A tragédia que caiu sobre os soldados e sobre as suas famílias com fortíssimo impacto nas forças armadas e no país mais uma vez vem relembrar a todos do muito que parece, não é. Vários avisos de muita coisa que não está bem na sociedade e nas instituições têm sidos dados de forma dramática nos últimos tempos e até com perda de vida como foi o caso dos 11 mortos do navio Vicente. Outros avisos não menos custosos em vidas e em liberdade e em segurança, mas sem talvez o mesmo impacto dramático, vão sendo feitos via casos de crime e violência nos vários pontos do território nacional. Na generalidade dos casos ou não são ouvidos ou procura-se desdramatizar mostrando uma face positiva, citando estatísticas e acusando os atentos de pessimismo e de ser arautos da desgraça. A atitude no momento seguinte é de voltar-se àrotina anterior e de quedar-se na expectativa que nada de mal irá acontecer.
É facto que muita coisa vai para debaixo do proverbial tapete quando a postura oficial é de permanente propaganda num esforço de ofuscar, seduzir, iludir. Fazendo isso persistentemente durante mais de uma década o mais normal é que a relação com o país real se perca, que as instituições se adaptem às necessidades da imagética oficial e a incompetência se instale. Em simultâneo caem os níveis de confiança porque todos se vêem a representar papéis num esforço colectivo de ilusionismo com selo de aprovação oficial. Num ambiente destes, introduzir reformas de fundo torna-se quase impossível. Primeiro há que ir além das aparências e encontrar as raízes dos problemas. Depois de vencer as resistências dos interesses velados aí instalados. E tudo isso sem contar muito com aliados: os futuros beneficiários das reformas ainda não se reconhecem como tal e nem se organizaram para apoiar a continuidade das reformas, ao contrário dos que esperam ver o seu poder, influência e rendimentos postos em causa no processo de mudança.
Das mais graves revelações vindas ao público foi a que as forças armadas desconheceram durante mais de 24 horas que não tinham qualquer contacto com o seu destacamento no Monte Tchota. Onde ficaram os três C, comando, controlo e comunicações, que deve ser apanágio das forças armadas para poderem realizar as missões que lhes estão destinadas. As instalações de comunicações do Monte Tchota são de importância estratégica para o país. Por isso é que se tem um destacamento militar permanente a guardar esse centro nevrálgico do sistema de segurança. Deixá-lo indefeso por razões de conflitos internos é grave, mas não tomar conhecimento disso imediatamente, e pior ainda durantes horas seguidas, é indesculpável.
Nesse sentido justificou-se plenamente o pedido de demissão do Chefe de Estado Maior. Alguém na cadeia de comando tinha que assumir a responsabilidade pela falha grave no cumprimento da missão e pela mensagem negativa que eventuais inimigos terão ficado da prontidão e capacidade operacional das Forças Armadas. As FAs têm outras missões na segurança interna e externa e a sua eficácia depende do efeito dissuasor que poderá ter sobre eventuais prevaricadores. A própria segurança dos soldados colocados a guardar várias entidades e pontos chaves do país está intimamente ligada à percepção da efectividade das FA em responder com rapidez e força proporcional para proteger os seus soldados e realizar os objectivos definidos.
Todo este incidente trágico abre a possibilidade de fazer um amplo debate sobre a natureza das Forças Armadas, a sua organização e as missões que deverá realizar. Importante discutir a segurança interna do país e que melhor sistema de forças a poderá servir considerando a natureza arquipelágica do país e as ameaças reais do narcotráfico e também do terrorismo, pirataria e tráfico de pessoas e armas na região. Concomitantemente é de rever o serviço militar obrigatório que de universal só tem o nome ficando por conscritos maioritariamente das zonas rurais e dos subúrbios das cidades que findo o serviço passam à disponibilidade com habilidades e competência potencialmente perigosas em técnicas de combate e manuseio de armas sem qualquer enquadramento.
Coincidentemente iniciou-se um novo ciclo governativo e o novo governo deverá aproveitar esta oportunidade para reorganizar as Forças Armadas e todo o sistema de segurança numa perspectiva de uma maior eficácia e de garantir que o que parece, realmente é. Com o terramoto verificado nas Forças Armadas espera-se que Presidente da República enquanto Comandante Supremo das Forças Armadas reúna o Conselho Superior da Defesa Nacional para assegurar o envolvimento de todos os órgãos de soberania, Presidente, parlamento e governo, na procura das melhores soluções para colocar a instituição numa outra plataforma que lhe permita granjear o respeito, estima e consideração de todos os cabo-verdianos.
Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 4 de Maio de2016