O debate político em Cabo Verde entrou recentemente
por um desses desvios bizarros em que para alguns prevalecer na
discussão em curso passa por se assumirem como assistencialistas e
acusar os outros de não serem suficientemente assistencialista.
Tudo
isso é feito em nome da solidariedade para com os mais vulneráveis e de
luta contra a crescente desigualdade social. Faz-se por ignorar as
experiências do passado, marcadas pelo assistencialismo, e as razões por
que as vulnerabilidades das populações em particular no mundo rural
persistem até hoje. Para evitar falhas futuras, não se recorre a uma
avaliação compreensiva das opções feitas e dos investimentos realizados e
em como ficaram aquém dos objectivos pretendidos e do impacto prometido
nos rendimentos das pessoas. Prefere-se usar os problemas das pessoas e
do país como arma de arremesso político.
Mais estranho ainda é o facto de, ao trazer de volta a via do assistencialismo aparentemente, estar-se a querer que o país repita indefinidamente as mesmas soluções ou suas variantes que já demonstraram bastas vezes não resultar. Em Junho de 2015, de acordo com os documentos do Banco Mundial, fez-se o último desembolso do Crédito de Suporte à Redução de Pobreza (PRSC) no valor de 10 milhões de dólares. Esse foi o nono desembolso que se verificou desde 2005 num total de 117 milhões de dólares. Certamente que todo esse dinheiro teve algum impacto na vida das pessoas contribuindo de alguma forma para se atingir alguns dos objectivos do milénio. O problema é se o efeito perdura para além dos projectos e se a vulnerabilidade das populações não se revela na primeira crise como veio a acontecer com a seca de 2017. Uma coisa é certa, de um fracasso na luta contra a pobreza tão evidente e recente não se vai em frente insistindo nas mesmas políticas com a esperança de que na enésima vez que vierem a ser aplicadas finalmente acontecerá algo de positivo e sustentável.
Bem pelo contrário, por cada tentativa na via errada criam-se vícios, desenvolvem-se frustrações e aumenta a desconfiança nas pessoas com consequências gravíssimas na sociedade e nas comunidades onde esses programas são aplicados. Tudo fica ainda pior quando subsequentemente e de forma politiqueira se debatem os fracassos sucessivos e procura-se determinar quem é mais amigo dos vulneráveis, quem mais se dispõe a abrir a bolsa dos recursos públicos para distribuir e quem menos pede às pessoas responsabilidade e cumprimento de seus deveres como pais, cidadãos, contribuintes, munícipes etc. Ao longo das intervenções não poucas vezes deseduca-se a população quanto à origem dos problemas, quanto à disponibilidade de recursos para os resolver, quanto à natureza dos desafios a enfrentar e quanto à capacidade do próprio país em resistir a choques externos. Deseduca-se também ao instrumentalizar para ganhos político-partidários de curtos prazo interesses corporativos, reivindicações salariais e benefícios de todo o tipo sem atender às consequências futuras. Por causa disso muitos, quando confrontados com os problemas do país, não conseguem ver a ligação necessária que, por exemplo, deverá existir entre o aumento salarial e aumento da produtividade e não se lhes consegue mostrar a importância crucial de se ter um Estado com dívida controlada e de se combater a corrupção em todas as frentes, ao mesmo tempo que se garante a igualdade de todos perante a lei.
As nações, assim com as pessoas, devem ser capazes de aprender com os erros cometidos e situações extremas vividas, e daí retirar as devidas ilações. Há algumas como a Alemanha que ainda hoje faz da memória da hiperinflacção dos anos trinta uma forte determinante na atitude dos seus governantes em matéria de política monetária no que respeita à inflação e estabilidade dos preços. Um caso mais recente é o do Ruanda que, na sequência do genocídio de 1994 e do trauma colectivo, tem sabido construir uma vontade nacional focalizada no desenvolvimento rápido do país. Vê-se a lição retirada de traumas passados também em certos países da Europa como Portugal onde hoje se sente por quase todo o espectro político uma vontade de acertar as contas públicas e de diminuir a dívida pública para níveis aceitáveis. Não se esqueceram dos tempos difíceis da troika quando estava em jogo a permanência do país no euro.
O país que parece esquecer facilmente dos seus momentos difíceis e mesmo traumáticos é Cabo Verde. Pelo choque sofrido com a redescoberta da vulnerabilidade das populações rurais na sequência da seca de 2017 seria de esperar uma nova postura dos actores políticos mais em consonância para enfrentar os problemas do país e mais elucidativa para as pessoas e para a sociedade quanto às reais dificuldades do país, quanto à urgência das reformas a serem feitas e à necessidade de mudança efectiva no modelo de desenvolvimento do país. Mas assim como aconteceu no passado depois de momentos difíceis como secas, afundamentos, erupções, pressões excessivas de “parceiros” parece que tudo é esquecido para rapidamente se voltar à gestão corrente. Depois do “susto“ retoma-se rapidamente o discurso de teor marcadamente populista com laivos de demagogia política que tem caracterizado uma parte significativa da intervenção pública dos partidos. O resultado é que se deixam problemas por resolver ou se faz de conta que não existem até que na próxima crise se manifestem em reacção a choques externos, ou se dissimulem em forma de picos de criminalidade, ou se revelam em manifestações ruidosas de interesses corporativos, em reivindicações salariais irrazoáveis e em protestos de utentes insatisfeitos com a qualidade e a morosidade de serviços públicos.
A grande questão é quem ganha com esse estado de coisas. Diz-se hoje que o crescimento não é inclusivo, que a desigualdade aumentou e que o desemprego não diminuiu como prometido. Mas pergunta-se: quando é que foi realmente? Quando é que a prosperidade se mostrou sustentável e ultrapassou o tempo dos projectos, ou dos programas de investimentos de parceiros internacionais. Para que não houvesse tanto desemprego, emprego informal, baixos rendimentos teria que existir uma estrutura produtiva no país capaz de disponibilizar bens e serviços transaccionáveis e poder ocupar grande parte da mão-de-obra disponível no país. E é precisamente isso que o modelo de desenvolvimento favorecido ao longo dos anos em Cabo Verde nunca deixou que acontecesse. Mesmo quando se procurou desviar do padrão existente, as resistências à mudança foram muitas e limitaram o escopo das reformas. O discurso político que se produz em Cabo Verde, e que é ainda tributário do modelo suportado pela ajuda e outros fluxos externos, dá expressão à luta pelo controlo desses recursos. Por isso mantém refém as forças políticas e o resultado é que nem mesmo em presença de dificuldades, situações difíceis ou mesmo traumas nacionais se consegue debater construtivamente. Não há como conduzir um diálogo nacional, que realmente confronte os problemas e abre caminho para se lançar pontes, chegar a compromissos e construir vontades, na perspectiva de se colocar o país dentro de um outro modelo que leve realmente à prosperidade inclusiva que aparentemente todos reclamam. É uma vergonha.
Mais estranho ainda é o facto de, ao trazer de volta a via do assistencialismo aparentemente, estar-se a querer que o país repita indefinidamente as mesmas soluções ou suas variantes que já demonstraram bastas vezes não resultar. Em Junho de 2015, de acordo com os documentos do Banco Mundial, fez-se o último desembolso do Crédito de Suporte à Redução de Pobreza (PRSC) no valor de 10 milhões de dólares. Esse foi o nono desembolso que se verificou desde 2005 num total de 117 milhões de dólares. Certamente que todo esse dinheiro teve algum impacto na vida das pessoas contribuindo de alguma forma para se atingir alguns dos objectivos do milénio. O problema é se o efeito perdura para além dos projectos e se a vulnerabilidade das populações não se revela na primeira crise como veio a acontecer com a seca de 2017. Uma coisa é certa, de um fracasso na luta contra a pobreza tão evidente e recente não se vai em frente insistindo nas mesmas políticas com a esperança de que na enésima vez que vierem a ser aplicadas finalmente acontecerá algo de positivo e sustentável.
Bem pelo contrário, por cada tentativa na via errada criam-se vícios, desenvolvem-se frustrações e aumenta a desconfiança nas pessoas com consequências gravíssimas na sociedade e nas comunidades onde esses programas são aplicados. Tudo fica ainda pior quando subsequentemente e de forma politiqueira se debatem os fracassos sucessivos e procura-se determinar quem é mais amigo dos vulneráveis, quem mais se dispõe a abrir a bolsa dos recursos públicos para distribuir e quem menos pede às pessoas responsabilidade e cumprimento de seus deveres como pais, cidadãos, contribuintes, munícipes etc. Ao longo das intervenções não poucas vezes deseduca-se a população quanto à origem dos problemas, quanto à disponibilidade de recursos para os resolver, quanto à natureza dos desafios a enfrentar e quanto à capacidade do próprio país em resistir a choques externos. Deseduca-se também ao instrumentalizar para ganhos político-partidários de curtos prazo interesses corporativos, reivindicações salariais e benefícios de todo o tipo sem atender às consequências futuras. Por causa disso muitos, quando confrontados com os problemas do país, não conseguem ver a ligação necessária que, por exemplo, deverá existir entre o aumento salarial e aumento da produtividade e não se lhes consegue mostrar a importância crucial de se ter um Estado com dívida controlada e de se combater a corrupção em todas as frentes, ao mesmo tempo que se garante a igualdade de todos perante a lei.
As nações, assim com as pessoas, devem ser capazes de aprender com os erros cometidos e situações extremas vividas, e daí retirar as devidas ilações. Há algumas como a Alemanha que ainda hoje faz da memória da hiperinflacção dos anos trinta uma forte determinante na atitude dos seus governantes em matéria de política monetária no que respeita à inflação e estabilidade dos preços. Um caso mais recente é o do Ruanda que, na sequência do genocídio de 1994 e do trauma colectivo, tem sabido construir uma vontade nacional focalizada no desenvolvimento rápido do país. Vê-se a lição retirada de traumas passados também em certos países da Europa como Portugal onde hoje se sente por quase todo o espectro político uma vontade de acertar as contas públicas e de diminuir a dívida pública para níveis aceitáveis. Não se esqueceram dos tempos difíceis da troika quando estava em jogo a permanência do país no euro.
O país que parece esquecer facilmente dos seus momentos difíceis e mesmo traumáticos é Cabo Verde. Pelo choque sofrido com a redescoberta da vulnerabilidade das populações rurais na sequência da seca de 2017 seria de esperar uma nova postura dos actores políticos mais em consonância para enfrentar os problemas do país e mais elucidativa para as pessoas e para a sociedade quanto às reais dificuldades do país, quanto à urgência das reformas a serem feitas e à necessidade de mudança efectiva no modelo de desenvolvimento do país. Mas assim como aconteceu no passado depois de momentos difíceis como secas, afundamentos, erupções, pressões excessivas de “parceiros” parece que tudo é esquecido para rapidamente se voltar à gestão corrente. Depois do “susto“ retoma-se rapidamente o discurso de teor marcadamente populista com laivos de demagogia política que tem caracterizado uma parte significativa da intervenção pública dos partidos. O resultado é que se deixam problemas por resolver ou se faz de conta que não existem até que na próxima crise se manifestem em reacção a choques externos, ou se dissimulem em forma de picos de criminalidade, ou se revelam em manifestações ruidosas de interesses corporativos, em reivindicações salariais irrazoáveis e em protestos de utentes insatisfeitos com a qualidade e a morosidade de serviços públicos.
A grande questão é quem ganha com esse estado de coisas. Diz-se hoje que o crescimento não é inclusivo, que a desigualdade aumentou e que o desemprego não diminuiu como prometido. Mas pergunta-se: quando é que foi realmente? Quando é que a prosperidade se mostrou sustentável e ultrapassou o tempo dos projectos, ou dos programas de investimentos de parceiros internacionais. Para que não houvesse tanto desemprego, emprego informal, baixos rendimentos teria que existir uma estrutura produtiva no país capaz de disponibilizar bens e serviços transaccionáveis e poder ocupar grande parte da mão-de-obra disponível no país. E é precisamente isso que o modelo de desenvolvimento favorecido ao longo dos anos em Cabo Verde nunca deixou que acontecesse. Mesmo quando se procurou desviar do padrão existente, as resistências à mudança foram muitas e limitaram o escopo das reformas. O discurso político que se produz em Cabo Verde, e que é ainda tributário do modelo suportado pela ajuda e outros fluxos externos, dá expressão à luta pelo controlo desses recursos. Por isso mantém refém as forças políticas e o resultado é que nem mesmo em presença de dificuldades, situações difíceis ou mesmo traumas nacionais se consegue debater construtivamente. Não há como conduzir um diálogo nacional, que realmente confronte os problemas e abre caminho para se lançar pontes, chegar a compromissos e construir vontades, na perspectiva de se colocar o país dentro de um outro modelo que leve realmente à prosperidade inclusiva que aparentemente todos reclamam. É uma vergonha.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 943 de 23 de Dezembro de 2019.