quando até Dezembro de 2019 só 28 países dos 54 signa­tários do acordo o tinham ratificado.
A perda em receitas aduaneiras poderia ser compensada se a integração resultasse em prazo razoável num aumento da troca de bens e serviços com esse mercado continental que fosse vantajoso para o país. Mas é o próprio VPM que reconhece que há falhas na conectividade aérea, marítima e tecnológica e sem isso não há comércio e economia. Também nota que para a integração ser efectiva Cabo Verde tem o desafio adicional de promoção das línguas francesa e inglesa que são essenciais para quaisquer transacções no continente. Resumidamente com a barreira linguística, a falta de conectividade e a quebra prevista nas receitas não é claro os ganhos para o país. O VPM terminou a sua intervenção clamando um estatuto especial para Cabo Verde, porque como pequeno país arquipelágico se for tratado como o Senegal ou a Costa do Marfim jamais conseguirá ter uma integração efectiva. Depois de toda essa argumentação fica difícil justificar o entusiamo nas posições assumidas pelos parlamentares. Os discursos produzidos parecem ter sido ditados mais pelo coração do que pela razão. O problema é que como já foi dito bastas vezes, os países têm interesses e não sentimentos.
O mais normal é que Cabo Verde na implementação da sua estratégia de desenvolvimento procurasse engajar de forma proveitosa os países vizinhos. Historicamente a sua economia sempre esteve ligada à Europa de onde recebe o grosso do investimento directo estrangeiro e que é origem de grande parte da ajuda externa, de uma fatia enorme das remessas de emigrantes e do fluxo turístico que já dinamiza mais de 25% da economia. Para além disso, é para a Europa que vão as exportações e daí é que vem cerca de 90% das importações. Poder expandir o seu comércio com os países africanos constituiria uma mais-valia importante. Exigiria porém que investimentos a vários níveis fossem feitos, entre eles os apontados pelo VPM na sua intervenção para que uma relação com benefícios para as partes fosse estabelecida. Infelizmente nada disso aconteceu. Nem foi possível com Guiné-Bissau que séculos de história, a existência de uma comunidade antiga e facilidade da língua poderiam constituir uma vantagem no estabelecimento de uma base comercial a partir da qual se pudesse dar outros saltos no continente.
A realidade é que ao longo dos anos de independência tem-se ficado pelos discursos e sem qualquer acção consequente. Ou no caso da Guiné, que se permitisse que as relações fossem inquinadas até hoje desbaratando proximidades antigas. Insiste-se em apresentar Cabo Verde como porta de entrada para a Africa Ocidental, mas não é algo que mereça qualquer crédito considerando que não há nenhum esforço dirigido nesse sentido para além de declarações políticas de amizade e boa vizinhança. Se dúvida houvesse quanto à sua influência na região, ela deixou de existir depois de Cabo Verde ter sido ostensivamente ultrapassado na candidatura à presidência da CEDEAO pelo país que em ordem alfabética lhe estava atrás. Recentemente o embaixador de Portugal no Senegal recebeu o prémio de diplomacia económica pelos seus esforços em, segundo as suas declarações ao jornal Público, fazer do Senegal a porta de entrada das empresas portuguesas na África Ocidental. Por aí vê-se o quão é pouco realista vender a imagem de Cabo Verde como a ponte ligando a Europa à CEDEAO.
Há ilhas como Hong Kong e Maurícias que desempenharam esse papel de porta de entrada para capitais e de porta de saída para exportações em relação a países situados no continente e dessa relação conseguindo um grande impulso para o desenvolvimento. É o que fizeram com a China e a Índia. Hoje as Maurícias depois de perderem a relação privilegiada com a Índia fazem-no com dezenas de países africanos para os quais servem de base segura para o investimento directo estrangeiro (IDE) que lhes é dirigido. Souberam desenvolver vantagens competitivas que lhes permitiram ser úteis aos vizinhos e ganhar extraordinariamente enquanto centros industriais, comerciais e financeiros servindo-se em boa parte da sua condição insular.
A dificuldade com Cabo Verde está fundamentalmente em engajar-se numa estratégia de desenvolvimento num quadro que bem pode chamar-se de inserção dinâmica na economia mundial e fazer o desmame da ajuda externa e dos discursos políticos que se tem de fazer quando se vive ou se opta por estar na dependência da generosidade dos outros. Até lá as oportunidades vão passar ao lado, como aconteceu com o AGOA, e dificilmente se vai investir com visão e mostrar perseverança no esforço de dotar o país de vantagens nos domínios certos que o tornem útil aos outros e integrar cadeias de valor globais e regionais. Não se pode é ficar na posição, como diz o VPM, em que sem estatuto especial na zona de comércio livre pouco se ganha com a integração, mas também não participando fica-se sujeito ao que os outros países negociarem entre si e com outras potências económicas.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 950 de 12 de Fevereiro de 2020.

segunda-feira, fevereiro 10, 2020

Tentações de Chefe

Um dos factos marcantes do congresso do PAICV que decorreu no fim-de-semana passado foi a alteração dos estatutos com vista ao reforço do controlo do grupo parlamentar e dos seus deputados.
Nos novos estatutos pretende-se que os candidatos do PAICV às eleições assumam “por escrito, o compromisso de honra de colocar o seu cargo à disposição caso recusem submeter à disciplina de voto em matérias consideradas essenciais ou objecto de orientação expressa da Comissão Política”. Normalmente nos partidos há exigência de disciplina de voto nos processos de aprovação do Orçamento do Estado ou na aprovação de moções de confiança ou de censura que, conforme o desfecho, podem levar à demissão do governo e mesmo à dissolução do parlamento. Noutras situações a vontade política do grupo parlamentar é construída nas jornadas e não simplesmente imposta pelo líder do partido ou por determinação da comissão política. Em geral o recurso a medidas administrativas coercivas para manter a autoridade só acontece em situações de fragilidade dos líderes. No caso presente, pelo contrário, parece mais uma forma ostensiva de mostrar “quem manda”, em linha com o que se passa nesta era de avanço do populismo em que nos partidos e à frente de regimes democráticos chefes estão a substituir líderes.
E é assim porque na realidade o partido não tem como forçar o deputado a colocar o cargo à disposição e a deixar o parlamento. Os deputados da nação e os eleitos municipais são eleitos directamente pelo povo. O facto de o partido constitucionalmente poder propor candidatos não o faz dono dos mandatos e capaz de obrigar o deputado a renunciar ao mandato. Obviamente que qualquer documento escrito nesse sentido pelo candidato que formalize tal obrigação para o deputado não tem absolutamente qualquer valor real. A Constituição e o regimento asseguram que assim seja. Os deputados no parlamento podem organizar-se por grupos parlamentares representativos dos partidos ou escolher serem deputados independentes. Só estão proibidos de mudar de partido para não alterar a configuração política da Assembleia Nacional saída das últimas eleições. Enquanto deputados não inscritos ou independentes mantêm essencialmente os mesmos poderes dos restantes colegas incluindo o poder de apresentar projectos de revisão constitucional. Quanto à renúncia só se verifica mediante declaração apresentada pessoalmente ao presidente da Assembleia Nacional pelo deputado ou assinatura notarialmente reconhecida e depois de anunciada no Plenário pela Mesa. Dificilmente poderá ser resultado de uma carta/compromisso assinado previamente.
Não sendo fácil nem prática a medida de coarctar os deputados pelas razões apontadas há que perguntar porquê assumi-la frontalmente. É evidente que se quis dar uma resposta ao chamado Grupo de Reflexão exagerando os efeitos desestabilizadores no grupo parlamentar produzidos por intervenções ou sentido de voto de alguns deputados enquanto se escondia a incapacidade ou indisponibilidade em produzir diálogo produtivo. A intenção principal terá sido de demonstrar maior controlo do grupo parlamentar não para fazer funcionar o parlamento com maior eficiência no quadro do sistema político e prestigiar a instituição aos olhos do público, mas sim para deixar claro a determinação em fazer da actuação no parlamento um forte instrumento de luta pelo poder. Como se pode ver pela actuação de outros actores políticos tanto em Cabo Verde como em outras democracias “chefes ou aspirantes a chefes” não têm grandes problemas em sacrificar o parlamento, a classe política e os processos democráticos desde que a sua ambição pessoal e desejo de poder se realizem.
A grande crítica à democracia representativa tem sido a falta de ligação dos deputados aos seus eleitores, a submissão dos políticos aos respectivos partidos e a defesa de interesses particulares em detrimento do interesse público. Curiosamente os políticos que se apresentam como mais sensíveis a essa crítica e que ruidosamente se propõem a mudar a situação são os que mais a agravam. Dizem que são por políticas de proximidade, clamam por renovação das hostes partidárias e acusam os outros de corrupção. Para desalojar elites existentes introduzem formas inovadoras de selecção de dirigentes partidários e deputados, aparentemente mais democráticas como sondagens, primárias, quotas e avançam com alterações estatutárias como incompatibilidades, compromissos de honra e alargamento do universos de votantes para supostamente mudar hábitos arreigados de prática política e trazer mais transparência ao processo político. No fim do dia constata-se que ficam à frente de partidos ou de países onde a sua a voz e vontade são únicas, o debate político é praticamente nulo no meio partidário e nota-se mais dependência da classe política em relação ao Estado.
É por não haver uma resposta séria e honesta às questões levantadas pelos cidadãos que a c
rise da democracia se tem agravado e que em consequência se vem verificando a ascensão de movimentos populistas nos extremos do espectro político. De facto, ninguém ganha em tentar aproveitar o descontentamento em relação ao funcionamento das instituições, ou em potenciar o cinismo em relação à política ou em alimentar a desconfiança em relação às elites e todas as entidades de intermediação e em particular os mídias. Os partidos tradicionais que nas democracias seguiram por essa via perderam terreno com o eleitorado e progressivamente deixaram de ser vistos como alternativa da governação. Entrementes os muitos desiludidos com a democracia foram refugiar-se no campo de políticas identitárias e tribais que nada mais podem trazer senão violência e atraso.
Em Cabo Verde o processo está talvez na sua fase inicial, mas já se nota que o desgaste das instituições tem sido acompanhado de algum desvio no funcionamento e na postura dos órgãos de soberania e seus titulares. Também há a percepção de que reformas essenciais em tempo útil não estão a acontecer o que não augura algo positivo quanto mais se aproximam as eleições e o eleitorado precisará ser confrontado com alternativas reais em matéria de política para o desenvolvimento do país. Se a convenção do MpD em Março afinar pelo mesmo diapasão do congresso do PAICV de Fevereiro e simplesmente revolver o caldeirão dos descontentamentos para interesse de uns, dificilmente o país ficará em posição de poder perspectivar o futuro sem que crispação, tribalismos e visão curta ponham em risco a liberdade, a democracia e a abertura económica que conseguiu até agora construir.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 949 de 5 de Fevereiro de 2020.

segunda-feira, fevereiro 03, 2020

Que prevaleça o bom senso

No dia 22 de Janeiro, Dia do Município de S. Vicente, o governo pela voz do ministro de Estado Fernando Elísio Freire anunciou o reforço da descentralização no ano 2020 com a introdução de várias iniciativas legislativas. Ao longo dos meses e supõe-se até Julho, considerando que as eleições autárquicas terão lugar em meados de Outubro, deverão ser apresentados à Assembleia Nacional propostas de lei do novo estatuto dos municípios, do novo regime financeiro das autarquias locais, da nova lei de bases do orçamento municipal, da nova lei de impostos sobre o património e do regime de projectos de mérito diferenciado.
Entretanto, o governo já fez chegar à Assembleia Nacional a proposta de lei que dota a Praia de um estatuto administrativo especial.
Mesmo pondo de lado a questão se as iniciativas são ou não exequíveis ou podem ser levadas a bom termo num quadro temporal razoável, o momento escolhido não pressagia nada de bom. Conseguir, em cima de um pleito autárquico, acordos alargados das forças políticas sobre matéria de poder local e da sua relação com o governo central não é tarefa fácil. Em 2015, um pacote similar de leis incluindo um novo estatuto dos municípios também tinha sido apresentado pelo então governo do Paicv e foi de todo impossível reunir a maioria necessária para ser aprovado. Algo semelhante tinha acontecido cinco anos antes, em 2010, quando uma lei da descentralização que previa a criação de regiões e freguesias foi contestada pelos partidos da oposição por entre outras razões por não ter sido aprovada por maioria qualificada. Se se ajuntar a todo este historial de desencontros em matéria de descentralização os episódios recentes (2019) que marcaram o processo da regionalização e a discussão da proposta de lei no parlamento não é de se esperar muito dessas iniciativas. No mínimo vai-se constatar mais um pico no ambiente de crispação política. O que ainda poderá ser mais custoso é o país ficar sujeito a um quadro institucional criado por leis que não foram suficientemente debatidas nem devidamente ponderadas as opções de políticas nelas consagradas.
O que aconteceu com a lei da regionalização não deve repetir-se. Então ficou claro para todos que os propósitos eleitoralistas eram mais do que evidentes e que por isso o debate sobre toda a matéria ficou prejudicada. Daí que as soluções encontradas, seguindo essa lógica e que fixavam o princípio de ilha-região (desafiando a realidade de regiões sócio-económicas já existentes como S.Antão-S.Vicente, ignorando a fragilidade humana e material das ilhas com população diminuta e não tendo em devida conta a complexidade da situação vivida pelas ilhas alvo de grandes investimentos e de migrações massivas) geraram tanta controvérsia. O interessante é que depois de todo esse exercício contradizia-se o princípio de ilha-região e duas regiões eram criadas na ilha de Santiago. Não é de estranhar que no fim de tudo isso só tenha ficada a dúvida se os posicionamentos dos partidos em relação à proposta de lei eram sobre a substância da mesma ou se se tratava de um jogo para ver quem ficava com o ónus de ter bloqueado a sua aprovação. Também não espanta a perda subsequente de credibilidade das instituições e em particular do parlamento. Nesse sentido, introduzir outra vez leis sobre a descentralização sem uma discussão prévia entre os partidos e entre estes e a sociedade corre-se o risco de só acumular perdas como foi de outra vez.
Como se constatou em vários momentos, 2010, 2015 e 2019, quando propostas de lei sobre a descentralização foram presentes ao parlamento, torna-se claro que não há uma visão coerente e compartilhada sobre a matéria e que se age fundamentalmente para favorecer interesses reais ou tidos como tal de certos segmentos do eleitorado. O facto de essas datas situarem-se próximas das eleições, deixam transparecer a motivação dos governantes do momento e por isso mesmo a reacção de quem estiver na oposição. O resultado é que nunca há a serenidade necessária para discussão de uma matéria que se revela de extrema importância num país que todos reconhecem como altamente centralizado. E quando, por razões nem sempre claras, se chega a algum tipo de consenso, como aconteceu em 2005, também nas vésperas de eleições, e cria-se de uma assentada mais seis municípios o que se consegue é discutível. As dificuldades em matéria de autonomia, sustentabilidade, capacidade de investimento e de gestão numa perspectiva de futuro, que os novos municípios enfrentam, deviam ter sido equacionadas no âmbito de uma lei-quadro de criação de municípios o que até hoje não existe.
Medidas de grande alcance e impacto sobre o país, em particular na forma como se gerem os recursos disponíveis, se faz a redistribuição, se mantém a coesão nacional, se investe na competitividade e se aposta no futuro deviam ser discutidas em sede mais adequada – seja ela no quadro da aprovação de leis ou mesmo de uma revisão da Constituição – para se poder fazer a melhor ponderação e aprofundar as questões resultantes. Quando não se vai por essa via, porque se está pressionado pelo eleitoralismo, a democracia revela-se no seu pior em termos de ineficiência e a credibilidade das instituições e da política sofre. É nesse sentido que a proposta do novo estatutos dos municípios com mudanças na forma de constituição dos órgãos municipais e eleições para uma única lista para a assembleia municipal e assunção pelo primeiro da lista do cargo de presidente da câmara devia ser precedida de uma alteração na Constituição que contemplasse essa solução. A Constituição portuguesa permitiu uma solução similar, mas só depois da revisão constitucional feita em 1997. Insistir em avançar com a lei, sem clarificar em sede constitucional, pode levar ao mesmo impasse sofrido pela lei de igual teor em 2015. Do mesmo modo também, em sede constitucional, podia-se densificar a questão do Estatuto Administrativo Especial para a Praia para se evitar as controvérsias à volta da lei e suprir a deficiência original deixada pelo legislador constituinte que ao aditar do artigo não o acompanhou de uma justificação.
Por estas e outras razões parece pertinente que se faça proximamente uma revisão da Constituição. Desde Maio de 2015 que já é possível avançar com uma revisão ordinária da Constituição. Em causa está a descentralização que é uma questão central do país e que merece ser tratada em tudo o que implica com a seriedade e as devidas cautelas que se aconselham num país arquipélago de parcos recursos e diminuta população. É fundamental manter a ideia global do país ao mesmo que se assegura a diversidade propiciada pelas suas ilhas que o enriquece culturalmente e potencia o desenvolvimento do todo nacional. O consultor das Maurícias Dev Chamroo, ao observar certas derivas já tinha alertado que “se Cabo Verde acreditar que é 10 ilhas diferentes não vai a lado nenhum”. Por isso, todo o processo de descentralização incluindo a questão do Estatuto Administrativo Especial da Praia, que originalmente era inseparável das opções em matéria de regionalização, deve ser discutido aprofundamento em sede própria, com serenidade e sem pressão eleitoral em cima. É fundamental que, uma vez por todas, prevaleça o bom senso e que ao invés de se multiplicar ineficiências se tenha um país mais ágil, mais competitivo e com visão para agarrar as oportunidades.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 948 de 29 de Janeiro de 2020.

segunda-feira, janeiro 27, 2020

República dividida

Finda mais uma Semana da República, que anualmente desde 2012 acontece de 13 a 20 de Janeiro e é patrocinada pelo presidente da república Jorge Carlos Fonseca, não parece que o objectivo de fazer dos feriados datas de concórdia nacional tenha sido realizado. Em declarações no dia dos heróis nacionais o PR disse que continua a pretender que não se deve seleccionar fase da história, daquela que podemos gostar mais ou gostar menos. Os jornalistas contrapõem que há muitas críticas à forma como os combatentes da liberdade da pátria são tratados.
O Primeiro-ministro por sua vez apela para que não se continue a partidarizar a figura de Amilcar Cabral e que se deixe de o considerar património de um partido político em particular para ser património da nação cabo-verdiana. Antes na sessão solene da Assembleia Nacional já se tinha repetido a habitual contestação do 13 de Janeiro como Dia da Liberdade e da Democracia com os argumentos de sem­pre: que a liberdade foi de facto inaugurada no 5 de Julho de 1975 e que a democracia realmente resultou da gene­rosidade e visão do ex-partido único evidenciadas na decisão de abertura política de 19 de Fevereiro de 1990.
Pelo ambiente político assim recriado todos os anos percebe-se que a celebração da chamada semana da república falha em unir a nação. Só expõe as fracturas de uma república ainda dividida pelo confronto entre a defesa dos princípios e os valores da democracia liberal derivados do respeito pela dignidade humana e o apego de uma clique política a legitimidades históricas e revolucionárias. Os órgãos de soberania em particular o PR e o Governo esforçam-se por ir ao encontro das reivindicações dos intitulados heróis e combatentes mas o esforço nunca é tido com suficiente. Sempre que há uma oportunidade surgem reclamações que estão a ser preteridos e que a figura de Amilcar Cabral não tem o reconhecimento devido. Parece que não chega que ao longo da semana todo o sistema de ensino do país, dos jardins-de-infância às universidades, a comunicação social pública, as Forças Armadas na comemoração do 15 Janeiro e as mais altas figuras do Estado se desdobram em manifestações de gratidão. Quanto mais recebem, mais querem.
Mas a verdade é que as democracias não funcionam com o culto de personalidade, demonstrações eternas de gratidão aos melhores filhos e legitimidades revolucionárias. Foi para acabar com isso é que aconteceu o 13 de Janeiro de 1991. Na sequência, as liberdades foram recuperadas, o pluralismo foi instituído e os governos com mandato fixo passaram a resultar da vontade popular. Permitir que esses valores e práticas regressem simplesmente para cultivar egos, cavalgar ondas identitárias e apaziguar ressentimentos enfraquece as instituições democráticas e transforma a política numa guerrilha permanente que lhe retira toda a possibilidade de contribuir para a identificação dos problemas do país e a mobilização das vontades para os resolver. É o que já está acontecer e que se manifesta na impaciência quando se procura realizar alguma coisa, na euforia fácil seguida de frustração em relação às promessas feitas e no cinismo que tem vindo a crescer em relação à política e aos políticos e aos trabalhos parlamentares.
De facto, conhecer o percurso histórico do país não significa justificar opções feitas no âmbito de projectos de poder que constituíram sacrifícios enormes em liberdade e dignidade humana, no atraso de décadas no desenvolvimento do país quando comparado com realidades insulares similares com as Maurícias e as Seicheles e numa deficiente capacidade de construir um futuro próspero. Como valorizar quem protagonizou a independência nacional se para isso sete meses antes, em Dezembro de 1974, se acabou com a liberdade de expressão e de imprensa, liberdade de reunião e de manifestação e a formação livre de partidos políticos que existia desde o dia 25 Abril e depois se enviou os adversários políticos para a prisão do Tarrafal e posterior deportação para Portugal. As liberdades suprimidas então só foram paulatinamente recuperadas em parte a partir de Maio de 1990 e tempos depois com a queda do artigo quarto em fins de Setembro do mesmo ano. O partido único não tinha que ser uma inevitabilidade histórica. Foi uma opção de poder de um grupo político com as consequências conhecidas de todos. Para ser independente o país não tinha que ser uma ditadura. E a eventual glória da independência não apaga a responsabilidade pela ditadura.
Martin Luther King Jr é homenageado no 20 de Janeiro, um feriado nacional nos Estados Unidos da América, porque protagonizou a luta pelos direitos civis e políticos fundamentais para a liberdade e dignidade dos negros americanos que a emancipação dos escravos na sequência da guerra civil americana não tinha garantido. Formalmente livres, na pratica as leis de Jim Crow e todas as práticas segregacionistas que foram instituídas nos Estados do Sul coarctaram efectivamente a liberdade, o direito de voto e a expectativa de construção de uma vida digna e de prosperidade para a população saída da escravatura. A realização do sonho descrito eloquentemente por Luther King no célebre discurso de Agosto de 1963 em Washington só poderia começar pela conquista dos direitos fundamentais.
É uma vitória similar que fundamentalmente se celebra no 13 de Janeiro. Depois de 15 anos desprovidos da totalidade de direitos civis e políticos os cabo-verdianos passaram a ser cidadãos plenos no seu próprio país. A Constituição de 1992 em reacção aos anos de ausência de direitos estabeleceu que nenhuma maioria em sede da revisão constitucional ou referendo pode limitar ou restringir os direitos, liberdades e garantias constitucionais. A sessão solene da assembleia nacional onde deputados eleitos do povo representam toda a nação na pluralidade das suas ideias e na diversidade dos seus interesses justifica-se para anualmente afirmar e confirmar os princípios fundamentais da liberdade, do pluralismo, da separação de poderes, do primado da lei e da independência dos tribunais que toda a comunidade nacional estabeleceu como garante da sua liberdade e autodeterminação. Ataque a esses princípios de que ângulo for, seja pela demagógica incursão pelo nível de concretização dos direitos sociais, seja pela tentativa de reabrir o debate quanto ao próprio dia, seja ainda pelo apontar de insuficiências ou pretensas ineficiências ao processo democrático só serve para manter a república dividida.
O argumento que se podia fazer sessões solenes do parlamento noutras datas não cola. Os outros feriados nacionais não simbolizam o mesmo e sendo mais expressão da unidade da nação prestam-se mais a um protagonismo central do PR que é órgão de soberania singular e suprapartidário. É o que se pode constatar noutras democracias. Da mesma forma também se pode ver com clareza que cultos de personalidade e legitimidades revolucionárias são incompatíveis para se estabelecer a verdade histórica, inimigas de uma real emancipação e autonomia das pessoas e contrárias a uma cultura de auto- responsabilização individual e colectiva. Há que libertar-se finalmente desta praga.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 947 de 22 de Janeiro de 2020.

terça-feira, janeiro 21, 2020

Preservar a cabo-verdianidade

No último fim-de-semana aconteceu algo provavelmente sem precedentes. Cabo-verdianos saíram à rua em protesto em todas as ilhas, em várias cidades portuguesas, em algumas cidades noutras partes da Europa e também em Brockton, nos Estados Unidos da América. Nas manifestações e marchas todos mostravam consternação, indignação e revolta pela vida perdida do jovem estudante Giovani Rodrigues, mas o móbil maior das acções de rua foi protestar contra o racismo que estaria na base da sua morte violenta.
Um outro facto novo foi toda essa movimentação ter sido essencialmente alimentada a partir das redes sociais que trataram de dar, difundir e interpretar informações sobre o acontecido ao Giovani. Várias narrativas sucederam-se para explicar o que se passou, teorias de conspiração serviram para neutralizar ou lançar dúvidas sobre notícias oficiais das autoridades portuguesas e das autoridades cabo-verdianas e conseguiu-se que o incidente que levou à morte do estudante fosse tido como uma consequência do racismo e, de alguma forma, como produto do racismo institucional português.
Para qualquer observador conhecedor das ilhas e em particular da sua história e cultura seculares do cabo-verdiano seria de quem menos se esperaria encontrar num imbróglio com cores raciais ou visado como representativo de uma parte num conflito de raças. Da mesma forma que também seria quem num cenário de crime grave, mas sem provas concludentes quanto aos autores e às motivações, menos estaria inclinado em ver logo à partida fundamentos racistas e em estar pronto a posicionar-se como vítima de perseguição racial. Muito menos ainda se esperaria que um bom número de pessoas, em particular jovens nas ilhas e no estrangeiro, comungasse da mesma visão tingida por cores raciais. A morte de Giovani é razão para uma tristeza sem fim, mas não pode ser pretexto para se legitimar algo que claramente configura um retrocesso na visão que o cabo-verdiano tem si mesmo e da sua relação com o mundo.
Se tomarmos a origem da morna nas primeiras décadas do século XIX pode-se afirmar que elementos-chave da consciência da nação cabo-verdiana, língua e música já estavam presentes há quase dois séculos. A vivência dura nas ilhas dilacerada por fomes periódicas que dizimavam milhares tinha criado um ecossistema favorável que quebrou as relações socioeconómicas do passado e criou uma realidade onde as gradientes da cor da pele deixaram de ser relevantes culminando no mundo que o mulato criou identificado por Gabriel Mariano e descrito e revivido por todos nos romances, contos e poemas de Baltasar Lopes, Manuel Lopes, Jorge Barbosa e de outros Claridosos. De facto, no mundo do cabo-verdiano não tem qualquer relevância o tom mais escuro ou mais claro da pele na escolha de qualquer pessoa para um cargo público, no ser eleito para qualquer órgão de soberania e no singrar em qualquer carreira. Nenhuma classe socioeconómica ou profissão distingue-se pela cor da pele.
Visto numa certa perspectiva, o ideal de um futuro de harmonia racial de há muito que nas condições específicas de Cabo Verde (carestia, isolamento, fomes periódicas) se tornou numa realidade e constituiu o substracto-base de uma consciência de nação que se consolidou muito antes da independência nacional. Outras sociedades em determinados momentos julgaram ter atingido esse patamar nas relações humanas só para pouco depois se constatar que ainda estão muito aquém desse objectivo. Quando Barack Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos uma onda de optimismo atravessou a América e muitos conjecturaram se os americanos já tinham passado a viver numa sociedade pós-racial. Hoje sabe-se que não é assim e que a realização desse ideal tende a ficar mais longe devido à reacção de quantos se viram ameaçados pelos reais avanços então verificados. Frustração similar verificou-se anteriormente com o Brasil que por algum tempo conseguiu projectar para o mundo a imagem de uma democracia racial, um mito que particularmente a partir dos anos oitenta se desmoronou, revelando as profundas desigualdades existentes e como são reproduzidas pela discriminação racial institucionalizada. Ora se tudo indica que Cabo Verde conseguiu o que para todos é o ideal de convivência entre as pessoas como justificar que se queira desfiar o novelo depois de tão delicadamente e fecundamente o ter criado e voltar à indignidade de ontem de julgar as pessoas pela cor da pele. Devia ser o contrário. Há que tornar a meada mais apertada e mais rica e obter assim a unidade de propósitos indispensável para fazer prosperar o país na liberdade, na diversidade e no pluralismo.
É verdade que Cabo Verde não está sozinho e que a especificidade da experiência do cabo-verdiano não se estabelece sem que de alguma forma afecte a sua relação com o mundo. No país vive-se um ambiente isento de tensões raciais que se traduz numa harmonia e tranquilidade que até seduz os estrangeiros e dá uma outra dimensão à sodade sentida quando se está ausente da terra mãe. Já menos positivo é o facto desse mesmo ambiente não o preparar para enfrentar o mundo lá fora onde em maior ou menor grau preconceitos raciais se manifestam nas relações pessoais e não se excluem actos discriminatórios mesmo à revelia da lei. É evidente que face a tais situações se o cabo-verdiano estiver seguro da sua identidade e do seu percurso não se deixará apanhar no torvelinho de relações modeladas por uma história de humilhação, violência e vitimização de base racial. Nem tão pouco irá cair na tentação de trazer para o país os estigmas, a violência e uma visão do mundo colorida por filtros raciais. Infelizmente não parece que é isso que actualmente acontece.
Vários factores têm con­tribuído para o cabo-verdiano perder de vista o percurso percorrido para ganhar cons­ciência nacional. Sabe que a caminhada vem de longe porque não ignora que a sua língua, a sua música e sua literatura têm mais de um século de existência, mas repetem-lhe todos os dias qua a luta é recente e só batendo-se contra o inimigo colonizador nos vários campos vai afirmar a sua identidade. Na corrida em que artificialmente é colocado na busca de identidade acaba inevitavelmente por ir atrás de marcadores (culturais, origens, cor da pele, ideologias) que o distinguem do inimigo declarado e lhe permitem identificar quem está com ele na luta e quem é aliado do adversário. Ou seja, é lançado num caminho em que o mais certo é ver esvaziarem-se os ganhos de séculos na construção da cabo-verdianidade em busca de uma identidade forjada numa luta ilusória que só traz com ela insegurança pessoal, bairrismos e o regresso de complexos raciais. Como bem disse o doutor Gabriel Fernandes, com a política de reafricanização dos espíritos “… os actores políticos caboverdianos acabaram por exacerbar as diferenças internas abrindo um fosso entre os próprios caboverdianos, doravante percebidos, não em termos culturais-unitários, como parte integrante de uma entidade peculiar, mas sim político-dualísticos, sob o rótulo de anticolonialista ou de colaboracionista”.
É evidente que não é esse o caminho para unir a nação, construir a democracia e prosperar. De uma concepção de si próprio não “ a partir de dentro, da sua peculiaridade cultural, mas sim de fora, da sua compartilhada situação de africanos e dominados” só se pode ter estratégias de atracção de fluxos externos suportados numa permanente e criativa vitimização. Não fica espaço para a auto-responsabilização individual e colectiva que é essencial para a construção do carácter e da integridade que orgulharia a todos os que realmente forjaram a nação e nos legaram um género musical, a morna, que em Dezembro foi declarada Património Universal da Humanidade. Em memória do Giovani o que todos deviam fazer era preservar o legado da cabo-verdianidade e mostrar a todos que sim: é possível a harmonia racial no mundo.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 946 de 15 de Janeiro de 2020.

segunda-feira, janeiro 13, 2020

Ano 2020 em perspectiva

Com a entrada no ano 2020 Cabo Verde começa a se preparar para as eleições autárquicas, que virão ainda no segundo semestre, e as legislativas e presidenciais, separadas seis meses umas das outras, que se realizarão no próximo ano. Já foi dado o pontapé de saída.
O PAICV em Dezembro último escolheu o seu líder e prepara o congresso para eleições dos seus principais órgãos em Janeiro. O MpD deverá fazer o mesmo respectivamente em Fevereiro e Março. Da movimentação dos partidos não deve haver surpresas, em linha com o que o país já se habitou depois da eleição directa dos líderes pelo universo dos militantes. Os outros órgãos eleitos (congresso, convenção e direcções nacionais) deixaram de ser instâncias de discussão viva e plural dos assuntos do país e do partido. Passaram simplesmente a repetir as posições da liderança e a se desdobrarem em manifestações de devoção ao “chefe”.
Com o aproximar das eleições e de momentos mais polarizantes da vida política, o país vai ver mais uma vez adiada a discussão necessária que urge fazer dos problemas graves que o assolam e afectam problematicamente o seu crescimento, distorcem o emprego, não permite ter uma educação de excelência e não faz desaparecer o sentimento de insegurança. Perdeu-se talvez a oportunidade de uma discussão mais aberta dos problemas e eventualmente da construção de consensos para os ultrapassar nos anos logo a seguir às últimas eleições que deviam ser de menos crispação político-partidária. Mas visto de outra forma talvez o país não estivesse pronto para isso ou as suas lideranças não estavam à altura dos desafios que se colocavam. Ou ainda, ninguém se mostrava disposto a abandonar as práticas já estabelecidas de base populista e demagógica que paulatinamente têm vindo a definir o que é fazer política em Cabo Verde. Em boa medida, a tensão e polarização própria dos períodos eleitorais nunca realmente desaparecem no pós-eleições e a crispação assim institucionalizada pelo estado de permanente campanha partidária não permite que os problemas do país sejam, sem filtros, devidamente confrontados, equacionados e resolvidos.
Em 2020, o ciclo eleitoral começa mais cedo porque o mandato nos órgãos municipais é de quatro anos. Acontece de vinte em vinte anos. Por causa disso é especial, mas de forma oposta ao que o último ciclo em que as autárquicas vieram depois legislativas foi também especial. Se em 2016 foi notório o contágio dos resultados das eleições legislativas sobre as autárquicas, aparentemente nada impede que o oposto se venha a verificar agora com a diferença de ser a eleição mais impactante a que pode ser contagiada. Tal possibilidade tem o potencial de antecipar para mais cedo a disputa nas legislativas via uma interposta luta pela conquista de câmaras municipais. No processo, a qualidade da governação não deixará de ser afectada. Haverá mais dificuldade em conseguir acordos entre os partidos em matérias que exigem maiorias qualificadas e não deixará de se manifestar a tentação do governo em fazer chegar financiamentos a câmaras ou em apoiá-las com iniciativas várias. Do lado da oposição certamente que se irá agir no sentido de escrutinar mais o funcionamento municipal e não se irá dispensar acusações de aproveitamento eleitoral. Neste aspecto o ano pode não se mostrar muito produtivo no que respeita às questões de fundo do país sendo afectado negativamente pela guerrilha política que poderá instalar-se em antecipação das eleições legislativas.
A dimensão da vitória autárquica do MpD em 2016, em que dos 22 municípios passou a controlar 18 e dos quatro restantes dois são próximos e só dois foram para o PAICV, cria um problema algo complicado nas eleições seguintes. A tendência histórica para algum equilíbrio autárquico deixa prever que a haver movimento no controlo das câmaras o mais provável é que quem tenha mais, o MpD, perca algumas, mesmo mantendo a maioria como aliás quase sempre se verificou, seja nos governos do MpD, seja nos do PAICV. A desproporção actual das câmaras nas mãos de um e do outro partido é que é inusitada e naturalmente que constitui um convite a que o adversário pressione para, seguindo a tendência natural das coisas, capturar algumas câmaras e com isso passar a ideia de derrocada eleitoral do outro. E a poucos meses das eleições legislativas imagine-se o efeito que isso poderá ter particularmente se as câmaras perdidas tiverem um valor simbólico forte no âmbito da luta política em Cabo Verde. Não será um desfecho que irá interessar o partido no governo e certamente que fará tudo para não perder terreno autárquico e sobretudo nos municípios onde uma derrota pode ser apresentada como prenúncio de derrota nas legislativas.
A complicar ainda mais o cenário descrito de se vir a batalhar pelas legislativas servindo-se das autárquicas pode surgir ainda a questão presidencial que nos últimos tempos tem sido aflorada com alguma insistência. É curioso que a eleição do presidente da república, sendo a terceira das eleições no ciclo eleitoral de 2020/21, esteja tão presente no debate público, em artigos de jornais e em posts nas redes sociais. Compreende-se que assim seja considerando que o actual incumbente não é candidato e que realmente vai-se ter um novo presidente. Para os partidos que entrementes vão se defrontar nas legislativas a preocupação logo à partida é se a candidatura presidencial escolhida será factor de coesão do partido e assim ter impacto positivo nos resultados ou de desunião com as consequências que se conhecem. As eleições presidenciais de 2011 foram instrutivas a esse respeito. Tudo isso torna muito sensível a gestão política do ciclo eleitoral que já está muito focalizado nas legislativas. De facto, nenhum candidato ao cargo irá querer esperar pelo resultado das legislativas para dar a conhecer as suas pretensões e trabalhar a sua base eleitoral. Imagine-se o que pode resultar de esforços conflituantes.
Não há dúvida que por estas e por outras razões o ano de 2020 poderá vir a revelar-se um ano difícil. E a acontecer não irá beneficiar de uma envolvente externa favorável. No plano internacional as incertezas amontoam-se à medida que os Estados Unidos procedem, sob a liderança de Donald Trump, ao efectivo desmantelamento da ordem mundial construída no pós-guerra. Guerras comerciais, impedimentos à circulação de pessoas, reconfiguração de cadeias de valor globais e enfraquecimento da vontade das nações face aos desafios globais como mudanças climáticas, pobreza e opressão são das grandes ameaças que no inicio da década todos vão ter que enfrentar. Sem excluir a possibilidade de guerras destruidoras fruto de rivalidades económicas, geopolíticas e ideológicas como os acontecimentos da semana passada no Médio Oriente e no Irão vieram relembrar com muita clareza.
A questão que se coloca é se o país está preparado para enfrentar choques que poderão resultar de qualquer perturbação do ambiente internacional de paz, de ordem e de livre comércio entre as nações. Não é líquido que esteja, nem parece que venha a estar enquanto se privilegiar o ilusionismo na política e se permitir que o exercício do poder fique refém da prática dos partidos políticos de captura e manutenção de clientelas. Fixa-se no presente, adia-se o futuro e os desafios do país nem são realmente identificados ou reconhecidos. Em pleno ciclo eleitoral, então, o desvio da realidade é maior.

Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 945 de 08 de Janeiro de 2020.