É hoje ponto geralmente assente que o mundo mudou em 2022. Ao longo da década passada grandes mudanças já se vinham verificando a todos os níveis designadamente políticos, económicos, sociais e culturais. É hoje ponto geralmente assente que o mundo mudou em 2022. Ao longo da década passada grandes mudanças já se vinham verificando a todos os níveis designadamente políticos, económicos, sociais e culturais. À semelhança dos movimentos tectónicos, durantes anos essas mudanças passaram quase despercebidas para subitamente se manifestarem em terramotos a criar novas realidades geopolíticas e geoeconómicas e em tsunamis a deixar um rasto de destruição e pobreza após a sua passagem. A pandemia da Covid-19 intensificou o processo, mas foi a invasão da Ucrânia pela Rússia e a guerra subsequente que provocou a ruptura no mundo, interrompendo a globalização que se tinha tornado galopante no pós-Guerra Fria e queda do Muro de Berlim.
A guerra e as sanções dos Estados Unidos, da Europa e seus aliados sobre a Rússia que se seguiram, abrangendo em particular os sectores comercial, financeiro e tecnológico, forçaram um realinhamento global. Alguns países pretenderam mostrar-se neutros (África), outros aproveitaram para fazer negócios de oportunidade com a Rússia (Índia) e uns poucos sinalizaram disponibilidade para contornar sanções e fornecer material de guerra (Irão, Coreia do Norte). A reacção da Rússia às sanções, pela via de instrumentalização do fornecimento de petróleo e gás e pelo bloqueio das exportações de cereais e outros produtos da Ucrânia, fez disparar o preço dos combustíveis e dos alimentos a nível mundial contribuindo grandemente para o aumento geral da inflação.
O que normalmente seria um factor que poderia indispor uma parte importante da comunidade das nações contra a Rússia acabou por revelar-se mais uma fractura no apoio que o Ocidente esperava contar. De facto, os preços elevados de energia serviram para aproximar da Rússia os principais países produtores de gás e petróleo (Médio Oriente), todos interessados na bonança da alta de combustíveis. Para justificar a escalada de preços nos produtos alimentares e a escassez de fertilizantes, o esforço de culpabilização dos Estados Unidos e da Europa feito em certos sectores de opinião conseguiu afastar uma condenação explícita da agressão russa por vários países do Sul de entre os mais atingidos pela carestia de cereais.
A China, por seu lado, num momento que culminou em Outubro último de reafirmação de um terceiro mandato do presidente Xi Jingping, vê-se num período de competição com os Estados Unidos marcado pela rivalidade estratégica. Um período claramente mais tenso até porque a questão de Taiwan passou a ser vista numa outra luz na sequência da invasão da Ucrânia e das sanções que foram aplicadas. Mas, apesar de a China se encontrar numa espécie de aliança com a Rússia para contrabalançar o peso da Europa e dos Estados Unidos, trata a guerra na Ucrânia com ambiguidade suficiente que lhe permite apoiar a Rússia sem lhe fornecer armas e materiais estratégicos ao mesmo tempo que reitera o seu suporte pelo princípio do respeito pela integridade territorial dos estados soberanos.
Na prática, todas essas dinâmicas levam à coalescência de países em grupos de geometria variável devido à sobreposição de valores e interesses que certamente os líderes tentarão estabilizar. Para isso, vão invocar a comunidade de valores ou proclamar a necessidade urgente de estabelecimento de cadeias de fornecimento seguras e resilientes no âmbito do já chamado friend shoring. O processo de desglobalização que isso vai implicar poderá ficar ainda mais complexa com a reorganização do comércio internacional que será preciso fazer para efectivar o chamado decoupling, ou desengajamento das economias dos Estados Unidos e da China. É algo que já está em movimento e que certamente nos próximos anos irá afectar a todos de forma nem sempre previsível e vantajosa até se verificar uma estabilização. Outrossim, situações como a guerra na Ucrânia, pelos seus múltiplos impactos, mas também o posicionamento em particular dos países e economias de maior peso, irão determinar que direcção e a que ponto se poderá chegar na reversão da globalização que levou décadas a ser construída.
No entrementes, o mundo tem um outro grande desafio a enfrentar que é a inflação. Tida por temporária no ano passado pela generalidade dos especialistas e por instituições credíveis como o FMI e os bancos centrais, porque se supôs que era devida fundamentalmente ao excesso de liquidez acumulada durante a pandemia da Covid-19 e aos constrangimentos das cadeias de abastecimento, a inflação veio a revelar-se afinal persistente, prolongada e afectando o mundo inteiro. Os constrangimentos criados pela guerra na Ucrânia só a agravou. As suas causas mais profundas têm que ser combatidas e as medidas de política que vêm sendo aplicadas, designadamente o aumento da taxa de juros tornam maior o risco para o próximo ano de uma recessão mundial com consequências devastadoras principalmente para os países mais pobres.
Para além do problema de domar a inflação é facto geralmente assente que o tempo de dinheiro barato terminou e que uma nova era de custos mais elevados de financiamento vai se impor. E isso vai acontecer precisamente quando muitos países lidam com dívida pública acumulada devida à pandemia e exigências postas pela transição energética, pelas alterações climáticas e a adopção generalizada do digital irão implicar financiamentos avultados. Não serão fáceis os próximos tempos com as grandes incertezas a impactar o grau de cooperação internacional que será possível mobilizar e os constrangimentos que o ambiente actual colocam à actuação das instituições multilaterais. Também há que ter em conta os imprevistos derivados do alastramento da guerra na Ucrânia, surgimentos de outros focos de conflito aberto e manifestações climáticas extremas que afectam a produção e distribuição de bens alimentares.
A boa notícia em todo este cenário preocupante e de grande complexidade é que a democracia e os valores liberais que pareciam estar em queda livre numa crise que já vem de vários anos deram um sinal forte de recuperação em várias eleições na Europa, no Brasil e nos Estados Unidos e ganharam grande visibilidade com o espectáculo da Ucrânia a resistir e a vencer na guerra contra a Rússia autocrática com a ajuda dos países democráticos. E as democracias já demonstraram que são mais eficazes do que as autocracias em combater pandemias, em fazer desenvolvimentos científicos e tecnológicos cruciais para a prosperidade e sobrevivência da humanidade e em manter o espírito de resiliência perante a adversidade como bem prova a situação da Ucrânia. O que pode vir a revelar-se uma má notícia é a tentação de governos em vários países de continuar com a mesma atitude e a fazer o mesmo num mundo que pode estar em acelerada mudança em direcção a novos equilíbrios.
É evidente, pelos parcos resultados conseguidos na luta contra pobreza, no desenvolvimento de um sector privado robusto e de uma sociedade civil autónoma em relação ao Estado que não tem sido a melhor a exploração das linhas de cooperação e financiamento que são disponibilizados em quadros multilaterais. Com investimentos cruciais por fazer para o futuro do planeta, para se combater as desigualdades locais e globais e manter a esperança num futuro melhor de muitos milhões de seres humanos, é fundamental uma mudança de fundo na forma como todos esses recursos são geridos tanto pelas organizações internacionais como pelas elites governantes locais. O desperdício de recursos não deve continuar quando há tanta coisa em jogo. A passagem de um tempo de abundância para um outro de escassez num ambiente de tantas incertezas devia ser motivação forte para se operar uma mudança de paradigma que realmente traga resultados que sejam sustentáveis e inclusivos.
Para um pequeno país arquipélago de diminuta população e parcos recursos naturais como Cabo Verde a atitude adequada talvez seja similar a de um surfista que quer chegar a bom porto. Sabe que não pode criar ondas, mas pode aproveitar as que surgem no horizonte, cavalgá-las enquanto for possível e passar para outras antes que morram na praia. Com sabedoria, perseverança e desejo de vencer essa é a postura a adoptar para se enfrentar o ano novo que desponta principalmente quando já se sabe que o mundo mudou.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1100 de 28 de Dezembro de 2022.