Com os resultados surpreendentes das eleições brasileiras no dia 30 de Outubro, seguidas das americanas a 9 de Novembro, ouviu-se, no entender de muitos observadores, o quebrar da onda de populismo que há anos tem posto em causa os valores liberais e até ameaçado de morte as democracias.
Bolsonaro e Trump são as duas personalidades cujas vitórias eleitorais em países com peso e influência global tinham tornado plausível a ideia de inverter o curso das democracias e caminhar para autocracias eleitorais. As derrotas por eles sofridas nas eleições referidas necessariamente irão levar a rever o quão longe poderão ir outros movimentos de inspiração populista que vem tendo algum grau de sucesso em países como Hungria, Itália, Polónia e Israel. A verdade é que o ambiente propício para essa forma de entender e fazer política vai continuar a existir e para as democracias particularmente as mais recentes ou ainda pouco consolidadas a questão que se coloca é como atenuar ou neutralizar os seus componentes e, quando isso não for possível, como sobreviver às investidas.
Da experiência do populismo neste século, e em particular nos últimos dez anos, se pode provavelmente dizer que já se viu o “filme” completo: de como se mobilizam paixões no eleitorado servindo-se do nacionalismo, do medo e do ressentimento para chegar ao poder e, como a partir de lá, se move decididamente para fragilizar as instituições, descredibilizar os médias e o sistema judicial, ao mesmo tempo que é afirmado o poder autocrático do líder. Ao longo de todo o processo o “chefe” aparenta ter impunidade perante tudo e todos. Procura mostrar que pode sobrepor-se à lei e às normas estabelecidas, menorizar o papel tradicional dos partidos e do parlamento e, como se viu nas eleições americanas, até proclamar que não aceita o resultado eleitoral se não lhe for favorável. E essa percepção de impunidade tende a consolidar o suporte dos seus seguidores mesmo quando sinais graves de incompetência na governação com resultados às vezes catastróficos, como aconteceu durante a pandemia da Covid-19 nos Estados Unidos com Trump e no Brasil com Bolsonaro. A pouca diferença nas eleições, apesar de desfavorável para os populistas, dá conta de como a sociedade fica polarizada e o quanto se desviou dos padrões da racionalidade, da civilidade e do diálogo político suportado nos factos.
Nenhuma democracia está livre de derivas populistas, especialmente agora que se vive uma época que alguns já chamam de “policrise” em que as crises se sucedem umas às outras e os seus efeitos, interagindo de forma complexa, criam imprevistos e incertezas. E certamente que Cabo Verde não é excepção. A tentação populista existe e é visível a todos os níveis de governação e do exercício do poder. Poderá ganhar força se, perante a incapacidade de se estabelecer um forte sentido de solidariedade nacional em situação de precariedade geral, for desencadeada uma corrida aos recursos do país em particular os públicos. Quando é assim, tudo, designadamente sentimentos de abandono, ressentimentos anti-elites e frustrações de diversa ordem, pode servir para inflamar paixões e abrir caminho à ascensão de pequenos e grandes autocratas. Mas, como bem demonstram as experiências referidas de populismo, o que finalmente põe algum travão à deriva e evita que desemboque na autocracia é a insistência na aplicação nas regras do jogo democrático, no uso dos pesos e contrapesos do sistema político e na afirmação a todo o tempo do primado da lei.
Mais uma razão para uma acção concertada dos vários actores políticos para se pôr cobro à crise político-institucional existente nos municípios da Praia e de São Vicente. Tanto um como o outro tem câmara municipal com composição plural mas as forças políticas não conseguem entender-se quanto ás regras do jogo democrático quando elas deviam ser claras e suportadas por trinta anos de experiência de poder local democrático no país. Não é à toa que só uma única vez, no ano de 1995 em São Vicente, foram realizadas eleições intercalares para se ultrapassar bloqueios nos órgãos municipais. O sistema de governo local é estável apesar do que comparativamente se pode considerar de poderes excessivos atribuídos ao presidente da câmara e que podem deixar espaço para derivas populistas e autocráticas. De facto, a colegialidade da câmara tende a ser sacrificada a favor do poder do presidente e com ela o equilíbrio de poderes no município. De acordo com a Constituição, artº 234, é a câmara, enquanto órgão executivo colegial, que é responsável perante a Assembleia Municipal.
A Constituição, ao estabelecer no artº 121 que os órgãos de poder político colegiais só deliberam com a presença da maioria dos seus membros reforça a natureza colegial e obriga os membros a um diálogo para garantir que o órgão seja efectivo e representativo dos seus eleitores. Parece daí lógico que o que realmente não se pode ter sob pena de desvirtuar toda a razão de ser do sistema é a deliberação de um único eleito ou de uma minoria de eleitos sobre matérias que são da competência da câmara municipal. No caso do imbróglio à volta do orçamento apresentado à assembleia municipal da Praia é evidente que devia resultar de uma deliberação da câmara, da mesma forma que a proposta de orçamento do Estado só vai para discussão e aprovação no parlamento depois de aprovada no conselho de ministros que é o órgão colegial do governo. A proposta do OE não é do primeiro-ministro nem do ministro de finanças, que o elabora, mas sim do governo. E certamente que não seria pela via de uma lei de finanças locais, como se vem sugerindo, que o legislador iria alterar as competências de um órgão de poder político como é a câmara municipal.
Aliás, não é esse o entendimento que todos os órgãos municipais do país, ao longo das três décadas, têm dos procedimentos a seguir na aprovação dos instrumentos fundamentais do município que são o plano de actividades e o orçamento. Insistir em ir por procedimento que não é usual e aceite configura muito do que se tornou prática entre os populistas nas suas investidas contra as instituições. Em São Vicente e na Praia o conflito com o presidente da câmara aparentemente bloqueou o órgão executivo colegial com uma diferença entre os dois casos. Em São Vicente o presidente não ganhou com uma maioria de vereadores e, in extremis, os outros vereadores podem provocar a perda de quórum do órgão e forçar eleições intercalares para reconfigurar a câmara municipal. Na Praia foi o próprio presidente, aparentemente por falta de diálogo, que acabou com a maioria recebida nas últimas eleições e agora procura esvaziar a câmara das suas competências.
Claro que isso só aconteceria com a conivência da mesa da assembleia municipal e da sua maioria de eleitos e com isso efectivamente colocando todos os poderes no município nas mãos do presidente da câmara. Esse é um resultado que não pode ser visto com complacência por parte de todos os outros poderes que garantem que a constituição é cumprida, as regras do jogo democrático são seguidas e que a legalidade no exercício do poder é respeitada. Se faz escola ao nível local essas acções ostensivas para esvaziar de competências os órgãos eleitos, não dura muito tempo que práticas similares sejam tentadas noutras sedes do poder político.
A dificuldade em reverter situações de atropelo às democracias e suas instituições que as últimas eleições brasileiras e americanas revelaram devia um ser aviso a todos os actores políticos para que, seja na sua actuação directa, seja no processo de nomeação de titulares de cargos públicos, tenham presente a importância crucial para a democracia de se ter funcional e efectivo o sistema de pesos e contrapesos previsto na constituição e nas leis.
Humberto Cardoso
Texto publicado originalmente na edição nº1094 do Expresso das Ilhas de 16 de Novembro