Quando já nuvens negras pairavam sobre os Estados
Unidos e se tornava real a possibilidade de uma guerra entre o Norte e o
Sul Abraham Lincoln no seu discurso inaugural como presidente fez um
apelo aos “melhores anjos da natureza” dos seus compatriotas no sentido
de se ultrapassar as fracturas que ameaçavam a União.
Lincoln
referia-se às qualidades cívicas e patrióticas formatadas por uma
vivência e uma memória comum que vinha de várias décadas sob a égide da
primeira Constituição que proclamou a igualdade de todos e estabeleceu
como inalienáveis o direito à vida, à liberdade e à procura da
felicidade. Não impediu o conflito e a guerra civil acabou por
acontecer, deixando um rasto de mais de 500 mil mortos, mas a unidade do
país foi salva, a escravatura foi extinta e a luta pela igualdade de
todos com os seus altos e baixos tem, desde então, acumulado sucessos.
Houve, pois, progresso e a expressão de Lincoln serve hoje de
inspiração, em particular, na luta contra os nossos piores instintos.
Há quase uma década Steven Pinker num livro com o título “Os melhores anjos da nossa natureza” procurou demonstrar que a violência dos homens contra os seus pares nos últimos trezentos anos, não obstante as guerras mundiais, as guerras coloniais e a guerra fria tem diminuído consistentemente. Na sua tese, os melhores anjos têm prevalecido apesar de tudo. Na encruzilhada em que o mundo se encontra neste momento a enfrentar a pandemia e a crise económica, social e política, que ela estará a engendrar e que ninguém sabe qual vai ser o desfecho, é de augurar que os melhores anjos voltem a triunfar sobre os piores instintos das pessoas e das nações. A dimensão do desastre que ameaça a todos com milhões de desempregados em todo o mundo e a contracção violenta da economia na generalidade dos países deixa claro que o mundo pós-covid-19 vai ser diferente. Se não for um mundo dominado por nacionalismos e rivalidades entre as grandes potências , marcado por profundas fracturas sociais e globalmente mais pobre, terá que ser o mundo menos desigual, com mais e melhores oportunidades e com mais sentido de responsabilidade individual e colectiva. Também impõe-se que seja mais sensível à necessidade de uma defesa conjunta face a ameaças como pandemias e alterações climáticas e mais aberto a uma relação de maior harmonia dos homens com o planeta e com os outros seres vivos. Para isso os melhores anjos da nossa natureza terão que sair vencedores.
À partida não se vê qualquer garantia nesse sentido. Perante a pandemia, a postura da generalidade dos países tem sido de uma resposta para dentro, fechando fronteiras e chegando ao ponto de proibir exportações de material médico e de apoio à luta contra o coronavírus. Acusações mútuas são feitas em relação à origem da epidemia e tensões xenófobas desenvolvem-se rapidamente na presença de casos importados. Relutância dos mais poderosos tanto a nível global como de entidades como a União Europeia dificultam acções de resgate dos países mais frágeis perante o que alguns já chamaram do maior desastre económico desde a grande depressão dos anos trinta do século passado. Mesmo a cooperação no quadro das organizações multilaterais como a OMS tem sido marcada por disputas que não ajudam na mobilização dos meios e interferem com a eficácia de uma luta que para ser vitoriosa precisa da cooperação de todos.
É verdade que já há iniciativas do FMI e do Banco Mundial para apoio financeiro dirigido aos países mais pobres e aos emergentes e que há também um forte movimento no sentido da perdão da dívida externa dos países africanos. Consensos em como agir, porém, não são fáceis quando se sabe, por exemplo, que o Congresso americano tem que dar luz verde ao FMI e à China terá concordar com os termos da perdão da dívida. Mesmo na União Europeia discute-se arduamente como proceder para ajudar os países mais afectados pela pandemia por forma a que os países do Norte não se sintam sobrecarregados pelos problemas do Sul. Cooperações mais pacíficas acontecem no domínio da investigação do coronavírus e de possíveis vias para o tratamento da covid-19. Outras ainda, mas já não despidas de disputas, intrigas e jogadas pouco claras envolvendo empresas farmacêuticas, focalizam na procura de uma vacina que efectivamente pudesse pôr fim à pandemia. Em todas essas interacções é visível a luta entre, por um lado, as melhores intenções de contribuir para se encontrar uma solução para a pandemia e mitigar os seus efeitos económico e sociais e, por outro, os interesses mais rasteiros com destaque para o lucro e o orgulho nacional.
Em Cabo Verde, assim como na generalidade dos países em desenvolvimento e com grande dependência da generosidade externa, a nova realidade que irá emergir no pós-covid vai colocar desafios de outra natureza, mas não menos difíceis. Já se sabe que no âmbito da crise o Estado voltou a ganhar protagonismo com os seus programas de apoio às populações e às empresas. Na perspectiva do crescimento desse protagonismo com o aumento da ajuda internacional e a diminuição esperada do contributo do sector privado devido à quebra no turismo e na procura externa de bens e serviços, a tendência vai ser de aumento da dependência do Estado. Ficará a dever bastante da capacidade e da vontade dos governantes e das autoridades evitar que o actual momento de vulnerabilidade das populações se torne instrumental no resgate da mentalidade assistencialista que todos dizem repudiar.
Os muitos anos de reciclagem da ajuda externa deixou hábitos enraizados que se manifestam tanto na corrida para abocanhar recursos como na facilitação do acesso aos mesmos para exercer poder, assegurar lealdades e obter ganhos eleitorais. Corre-se o risco de reforçar tais hábitos se, numa situação em que realmente as pessoas precisam de ajuda, houver desvio do objectivo de promover mais autonomia e responsabilidade individual para obtenção de ganhos partidários de curto prazo. E pode contribuir para isso tanto as entidades que têm os meios para dar como também os concorrentes que alimentam reivindicações muitas vezes irrazoáveis só para granjear favor e deixar as autoridades em situação difícil. Vai depender em muito dos “melhores anjos” que souberem mobilizar para que não se sucumba mais uma vez à tentação do assistencialismo, condenando as populações à precariedade e à vulnerabilidade que numa situação de crise como a actualmente vivida se revela de forma tão gritante.
Cerca de um trilhão de dólares em ajuda externa foi concedida à Africa subsaariana nas últimas cinco décadas. A situação actual desses países deixa entender que todos esses recursos não serviram de muito para evitar a situação de pobreza das populações que agora directa ou indirectamente por causa da pandemia da covid-19 vai-se aprofundar ainda mais. Com o nobre propósito de ajudar os países africanos e outros a resistir ao coronavírus certamente que mais ajuda vai ser canalizada e algum perdão da dívida externa vai-se verificar. Seria de esperar que desta vez os fundos canalizados para esses países não aumentassem a dependência das populações e, pelo contrário, o seu impacto se revelasse à altura do justamente celebrado Plano Marshall do pós-guerra na Europa. Que se soltem “os melhores anjos da nossa natureza” para que se consiga tal desiderato.
Há quase uma década Steven Pinker num livro com o título “Os melhores anjos da nossa natureza” procurou demonstrar que a violência dos homens contra os seus pares nos últimos trezentos anos, não obstante as guerras mundiais, as guerras coloniais e a guerra fria tem diminuído consistentemente. Na sua tese, os melhores anjos têm prevalecido apesar de tudo. Na encruzilhada em que o mundo se encontra neste momento a enfrentar a pandemia e a crise económica, social e política, que ela estará a engendrar e que ninguém sabe qual vai ser o desfecho, é de augurar que os melhores anjos voltem a triunfar sobre os piores instintos das pessoas e das nações. A dimensão do desastre que ameaça a todos com milhões de desempregados em todo o mundo e a contracção violenta da economia na generalidade dos países deixa claro que o mundo pós-covid-19 vai ser diferente. Se não for um mundo dominado por nacionalismos e rivalidades entre as grandes potências , marcado por profundas fracturas sociais e globalmente mais pobre, terá que ser o mundo menos desigual, com mais e melhores oportunidades e com mais sentido de responsabilidade individual e colectiva. Também impõe-se que seja mais sensível à necessidade de uma defesa conjunta face a ameaças como pandemias e alterações climáticas e mais aberto a uma relação de maior harmonia dos homens com o planeta e com os outros seres vivos. Para isso os melhores anjos da nossa natureza terão que sair vencedores.
À partida não se vê qualquer garantia nesse sentido. Perante a pandemia, a postura da generalidade dos países tem sido de uma resposta para dentro, fechando fronteiras e chegando ao ponto de proibir exportações de material médico e de apoio à luta contra o coronavírus. Acusações mútuas são feitas em relação à origem da epidemia e tensões xenófobas desenvolvem-se rapidamente na presença de casos importados. Relutância dos mais poderosos tanto a nível global como de entidades como a União Europeia dificultam acções de resgate dos países mais frágeis perante o que alguns já chamaram do maior desastre económico desde a grande depressão dos anos trinta do século passado. Mesmo a cooperação no quadro das organizações multilaterais como a OMS tem sido marcada por disputas que não ajudam na mobilização dos meios e interferem com a eficácia de uma luta que para ser vitoriosa precisa da cooperação de todos.
É verdade que já há iniciativas do FMI e do Banco Mundial para apoio financeiro dirigido aos países mais pobres e aos emergentes e que há também um forte movimento no sentido da perdão da dívida externa dos países africanos. Consensos em como agir, porém, não são fáceis quando se sabe, por exemplo, que o Congresso americano tem que dar luz verde ao FMI e à China terá concordar com os termos da perdão da dívida. Mesmo na União Europeia discute-se arduamente como proceder para ajudar os países mais afectados pela pandemia por forma a que os países do Norte não se sintam sobrecarregados pelos problemas do Sul. Cooperações mais pacíficas acontecem no domínio da investigação do coronavírus e de possíveis vias para o tratamento da covid-19. Outras ainda, mas já não despidas de disputas, intrigas e jogadas pouco claras envolvendo empresas farmacêuticas, focalizam na procura de uma vacina que efectivamente pudesse pôr fim à pandemia. Em todas essas interacções é visível a luta entre, por um lado, as melhores intenções de contribuir para se encontrar uma solução para a pandemia e mitigar os seus efeitos económico e sociais e, por outro, os interesses mais rasteiros com destaque para o lucro e o orgulho nacional.
Em Cabo Verde, assim como na generalidade dos países em desenvolvimento e com grande dependência da generosidade externa, a nova realidade que irá emergir no pós-covid vai colocar desafios de outra natureza, mas não menos difíceis. Já se sabe que no âmbito da crise o Estado voltou a ganhar protagonismo com os seus programas de apoio às populações e às empresas. Na perspectiva do crescimento desse protagonismo com o aumento da ajuda internacional e a diminuição esperada do contributo do sector privado devido à quebra no turismo e na procura externa de bens e serviços, a tendência vai ser de aumento da dependência do Estado. Ficará a dever bastante da capacidade e da vontade dos governantes e das autoridades evitar que o actual momento de vulnerabilidade das populações se torne instrumental no resgate da mentalidade assistencialista que todos dizem repudiar.
Os muitos anos de reciclagem da ajuda externa deixou hábitos enraizados que se manifestam tanto na corrida para abocanhar recursos como na facilitação do acesso aos mesmos para exercer poder, assegurar lealdades e obter ganhos eleitorais. Corre-se o risco de reforçar tais hábitos se, numa situação em que realmente as pessoas precisam de ajuda, houver desvio do objectivo de promover mais autonomia e responsabilidade individual para obtenção de ganhos partidários de curto prazo. E pode contribuir para isso tanto as entidades que têm os meios para dar como também os concorrentes que alimentam reivindicações muitas vezes irrazoáveis só para granjear favor e deixar as autoridades em situação difícil. Vai depender em muito dos “melhores anjos” que souberem mobilizar para que não se sucumba mais uma vez à tentação do assistencialismo, condenando as populações à precariedade e à vulnerabilidade que numa situação de crise como a actualmente vivida se revela de forma tão gritante.
Cerca de um trilhão de dólares em ajuda externa foi concedida à Africa subsaariana nas últimas cinco décadas. A situação actual desses países deixa entender que todos esses recursos não serviram de muito para evitar a situação de pobreza das populações que agora directa ou indirectamente por causa da pandemia da covid-19 vai-se aprofundar ainda mais. Com o nobre propósito de ajudar os países africanos e outros a resistir ao coronavírus certamente que mais ajuda vai ser canalizada e algum perdão da dívida externa vai-se verificar. Seria de esperar que desta vez os fundos canalizados para esses países não aumentassem a dependência das populações e, pelo contrário, o seu impacto se revelasse à altura do justamente celebrado Plano Marshall do pós-guerra na Europa. Que se soltem “os melhores anjos da nossa natureza” para que se consiga tal desiderato.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 964 de 20 de Maio de 2020.