Um ano a conviver com a Covid-19 devia ser momento de uma reflexão profunda de como se encarou a pandemia, de como as pessoas se adaptaram às exigências dos novos tempos e de como as políticas públicas e o Estado mudaram para responder aos novos desafios.
Em todo o mundo reflexões dessa natureza têm sido feitas pelos mais diversos sectores da sociedade envolvendo personalidades das mais diferentes áreas, incluindo cientistas, políticos, operadores económicos, agentes culturais, entidades religiosas e activistas sociais. Em Cabo Verde, infelizmente reflexões sobre a matéria não abundam, prefere-se ficar quase sempre pelos comunicados dos números diários de casos acompanhados de análises da evolução da doença muitas vezes a contragosto, quando instados por jornalistas. Da parte das autoridades, nota-se não poucas vezes uma certa irritação se não hostilidade sempre que opiniões não oficiais são manifestadas sobre os dados da pandemia e que questionamentos são feitos quanto à condução da luta contra o vírus mesmo quando vêm de profissionais com experiência na área da saúde.
É mais que provável que a convivência com a Covid-19 vai durar de uma forma ou outra por vários anos. A grande questão é se se pode ir ultrapassando as dificuldades colocadas pela pandemia sem uma efectiva mobilização de todos para a combater. É verdade que se pode retirar erradas conclusões do que se passou até agora e concluir que se pode continuar a fazer o mesmo sem riscos futuros de problemas maiores em termos de saúde pública, do impacto sócio económico e dos efeitos a prazo na qualidade de vida das pessoas. A tentação é grande para manter a atitude, sempre que há crises sejam elas secas, furacões ou epidemias, de mobilizar ajuda externa e dar continuidade a programas que o tempo tem demonstrado que permitem sobrevivência no dia-a-dia, mas a prazo não diminuem as vulnerabilidades das populações e a precariedade na vida das pessoas.
De facto, passou um ano e não houve pressão sobre o sistema de saúde que pudesse ameaçar colapso. As mortes pela Covid-19 ficaram sempre aquém do 1% dos casos identificados e não foram traumáticas a ponto de forçar reflexão e mudanças na postura das pessoas. A população em grande medida acatou as recomendações das autoridades quanto ao distanciamento social e em particular quanto ao uso de máscaras o que eventualmente veio a revelar-se a grande medida para a contenção da velocidade de transmissão do vírus. O impacto do desemprego massivo causado pelo coronavírus foi amortecido com programas de lay-off para os trabalhadores privados, com rendimento social assegurado a muitos operadores informais e com vários programas de suporte às famílias vulneráveis. Nesse sentido também contribuíram as moratórias nos pagamentos bancários, as rendas de habitações sociais perdoadas ou diminuídas e a construção civil alimentada pelo Estado, pelos municípios e também por privados. As remessas de emigrantes mantiveram-se no seu papel fulcral de ser a grande safety net, a rede que ampara muitas famílias em momentos de necessidade.
Pode bem acontecer que alguém venha dizer que se num primeiro ano conseguiu-se isso seguindo um certo caminho e recorrendo a uma determinada orientação por que não continuar na mesma senda num segundo ou terceiro ano ou durante todo o tempo que durar a pandemia. A grande diferença é que no caso da pandemia da covid-19 todos os países sofrem e endividam-se e vão levar algum tempo para se recuperarem e conseguirem ser generosos com os outros. Caso para dizer que com a pandemia o mundo mudou e o egoísmo das nações nem sempre será equilibrado pelo espírito altruísta manifestado noutros tempos. Não é pois razoável contar com a repetição da generosidade, sem perceber que mesmo se mantendo será cada vez menor o seu impacto sobre a economia, face ao acumular da dívida pública e as dificuldades reais em avançar com uma retoma robusta e sustentável. Claro que perceber e assumir isso seria uma demostração de que algo se entendeu da pandemia e que convém mudar em muita coisa para se estar preparado na próxima vez, porque haverá sempre uma próxima vez.
A chegada das vacinas para a Covid-19 antes que do que se supunha como tempo necessário para desenvolver uma vacina eficaz pode levar muitos a pensar que é possível ou mesmo desejável continuar a fazer o mesmo e esperar que as coisas mudem. Não se faz por compreender que os sacrifícios de ontem não foram só para evitar o colapso do sistema de saúde e conter o número de mortos como também para se construir uma resposta em termos de imunidade de grupo. A proximidade das eleições com o ciclo eleitoral iniciado com as eleições autárquicas de Outubro e seguidas pelas legislativas em Abril e as presidenciais de Outubro não ajuda a fugir desta tentação perigosa.
Muito pelo contrário, a excessiva politização agora exacerbada em tempo de eleições só vai empobrecer ainda mais o discurso político, polarizar opiniões, açambarcar e diluir todo o pensamento, criatividade e iniciativa das pessoas na contenda para chegar ao poder. Até as vacinas não escapam a essa politização primária com a agravante dos protagonistas fingirem não perceber que a desconfiança lançada contra as vacinas torna as pessoas renitentes em as aceitar. Com isso é a saúde das pessoas que são colocadas em perigo ou vidas que terminam antes do que devia ser a “sua hora”. Ao insistir nesse caminho dificilmente se deixa espaço para a reflexão plural dos problemas, para a mobilização das energias e para o espírito de cooperação que, alimentando a confiança entre as pessoas, constitui a base a partir da qual se aumenta o capital social necessário para a prosperidade individual, familiar e colectiva.
Com a pandemia muitos países estão a mudar. Há dias os Estado Unidos aprovaram um plano de ajuda às pessoas e à economia no valor de 1,9 triliões de dólares. Somando esse novo estímulo aos outros concedidos durante este ano de covid, como nota o colunista do New York Times David Brooks, chega-se ao valor de 5,5 triliões de dólares gastos com a pandemia, uma quantia muito superior aos 4,8 triliões gastos durante a segunda guerra mundial. Para um país que até recentemente acreditava em governos pequenos e não muito intervencionistas em matéria de luta contra desigualdades diversas é uma inflexão de políticas e do papel do Estado de tal forma transformacional que alguns já a apontam como igual ou superior ao do New Deal de Franklin Roosevelt. A Europa vai provavelmente seguir passos similares assim como outros países emergentes para fazer face aos desafios que o coronavírus irá coloca a todos ainda por alguns anos. Cabo Verde não pode, nem deve ser excepção. Período eleitoral não é desculpa. Muito pelo contrário.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1007 de 17 de Março de 2021.