quarta-feira, novembro 17, 2010

Rasgar a Nação

O candidato Manuel Inocêncio tem sido questionado tanto por jornalistas em Cabo Verde como em Portugal sobre o que pensa do facto de que “há em Cabo Verde, sobretudo em Santiago, a ideia de que um indivíduo de S .Vicente dificilmente conseguirá ser Presidente da República”. È provavelmente das perguntas mais insólitas a serem colocadas numa democracia. Democracias no seu processo de consolidação são muitas vezes confrontadas com desafios de garantir a igualdade dos cidadãos acima das complexidades racial, étnico-linguística, religiosa e de género que caracterizam a nação. Assim, há discussões se uma mulher pode ser presidente dos Estados Unidos, se um turco pode ser ministro na Alemanha ou se um muçulmano pode ser parlamentar em França e se um negro um dia será presidente do Brasil. Discussões sobre o lugar de nascimento parece que só em Cabo Verde já atingiram o nível de quase certezas. Não há registos dessa questão se ter tornado central noutros países, mesmo em países continentais como os Estados Unidos ou o Brasil. Mas aqui tudo leva a crer que “a priori” já se considera que o cargo de Presidente da República não pode ir para pessoas de S.Vicente. O insólito da situação convida a perguntar: só se ficou pelo cargo PR no estabelecimento dessas regras não escritas? E quanto ao do Primeiro-Ministro? Qual a cota de ministros que deve ir para os naturais da ilha A, B, e C? E porque ficar em Ministros? E então, directores gerais, altos funcionários do estado etc. etc.? É a abertura da proverbial caixa de Pandora. Graves consequências para o tecido social e a própria nação poderão advir de dinâmicas fracturantes e de divisão. Quando se entra pela lógica da divisão, com base em artificialismos criados por conveniência de poder, dificilmente se consegue parar. O facto é que com todo este exercício deita-se pela janela fora o que se poderia chamar do “excepcionalismo” caboverdiano”: uma nação nascida dentro de um império colonial sem a herança das divisões raciais, étnicas e linguísticas que marcaram a emergência de muitas outras e sem os sinais visíveis de vitimização e de resignação que constituem entraves endógenos à vitória decisiva sobre a pobreza e subdesenvolvimento.

terça-feira, novembro 16, 2010

Comparação de décadas: um exemplo de desonestidade

Poucos caem no exercício fútil de comparar, em termos de realização, maturidade e conhecimentos, as suas décadas de existência. Ninguém contrapõe os seus vinte anos com os trinta ou quarenta. Muito menos os anos de adolescência, de mudanças fundamentais, com os anos posteriores. Esses anos são irrepetíveis nos seus desafios e oportunidades. O que se consegue fazer depois na vida, depende muito de como se enfrentou os desafios e de como as oportunidades foram tomadas e assumidas. Se comparações do género não fazem muito sentido na vida de uma pessoa, muito menos o fazem na vida das nações. Na década de noventa Cabo Verde viveu momentos únicos da sua história. Integrou conjuntamente com outros povos, noutros continentes, o movimento universal que derrubou ditaduras, instituiu democracias, libertou a iniciativa privada e deu um outro impulso à globalização e à unificação da economia mundial. Ficaram marcas profundas. Os anos e décadas que vieram e virão depois só podem construir sobre os caminhos que então foram rasgados. Os vários ciclos de governação são avaliados pelo povo, não pela comparação com os tempos do começo, mas pela capacidade de realizar os sonhos, de alargar os horizontes e de dar cumprimento às promessas que a erupção do povo na liberdade e na democracia trouxe à superfície. Por isso não há nada mais patético do que a insistência do governo do Paicv em comparar kilómetros de asfalto, número de universidades, aeroportos etc., com a década da entrada na democracia, particularmente quando falha em capitalizar sobre as energias soltas pela liberdade dos indivíduos, pelo impulso à iniciativa privada e pela liberalização das relações económicas com o mundo. Os níveis de desemprego e o crescimento médio anémico desta legislatura não deixam quaisquer dúvidas quanto à incapacidade do governo em colocar o país à altura do seu potencial. E não é certamente obras feitas no fim do mandato, com base na dívida contraída no exterior, que vão substituir pelo que é a percepção geral que não se focou o país na criação de riqueza, não se investiu adequadamente no capital humano e não se poupou o suficiente. Novas infraestruturas só contribuem para elevar o potencial do País, para criar emprego e para reforçar o tecido empresarial nacional se demonstrarem que foram de encontro às prioridades reais. De outra forma são utilizadas deficientemente e no pior dos cenários revelam-se como autenticos elefantes brancos. Em qualquer dos casos têm que ser pagos.

domingo, novembro 14, 2010

Candidatos acima da Lei



Manuel Inocêncio, Ministro de Estado das Infraestruturas e Transportes, anunciou numa entrevista ao jornal "asemana" que é candidato a Presidente da República. A primeira coisa que potenciais eleitores esperam do candidato a PR é que ele dê confiança que cumprirá o juramento no acto de posse “de cumprir e fazer cumprir a Constituição, observar as leis”. Em matéria de cumprimento de leis, o Eng. Inocêncio logo na entrevista deu um sinal complicado. Quando questionado se ia manter-se no cargo de ministro, respondeu que sim, que vai ficar até o final deste ciclo. Passou literalmente por cima do nº2 do artigo 383º do Código Eleitoral que diz: nenhum candidato pode exercer cargo de titular de órgão de soberania a partir do anúncio público da sua candidatura”. E justificou-se: “Eu não sou formalmente candidato à Presidência da República, mas tenho, sim, uma intenção. (…) não vejo nenhum problema em continuar no governo”. A interpretação do ministro chama atenção porque não podia ser mais conveniente para quem a subscreve. Permite aos titulares dos órgãos de soberania avançar, durante meses a fio, com a candidatura na posse de todos os privilégios do cargo. Precisamente o que a norma referida pretende impedir. O Tribunal Constitucional no acórdão nº 11/2000 de 4 de Dezembro deixou claro que o referido nº2 do artigo 383º visa separar a condição de titular de cargo público da de candidato, impedindo que certas funções públicas com visibilidade, protagonismo e capacidade de influenciação pudessem ser usadas em benefício do seu titular, colocando-o em situação de vantagem em relação aos demais candidatos. O Ministro, como aliás outros candidatos com cargos de titular de órgãos de soberania, ostensivamente ignoram a letra da lei e o acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que fixou jurisprudência constitucional nesta matéria. O TC, até para não deixar quaiquer dúvidas, no acórdão, distingue entre o nº 2 do 383º, que dita a suspensão a partir do anúncio público de candidatura para os titulares de órgão de soberania, e o nº 3, só obriga à suspensão após a apresentação formal da candidatura de titulares de certos cargos públicos. Escolhem uma outra interpretação da lei para continuarem a usufruir dos recursos do Estado e dos privilégios do cargo na promoção da candidatura, como têm feito, meses a fio, desde ano passado.E vêm todos do mesmo partido que ainda, cinicamente, ataca o Dr. Carlos Veiga por ter cumprido a lei no ano 2000.

sexta-feira, novembro 12, 2010

Para "o inglês ver"


Desde do grande choque do ano passa­do que colocou Cabo Verde no 146º lugar entre 189 países, no que toca a facilidade de fazer negócios, Doing Business, o Governo tem-se esmerado em actos de cosmética para melhorar a imagem. Os dados do Índice de Competitividade, colocando Cabo Verde atrás de 17 países africanos, mostraram como a propalada agenda de transformação ficou encalha­da algures nas omissões e falta de visão que tem caracterizado as seis equipas económicas dos dez anos de Governo do Paicv.. Adepto de manipulação de imagens, o governo esforçou-se por burilar a imagem desses indicadores internacionais. Foi aparentemente bem sucedido no índice de liberdade de imprensa, a partir do momento que a presidente da associação de jornalistas preencheu o questionário distribuído pelos Repórteres Sem Fronteiraa. O único problema é que isso tudo soou a falso. Cabo Verde apresentou-se muito acima de varias democracias como Portugal, Espanha e Itália em matéria de liberdade de imprensa, no preciso momento em que todos vêem que o país está submerso num mar de propaganda governamental. O es­forço empreendido para realizar o feito de Rwanda do ano passado no Doing Business 2009 não resultou. Cabo Verde só subiu 10 pontos diferentemente do Rwanda que tinha subido 50 pontos. A atrasar o país ficou o "ranking" de 132º na protecção dos investidores, de 152 em obter crédito, e do último lugar em terminar um negócio. O governo, sempre procurando polir a imagem, sem muita preocupação com o conteúdo, ainda quis introduzir leis, em regime de urgência, na Assembleia Na­cional para melhorar os índices do Doing Business. Por isso, é que se teve há dias na A N proposta de lei para a promoção de inves­timentos dirigidos para exportação, uma outra para a internacionalização das empresas nacionais e ainda uma outra para regular o processo de falência. Cosmética de um Governo que , chegado ao fim de dois mandatos, deixa o país numa posição tão baixa, seja no que respeita à competitividade, seja na facilidade de fazer negócios. Não é a toa que, enquanto a taxa média mundial para o crescimento do Índice de Desenvolvi­mento Humano entre 2000 e 2010 é de 0,89 por cento e é de 1,49% para o grupo de Desenvolvimento Humano médio, Cabo Verde ficou pelos 0,64 por cento. Falhou na criação de empregos e na criação de riquezas que outros brilhan­temente foram bem sucedidos, retirando milhões da pobreza extrema.

quinta-feira, novembro 11, 2010

Enganar para reinar

No discurso de revolta e indignação de 2 de Novembro, o Primeiro-Ministro José Maria Neves classificou de indecente a promoção de relações internacionais na base de “enganar uns e outros ao mesmo tempo e enganar o povo de Cabo Verde”. A caracterização é tão perfeita que convida a pensar se não lhe sai da alma. Se não é assim que seu Governo e partido sempre entenderam as relações internacionais. A cultura da política PAIGC/ PAICV suporta-se muito no esconder a verdadeira face sob a capa de “pensar com as nossas próprias cabeças”. Diferentemente dos outros movimentos de libertação das PALOP, o PAIGC sempre se negou a rotular-se de "ismos", marxismo, leninismo ou maoismo. Um disfarce, porque, como a história reconhece, a ideologia, os textos do partido, o discurso político e as instituições construídas na Guiné e Cabo Verde após as respectivas independências tinham as marcas da sua origem na herança comunista. Mas um disfarce que serviu bem ao PAIGC particularmente nas suas relações com os sociais-democratas escandinavos e outros partidos de esquerda europeia. No estrangeiro diziam uma coisa, em casa, o partido “pensava com a sua própria cabeça” e implantava regime de partido único, perseguia simples opositores, estatizava a economia, hostilizava o investimento privado, nacional e estrangeiro, e fomentava luta de classes contra as elites. O PAICV na democracia conservou esta praxis com as adaptações exigidas pelo tempos. Já houve tempo em que membros do Governo recitaram para os ouvidos do FMI, do Banco Mundial e de outras organizações os termos do consenso de Washington. O Primeiro-Ministro fala abertamente das suas leituras de Amartya Sen, Francis Fukuyama, Fareed Zakaria e Thomas Friedman, autores nos antípodas das crenças e das práticas do PAICV. Nos resultados da governação desta década vêem-se porém as consequências do PAICV a deixar os seus instintos vir à tona mesmo que camuflada dum linguajar que, a ouvidos desprevenidos, poderia parecer o mais liberal ou mesmo neoliberal: assim, por exemplo, vêem-se: 1º, no deserto em que se transformou a zona industrial do Mindelo com perdas de milhares de postos de trabalho directos e indirectos; 2º, no turismo que ficou aquém do que se projectou porque não promovido e porque não se resolveram problemas como a segurança, energia e água, acessos, transporte inter-ilhas, ambiente económico, habitação, saúde etc.; 3º, na imobiliária turística que se atrasou e acabou por se perder com a insegurança jurídica no registo de propriedade, com a ganância do Estado, com lutas do Governo com os municípios e com os obstáculos postos pela administração central; 4º, na Electra que foi nacionalizada, afundando-se em dívidas, e a TACV que não foi privatizada, também coberta de dívidas;5º, no hub portuário e aeroportuário que não teve o sucesso prometido; 6º, nos centros financeiros offshore desmantelados na sequência do escândalo do BPN/Banco Insular; 7º, nas tecnologias de informação e comunicação que falharam em abrir ao país uma nova avenida de prestação de serviços internos e para exportação. É um Cabo Verde enganado que vai iniciar uma nova década com défices orçamental e de balança de contas correntes excessivos e com uma dívida pública ultrapassando os limites aceitáveis. Sem que vislumbre ainda os investimentos privados criadores de emprego que deviam seguir aos investimentos públicos em infraestruturas e os justificariam. Ao apostar na continuidade, no “mais do mesmo” o PAICV mostra-se disposto a continuar nos jogos de engano de tudo e de todos que caracterizaram a sua actuação política.

quarta-feira, novembro 10, 2010

Tenebroso

O PAICV em S.Vicente, a 4 de Outubro veio a público num dos seus rotineiros e sistemáticos ataques à Câmara de S.Vicente. Desta vez não foi para apresentar mais indícios de corrupção ou anunciar a ida do coordenador local ao Ministério Público para entregar “provas”. Foi para pedir a substituição da Presidente, Dra. Isaura Gomes. Dias depois, a 23 de Outubro, a Ministra Sara Lopes, justificando-se com “notícias vindas a público”ordenou uma inspecção administrativa “para se inteirar quantas vezes ocorreu a substituição da titular do cargo e se foi feita nos termos da lei em vigor”. Pela sequência de eventos sabe-se qual a origem das “notícias”. E isso é muito preocupante. Até parece que o partido que suporta o governo faz denúncias e o governo lança instituições do Estado no encalço dos alvos do ataque da estrutura partidária. Em Abril último, também se assistiu a uma coincidência de acções alarmante e perigosa. Enquanto se verificava a operação policial na Câmara de S Vicente membros locais do PAICV, em conferência de imprensa, faziam mais uma das suas investidas. Ninguém nega hoje que, em S.Vicente o PAICV e o Governo estão juntos numa ofensiva conjunta para colocar a ilha em posição de ser arrebatada nas próximas autárquicas. Tácticas semelhantes já tinham sido aplicadas noutros concelhos, com sucesso nalguns casos como o do Paul e da Ribeira Brava de S.Nicolau. Em todas essas situações, para isolar as câmaras, recorreram a toda a espécie de truques, deslealdades institucionais e conflitos abertos com as câmaras a partir dos serviços desconcentrados e centrais do Estado. No caso de S. Vicente tem-se feito da pessoa da presidente de câmara o alvo principal. A guerrilha foi montada e logo após as eleições iniciaram-se os ataques. O governo entrementes procedeu ao bloqueio do registo de terrenos cortando receitas aos municípios particularmente aos de S.Vicente , Porto Novo, Sal, Boavista e Maio. A insegurança jurídica provocada pelas restrições impostas matou no ovo muitos projectos. Dos mais de um bilhão de dólares de projectos prometidos nenhum deles saiu do papel. E o Governo, juntamente com a sua ala partidária, tem o desplante de culpabilizar a Câmara pelo que aconteceu. Bloqueia a ilha com a sua falta de visão, a falta de vontade e o interesse partidário mesquinho e vem lançar as culpas pela crise da ilha nas ausências da Presidente. É o cúmulo da hipocrisia por parte de quem deliberadamente tem criado um ambiente extremamente tenso de relações institucionais, pontuado por acusações descabidas e por medidas desproporcionais como foi a acção policial na Câmara de s. Vicente e a apreensão, por seis meses, de computadores e livros de averbamento do município.

terça-feira, novembro 09, 2010

É só ligeirezas?

O Governo decidiu por Resolução do Conselho de Ministros de 28 de Outubro fazer do dia 6 de Novembro o Dia Nacional de Defesa. Deixa muitas dúvidas a opção do Governo em dar forma de resolução a esse acto que obriga órgãos de soberania, instituições do Estado e os cidadãos no “promover e garantir o engajamento dos cabo-verdianos nas questões de Defesa Nacional e na assumpção dos deveres e responsabilidades do cidadão para com o colectivo”. E que ainda visa “reforçar o elo entre as instituições de defesa e a sociedade civil e promover a cidadania, os valores éticos e o culto do patriotismo”. Optando pela forma de resolução o Governo excluiu o Presidente da República de participar na criação de uma data nacional visto que o PR só promulga decretos, decretos legislativos e decretos leis do governo. O caso é mais grave tratando-se de uma data concernente à defesa. Não leva em devida consideração a qualidade do PR enquanto comandante supremo das forças armadas e as competências que constitucionalmente tem sobre matérias de defesa nacional. A Assembleia Nacional também foi deixada de lado. O que se pretende com o Dia Nacional de Defesa cai no âmbito do artigo 249 da Constituição que estabelece a relação dos cidadãos com a Defesa Nacional via serviço militar e cívico, a ser desenvolvido e regulamentado por lei (alínea s) do artigo 177ª da CR).Tanto em Portugal como na França o Dia de Defesa Nacional foi instituído por lei que tem como objecto o cumprimento do serviço militar pelos cidadãos nacionais. Tudo indica que a data foi comemorada pela primeira vez sem que, ao menos, a Resolução tivesse sido publicada no Boletim Oficial. E segundo a alínea d do artigo 269º da CR, resoluções do Governo têm que ser publicadas para terem eficácia jurídica. Ligeirezas.

domingo, novembro 07, 2010

O silêncio do Governo

No relatório entregue à Assembleia Nacional, o Procurador Geral da República revelou que tem sido alvo de “sucessivas investidas, ilegais e desproporcionais de elementos da Policial Criminal”. As razões para isso, segundo ele, provêm do facto de ter proferido despacho "abrindo a correspondente instrução sobre o acto de cerco ao Palácio de Justiça do Tribunal da Comarca da Praia por elementos da Polícia Nacional, sequestrando magistrados e funcionários".

O Governo no Parlamento, quando confrontado com o conteúdo do relatório, remeteu-se ao silêncio. O mesmo silêncio que provavelmente tem presenteado o PGR sempre que colocou o problema. Pelo relatório, depreende-se que não é a primeira vez que aflora a questão, considerando que tem sido vítima de sucessivas investidas.

A verdade porém é que o Governo não pode dar-se ao luxo de não se pronunciar, nem agir em relação a uma situação delicada como esta. Se o órgão constitucional com funções de defesa da legalidade e dos direitos fundamentais não está a salvo de investidas ilegais de elementos da polícia, que garantias terão os cidadãos comuns de que os seus não serão atropelados na primeira oportunidade. Perante o silêncio persistente e teimoso do governo, impõe-se a intervenção dos outros órgãos de soberania para normalizar a situação.

Muitos cidadãos, de vários pontos do território nacional, têm vindo a público denunciar o que consideram ser abuso de poder de elementos da polícia. O Governo tem respondido com o mesmo silêncio com que colhe as revelações do PGR. O resultado é que situações de abuso continuam a registar-se, criando má relação entre a polícia e a população com prejuízos evidentes na sua capacidade de manter a ordem pública e combater o crime.

Prejuízos similares também acontecem devido à má relação entre o Ministério Público e a Polícia Nacional. No relatório do Ministério Público, o PGR chama a atenção para situações de detenção de cidadãos em que a polícia só os apresenta ao Ministério Público poucos minutos para completar as 48 horas limite. Também se refere às investigações feitas pela Polícia Nacional que numa percentagem preocupante traduzem-se em provas nulas.

É evidente que o Governo não pode ficar calado por mais tempo. Os direitos do cidadãos têm que ser garantidos. A integridade do Ministério Público e a dignidade do PGR devem ser salvaguardadas. O aumento da eficácia da polícia vai depender da cooperação que obtiver da população, do nível de relacionamento que estabelecer com o Ministério Píblico e da imagem que projectar de uma instituição sensível à crítica e capaz de rever os procedimentos para melhor servir o público.

* Editorial do jornal "Expresso das ilhas" de 3 de Novembro de 2010

quinta-feira, novembro 04, 2010

Arte de fingir

Segundo o governo.cv o Primeiro-Ministro José Maria Neves, na inauguração da central fotovoltaica deu “um grito de revolta contra o jogo da oposição”. Grande surpresa. Gritos de revolta do Dr José Maria Neves contra a Oposição ouvem-se desde dos primeiros dias do seu mandato como Primeiro Ministro, em 2001. Por isso, o mise-en-scène da terça feira é parte do teatro que o PAICV faz constantemente para justificar que de facto não tem uso para a Oposição. E como confunde-se com o País, não consegue descortinar que ganhos a existência de partidos de oposição traz a Cabo Verde: A oposição é negativa, bloqueia, atrasa as coisas, não defende os interesses do país, tem associações criminosas, é contra a ajuda de países estrangeiros etc, etc. Aliás, na lógica dele, Cabo Verde não ganha com qualquer crítica. Nem com críticas a contractos assinados que não criam empregos e não desenvolvem empresas nacionais. Nem com outras, por exemplo, dirigidas à qualidade do ensino. Também o Primeiro-Ministro tinha ficado indignado com críticas que pais, professores, alunos, investidores, empresários e toda a sociedade fazem ao sistema ensino. Na televisão todos ouviram seu grito de revolta: Quem diz que o ensino em Cabo Verde não tem qualidade está a ofender a classe docente. Ontem era a classe docente. Hoje é Portugal que está a ser ofendido. Amanhã será outra pessoa, entidade ou país porque alguém questiona algo que se está a fazer a pensar fazer. O Governo continua no seu jogo de desresponsabilização. Pressionado, acusa, foge e esconde-se por detrás dos que, para seu proveito, põe o rótulo de ofendidos, com o único objecto de escapar de ser “chamado à pedra” pelo que faz.

quarta-feira, novembro 03, 2010

Vale tudo

O Partido do Governo saiu em campo a acusar o partido da Oposição, o MpD, de fazer pré-campanha rica. Em conferência de imprensa e em várias declarações públicas dirigentes, membros do Governo e deputados têm lançado dúvidas sobre as origens do financiamento do MpD. E tem-se ficado por aí. Ninguém deu o passo lógico e responsável de pedir a intervenção do Ministério Público e de apresentar ao Procurador-Geral da República indícios de eventuais crimes cometidos. Mas não é a primeira vez. Já em situações idênticas de campanha eleitoral o PAICV tinha feito o mesmo. Espalha rumores e levanta suspeições e depois não assume ou age em consequência. Os dois casos mais recentes e flagrantes foram as acusações feitas pelo Primeiro-Ministro no dia das eleições de 2006 e pelo candidato do PAICV na Praia nas autárquicas de 2008. Não é admissível que dirigentes do Estado, no puro intuito de tirar dividendos políticos, deixem passar a ideia de impunidade, de que se pode apontar o dedo a pessoas e instituições repetidamente sem que nada aconteça. Ou então a ideia perniciosa de que o Estado nada pode fazer para garantir a legalidade e combater crimes de difamação e outros quando os denunciantes e os eventuais prevaricadores são figuras de partidos políticos ou os próprios partidos políticos. Com esse “chove, não molha” o PAICV, para proveito próprio, reforça a ideia do “vale tudo na política”: Assim, vale acusar outros de financiamentos obscuros para fazer campanha com outdoors, como vale pagar outdoors com dinheiro do Estado para responder aos adversários políticos. Da mesma forma, vale colocar-se nos bicos dos pés e considerar imorais os gastos da oposição e, ao mesmo tempo, recorrer sem qualquer ética, a viagens incessantes pelo país e a emigração e a publi-reportagens e anúncios propagandísticos nas custas de todos os contribuintes caboverdianos

segunda-feira, novembro 01, 2010

Não à intolerância

"Posso discordar do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo". Esta frase de Voltaire cristaliza a essência da mãe das liberdades: a liberdade de expressão e de informação. Expressa há mais de trezentos por este filósofo francês, continua sempre actual. Há que a repetir vezes sem conta para conter tentações de poder absoluto e para relembrar a todos o quanto é que custou a conquista da liberdade.

Mesmo nas democracias, esse direito fundamental não está salvo de atropelos. Todos os que detêm o poder estão sujeitos, num momento ou outro, a cair na tentação de o limitar. Em presença de pretensões hegemónicas por parte de grupos políticos ou de outra natureza a pressão para calar o adversário, o descrente ou simplesmente o homem comum pode atingir níveis perigosos de intolerância. Compreendendo o perigo que isso representa, Thomas Jefferson,um dos pais fundadores do constitucionalismo americano, disse: "Se tivesse que decidir se devemos ter governo sem jornais ou jornais sem governo, eu não vacilaria um instante em preferir o último".

Na semana passada o PAICV, em conferência de imprensa, lançou um dos ataques abertos que rotineiramente presenteia este semanário. As razões invocadas foram duas peças de opinião devidamente assinadas e localizadas nas secções opinativas do jornal. A substância da acusação é que o jornal é pertença e instrumento do maior partido da oposição.

A investida do partido que suporta o Governo deixa transparecer dificuldades em aceitar a expressão livre do pensamento dos cidadãos e intolerância face ao pluralismo da imprensa. O ataque violento e directo a um jornal citado pelo seu nome tem um elemento intimidatório inadmissível. Vindo de quem, directamente e através dos seus dirigentes e entidades próximas, criou ou patrocinou mais de dois terços dos jornais publicados em Cabo Verde nos 35 anos de independência manifesta um nível de intolerância sem paralelo.

Curiosamente as acusações vieram no dia após os Repórteres Sem Fronteiraterem colocado Cabo Verde a par com o Mali e o Ghana no 26º lugar do Índice de Liberdade de Imprensa, um lugar muito à frente de Portugal, Espanha, Itália e muitos outros países. Facto que não só encheu de regozijo o Governo como, parece, fez reviver os seus sonhos de eliminar o Expresso das Ilhas. E com a sua supressão, diminuir o pluralismo que os cabo-verdianos já vêem em perigo de ser levado na avalanche de propaganda, que varre a rádio e a televisão, e no culto da paranóia na política dos que andam na caça de sabotadores na Electra e no aparelho do Estado.

Mas o Expresso da Ilhas vai continuar a servir os cabo-verdianos e a democracia. Todas as semanas com a sua presença nas bancas irá renovar o seu contributo modesto para que a liberdade de expressão e o direito de informar, de ser informado e de acesso à informação esteja assegurado para todos os cabo-verdianos.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 27 de Outubro de 2010.

* O cartoon é do Moisés. Foi um dos alvos citados pelo PAICV na conferência de imprensa.


sábado, outubro 30, 2010

Falsidades marcam discurso político

Durante toda esta semana o PAICV, no Governo e no grupo parlamentar, tem feito campanha permanente de desinformação acerca do Debate sobre a Situação da Justiça. O sr Primeiro-Ministro e o Líder do Grupo Parlamentar em especial têm sido os protagonistas nessa campanha. Campanha essa que não visa só descredibilizar a oposição. É também para lançar o descrédito sobre o parlamento e a democracia parlamentar. O Debate sobre a Situação da Justiça é consagrada pela constituição no art 181 alínea d) como primeiro acto do parlamento no início de cada sessão legislativa que começa a 1 de Outubro. Para isso, o Conselho Superior de Magistratura Judicial (CSMJ) deve apresentar o seu relatório até 31 de Julho, diz o regimento da Assembleia Nacional. Com o relatório do CSMJ entre mãos, e após a revisão constitucional de 2010 também com o relatório do Conselho Superior do Ministério público (CSMP), a a Comissão Especializada dos Assuntos Jurídicos e Constitucionais, deve proceder a audições extensivas de entidades envolvidas no sistema de justiça. O objectivo dessas audições é propiciar ao Plenário da A N informações sobre todos os aspectos que dizem respeito à justiça de forma a que o debate seja mais rico e profícuo. São feitas audições ao Presidente do CSMJ, que também é presidente do Supremo Tribunal, ao Procurador Geral da República, ao Ministro da Justiça, ao Bastonário da Ordem dos Advogados. Já aconteceu que audições de entidades abrangeram directores da Polícia Judiciária, da Polícia Nacional e do Presidente do Sindicato dos Juízes. Neste ano, o último da legislatura, a maioria na Comissão Especializada não quis fazer as audições e decidiu, “à pressa”, fazer um resumo e apresentá-lo ao Plenário. Tão á pressa que não viu que o suposto relatório do Conselho Superior do Ministério Público era afinal o relatório do Procurador Geral da República, como o próprio confirmou no programa Discurso Directo da RCV de segunda-feira, dia 25. Também não verificou que a data de despacho do Presidente da A N era de 20 de Outubro quando o relatório só foi entregue ao presidente no dia 21, quinta-feira. Os atrasos na aprovação da Ordem do Dia têm origem nas irregularidades referidas e no facto do parlamento ter recebido o relatório que não era o mandatado pela Constituição. O aproveitamento político pela maioria das consequências de falhas cometidas pelos seus representantes nos órgãos da Assembleia Nacional permitem legitimamente perguntar se não foram deliberadas. O mesmo padrão de comportamento verificou-se depois quando, no decorrer do debate, o 1º Vice-Presidente, que então presidia a Mesa, interrompeu os trabalhos, dizendo que se continuaria no dia seguinte , em claro atropelo do nº 4 do artigo 238º do Regimento: "O debate sobre a situação da justiça não pode, em caso algum, exceder uma reunião plenária". O MpD reagiu reafirmando a importância de se cumprir o Regimento. O PAICV não só não viu qualquer problema em passar por cima da norma regimental como aproveitou para mais uma vez recitar o refrão de que a oposição não quer debater. O Primeiro-Ministro disse mesmo que o MpD, refugia-se em "questiúnculas políticas para fugir ao debate e ao confronto de ideias sobre a situação do país". Declarações falsas, como facilmente pode-se se verificar. Nas quase três horas de debate na segunda feira, não obstante o pouco tempo da bancada do MpD, intervieram quatro deputados. Do outro lado, com quase o dobro do tempo, participaram no debate três deputados do PAICV e dois membros do Governo, o PM e a Ministra de Justiça. A falsidade, dita tão frontalmente, revela muito de como o PACV vem lidando com a sociedade caboverdiana. Falta a verdade na cara das pessoas e desafia-as a dizer que está a mentir.

quinta-feira, outubro 28, 2010

PGR ressalta tensões entre MP e polícia criminal

O relatório do Ministério Público, apresentado ao parlamento no âmbito do debate sobre a situação da justiça, revelou situações de tensão e mesmo de hostilidade de sectores da polícia criminal (Polícia Nacional e Polícia Judiciária) para com o Ministério Público e o próprio Procurador-Geral da República. Segundo o relatório, ao Ministério Público são dados pela Constituição e pela Lei poderes para “avaliar se a denúncia constitui ou não uma notícia de crime e decidir em função disso se é de abrir, ou não, instrução” e também para exercer fiscalização “externa” da actividade policial. O problema é que alguns órgãos de polícia fazem “crítica aberta à acção de fiscalização cometida às autoridades judiciárias, em afirmações que se traduzem numa espécie de desjudicialização ou policialização do processo penal. O ambiente entre o MP e a polícia criminal atingiu o ponto mais baixo no cerco feito ao Tribunal da Praia no dia 12 de Março de 2008 “por um grupo de elementos da Polícia Nacional – de que faziam parte agentes, subchefes e oficiais superiores - …, sequestrando magistrados e funcionários”. A razão era a prisão preventiva de um agente policial que depois de julgado no Tribunal de Instância e no Supremo Tribunal de Justiça foi sentenciado a 16 anos de cadeia por homicídio agravado por motivo fútil. A partir daí, segundo o relatório do MP, o Procurador-Geral da República tem sido sujeito “a sucessivas investidas, ilegais e desproporcionais de elementos da Polícia criminal”. As tensões entre esses órgãos de luta contra o crime têm outras razões designadamente o facto de a "polícia não compreender que quando desempenha a função de coadjuvar as autoridades judiciárias não está, e não pode estar, na dependência do componente membro do Governo". Confrontado como essa questão no Parlamento, a Ministra não se dignou pronunciar. Por aí, logo se percebeu por quê os equívocos persistem. Uma outra razão para as tensões é a falta de formação dos agentes policiais que se manifestam nas deficiências em matéria de direito probatório material e das técnicas de recolha e produção de provas lícitas em processo penal. O resultado é que “as investigações levadas a cabo pela Polícia Nacional traduzem-se numa percentagem preocupante, em provas nulas. Com tamanho desperdício de recursos e com eficácia das acções anti-crime comprometida por causa de hostilidade aberta entre agentes do Estado não estranha a insegurança e a sensação de muitos que Justiça é-lhes denegada. A passividade do Governo, que tem a tutela das polícias, perante o que configura ataques contra o PGR não tem qualificação. O mesmo se poderá dizer da indiferença dos outros órgãos de soberania. Não é aceitável que não se tomem medidas rápidas e decisivas para pôr cobro esta situação e criar um ambiente de cooperação entre instituições-chave do Estado na luta contra o crime e em defesa da legalidade.

quarta-feira, outubro 27, 2010

Prosperidade enganosa?

Inaugurado o Centro de Inspecção e Conservação de Produtos Agrícolas, o Governo anunciou logo um futuro de prosperidade para a ilha de Santo Antão. Segundo o Primeiro-Ministro, Santo Antão já pode contar com os mercados do Sal e da Boavista que já “recebem mais de 350 mil pessoas e em 2013 prevê-se mais de um milhão”. Na ânsia de mostrar resultados, pretendeu esquecer os enormes obstáculos que ainda subsistem. O Centro parece que ainda não dá garantia completa quanto aos mil-pés. Só assim se pode explicar que pelo Decreto-lei 41/2010 de 27 de Setembro se continue a impedir os produtos de Santo Antão de serem enviados para a cidade da Praia, o maior mercado do país. Também não se equaciona o problema de S.Vicente cujos produtos também constam do embargo. Anos atrás, gorou-se um negócio de exportação de flores a partir dessa ilha por causa disso. Resulta daí que produtos vindos do Porto Novo e que se dirigem para outras ilhas, via S.Vicente, podem correr o risco de contaminação. Um outro aspecto é a questão de saber quem vai pagar o condicionamento dos produtos. Os custos acrescidos poderão tornar ainda menos competitivos os produtos de Santo Antão nas ilhas do Sal e Boa Vista onde têm de enfrentar produtos importados directamente do exterior. O turismo nessas ilhas depende muito do sistema all incluse que, por definição, é altamente integrado, abarcando todos os aspectos da operação. Com os turistas chegam produtos já com qualidade e aparência a satisfazer standards elevados de qualidade e apresentação. Competir, nessas condições, não é nada fácil. A penetração dos produtos de Santo Antão vai exigir uma estratégia de comercialização que passe provavelmente pela identificação de nichos de mercado vantajosos. Com ainda muito por fazer, o entusiasmo do Governo mais parece outro exercício do ilusionismo que vem procurando gerir as expectativas da população em período pré eleitoral.

terça-feira, outubro 26, 2010

Justiça: ao sabor das conveniências

A revisão constitucional de Novembro de 1999 introduziu mudanças transformacionais na Justiça. Criou o Tribunal Constitucional (TC) e determinou que o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) fosse por concurso público. Passados dez anos ainda está por ser instalado o TC e por aprovar a lei que define o novo regime de acesso ao tribunal superior judicial. O STJ, agora com sete membros, tem três juízes nomeados por órgãos de poder político. E tudo indica que assim vai-se manter por mais três anos. Pode-se concluir que, no que respeita ao cumprimento do comando constitucional, esta década foi uma década perdida para justiça. Isso não significa que nada se fez no sector. Nem podia ser, visto que fundos públicos foram canalizados para modernizar as estruturas da justiça e promover a formação dos agentes. A cooperação internacional continua activa e é visível nos investimentos feitos no combate à criminalidade organizada e ao narcotráfico. E o processo de adequação da legislação á Constituição ao nível penal e de processo penal foi terminado e aprovados os respectivos códigos. Um novo código civil está em processo de adopção e preparado para entrar em vigor no próximo ano Não obstante todos esses desenvolvimentos, é consenso geral que a justiça não atingiu os resultados desejados. A morosidade na administração da Justiça configura para muitos simples denegação da Justiça. E consequências disso fazem-se sentir ao nível de defesa de direitos, individuais, proprietários e contratuais, na competitividade do país e na manutenção da harmonia e coesão social. Num outro aspecto em que não se conseguiu cumprir os desígnios constitucionais foi em terminar com as nomeações políticas dos juízes com vista ao aprofundamento da independência dos tribunais. A acção do Governo e da maioria, que o suporta, durante toda esta década, tem sido marcada por bloqueios, fugas em frente e golpes de força. Em 2003 e 2008 podia-se ter adequado as estruturas do poder judicial à revisão constitucional de 1999. Nos dois casos o PAICV manobrou e conseguiu que juízes do STJ fossem nomeados por políticos. O pacote de leis da Justiça, apresentado em Outubro de 2008, vinha com a intenção de manter indefinidamente a nomeação de um juiz do STJ pelo Presidente da República. A necessidade de se fazer uma revisão constitucional antes de avançar com essas leis não foi aceite pelo Governo até ter sido forçada pelo MpD. Felizmente, hoje, todos reconhecem a justeza da via seguida. Obstáculos no caminho de um poder judicial independente e autónomo não desapareceram apesar do acordo chegado pelos partidos, em sede de revisão. Na sessão da Assembleia Nacional de Outubro vai ser discutido o pacote de Justiça, mas como bem chamou a atenção o Bastonário da Ordem dos Advogados, faltam “o estatuto do Conselho Superior de Magistratura Judicial, a lei da Autonomia Administrativa e Financeira dos Tribunais e a li das Inspecções Judiciais”. Precisamente, as leis que marcadamente traduzem as alterações feitas na Constituição sobre a independência e autonomia do Poder judicial e que todos, incluindo o Governo, dizem aclamar. O Sr. Presidente da República, na cerimónia do início do novo ano judicial, apelou aos deputados que aprovassem o actual pacote de leis. Esqueceu-se talvez de chamar a atenção dos legisladores para o dever de cumprimento pleno da Constituição, o que obriga a considerar prioridades legislativas na estruturação do novo sistema. E este não é o primeiro caso. Já no domínio da comunicação social viu-se como o Governo e a sua maioria parlamentar ignoraram a criação da Autoridade Independente na revisão constitucional e impuseram novas leis. Na Justiça também parece que não priorizam o enquadramento legal das novas competências do Conselho Superior de Magistratura e a materialização d autonomia administrativa e financeira dos tribunais. As muitas transferências feitas nas secretarias judicias também sugerem acções do Governo em antecipação da passagem da gestão do pessoal administrativo dos tribunais para o CSM. São acções que não abonam da boa fé do Governo e que mostram que tem havido muita distância entre o que se diz e o que se faz em matéria de Justiça. O núcleo de serviços internos do Supremo Tribunal de Justiça, essenciais para a produtividade e qualidade do trabalho do STJ, depois de criados em 2005 só 4 anos depois foram dotados de verbas. Diz-se que se quer fazer e sonegam-se os meios ou age-se para esvaziar de conteúdo o acordado. Por tudo o que foi dito comprova-se que na luta por uma Justiça célere, de qualidade e livre de interferências políticas, esta década foi uma década perdida. O edifício judicial novo só vai poder ser construído a partir do próximo ano, e isso se até lá as outras leis estruturantes forem discutidas e aprovadas. Os Tribunais de Relação vão ter que esperar mais três anos e STJ só vai ter juízes sem o fardo da nomeação política também daqui a três anos. O Governo investiu na Justiça. Mas as suas conveniências políticas impediram-no de o transformar. Os resultados estão aí para todos verem. E dez anos foram perdidos.

segunda-feira, outubro 25, 2010

MCA. Possível ultrapassar espírito de ajuda?

Com grande pompa e circunstância fez-se a inauguração do que se está a chamar de primeira fase das obras do porto da Praia. Inicialmente, fundos do MCA no valor de 53 milhões de dólares foram destinados a colocar o porto numa posição em que poderia manejar com maior eficiência não só os navios que o escalam como os contentores descarregados. Também estaria em melhor posição de servir os seus muitos utentes, porque as operações portuárias seriam garantidas por operadores privados. Bom, chegado ao fim do projecto MCA, a eficiência do porto no manejo de navios não se alterou porque não se construiu o quebra-mar previsto para conter os efeitos da calema e não se aumentou o cais nº1 como tinha ficado assente no acordo assinado com o MCC em Junho de 2005 (pgs. 70-71). Também a privatização nos últimos cinco anos não deu um passo significativo. Para o MCC essa era a condição sine qua non para o sucesso do projecto. Até estipulavam no acordo que não haveria desembolso sem passos visíveis nesse domínio. Inaugurou-se sem o quebra-mar e sem o cais estendido e com a velha ENAPOR na gestão do espaço. Não é à toa que muitos se mostram cépticos quanto aos ganhos reais de tudo isso. O próprio Daniel Yohannes teve que reafirmar no seu discurso que coloca a iniciativa privada no centro de uma estratégia de crescimento. Teve necessidade de fazer isso talvez porque é notório como o programa do MCA acabou por não diferenciar muito dos muitos programas de ajuda com que o Governo já lidou. Inicialmente, o acordo previa gastos directos no valor de 7 milhões de dólares para imprimir uma nova dinâmica ao sector privado nacional. A maior parte foi desviada para as estradas do Governo. Dos 7 milhões só 1,9 milhões foram colados no sector privado. Isto é, nas micro-finanças onde o Governo já sabe como fazer para desenvolver os seus projectos de estimação. Não é à toa também que a questão da privatização das operações portuárias tenha sido adiada sine die. O Governo sabe como contornar pretensões dos estrangeiros em tentar ir além da ajuda tradicional. Eles, por outro lado, contentam-se com algum sucesso em mudar atitudes. As suas expectativas são baixas mesmo nos países que reconhecem ter good governance, mas em África. Uns e outros ajustam-se nos respectivos propósitos. O país é que fica preso na ratoeira do espírito de ajuda e não desenvolve a atitude certa para pensar que pode ser próspero com dignidade e sem pedinchar ninguém.

sábado, outubro 23, 2010

Criminalizando a Oposição

Continua a ofensiva do PAICV em desqualificar, à partida, o MpD como candidato nas eleições de 2011 e a governo nos próximos cinco anos. Em conferência de imprensa ontem dia 22, o Secretário-geral desse partido denunciou nestes termos o que chamou gastos exagerados na pré-campanha:

“O MpD gasta rios de dinheiros e faz ostentações exageradas em tempo anterior à pré-campanha eleitoral”. São absurdos os “sinais exteriores” de um financiamento que não se explica, nem se compreende, em se tratando de um partido “com dívidas malparadas e crédito bancário condicionado”.

A imagem dos irmãos Metralha, que acompanha o texto no site do PAICV, mostra que esse partido não está a interrogar-se sobre nada. Está a acusar. Mas, como é da sua natureza, depois de acusar, esconde-se. Diz que a sua reacção deve-se ao facto de ser um “assunto que tem melindrado a opinião pública e tem dado azo a questionamentos na imprensa”. Quanto à imprensa, ninguém tem dúvidas sobre quem anda, há algumas semanas, a falar de dinheiros, de narcotráfico, de vendas de terrenos e até de sabotagem na Electra, sempre procurando envolver figuras e partidos da Oposição. Até parece que a conferência de imprensa do PAICV de sexta-feira foi planeada para coincidir com manchetes de jornal repisando isso tudo. Não interessam as negas da Administração da Electra quanto à sabotagem e as declarações do Procurador-Geral dizendo que “não recebeu qualquer pedido formal” do Governo ou da Electra para investigar. Interessa, sim, criminalizar a Oposição aos olhos da comunidade internacional e dos caboverdianos. É a democracia à moda do PAICV. À moda da uma cultura política que teima em não diferir muito das que ou internam em hospital psiquiátrico os críticos, dissidentes e adversários políticos ou os põe na cadeia por actividades criminosas.

quinta-feira, outubro 21, 2010

Dose reforçada de hipocrisia

O PAICV, no noticiário 13-14 da RCV de hoje, veio com uma dose mais reforçada da hipocrisia que costuma lidar com os caboverdianos. Estava a responder à critica de muitos, designadamente deste blogue, pela forma como o Governo se cola na cooperação internacional e nos seus representantes para efeitos eleitorais e extrair dividendos na luta política. Algo que é feito aos olhos de todos e passado todos os dias na televisão pública. Muita hipocrisia permite ao PAICV vir, na cara de todos, dizer que não é assim. E é com cinismo que recua nas suas responsabilidades quando sabe que é o Governo quem, muitas vezes, coloca representantes diplomáticos em situações embaraçosas. Mas a intervenção é também toda ela parte da guerra sem quartel que move contra os adversários políticos. A acusação de serem contra as parcerias é para demonstrar à comunidade internacional que a Oposição não é credível e não merece governar. Conseguida a simpatia dos membros dessa comunidade, é usá-la para provar ao povo de Cabo Verde que só eles são aceites pelos países e instituições estrangeiras. O problema é que todos vêem o que se passa. E tudo não pode ser reduzido a tricas políticas. Há questões de decência, de verdade e de honestidade nas relações políticas que não devem ser ultrapassadas. Um testemunho insuspeito do que se passa nesta matéria é dado pela jornalista Margarida Fontes no seu blog, num “post” de 19 de Outubro de 2010:

Semanas antes do debate parlamentar sobre o Estado da Nacão, numa investida de propaganda sem precedentes, o Governo produziu programas televisivos mostrando trabalhos de ministério a ministério; na mesma senda, os embaixadores (na contramão da diplomacia) apareceram no programa palaciano, em fila de rosário, tecendo rasgados elogios a Cabo Verde, sub-entende-se governação de José Maria Neves. Em toda essa empreitada, não adivinhava o governo que estava a dar um tiro no pé (em democracia actos do género são um tiro no pé, porque a reacção não tarda e o efeito se desarma). O mais insólito desta sanha política foi a ideia de eleger os embaixadores como vozes da legitimação do sucesso governativo, e eco do prestígio internacional. Algumas embaixadoras ainda hoje aparecem na imprensa, mais do que qualquer ministro, candidato, artista ou cidadão deste país... O fim da missão da embaixadora dos EUA contribuiu para diminuir a intensidade do desfile. Em nenhuma outra missão da sua vida futura, Marianne Myles dará tantas entrevistas. Justiça seja feita à contenção da diplomacia francesa.

Perdas de representatividade e diversidade

Com a publicação, no dia 13 de Outubro, dos dados definitivos do recenseamento eleitoral ficou oficial: S. Antão e Fogo perderam dois e um deputado respectivamente. Sal e Santiago-Sul ganharam respectivamente 1 e dois deputados. A perda de representividade de algumas ilhas a favor de regiões e outras ilhas têm subjacente uma realidade mais dura de perda de população que não se confina ao caso citado. S. Nicolau é o caso mais flagrante de migrações que já ameaçam colocar a ilha num espiral acelerado descendente. Por falta de massa crítica, os transportes começam a rarear-se, lojas fecham-se, jovens saem à procura de oportunidades, a agricultura estrangula-se com falta de mão-de-obra, a população envelhece, etc. No sentido oposto a cidade da Praia denota um crescimento exponencial que atrai cada vez mais pessoas, negócios e aventureiros. Um crescimento que põe pressão excessiva sobre os recursos da Ilha e sobrecarrega sistemas como o eléctrico, água e saneamento. Para não falar na situação habitacional crónica que cria nas cintura urbana bairros degradados onde a pobreza coexiste com o crime, a insegurança, a insalubridade e o desemprego. Tudo isto vem passando há vários anos sem que o Governo arrede um passo na sua política centralizadora. Uma política que despovoa ilhas, rouba o país a sua diversidade e nega às ilhas a energia dinamizadora e criativa da parte da sua juventude forçada a deixar a sua ilha e a relocalizar-se na Praia por falta de oportunidades. A crise veio mostrar o quanto é que se falhou em garantir ao país harmonia e equilíbrio. A máquina centralizadora do espaço e o espírito controlador do Governo bloqueou projectos noutras ilhas que podiam ter reequilibrado o país. Quando as oportunidades esfumaram-se o único ponto do território nacional que ficou com alguma dinâmica foi a cidade da Praia. A presença do Estado, com toda a grande fatia de consumo que comanda e arrasta, garante dinâmica em vários sectores. Só que os custos são terríveis mas muito desadequadamente assumidos pelo Governo. A primeira tentação é passar a culpa aos outros. Depois, faz investimentos futuristas como a circular da Praia para contornar os problemas criados. Não funcionam mas mesmo assim insiste em localizar tudo na capital, acelerando ainda mais o seu crescimento. É um círculo vicioso alimentado pela ausência de estratégia de desenvolvimento, mas que responde às necessidades de uma cultura política controleira e centralizadora que cada vez mais vem retirando ao país a vitalidade e a criatividade que advém da diversidade. Diversidade que só é possível com economias funcionais e prósperas em todas as ilhas.

terça-feira, outubro 19, 2010

Going native

A visibilidade dos membros do corpo diplomático em Cabo Verde parece às vezes excessiva. Atinge o limiar do aceitável no caso da intromissão da embaixadora de Portugal na política local, da forma como foi apresentada por um semanário da praça. Segundo o jornal, a embaixadora entende que o seu país e governo estão a ser vítimas de uma campanha despropositada e insidiosa. Por quem? Segundo ainda o mesmo jornal, por sectores políticos e empresariais próximos da oposição. O confronto aí esboçado é no mínimo insólito. A oposição nas democracias não culpa países estrangeiros pelos acordos assinados pelo governo. Podem criticar o timing das decisões, questionar estratégias negociais e discordar dos termos do acordo. As autoridades estrangeiras não reagem à crítica porque sabem que negoceiam com o governo legítimo da república. A chamada à responsabilidade feita pela oposição é uma questão interna. Não há crise aí. Por isso é estranho que representantes diplomáticos deixem-se envolver, desafiando “quem quer que seja a desmenti-la”. Os excessos de visibilidade e protagonismo a raiar o exagero eram acidentes à espera de acontecer, como está-se a verificar neste caso. E as razões são claras. A importância que a rádio e, particularmente, a televisão dão à entrega de doações e aos actos de colagem do Governo à cooperação internacional acabam por imprimir forte protagonismo aos embaixadores. A dependência da ajuda externa faz da interacção estreita com os sectores diplomáticos de países doadores um aspecto central da governação. A proximidade não tem só aspectos positivos de facilitar relações. Pode e dá azo a vícios diversos. Aliás a regra na generalidade das chancelarias é que o diplomata só se mantém no posto por dois ou três anos. Isso para se evitar que o diplomata se torne nativo, ou seja, se confunda de tal forma com os locais que deixe de ser um observador e analista com algum distanciamento das políticas nacionais. Esse perigo revela-se maior em Cabo Verde talvez porque o meio é pequeno e acolhedor. Diplomatas mais facilmente ficam enredadas na malha de relações pessoais e sociais e susceptíveis a lobbies político-partidários. A insistência do governo em se reclamar como único credível para dirigir o país tem consequências perversas: por um lado esforça-se por demonstrar que é o preferido doutros países e dos organismos internacionais. Daí a forte colagem aos seus representantes. Por outro, não se inibe de desacreditar os adversários políticos e de fazer crer à população de que a cooperação internacional não os vê com bom olhos. Em todo este processo lisonjeia, dá protagonismo e cria oportunidades de grande visibilidade aos representantes diplomáticos. Um dia havia que surgir alguém que, em plena campanha pré-eleitoral, tomasse partido no confronto entre a oposição e o Governo sobre questões centrais da vida nacional: a dívida pública, o défice orçamental, a política empresarial, as prioridades na infra-estruturação do país, etc. E aconteceu.