O ano lectivo 2021/2022 iniciou esta segunda-feira, 13 de Setembro. Ainda em tempo de crise pandémica e com variantes do coronavírus a assombrar as tentativas de um regresso ao normal, a esperança de todos é que finalmente se consiga retomar o ensino e a aprendizagem das crianças e jovens sem as interrupções e restrições dos dois últimos anos lectivos.
Os esforços do país em desenvolver o seu capital humano não podem continuar a ser interrompidos e a se revelarem menos eficientes do que seria expectável. É todo o futuro de uma geração que fica seriamente comprometida, se, aos problemas de qualidade, se juntar menos tempo dedicado ao ensino e a precária actividade pedagógica, porque em aulas presenciais intermitentes.
O país ao longo dos anos tem feito investimentos extraordinários na educação das novas gerações. Em consequência, segundo o Relatório Nacional Voluntário 2021 (VRN) apresentado pelo governo a 12 de Julho último no âmbito do programa “Cabo Verde Ambição 2030” a taxa de escolarização líquida atingiu 92,4% nos primeiros oito anos de escolaridade. A taxa de passagem de anos dos alunos foi de 90,3%. No ensino secundário a taxa de escolarização chegou aos 61,2% enquanto no ensino superior, entre jovens de 18 a 24, a percentagem de estudantes foi de 23,5%. O retorno desse investimento, porém, não tem sido o melhor. Segundo o relatório referido, VRN, uma avaliação feita a alunos do 2º e 6º anos nas disciplinas de Português e Matemática revelou que 61,8% dos alunos mostraram boa capacidade de leitura e 45% deram provas de capacidade razoável no mundo da escrita.
O problema é que do total dos alunos só 9,1% conseguiu atingir os objectivos da avaliação no que toca à aplicação do conhecimento básico da estrutura da língua e uma maioria de seis entre cada 10 alunos revelou ser incapaz de responder às questões colocadas. Na matemática, e de acordo com o relatório de análise contextual, os alunos mostraram múltiplas dificuldades em resolver problemas de operações e números, na organização dos dados e na geometria. Só 12.6% conseguiu responder à maioria das questões de geometria e medições, enquanto 53,1% mostrou-se incapaz de as responder adequadamente. Com base nesses e noutros dados de desempenho constantes do relatório (VRN, pg. 70 e s..) pode-se concluir que, se numa certa perspectiva a batalha da massificação do ensino foi ganha, considerando os altos níveis de escolarização existentes, em termos de qualidade da formação dada, os resultados ficaram muito aquém do desejado.
Sem uma educação de qualidade não há desenvolvimento, em particular nos países pequenos, insulares e sem recursos naturais, como bem testemunham os casos de sucesso como Singapura e Maurícias. Em Cabo Verde, o resultado dos investimentos feitos na educação não tem contribuído o suficiente para a constituição do capital humano necessário para o país crescer e ser competitivo. A satisfação que oficialmente se tira dos proclamados ganhos da educação mais parece uma celebração de uma vitória de Pirro. Apenas se vê o sucesso da massificação em número de escolas, liceus e universidades e no número de alunos inscritos, mas não se tem em devida conta as grandes perdas em gente mal formada, em sonhos individuais e expectativas familiares não realizados e em oportunidades perdidas por falta de qualidade da formação dada e de uma cultura de excelência no país. Massificação sem qualidade é uma fraude. Não é inclusivo, reproduz desigualdades e alimenta frustrações e ressentimentos.
O relatório VRN 2021 apresentado por Cabo Verde lembra que a ambição do país em ter uma educação de excelência teria que se realizar através de um sistema educacional integrado numa economia do conhecimento e de um ambiente escolar e universitário com cultura de investigação, experimentação e inovação que ajudasse os cabo-verdianos a dominar línguas, ciência e tecnologia. A isso devia ainda juntar-se a adopção por todos de um perfil cosmopolita na relação com o mundo imbuído de valores e motivações favoráveis à aprendizagem ao longo da vida. O facto de que é percepção geral que se está muito aquém desses objectivos, seja na aquisição de competências no domínio das línguas, das ciências e das tecnologias, seja na adopção do cosmopolitismo que faria do cabo-verdiano um homem do mundo, é deveras preocupante. Também complicado é ver que, se se deixa de lado a questão de obras nas escolas, os problemas do sistema educacional do país parecem resumir-se às reivindicações salariais, progressões e requalificações dos professores, relegando para um secundaríssimo plano questões sobre a qualidade e os conteúdos leccionados. Aliás, sempre que um político ensaia trazer para discussão pública a qualidade do ensino imediatamente um colega de cor política diferente salta-lhe literalmente em cima com os problemas dos professores ou reivindicações de cozinheiras ou de guardas pondo fim a qualquer debate sereno e substantivo sobre o assunto.
Não espanta, pois, que ao invés de valorizar o conhecimento, o sistema parece mais estar mergulhado em guerras culturais sendo uma delas à volta do uso do crioulo no sistema de ensino. O crescente militantismo pela causa é por demais evidente no número cada vez maior de professores e outros profissionais e representantes do sector educativo que insistem em expressar-se pública e oficialmente em crioulo nos órgãos de comunicação social. Não parece que as dificuldades notórias na aprendizagem da língua portuguesa apontadas pelo relatório VRN 2021 estejam a preocupar quem deliberadamente põe o crioulo e o português num conflito identitário artificial em que são vistos como mutuamente exclusivos. E é evidente que depois fica difícil motivar os jovens mais impressionáveis a aprender devidamente a língua oficial deixando-os efectivamente em desvantagem como cidadãos e como profissionais face aos que, ou por influência dos pais ou porque frequentam escolas privadas, não se deixaram apanhar por esse conflito.
Uma outra área do saber também afectada quando há guerras culturais e ideológicas é a disciplina de história. Várias gerações de jovens e crianças cabo-verdianas não estudaram o suficiente da história universal para se situarem no mundo com o conhecimento dos factos passados e o seu desenrolar no tempo e de como impactam o presente e enformam e constrangem o futuro. Aliás, as universidades cabo-verdianas nem oferecem licenciaturas em história e quando muito dirigem os interessados para estudos africanos. Ensina-se História de Cabo Verde no ensino básico e no secundário, mas muito limitado no seu escopo como se pode aperceber do que se propõe como objectivos gerais do ensino de história no 9º ano de escolaridade no tocante à história da idade contemporânea: “analisar o despertar nacionalista cabo-verdiano contextualizado nas consequências da II Guerra Mundial, conhecer a génese, etapas da luta pela independência, o protagonismo de Amílcar Cabral e a construção do Estado em Cabo Verde(...)”.
Num quadro de aprendizagem tão limitado da história do país e do mundo não é de estranhar que haja quem, num evento tendo como principais oradores o ministro de Cultura e um ex-presidente da república e na plateia várias personalidades e académicos, proclame que Amílcar Cabral foi o segundo maior líder político da humanidade. Nem na Coreia do Norte se chegou a tanto. Cabo Verde, porém, não pode dar-se ao luxo de seguir um caminho que o afasta do conhecimento e das competências que precisa para prosperar e do cosmopolitismo com que deve encarar o mundo para poder aproveitar as oportunidades e afirmar-se no mundo. É fundamental que, parafraseando o lema deste ano lectivo, se invista num ensino de qualidade para garantir a resiliência necessária nestes tempos conturbados e manter a confiança de que há futuro possível para ser construído.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1033 de 15 de Setembro de 2021.