sexta-feira, outubro 07, 2016

Abstenção conveniente

Jorge Carlos Fonseca ganhou as eleições presidenciais de 2 de Outubro com 74% dos votos validamente expressos tendo os outros candidatos Albertino Graça e Joaquim Monteiro recebido respectivamente 22,5% e 3,2% dos votos. A abstenção que acabou por atingir o seu maior valor de sempre com 63,4% dos eleitores não deixou de tirar algum lustre à vitória. Com base nesses números de abstenção, opiniões diversas procuraram questionar a legitimidade da eleição, a validade do sistema político e a representatividade do voto. Assumem que a abstenção sinaliza insatisfação dos eleitores com a política, com os políticos e com os partidos e precipitam-se na conclusão de que a democracia representativa está em crise.
É evidente que, vinda de muitos desses fazedores de opinião, a conclusão não é novidade. Estão sempre à espreita de oportunidade para repetir mais uma vez que “a democracia burguesa”, ou seja, a democracia representativa não serve ou tem muitos defeitos e que o melhor seria optar pela  democracia participativa e usar os mecanismos da democracia directa. Desta vez usam os números da abstenção superiores aos dos votantes para pôr em causa os resultados nas urnas. Sem nenhuma base de suporte, fazem da abstenção nas presidenciais uma vontade maioritária em conflito com o sistema político, algo que estranhamente não teria sido notado nas eleições legislativas e autárquicas, poucos meses antes. Muito pelo contrário, o nível de mobilização e participação da população e a tranquilidade ao longo de todo o processo eleitoral demonstraram que os cabo-verdianos reconhecem que o sistema tem alternativas de governação e tem mecanismos para passagem pacífica do poder de um partido para o outro.
Um facto inegável é que a abstenção na eleição presidencial de domingo passado ultrapassou a verificada em eleições passadas. Para se compreender se se trata de uma tendência no comportamento dos eleitores, ou de uma anomalia ou então de fenómeno induzido, há que dar à matéria o devido enquadramento. Aspectos a ter em consideração são, por exemplo, se a eleição presidencial é para o primeiro ou para o segundo mandato em que quase sempre se constata aumento da abstinência. Também se é uma eleição muita disputada não só em termos de número com também de qualidade dos candidatos envolvidos. Ainda, se há ou não grande envolvimento dos partidos na corrida ao voto pelo candidato apoiado. Para alguns observadores, este último facto pesou bastante na eleição de Marcelo Rebelo de Sousa para presidente de Portugal com os piores valores de abstenção de sempre numa primeira volta (51,6%).
Os valores da abstenção variam conforme os casos e conforme as eleições. Normalmente é  menor nas legislativas e aumenta um pouco nas autárquicas e depois cresce significativamente nas presidenciais. É um padrão de comportamento já observado nas eleições em Cabo Verde e também em países como Portugal com sistemas políticos similares. Neste aspecto, o que se passou este ano não tem nada de anormal. Outrossim, se se considerar que seria a mesma base eleitoral que deu vitória ao MpD nas legislativas (à volta de 122 mil) e que arrebatou a quase totalidade das câmaras (à volta de 97 mil votos), a apoiar a eleição de Jorge Carlos Fonseca, os cerca de 92 mil votos por ele obtidos não surpreendem porque caem dentro do que seria expectável numa eleição para um segundo mandato em que a disputa não foi tão qualificada nem a envolvência dos partidos foi intensa. A abstenção cresceu significativamente não com a erosão da sua base mas sim com a ausência de parte significativa da base eleitoral do PAICV que nas três eleições mostrou-se nos cerca de 84 mil votos nas legislativas, nos cerca de 66 mil votos nas autárquicas e, supõe-se, nos cerca de 28 mil votos do candidato presidencial Albertino Graça. Os faltosos provavelmente foram engrossar a abstenção ou por cálculo político ou porque lhes falhou a liderança do partido em apoiar abertamente um candidato ao cargo de presidente da república.
É a segunda vez na história da democracia cabo-verdiana que o PAICV se omite no apoio a um candidato presidencial. Aconteceu em 1996 obrigando o Dr. Mascarenhas Monteiro a concorrer sozinho e fazendo a abstenção disparar para 54,3%. Certamente que em qualquer dos casos houve cálculo político por detrás. Aparentemente neste caso com a pré-candidatura de José Maria Neves a não se concretizar e Cristina Fontes a escolher candidatar-se à Câmara da Praia quis-se deixar o “campo vazio” e evitar que alguém ficasse já em “pole position” para as presidenciais de 2021. Feliz ou infelizmente o campo acabou por não ficar vazio e Albertino Graça pôde atrair uns bons milhares de votos que de outra forma iriam para a abstenção, servindo aí eventualmente de arma de arremesso para deslegitimar a eleição do presidente e fragilizar o sistema político.
 A verdade é que a democracia em Cabo Verde é liberal e constitucional. Não há supostas maiorias na abstenção que invalidem ou deslegitimem actos eleitorais. Como dispõe a Constituição “a soberania pertence ao povo que a exerce pelas formas e nos termos previstos na Constituição”. Por isso mesmo é que se evita tirania de maioria ou hegemonia de um partido insistindo “no exercício do poder pelas formas e nos termos” e não hostilizando o PR que tem a função de fazer cumprir a Constituição. O actual sistema de governo já demonstrou garantir ao país estabilidade política e governativa, alternância política e ambiente necessário para o desenvolvimento. Há que o manter sem sobressaltos desavisados. Como diz o provérbio americano “se não está quebrado, não conserte”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 775 de 05 de Outubro de 2016.

sexta-feira, setembro 30, 2016

Regresso do FMI

A 4 de Março de 2015 o FMI publicou um comunicado da sua missão anual a Cabo Verde ao abrigo do artigo IV. No comunicado ficou-se a saber que o Conselho de do FMI deveria em fins de Maio rever os resultados da consulta feita e dar a conhecer a sua posição final sobre a situação do país. Aparentemente a reunião do CA do FMI nunca aconteceu e até agora, como se pode constatar no site do FMI, nada foi publicada sobre os resultados da consulta ao abrigo do artigo IV referente a 2015. A impressão que se reteve em vários quadrantes foi que houve disputas entre o governo e o FMI quanto aos dados da dívida e que, na sequência, ou a apreciação do relatório não se verificou, ou então Cabo Verde não autorizou a sua publicação na Internet.
 A existência de tensões ou falta de acerto quanto às posições do FMI em relação às políticas dos governos do PAICV não são de “ontem”. Aconteceram anteriormente designadamente em 2012 em que o relatório que alertava para os perigos do Programa Casa para Todos e da gestão da TACV também foi escondido e não foi publicado no site do FMI. Só agora, em 2016, é que com o novo governo se soube da sua existência. Cabo Verde era dos raros países no mundo em que os relatórios do FMI para serem publicados têm que ter autorização prévia das autoridades nacionais.
A relação de Cabo Verde com o FMI mudou desde Janeiro de 2012 quando foi completada a última avaliação do país no âmbito do PSI, “Policy Support Instrument”. Passou a ser feita na base anual da consulta ao abrigo do artigo IV e nessa qualidade a apreciação das políticas do país não tem a abrangência e a profundidade de um PSI. O governo de então quis assim apesar das reticências de instituições como o Banco de Cabo Verde e dos evidentes benefícios que esse mecanismo permite, designadamente no que se traduz em maior confiança de parceiros internacionais e de investidores. Provavelmente o governo queria ter as mãos mais livres para manter a política de ilusionismo enquanto a economia estagnava, e os níveis de emprego não baixavam significativamente e a dívida pública acelerava. A essa pretensão também não deverá estar alheio o conflito aberto que a Ministra de Finanças protagonizou com o Governador do Banco Central em Novembro de 2011 a propósito da reacção do BCV às políticas expansionistas do Governo.
O “regresso” do FMI em 2016 não augura nada de bom depois de todos esses anos de supervisão menos exigente. A dívida pública situa-se em 126% e são significativos os riscos fiscais contingenciais derivados da TACV e da IFH e também de outras empresas do Estado. Ainda se pode fazer o serviço da dívida porque, como diz o FMI, o crédito é concessional. Mas mantendo-se o crescimento baixo da economia, a verificar-se a concretização dos riscos orçamentais e a manter-se a alta do dólar não é de estranhar que mais cedo ou mais tarde se torne mais difícil cumprir com as exigências do serviço da dívida. Para afastar para longe esse cenário de dificuldades, o FMI, nas conclusões da sua última visita, aconselha cortar nas despesas do Estado, aumentar as receitas, lidar decisivamente com a TACV e a IFH e limitar-se apenas aos investimentos públicos que são notoriamente produtivos. Ou seja, aconselha um período de facto de contenção, de maior eficiência e eficácia estatal, de maiores sacrifícios sociais em ordem a se evitar o pior e a manter a esperança de que o investimento directo estrangeiro e a dinâmica empresarial dos operadores nacionais e estrangeiros irão colocar o país num caminho de crescimento económico, mais emprego e mais criação de riqueza.
Neste quadro, não se compreende muito bem porque o PAICV veio regozijar-se com as declarações do FMI. Parece que a liderança desse partido não se apercebe que por detrás da linguagem diplomática usada nos comunicados já há sugestão de medidas severas que podem vir a ser aplicadas em caso de evolução para o pior. Na pressa de se regozijar com o que supostamente é a confirmação das suas políticas não vê que, assim como no passado elas não resultaram, dificilmente a sua continuidade poderia trazer mais crescimento e mais emprego. Também que reverter a situação pode não ser imediata e se houver necessidade de programas especiais do FMI para lidar com a situação não será nada fácil para as pessoas e para o país. Aconteceu noutros países designadamente Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha que também tiveram a sua dose de políticas ilusionistas. Em troca de ajudas financeiras para fazer regressar equilíbrios macroeconómicos tiveram que se colocar sob o regime da troika.
Ninguém quer isso em Cabo Verde. Mas para o evitar é fundamental que se encare os problemas do país como eles são na realidade e no quadro democrático do governo e oposição se encontre o melhor caminho para colocar o país na senda do desenvolvimento. E isso não se faz enterrando a cabeça na areia ou delirando com pretensas glórias passadas.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 774 de 28 de Setembro de 2016.

sexta-feira, setembro 23, 2016

Revogar a norma sobre suspensão de mandato

A suspensão de mandato do presidente da república a partir do momento do anúncio público da sua recandidatura para o cargo continua a criar desconforto por variadas razões. Aconteceu recentemente nas exéquias de Estado do Dr. António Mascarenhas Monteiro, o primeiro presidente da II República, em que o Dr. Jorge Carlos Fonseca, o actual presidente da república, só pôde intervir na qualidade de amigo e por expressa vontade do ilustre falecido. Assim foi porque está suspenso das suas funções por razões eleitorais. Em consequência na cerimónia estavam presentes o presidente da república interino e o actual presidente, o presidente da assembleia nacional e o interino. A questão que se coloca é se os ganhos antecipados com a suspensão de mandado do PR justificam a ausência dos reais titulares dos cargos públicos deste e de outros actos de elevado simbolismo e de importância para a governação e para as relações externas do país.
A suspensão de mandato do presidente da república e de outros titulares de órgãos de soberania e também do procurador-geral da república e do chefe e vice-chefe das forças armadas é determinada pela lei eleitoral em vigor no artigo 383º nº 3. A norma constava do texto original da Constituição de 1992 plasmada no artigo 118º nº 2. Deixou de ali constar a partir da revisão constitucional de 1999 mas manteve-se na lei eleitoral até hoje. Supõe-se que as razões para a sua introdução tenham a ver com o eventual uso dos cargos nos órgãos de soberania ou então nos cargos de PGR e de chefia das tropas para manipular situações e aumentar as probabilidades de ser eleito para o órgão singular, suprapartidário, representativo da toda a nação e moderador do sistema político que é o presidente da república. Provavelmente no desenho do que veria a ser o ordenamento jurídico-político da II República quis-se prevenir que situações de influenciação indesejada das eleições se verificassem. A proximidade das eleições presidenciais e legislativas, normalmente separadas entre um e dois meses, justificava ainda mais essa salvaguarda.
O comando para suspensão de mandato tem sido cumprido nos vários ciclos eleitorais sem grandes sobressaltos com excepção do caso do anúncio de candidatura do Dr. Carlos Veiga no ano 2000. O Presidente Mascarenhas Monteiro cumpriu-o em Dezembro de 1995 quando anunciou a sua recandidatura assim como o fez dez anos depois o Presidente Pedro Pires em Dezembro de 2005. Também nos casos em que os candidatos eram deputados como aconteceu em 2000 com Pedro Pires e com Aristides Lima em 2011; não houve sobressaltos.
A controvérsia só se estalou quando o então Primeiro-ministro Carlos Veiga se declarou publicamente candidato ao cargo de presidente da república. Os que anteriormente o criticavam por exercer o cargo de PM apesar de informalmente se saber das suas intenções de se candidatar a presidente passaram a ser os maiores críticos da sua posição em respeitar o comando da lei eleitoral que impunha a sua suspensão. Em ambas situações viam manipulação político-eleitoral ficando o visado na posição clássica de ser “preso por ter cão e preso por não o ter”. Conclusão: onde mais se esperaria que fosse eficaz – caso do PM que se candidata a PR - a lei não conseguiu evitar que surgissem suspeições de influenciação indevida. Por isso, falhou. 
A revisão constitucional de 2010 veio ditar depois um período de separação de seis meses entre a realização das eleições legislativas e as presidenciais. Por essa via, na prática, acabou com a necessidade de alguém que é primeiro-ministro ou detentor de qualquer outro cargo ser obrigado a suspender o mandato para se candidatar a presidente da república. Seis meses são suficientes para qualquer cidadão que se sinta qualificado para se colocar na posição de potencial candidato a PR se livrar de eventuais amarras partidárias, institucionais ou outras que poderiam obstar a sua candidatura. Esvaziada do seu propósito, a norma da suspensão já não faz sentido. Se até agora não foi extirpada da Lei Eleitoral deverá sê-lo na próxima revisão da lei.
Como dizem os constitucionalistas, a substituição interina do PR deve ser vista como “uma situação de excepção e como situação de breve duração”. Uma das consequências da norma da suspensão de mandato referida é que sempre que um presidente da república se recandidata o país tem que conviver com um PR interino que pode ir até quase três meses enquanto se finaliza todo o processo eleitoral. Considerando que o PR interino está limitado nos seus poderes, é todo o sistema político que pode ressentir-se do facto de não beneficiar do exercício pleno das competências presidenciais e da influência derivada da “qualidade” presidencial que evidentemente só a tem quem é o titular do cargo.
Por todas essas razões é de se revogar o artigo 383º nº. 3 para que em Cabo Verde – como aliás noutras paragens, seja em sistemas políticos presidencialistas como nos Estados Unidos ou semi-presidencialistas como em Portugal ou França – ninguém tenha que suspender seu mandato a partir do anúncio da sua candidatura ou recandidatura para o cargo de presidente da república.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 773 de 21 de Setembro de 2016.

sexta-feira, setembro 16, 2016

Partida para a corrida presidencial

A campanha para as presidenciais inicia amanhã dia 15 de Setembro. Será a última das três eleições deste novo ciclo político. É a única que terá um carácter suprapartidário mas nem por isso deverá ser tomado como menos importante. Pelo contrário. A eleição do presidente da república é fundamental para se ter a garantia de que o sistema de governo funcionará com o necessário equilíbrio, respeitando os direitos fundamentais do indivíduo, os direitos das minorias e a independência dos tribunais.
Há quem queira passar a ideia de que o cargo de presidente da república é cumulativamente dispensável, custoso e ineficaz. O cargo seria um autêntico corta-fitas que simplesmente causaria mais despesas para o Estado sem que se vislumbrasse os benefícios palpáveis da sua actuação. Sente-se nesse tipo de discurso a atracção pela unicidade do poder e a incompreensão de um princípio basilar de organização do poder político na democracia que é o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania. Para quem faz esse  discurso, o poder que vale á pena ter é o de governar, ou seja, de orientar, controlar e instrumentalizar o aparelho do Estado. Não tem o mesmo valor o poder que funcionalmente no quadro do sistema de governo se faz sentir no exercício do contraditório, na decisão judicial ou na exigência de uma actuação das autoridades conforme a Constituição e a Lei.
A insistência 25 anos depois num discurso que apouca o papel do presidente da república e diminui as eleições presidenciais é mais uma razão para se reforçar o conhecimento da Constituição da República e tudo fazer para consolidar uma cultura e uma prática da Constituição nas instituições públicas. O papel do PR neste aspecto enquanto garante da unidade nacional e guardião da Constituição é imprescindível. A fragilidade de cultura constitucional que permitiu que resquícios de uma cultura de unicidade ou que apetites de poder sem “checks and balances” ainda se mostrassem, desenvolveu-se, entre várias outras razões, porque não houve comprometimento suficientemente forte, perseverante e pro-activo na defesa da Constituição. Só nos últimos cinco anos é que activamente se viu um PR a fazer da Constituição o seu “caderno de encargos”. E isso causou uma diferença enorme.
De facto, dizer que o PR não tem poderes ou então que esses poderes são muito limitados é não querer compreender um sistema de governo que já demonstrou nos seus 25 anos que garante estabilidade política, governos viáveis e alternância política. O PR pode não governar, mas a sua influência não deixa de ser marcante na produção das leis do governo e do parlamento através de mensagens dirigidas, do veto e dos pedidos de fiscalização da constitucionalidade. Titulares de instituições fundamentais da república como o Governo, o Supremo Tribunal da Justiça, o Conselho Superior da Magistratura, o Procurador Geral, o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas são nomeados por ele sob proposta do governo. A sua marca está bem presente em todas as peças principais que constituem o puzzle da governação do país. E como moderador do sistema não lhe faltam instrumentos para se assegurar que bloqueios, instabilidades e derivas perigosas não persistem por demasiado tempo.
Também, não sendo de natureza governativa, mas mais “de vigia e garante do cumprimento da Constituição”, a actuação dos PRs tende a ser de “geometria variável” conforme as circunstâncias exijam, ou não, a sua intervenção e em que medida. Vários factores podem condicionar o papel do PR. É diferente, por exemplo, se se trata de um governo minoritário, de um governo de coligação ou de um governo com larga maioria no parlamento. Também a sua actuação em geral difere se está no primeiro ou no segundo e último mandato. Outro aspecto importante é a sua personalidade e a forma como prefere projectar-se enquanto representante da unidade nacional e enquanto eleito directamente pelo povo. Pode querer criar uma vontade nacional voltada para a realização dos grandes objectivos da nação ou para ultrapassar desafios candentes e aproveitar oportunidades. Facto é que muito do que o Presidente vier a revelar-se posteriormente dependerá em grande medida das circunstâncias da sua magistratura e do contexto nacional e também internacional envolvente.
Apesar do cargo ser suprapartidário contam-se sempre entre os candidatos mais fortes personalidades provenientes de sectores políticos próximos dos grandes partidos políticos. É natural que seja assim pela importância que os partidos têm na vida política do país e as oportunidades que oferecem a indivíduos para se projectarem na esfera pública ganhando notoriedade, maturidade política e conseguindo apoiantes. Por isso, estranha quando não se vê candidatos próximos de um grande partido nas eleições presidenciais. Aconteceu em 1996 e volta a acontecer em 2016.
Se no primeiro caso ainda se vivia no rescaldo da transição para a democracia com votações de mais de dois terços para um partido, vinte anos depois não se compreende que não haja candidato apoiado pelo maior partido da oposição. Até parece que deliberadamente se está a deixar deserto o campo presidencial em 2016. Talvez para ninguém ficar em “pole position” para a corrida presidencial de 2021. Se não é uma estratégia do partido estar-se-á  perante pretensões presidências que não querem manifestar-se, mas que já prejudicam a democracia, o país e provavelmente o próprio PAICV. A preocupação com a possibilidade de o MpD se tornar hegemónico com a vitória nas duas últimas eleições devia ter sido um incentivo para a preparação de um candidato forte. Infelizmente para a democracia nem isso conseguiu retirar o PAICV do seu desnorte actual. A boa nova é que “o cumprir e fazer cumprir a Constituição” está no centro das promessas de todos os candidatos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 772 de 14 de Setembro de 2016.

sexta-feira, setembro 09, 2016

Todos os ovos no mesmo cesto?

As eleições autárquicas de 4 de Setembro surpreenderam toda a gente. Num caso único entre os sete pleitos eleitorais do Cabo Verde democrático, um partido, o MpD, arrebatou 18 câmaras, e a Oposição, o PAICV, ficou com apenas duas câmaras. As restantes duas câmaras foram para dois grupos independentes que resultaram de dissensões internas do MpD.
O desequilíbrio no controlo partidário das autarquias nunca se tinha verificado mesmo nos casos extremos de vitória nas legislativas com maiorias de dois terços em 1991 e 1996. Nesses dois momentos a repartição das câmaras foi respectivamente MpD 10, PAICV 3 e MpD 9 e PAICV 5, com a particularidade de as autárquicas de 1996 terem sido realizadas um mês após as legislativas, sem sinal de contágio. Aliás o fenómeno de contágio nunca foi realmente reconhecido nas eleições autárquicas, por exemplo, durante os quinze anos de governo do Paicv em que o MpD sucessivamente assegurou  9 câmaras em 17, 11 em 22 e 13 em 22.   As populações nas autarquias sempre deixaram perceber que distinguiam perfeitamente as eleições ao nível do poder central das que tinham lugar para órgãos do poder local. O insólito do que se passou no domingo passado deve ser matéria para reflexão profunda.
Aparentemente aconteceu o que os partidos da oposição e certos observadores da vida nacional mais receavam: os ovos foram todos para o mesmo cesto. Mas estão equivocados. De facto, a presença forte do presidente do MpD nas campanhas eleitorais nos municípios poderia sugerir que alguma estratégia nesse sentido estivesse a ser implementada. Até aí não há nada de anormal considerando que a lógica dos partidos é ganhar sempre. Os líderes partidários são muito activos em todas as eleições partidárias e o estranho é quando não o são com a energia e intensidade esperadas como parece ter sido o caso da líder do PAICV. Por outro lado, quando o líder também é primeiro-ministro fica naturalmente no ar a sugestão de eventuais ganhos para o município se for o mesmo partido a suportar o governo e a câmara municipal. Da experiência vivida, sabe-se, porém, que isso não afecta significativamente os resultados e muito menos se alteram as relações de força ao nível do Poder Central entre o governo e a oposição como parece sugerir a ideia de “todos os ovos na mesma cesta”. A realidade é que não é por ganhar mais câmaras que um partido no governo se torna hegemónico da mesma forma que não por ter menos câmaras que alguma vez o PAICV se sentiu constrangido nos seus quinze anos de governação.
Os municípios são entidades com história e identidade próprias que vêm nalguns casos de séculos. Mesmo os novos que já foram freguesias no passado têm os seus atributos identitários e histórico-culturais que condicionam as suas escolhas, não obstante os candidatos serem apresentados por partidos políticos nacionais, e dão especial coloração e intensidade às suas espectativas em relação ao futuro. Aliás, são essas especificidades que justificam a existência do município. Daí que não estranha que manifestações dessa autonomia local se faça sentir nas escolhas de dirigentes locais nem sempre coincidentes quanto à linha partidária com as escolhas que se verificam a nível nacional. Quando a excepção acontece, como é caso do alinhamento actual, deve-se questionar as razões: se foi produto do acaso, uma opção ou manifestação de perda de autonomia. 
Cabo Verde encontra-se numa encruzilhada. Chegou-se ao fim de 15 de uma governação do PAICV auto rotulada de agenda de transformação com crescimento de menos de 2% do PIB. O desemprego mantém-se alto e o país acumulou uma das maiores dívidas públicas do Mundo. Os vários sectores da economia, designadamente a agricultura não consegue suster-se apesar dos investimentos feitos, a indústria não tem dimensão para absorver grande parte da mão-obra desempregada e os serviços mostram dificuldade em internacionalizar-se, em ter acesso aos mercados e em se capacitarem para melhor servir o turismo. No meio destas incertezas, o Estado parece constituir a única fonte de rendimento com alguma previsibilidade tanto directa em forma de salário como indirecta via transferências, financiamentos e facilidades.
Talvez seja essa a herança real recebida dos 15 anos de governo de José Maria Neves. O afunilamento das expectativas no Estado por falta de confiança na sustentabilidade de outros sectores da economia transforma tudo numa corrida para se apossar do que pode oferecer. Isso já é notório na inquietação que se sente nos partidos com os muitos aspirantes a políticos freneticamente a procurar o seu lugar ao sol e também na procura de trabalho certo que faz milhares de jovens dirigirem-se para a capital. Também poderá ter-se manifestado na reacção às promessas eleitorais de mais transferências para os municípios, deixados exangues pelo definhamento da economia nas ilhas e a excessiva centralização do país, provocando o realinhamento dos municípios com o partido no governo numa escala nunca antes verificada.
A “corrida ou debandada para o Estado” não é, porém, a atitude que melhor serve o país. Não há recursos nem internos nem externos em forma de ajuda que a poderão alimentar. A estratégia nacional terá que incidir na produção, na diversificação da economia e nas exportações para que os cabo-verdianos tenham possibilidade de emprego e realização pessoal, para que as ilhas e municípios possam atingir seu ideal de desenvolvimento e autonomia e para que o país tenha recursos para investir e estender a mão em solidariedade aos mais vulneráveis e permitir a todos a participação plena na vida nacional.
Se há uma consequência imediata dos resultados eleitorais de 4 de Setembro é o facto de forçar o governo do MpD a ter resultados palpáveis com impacto em todas ilhas, em quatro anos. As próximas eleições autárquicas vão-se verificar alguns meses antes das legislativas. Aí provavelmente não se deixará de sentir algum contágio. Por todas essas razões e também para se tirar Cabo Verde com sucesso desta encruzilhada é de lançar mãos à obra com visão, dedicação e espírito de servir e não se deixar tentar pelas ondas de populismo e de demagogia que como um tsunami ameaçam varrer todo o sentido de decência e honestidade no mundo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 771 de 07 de Setembro de 2016

sexta-feira, setembro 02, 2016

O Dia da luta pelos direitos fundamentais

O 31 de Agosto de má memória que tanto impacto teve sobre a gente de Santo Antão e sobre todos os cabo-verdianos aconteceu há 35 anos, em 1981. Na época, a tentativa de implementação da reforma agrária, “um acto eminentemente político que se situa na luta de classes”, segundo um dirigente de então, tinha encontrado hostilidade imediata da população rural. À reacção dos populares em reuniões e manifestações contra a reforma agrária, consideradas ilegais pelas autoridades, seguiram confrontos com militares armados dos quais saiu um morto civil. Ainda no mesmo dia e noutros seguintes procedeu-se a prisões arbitrárias com invasão de domicílios à noite, espancamentos, humilhações e transporte para cadeia militares em S. Vicente. Depois de seis meses de encarceramento e vários episódios de torturas foram julgados em tribunal militar, “acusados de tentativa de alteração da Constituição por rebelião armada”, e condenados a penas da mínima de 6 meses à máxima de 10 ano de prisão.
A máquina brutal que nesse dia fatídico pôs-se em movimento cumpria as leis que desde a independência o regime de partido único tinha imposto ao país com o objectivo de se eternizar no poder. De facto, ao declarar-se Único esvaziou a vida política de qualquer sinal de pluralismo, suprimiu a liberdade de expressão e de imprensa e criminalizou reuniões e manifestações não autorizadas. Com o decreto-lei nº 95/76 de Outubro de 1976, a polícia política, conhecida por Segurança, poderia prender qualquer pessoa por um total de cinco meses e só depois a entregar ao Ministério Público. Quem fosse acusado de “crime contra a segurança do Estado” deveria ser julgado pelo tribunal militar de acordo com o decreto-lei nº 121/77 de Dezembro de 1977. Nada do que ali aconteceu foi por acaso. Aliás, em outros momentos como em S.Vicente em 1997, na Brava em 1979, na Praia em 1980, e outra vez em S.Vicente em 1987 viu-se que a máquina estava sempre pronta para entrar em funcionamento e sempre capaz de ir até às últimas consequências com torturas e mortes.
As leis que legitimavam a máquina repressiva do regime só começaram a ser desmanteladas a partir de Maio de 1990 quando a então Assembleia Nacional Popular revogou disposições legais “restritivas dos direitos, liberdades e garantias” que segundo o presidente da ANP “perderam actualidade” designadamente a Lei do Boato (decreto-lei 37/75 de 1975) e a lei de prisão preventiva (decreto-lei nº 95/76). Os factos desmentem aqueles que consideram que os quinze anos do regime de partido único em Cabo Verde era uma espécie de ditadura “soft” e que o 31 de Agosto de 1981 foi uma espécie de acidente. A realidade da presença ao longo de todos esses anos do aparato legal para repressão de qualquer acto que atentasse contra o regime ou o questionasse prova precisamente o contrário. A qualquer momento situações idênticas poderiam ter acontecido. Os ingredientes sempre estiveram lá: as forças policiais e militares, as leis, a atitude repressiva e a motivação política.
O que nem os presos do 31 de Agosto nem os restantes milhares de cabo-verdianos beneficiavam na época era da plenitude dos seus direitos civis e políticos. Só o vieram a ter com a Constituição de 1992. E esse facto deixava-lhes completamente à mercê de um poder estatal determinado em se manter indefinidamente. O alvo num determinado momento podia ser um proprietário agrícola em Santo Antão a quem queriam tomar as terras. Num outro dia poderia chegar a vez do estudante rebelde a quem foi recusado bolsa de estudo por razões políticas, ou do emigrante que fez algumas críticas, ou de um comerciante suspeito por razões de classe ou de um intelectual crítico que para viajar precisava de uma autorização de saída. Na ausência de direitos, liberdades e garantias tudo foi permitido ao Estado. E se nem todos sofreram da mesma forma, não significa que sem aviso prévio qualquer um não passasse à condição de vítima de abusos sem possibilidade de recorrer à justiça.
Casos de abuso de poder verificam-se em qualquer regime político. A diferença é que quando há unicidade do poder, o Estado ergue-se no alto do seu poder sem limites, o indivíduo reduz-se à sua insignificância e abuso de poder é a regra, não excepção. Na democracia os autores do abuso em qualquer posição do Estado podem ser investigados, responsabilizados e punidos pelos desmandos porque há pluralismo político, alternância democrática no governo e independência dos tribunais.
Mas mesmo nas democracias a tensão entre o exercício dos direitos e o poder do Estado não deixa de existir. É só ver a batalha com contornos épicos que tem sido travada nos Estados Unidos pelos direitos fundamentais desde que se adoptou o Bill of Rights, em 1791, incluindo as lutas pelos direitos das minorias, contra a discriminação racial, pela igualdade das mulheres, pela não discriminação sexual e recentemente contra a violência policial. Mas também a luta travada na preservação da liberdade de expressão, na defesa da igualdade de oportunidades e na salvaguarda dos direitos de defesa e do due process.
Também em Cabo Verde a defesa dos direitos fundamentais não deve ficar pelo conhecimento do que está Constituição da II República. É preciso incentivar o exercício pleno desses direitos que são os da cidadania plena e estar alerta em relação a acções dos poderes públicos que tendem a diminui-los. Nunca se deve é a assumir que estão completamente garantidos e que nada os ameaça. Por isso que é de maior importância relembrar sempre o caminho penoso que os cabo-verdianos fizeram, passando sucessivamente pelas ditaduras de Salazar e do Partido Único para hoje gozar dos benefícios da liberdade. O dia 31 de Agosto devia ser consagrado como o dia da luta pelos direitos fundamentais em Cabo Verde. O nosso Bill of Rights Day.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 770 de 31 de Agosto de 2016

sexta-feira, agosto 26, 2016

Maior dinâmica e autonomia para os municípios

A campanha eleitoral para o sétimo ciclo de eleições autárquicas já está em andamento. Por todas as ilhas os candidatos na maior parte dos casos apresentados pelos principais partidos políticos – só quatro candidaturas foram formalmente apresentadas por grupos de cidadãos –  desdobram-se por todos os pontos dos municípios a mobilizar para o voto no dia 4 de Setembro próximo. Comícios, arruadas e acções porta-a-porta são as formas preferidas de aproximação dos eleitores. O discurso político toca em várias teclas com particular enfase na futura relação com o governo. Consoante quem o produz vê-se vantagens ou desvantagens em ter o mesmo partido no governo e no município. A forte dependência do município das transferências do Estado para o desenvolvimento, por todos vigorosamente evidenciada, revela o quão distante se está de uma verdadeira autonomia municipal e quão frágil é a base para a progressiva descentralização que o país tanto reclama.  
As eleições autárquicas não são a repetição das eleições legislativas ou a confirmação dos seus resultados como alguns pretendem que sejam. Por isso, discursos como “evitar pôr todos os ovos na mesma cesta” ou” aprofundar vitória nas legislativas com vitória autárquica”  não têm muita razão de ser. Pode-se até compreender que do ponto de vista de ganho político partidário se queira ir pela via fácil de explorar eventuais receios dos eleitores quanto à concentração do poder para melhorar na nova votação e dar aparência de recuperar terreno perdido. Ou, em sentido contrário, de aproveitar o entusiamo deles para ganhar mais uma vez. O problema são os custos para o processo democrático designadamente de distorção do sistema político eleitoral, de deseducação dos cidadãos e dos equívocos criados que responsavelmente os partidos políticos não deveriam ignorar. Custos por sinal inúteis quando se sabe da experiência dos últimos 25 anos que os desejados benefícios de contágio eleitoral na maior parte dos casos não se materializam e que há limites para a influência dos líderes nacionais nos resultados autárquicas mesmo quando se encontram no auge da sua popularidade.
As populações têm demonstrado sistematicamente conhecer a diferença entre a eleição autárquica e a legislativa e nada indica que foi esquecida. No que respeita à relação entre o governo e as autarquias já deu para todos perceberem que é nas legislativas que é decidida a sua natureza e não em qualquer eleição local. De facto, há governos que procuram ampliar o processo de descentralização, dar um conteúdo mais dinâmico ao princípio de subsidiariedade, alargar as atribuições dos municípios e associar-se às câmaras para implementar certos programas e ser mais eficaz em chegar às populações. Há outros que tendem ficar pela essência do que está nos estatutos dos municípios e até se retraem nas experimentações já feitas de cooperação entre câmaras e governo central.
O país já tem 25 anos de poder autárquico e não tem como enganar-se quanto às opções dos partidos em matéria de descentralização e de reforço de autonomia municipal. Em qualquer circunstância, o tratamento que se espera do Estado é que, dentro das opções de cada governo, seja igual para todos, não privilegiando uns nem penalizando outros. O mesmo se exige que aconteça com a distribuição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios que a Constituição determina que seja justa. Também aqui vai depender de cada governo a sua compreensão do que num determinado momento é o mais justo na repartição dos recursos.
Com isto bem claro na mente dos eleitores e dos candidatos podia-se esperar que todos se focalizassem realmente na questão autárquica, no reforço da autonomia e na preparação das comunidades para melhor aproveitar oportunidades de crescimento económico e de desenvolvimento nos diferentes domínios. Mas perde-se de algum modo o foco quando se extravasa nas promessas feitas e deixa-se no ar expectativas que dificilmente as câmaras estarão em posição de concretizar.
Em alguns programas de “governação” apresentados por candidatos autárquicos nota-se a tendência em ir além do que são as atribuições e as competências dos municípios e, ao mesmo tempo, a falta de minúcia nas respostas aos problemas mais de cunho municipal. A deriva na gestão que aí é gerada, para além de outras consequências, tem o efeito de não deixar que se concentre em pressionar o governo no sentido de inverter o processo de centralização e de activamente atrair investimento nacional e estrangeiro para melhor diversificar e potenciar a economia das ilhas. Mas a viabilidade dos municípios e sua autonomia depende do sucesso conseguido nesse empreendimento. Para isso, de todos os actores devia-se esperar o maior comprometimento em ter municípios dinâmicos, com uma democracia local viva e sem dependência de transferências extraordinárias do governo central. Muito do debate nestas eleições autárquicas podia centrar-se em como fazer desses objectivos uma realidade num futuro próximo.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 769 de 24 de Agosto de 2016

sexta-feira, agosto 19, 2016

Rever a actuação policial

A Segurança em Cabo Verde e, em particular na Capital, consti­tui um problema sério que deverá merecer do novo Governo medi­das urgentes. Quase todos os fins­-de-semana há registos de desaca­tos e mortos em assaltos, em guer­ras de gang ou em encontros com a polícia. Homicídios acontecem com uma frequência preocupante. Assaltos com utilização de armas de fogo passaram a ser o mais co­mum. Tem-se a impressão de que ataques dirigidos aos polícias com intenção de morte aumentam. O número de armas a circular desde as artesanais às mais sofisticadas é cada vez maior, indiciando cres­cente procura para compra das mesmas. A falta de cooperação das populações, se não mesmo hostilidade das pessoas em rela­ção à polícia torna o combate con­tra o crime ainda mais difícil. O acontecimento do fim-de-semana passado em São Pedro na cidade da Praia é paradigmático do que se nota em outros momentos em vários outros pontos do país. Dis­paros são feitos contra policiais, há uma resposta policial robusta, feridos são levados ao hospital, a população reage e desenvolve-se uma tensão entre a população e as forcas policiais que mina a con­fiança e diminui as possibilidades de cooperação para a manutenção de ordem e tranquilidade pública nas comunidades suburbanas.
O Governo já anunciou que vai avançar com a videovigilância no âmbito de um programa chama­do Cidade Segura e com a polícia municipal na luta contra as incivi­lidades. Poderão ser medidas sen­síveis que em articulação com ou­tras mais compreensivas tragam mais eficácia para a acção policial. As respostas, porém, quase nun­ca são simplesmente de natureza tecnológica, mas fundamental­mente de natureza organizacio­nal, de cultura institucional e de capacidade técnico-operacional para responder à complexidade dos problemas. Por outro lado, a experiência de outros países têm demonstrado que o restabeleci­mento da confiança na relação com as comunidades nos bairros periféricos das cidades deve ser um dos grandes objectivos a atin­gir para que, de facto, se consiga resultados duradoiros na preven­ção e na luta contra o crime.
As informações que são avan­çadas na página da Polícia Na­cional na internet revelam que a PN continua com as práticas an­teriores de, nos bairros, parar e revistar “stop and frisk” particu­larmente os jovens. São práticas que têm lugar no quadro das polí­ticas chamadas de tolerância zero e de “broken windows” e cujos resultados são hoje muito contes­tados. Não provam que realmen­te fizeram diminuir o crime, mas constata-se que aumentaram as denúncias de violência policial, os casos de descriminação (profiling) e também os sinais de degradação da relação com as comunidades. Os métodos militarizados das uni­dades tácticas da polícia envolvi­das nessas operações podem ser efectivas numa resposta pontual ao crime, mas não são os melho­res para desenvolver a relação de confiança que a polícia precisa de­senvolver com as comunidades. A proximidade das populações tem que ser feita de outra forma para que o objectivo fundamental de se ter ordem e tranquilidade pública seja atingido e reforçado nas pes­soas o sentimento de segurança.
Nos Estados Unidos, onde essa doutrina policial de tolerância zero surgiu e foi aplicada em vá­rias cidades a começar por Nova Iorque desde dos anos noventa, há anos que tem sido revista e em alguns casos completamente descartada. Os resultados mis­tos obtidos com a sua aplicação acabaram por revelar suas insu­ficiências e o seu lado negativo de discriminação social e racial e também da alienação das popula­ções que a polícia devia proteger. A última investigação feita pelo Departamento de Justiça à polí­cia da cidade de Baltimore divul­gada na semana passada trouxe a público com particular acuidade os problemas graves de violência policial, os efeitos nocivos da cres­cente militarização da polícia e as consequências do distanciamen­to das comunidades. Os recentes ataques a polícias em várias ci­dades, transformados em alvo a abater, constituíram um sinal de alerta de que se deve proceder a mudanças urgentes na actuação da polícia.
Também em Cabo Verde, em que o crime continua a aumen­tar, a sensação de insegurança é cada vez maior e até polícias são alvos de assaltos e de agressões a tiro, impõe-se que se reveja com urgência as práticas policiais. Cla­ramente que não estão a resultar, pelo contrário, tendem a provocar uma escalada de violência entre a polícia e os gangs ficando a po­pulação no meio sem segurança e sem confiança que a situação irá melhorar. As mudanças na polí­cia não podem ficar só pela troca de pessoas nas chefias. Há que mudar de atitude, de estratégia e da forma como se relaciona com o público e se utilizam os meios postos à disposição. Ponto assen­te é que não se pode deixar tudo na mesma e esperar que alguma coisa mude.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 768 de 17 de Agosto de 2016

sexta-feira, agosto 12, 2016

Autarquias e contrapoder

Sempre pelas eleições autárquicas surgem discursos que tendem focalizar o debate político na relação entre o Governo/Estado e os municípios. Há quem queira fazer das câmaras centros de contrapoder e há quem faça promessas de maior disponibilidade de recursos em caso de ser a mesma força política a suportar o governo e a câmara municipal. Ainda, de tempos em tempos, aparece quem tenha ambições mais paroquiais e se esforça por se apresentar como o salvador regional contra a opressão e o abandono do governo. Com tais discursos o pleito eleitoral é enviesado, questões mais importantes das comunidades passam para o segundo plano e marcas muitas vezes profundas são deixadas entre os protagonistas. Não é de admirar que, na sequência das eleições, o futuro das relações institucionais fique comprometido com custos significativos na eficácia global do Estado, com descoordenação nos serviços prestados à população e com impacto negativo no desenvolvimento futuro do município.
A experiência autárquica no Cabo Verde independente faz 25 anos no final de 2016. Vai-se iniciar o sétimo ciclo de eleições dos órgãos municipais e seria da maior importância que as “doenças infantis” do processo de consolidação do Poder Local ficassem para trás. Não há ganho algum em continuar com as lutas de protagonismo entre os governos e os municípios. Funcionam em planos diferentes e têm níveis de competências e de responsabilidade diferentes que não os devia fazer rivais mas sim cooperantes na consecução do interesse público. Também não ajudam os pronunciamentos às vezes cáusticos de autarcas a clamar contra o abandono, a discriminação e humilhação a que os seus municípios sofrem nas mãos do Estado. Só servem para reproduzir a mentalidade de vítima que ao gerar ciclos alternados de indignação e frustração nas pessoas não lhes deixa energia para procurar saídas além daquela de culpar outros pelos seus males.
Infelizmente deixar de trilhar o caminho que já levou muitos ao poder e os ajudou a manterem-se lá mandatos seguidos não é fácil. Todos querem ganhar e o caminho mais fácil para isso é o de mobilizar paixões, agitar bandeiras identitárias e mostrar indignação. O problema com estas tácticas é que, além de desviar dos problemas locais invariavelmente, acabam por deixar todos pior do que no ponto de partida. Abrem caminho para caciquismos, culto de personalidade, bairrismos e políticas populistas e demagógicas que desperdiçam recursos e não capacitam para reconhecer nem para aproveitar oportunidades. Também há quem procure atrair eleitores para o seu campo em nome de se evitar a hegemonia do partido no governo. Compreende-se que quem tenha perdido eleições nacionais procure com vitórias noutras eleições demonstrar que continua a ser um grande partido. É um facto que os eleitores em meio de uma legislatura queiram demonstrar desagrado com a maioria no governo votando nos partidos da oposição. Mas fazer dessas constatações motivo para erigir as câmaras municipais em contrapoder em relação ao governo é excessivo e as consequências gravosas.
A luta política em Cabo Verde às vezes parece uma guerra sem quartel porque não se reconhecem como distintos os diferentes níveis do exercício de poder e os seus respectivos espaços de actuação e mecanismos de fiscalização política. No Parlamento perdem-se horas a discutir questões que melhor enquadramento teriam no debate nas diferentes assembleias municipais do país. Em várias ocasiões o governo e sua maioria parlamentar respondem a interpelações da oposição referindo-se a posicionamentos e actos de presidentes de câmara de cor política diferente. Nos municípios que o partido no governo é minoritário há a tentação de se criar estruturas paralelas, designadamente organizações comunitárias munidas de recursos dados directamente pelo Estado e incumbidas de realização de tarefas de natureza municipal. Em ambiente de crispação as estruturas desconcentradas do Estado não desenvolvem as melhores relações com as estruturas municipais e tendem a piorar porque é notório como certos funcionários em pontos- chave da vida do concelho, designadamente delegados de serviços desconcentrados tornam-se em activistas partidários dos mais frenéticos. No processo é evidente que a eficácia da actuação dos poderes públicos sofre grandemente com toda a descoordenação e a má vontade que é gerada.
Há que normalizar tudo isto e abrir uma nova fase de maior eficiência e eficácia na actuação dos poderes públicos mas de também de menor crispação. Cabo Verde tem 22 municípios. A lógica que está por detrás da criação dos municípios, da eleição dos seus órgãos e da garantia da sua autonomia administrativa é o reconhecimento que, como dizem os entendidos, os interesses das comunidades são específicos e diferenciados dos de outras comunidades locais e dos da colectividade nacional global. Também a Constituição consagra o Poder Local como um dos pilares do Estado de Direito democrático e o respeito pela autonomia das autarquias como um princípio basilar que nem pode ser matéria de revisão constitucional. Daí que se pode concluir que é de maior importância que todos os actores políticos respeitem os diferentes e diferenciados espaços de actuação política de forma a optimizar a actuação de cada um e garantir a complementaridade e solidariedade que entre si o sistema pressupõe e propugna para que o interesse público nacional e local seja plenamente realizado.

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 767 de 10 de Agosto de 2016.