Jorge Carlos Fonseca ganhou as eleições presidenciais de 2 de Outubro com 74% dos votos validamente expressos tendo os outros candidatos Albertino Graça e Joaquim Monteiro recebido respectivamente 22,5% e 3,2% dos votos. A abstenção que acabou por atingir o seu maior valor de sempre com 63,4% dos eleitores não deixou de tirar algum lustre à vitória. Com base nesses números de abstenção, opiniões diversas procuraram questionar a legitimidade da eleição, a validade do sistema político e a representatividade do voto. Assumem que a abstenção sinaliza insatisfação dos eleitores com a política, com os políticos e com os partidos e precipitam-se na conclusão de que a democracia representativa está em crise.
É evidente que, vinda de muitos desses fazedores de opinião, a conclusão não é novidade. Estão sempre à espreita de oportunidade para repetir mais uma vez que “a democracia burguesa”, ou seja, a democracia representativa não serve ou tem muitos defeitos e que o melhor seria optar pela democracia participativa e usar os mecanismos da democracia directa. Desta vez usam os números da abstenção superiores aos dos votantes para pôr em causa os resultados nas urnas. Sem nenhuma base de suporte, fazem da abstenção nas presidenciais uma vontade maioritária em conflito com o sistema político, algo que estranhamente não teria sido notado nas eleições legislativas e autárquicas, poucos meses antes. Muito pelo contrário, o nível de mobilização e participação da população e a tranquilidade ao longo de todo o processo eleitoral demonstraram que os cabo-verdianos reconhecem que o sistema tem alternativas de governação e tem mecanismos para passagem pacífica do poder de um partido para o outro.
Um facto inegável é que a abstenção na eleição presidencial de domingo passado ultrapassou a verificada em eleições passadas. Para se compreender se se trata de uma tendência no comportamento dos eleitores, ou de uma anomalia ou então de fenómeno induzido, há que dar à matéria o devido enquadramento. Aspectos a ter em consideração são, por exemplo, se a eleição presidencial é para o primeiro ou para o segundo mandato em que quase sempre se constata aumento da abstinência. Também se é uma eleição muita disputada não só em termos de número com também de qualidade dos candidatos envolvidos. Ainda, se há ou não grande envolvimento dos partidos na corrida ao voto pelo candidato apoiado. Para alguns observadores, este último facto pesou bastante na eleição de Marcelo Rebelo de Sousa para presidente de Portugal com os piores valores de abstenção de sempre numa primeira volta (51,6%).
Os valores da abstenção variam conforme os casos e conforme as eleições. Normalmente é menor nas legislativas e aumenta um pouco nas autárquicas e depois cresce significativamente nas presidenciais. É um padrão de comportamento já observado nas eleições em Cabo Verde e também em países como Portugal com sistemas políticos similares. Neste aspecto, o que se passou este ano não tem nada de anormal. Outrossim, se se considerar que seria a mesma base eleitoral que deu vitória ao MpD nas legislativas (à volta de 122 mil) e que arrebatou a quase totalidade das câmaras (à volta de 97 mil votos), a apoiar a eleição de Jorge Carlos Fonseca, os cerca de 92 mil votos por ele obtidos não surpreendem porque caem dentro do que seria expectável numa eleição para um segundo mandato em que a disputa não foi tão qualificada nem a envolvência dos partidos foi intensa. A abstenção cresceu significativamente não com a erosão da sua base mas sim com a ausência de parte significativa da base eleitoral do PAICV que nas três eleições mostrou-se nos cerca de 84 mil votos nas legislativas, nos cerca de 66 mil votos nas autárquicas e, supõe-se, nos cerca de 28 mil votos do candidato presidencial Albertino Graça. Os faltosos provavelmente foram engrossar a abstenção ou por cálculo político ou porque lhes falhou a liderança do partido em apoiar abertamente um candidato ao cargo de presidente da república.
É a segunda vez na história da democracia cabo-verdiana que o PAICV se omite no apoio a um candidato presidencial. Aconteceu em 1996 obrigando o Dr. Mascarenhas Monteiro a concorrer sozinho e fazendo a abstenção disparar para 54,3%. Certamente que em qualquer dos casos houve cálculo político por detrás. Aparentemente neste caso com a pré-candidatura de José Maria Neves a não se concretizar e Cristina Fontes a escolher candidatar-se à Câmara da Praia quis-se deixar o “campo vazio” e evitar que alguém ficasse já em “pole position” para as presidenciais de 2021. Feliz ou infelizmente o campo acabou por não ficar vazio e Albertino Graça pôde atrair uns bons milhares de votos que de outra forma iriam para a abstenção, servindo aí eventualmente de arma de arremesso para deslegitimar a eleição do presidente e fragilizar o sistema político.
A verdade é que a democracia em Cabo Verde é liberal e constitucional. Não há supostas maiorias na abstenção que invalidem ou deslegitimem actos eleitorais. Como dispõe a Constituição “a soberania pertence ao povo que a exerce pelas formas e nos termos previstos na Constituição”. Por isso mesmo é que se evita tirania de maioria ou hegemonia de um partido insistindo “no exercício do poder pelas formas e nos termos” e não hostilizando o PR que tem a função de fazer cumprir a Constituição. O actual sistema de governo já demonstrou garantir ao país estabilidade política e governativa, alternância política e ambiente necessário para o desenvolvimento. Há que o manter sem sobressaltos desavisados. Como diz o provérbio americano “se não está quebrado, não conserte”.