Na primeira sessão plenária de Fevereiro da
Assembleia Nacional reinou, pelo menos por uma vez, o unanimismo nas
posições dos sujeitos parlamentares.
Deputados,
bancadas parlamentares e governo em uníssono manifestaram o seu apoio à
resolução que aprova o acordo de comércio livre continental africano.
As razões apresentadas a favor do acordo salientaram o potencial de um
mercado constituído por mais de mil milhões de pessoas e referenciaram
que para muitos o futuro pertence à África e que depois de criado o
mercado continental será possível negociar com outras potências
económicas em melhores condições. Um senão do acordo é o facto de
obrigar à liberalização de 90% da pauta aduaneira resultando em perdas
significativas de receitas para financiamento do Orçamento do Estado. Na
sua intervenção no parlamento o Vice-Primeiro-ministro (VPM) Olavo
Correia disse que nessa liberalização a abordagem deve ser faseada, progressiva e nunca uma decisão abrupta.
Acrescentou que estudos estão a ser feitos nesse sentido para que a
integração efectiva de Cabo Verde vá ao encontro dos interesses
específicos do país. Fica a dúvida, porquê a pressa em integrar quando
até Dezembro de 2019 só 28 países dos 54 signatários do acordo o tinham
ratificado.
A perda em receitas aduaneiras poderia ser compensada se a integração resultasse em prazo razoável num aumento da troca de bens e serviços com esse mercado continental que fosse vantajoso para o país. Mas é o próprio VPM que reconhece que há falhas na conectividade aérea, marítima e tecnológica e sem isso não há comércio e economia. Também nota que para a integração ser efectiva Cabo Verde tem o desafio adicional de promoção das línguas francesa e inglesa que são essenciais para quaisquer transacções no continente. Resumidamente com a barreira linguística, a falta de conectividade e a quebra prevista nas receitas não é claro os ganhos para o país. O VPM terminou a sua intervenção clamando um estatuto especial para Cabo Verde, porque como pequeno país arquipelágico se for tratado como o Senegal ou a Costa do Marfim jamais conseguirá ter uma integração efectiva. Depois de toda essa argumentação fica difícil justificar o entusiamo nas posições assumidas pelos parlamentares. Os discursos produzidos parecem ter sido ditados mais pelo coração do que pela razão. O problema é que como já foi dito bastas vezes, os países têm interesses e não sentimentos.
O mais normal é que Cabo Verde na implementação da sua estratégia de desenvolvimento procurasse engajar de forma proveitosa os países vizinhos. Historicamente a sua economia sempre esteve ligada à Europa de onde recebe o grosso do investimento directo estrangeiro e que é origem de grande parte da ajuda externa, de uma fatia enorme das remessas de emigrantes e do fluxo turístico que já dinamiza mais de 25% da economia. Para além disso, é para a Europa que vão as exportações e daí é que vem cerca de 90% das importações. Poder expandir o seu comércio com os países africanos constituiria uma mais-valia importante. Exigiria porém que investimentos a vários níveis fossem feitos, entre eles os apontados pelo VPM na sua intervenção para que uma relação com benefícios para as partes fosse estabelecida. Infelizmente nada disso aconteceu. Nem foi possível com Guiné-Bissau que séculos de história, a existência de uma comunidade antiga e facilidade da língua poderiam constituir uma vantagem no estabelecimento de uma base comercial a partir da qual se pudesse dar outros saltos no continente.
A realidade é que ao longo dos anos de independência tem-se ficado pelos discursos e sem qualquer acção consequente. Ou no caso da Guiné, que se permitisse que as relações fossem inquinadas até hoje desbaratando proximidades antigas. Insiste-se em apresentar Cabo Verde como porta de entrada para a Africa Ocidental, mas não é algo que mereça qualquer crédito considerando que não há nenhum esforço dirigido nesse sentido para além de declarações políticas de amizade e boa vizinhança. Se dúvida houvesse quanto à sua influência na região, ela deixou de existir depois de Cabo Verde ter sido ostensivamente ultrapassado na candidatura à presidência da CEDEAO pelo país que em ordem alfabética lhe estava atrás. Recentemente o embaixador de Portugal no Senegal recebeu o prémio de diplomacia económica pelos seus esforços em, segundo as suas declarações ao jornal Público, fazer do Senegal a porta de entrada das empresas portuguesas na África Ocidental. Por aí vê-se o quão é pouco realista vender a imagem de Cabo Verde como a ponte ligando a Europa à CEDEAO.
Há ilhas como Hong Kong e Maurícias que desempenharam esse papel de porta de entrada para capitais e de porta de saída para exportações em relação a países situados no continente e dessa relação conseguindo um grande impulso para o desenvolvimento. É o que fizeram com a China e a Índia. Hoje as Maurícias depois de perderem a relação privilegiada com a Índia fazem-no com dezenas de países africanos para os quais servem de base segura para o investimento directo estrangeiro (IDE) que lhes é dirigido. Souberam desenvolver vantagens competitivas que lhes permitiram ser úteis aos vizinhos e ganhar extraordinariamente enquanto centros industriais, comerciais e financeiros servindo-se em boa parte da sua condição insular.
A dificuldade com Cabo Verde está fundamentalmente em engajar-se numa estratégia de desenvolvimento num quadro que bem pode chamar-se de inserção dinâmica na economia mundial e fazer o desmame da ajuda externa e dos discursos políticos que se tem de fazer quando se vive ou se opta por estar na dependência da generosidade dos outros. Até lá as oportunidades vão passar ao lado, como aconteceu com o AGOA, e dificilmente se vai investir com visão e mostrar perseverança no esforço de dotar o país de vantagens nos domínios certos que o tornem útil aos outros e integrar cadeias de valor globais e regionais. Não se pode é ficar na posição, como diz o VPM, em que sem estatuto especial na zona de comércio livre pouco se ganha com a integração, mas também não participando fica-se sujeito ao que os outros países negociarem entre si e com outras potências económicas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 950 de 12 de Fevereiro de 2020.
A perda em receitas aduaneiras poderia ser compensada se a integração resultasse em prazo razoável num aumento da troca de bens e serviços com esse mercado continental que fosse vantajoso para o país. Mas é o próprio VPM que reconhece que há falhas na conectividade aérea, marítima e tecnológica e sem isso não há comércio e economia. Também nota que para a integração ser efectiva Cabo Verde tem o desafio adicional de promoção das línguas francesa e inglesa que são essenciais para quaisquer transacções no continente. Resumidamente com a barreira linguística, a falta de conectividade e a quebra prevista nas receitas não é claro os ganhos para o país. O VPM terminou a sua intervenção clamando um estatuto especial para Cabo Verde, porque como pequeno país arquipelágico se for tratado como o Senegal ou a Costa do Marfim jamais conseguirá ter uma integração efectiva. Depois de toda essa argumentação fica difícil justificar o entusiamo nas posições assumidas pelos parlamentares. Os discursos produzidos parecem ter sido ditados mais pelo coração do que pela razão. O problema é que como já foi dito bastas vezes, os países têm interesses e não sentimentos.
O mais normal é que Cabo Verde na implementação da sua estratégia de desenvolvimento procurasse engajar de forma proveitosa os países vizinhos. Historicamente a sua economia sempre esteve ligada à Europa de onde recebe o grosso do investimento directo estrangeiro e que é origem de grande parte da ajuda externa, de uma fatia enorme das remessas de emigrantes e do fluxo turístico que já dinamiza mais de 25% da economia. Para além disso, é para a Europa que vão as exportações e daí é que vem cerca de 90% das importações. Poder expandir o seu comércio com os países africanos constituiria uma mais-valia importante. Exigiria porém que investimentos a vários níveis fossem feitos, entre eles os apontados pelo VPM na sua intervenção para que uma relação com benefícios para as partes fosse estabelecida. Infelizmente nada disso aconteceu. Nem foi possível com Guiné-Bissau que séculos de história, a existência de uma comunidade antiga e facilidade da língua poderiam constituir uma vantagem no estabelecimento de uma base comercial a partir da qual se pudesse dar outros saltos no continente.
A realidade é que ao longo dos anos de independência tem-se ficado pelos discursos e sem qualquer acção consequente. Ou no caso da Guiné, que se permitisse que as relações fossem inquinadas até hoje desbaratando proximidades antigas. Insiste-se em apresentar Cabo Verde como porta de entrada para a Africa Ocidental, mas não é algo que mereça qualquer crédito considerando que não há nenhum esforço dirigido nesse sentido para além de declarações políticas de amizade e boa vizinhança. Se dúvida houvesse quanto à sua influência na região, ela deixou de existir depois de Cabo Verde ter sido ostensivamente ultrapassado na candidatura à presidência da CEDEAO pelo país que em ordem alfabética lhe estava atrás. Recentemente o embaixador de Portugal no Senegal recebeu o prémio de diplomacia económica pelos seus esforços em, segundo as suas declarações ao jornal Público, fazer do Senegal a porta de entrada das empresas portuguesas na África Ocidental. Por aí vê-se o quão é pouco realista vender a imagem de Cabo Verde como a ponte ligando a Europa à CEDEAO.
Há ilhas como Hong Kong e Maurícias que desempenharam esse papel de porta de entrada para capitais e de porta de saída para exportações em relação a países situados no continente e dessa relação conseguindo um grande impulso para o desenvolvimento. É o que fizeram com a China e a Índia. Hoje as Maurícias depois de perderem a relação privilegiada com a Índia fazem-no com dezenas de países africanos para os quais servem de base segura para o investimento directo estrangeiro (IDE) que lhes é dirigido. Souberam desenvolver vantagens competitivas que lhes permitiram ser úteis aos vizinhos e ganhar extraordinariamente enquanto centros industriais, comerciais e financeiros servindo-se em boa parte da sua condição insular.
A dificuldade com Cabo Verde está fundamentalmente em engajar-se numa estratégia de desenvolvimento num quadro que bem pode chamar-se de inserção dinâmica na economia mundial e fazer o desmame da ajuda externa e dos discursos políticos que se tem de fazer quando se vive ou se opta por estar na dependência da generosidade dos outros. Até lá as oportunidades vão passar ao lado, como aconteceu com o AGOA, e dificilmente se vai investir com visão e mostrar perseverança no esforço de dotar o país de vantagens nos domínios certos que o tornem útil aos outros e integrar cadeias de valor globais e regionais. Não se pode é ficar na posição, como diz o VPM, em que sem estatuto especial na zona de comércio livre pouco se ganha com a integração, mas também não participando fica-se sujeito ao que os outros países negociarem entre si e com outras potências económicas.
Humberto Cardoso