segunda-feira, fevereiro 12, 2024

Intolerância polariza e divide

 

De há alguns meses para cá que se vem notando que o espectro da intolerância está outra vez a ressurgir no país. Mostrou-se claramente em Outubro quando o parlamento não aprovou a resolução que visava declarar a celebração oficial do centenário de Amílcar Cabral. Nas últimas semanas a celeuma é à volta do mais recente livro de Manuel Brito-Semedo Cabo Verde, Ilhas Crioulas. A afirmação da cabo-verdianidade como uma realidade de séculos parece colidir com as opções pan-africanistas de alguns. A mesma reacção tiveram quando a maioria parlamentar não viu coincidência entre o pensamento e a acção personificados por Cabral e os princípios e valores que são as referências básicas da II República.

Não é à toa que Amílcar Cabral, o fundador e líder do PAIGC, era o ícone da chamada democracia nacional revolucionária com um único partido, sem garantia dos direitos fundamentais, sem Estado de Direito, sem separação de poderes, sem tribunais independentes e sem poder local. O mínimo de coerência exigiria que o cabralismo não fosse comemorado por instituições de uma democracia liberal e constitucional que se rege por princípios absolutamente opostos. Isso não impede naturalmente que seja celebrado livre e abertamente por quem ainda se revê no seu pensamento. A tolerância intrínseca do sistema democrático mesmo às ideias que se lhe opõem directa ou indirectamente não encontra, aparentemente, a mesma reciprocidade da outra parte.

Compreende-se que seja assim porque o pensamento político que é implicitamente único não convive naturalmente com o pluralismo, com o princípio da vontade da maioria e com o primado da lei. Nesse sentido, tentou-se primeiro que o presidente da república declarasse oficialmente 2024 como o ano do centenário quando a competência para isso é do governo ou do parlamento. A seguir procurou-se esvaziar a decisão parlamentar com posicionamentos de outros foruns como um encontro de presidentes da república, o actual e os antigos, e depois com uma reunião do conselho da república. A par de investidas intolerantes nas redes sociais, promoveu-se uma petição a ser enviada ao parlamento para supostamente reverter a posição expressa pela maioria.

Também já se nota a actuação algo desarticulada do Estado na matéria com órgãos de soberania cada um por si, e mesmo entre os titulares de um mesmo órgão (governo e parlamento) separadamente, a tomar a sua posição própria quanto à comemoração oficial do centenário. Outrossim, fazem-se apelos às câmaras municipais para avançarem com a sua própria iniciativa e procura-se suporte em empresas, escolas e universidades públicas para esvaziar a posição estatal. Em tudo isto a pergunta que urge fazer é onde fica a unidade do Estado e o princípio democrático de que o país é governado pelo partido que ganhou as eleições e assegura a maioria parlamentar.

Do governo em particular que dirige a administração pública e conduz a política interna e externa e também do presidente da república que é o garante da unidade da Nação e do Estado devia-se esperar uma outra postura para que imagens confrangedoras de dirigentes e convidados como as vistas na cerimónia do fecho da chamada “Marxa Cabral” não se repetissem. O “sentido de Estado” que se exige especialmente dos titulares de órgãos soberania e dos órgãos públicos não pode dar a aparência de se subordinar perante o que configura a intolerância de uns em aceitar que a república criada pela Constituição de 1992 não se revê na sua ideologia datada. De facto, ninguém disputa a condição actual de Cabo Verde como Estado independente. O repúdio geral é para a ditadura que sob a bandeira do cabralismo foi imposta ao país durante quinze anos. Juntar hoje a independência e o regime ditatorial só faz reviver as fracturas do passado, as mesmas que já se vê chegar ao próprio Estado quando ele mais precisa estar unido nos seus propósitos para enfrentar os desafios actuais.

Algo similar e também divisivo acontece quando em nome do pan-africanismo se procura negar a especificidade cabo-verdiana. No continente, agentes políticos animados de ideologias pan-africanistas pretenderam forjar consciência da nação nos territórios das colónias, criadas pelo imperialismo europeu, na conferência de Berlim de 1885, a partir de uma África idealizada em cultura, costumes e ritos e na luta contra o colonialismo. Os resultados conhecem-se. Em Cabo Verde pretendeu-se fazer o mesmo através da política de reafricanização dos espíritos quando, com o 25 de Abril de 1974, Portugal se retirou do seu império colonial de forma pouco ordeira.

A diferença é que há mais de um século já a consciência da nação tinha emergido em Cabo Verde “a partir de dentro” com o contributo de todas as ilhas na sua diversidade, nenhuma considerando-se mais cabo-verdiana que as outras. O choque entre a pretensão e a realidade era inevitável. Também, sendo a reafricanização dos espíritos uma política do Estado tinha que ser acompanhada da intolerância para quem já tinha a sua consciência de cabo-verdiano e nunca precisou de reclamar a condição complementar nem de europeu, nem de africano, como bem precisou Baltasar Lopes da Silva em várias ocasiões.

Na sequência do lançamento do livro de Brito-Semedo o sentimento intolerante e divisivo veio outra vez à tona. Mais uma vez o pan-africanismo e o cabralismo apareceram como dois irmãos siameses vindos de fora e unidos em colisão frontal contra uma entidade com percurso distinto que não começou como colónia no continente depois de 1885, mas sim a partir das ilhas povoadas desde de 1462. Quem parece reconhecer a diferença é o próprio Amílcar Cabral que, segundo Julião Soares Sousa, autor guineense da sua biografia política, “no seu projecto de regressar à Africa não tencionava ir para nenhuma colónia portuguesa em particular. Qualquer servia, excepção feita a Cabo Verde” (pag. 33).

Mais uma razão para se afirmar a especificidade cabo-verdiana e evitar armadilhas ideológicas enfraquecedoras da identidade nacional e criadoras de divisões. São percalços que podem levar à regressão no percurso de Cabo Verde como nação una, no ponto que muitos, em particular em África, aspiram atingir.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1158 de 7 de Fevereiro de 2024.

sexta-feira, janeiro 26, 2024

Omissões pagam-se caro

 

Na quinta-feira passada, dia 18 de Janeiro, a secretária geral da UNTC-CS e membro do conselho directivo do INPS, em entrevista à rádio pública, defendeu que o INPS tinha toda a legitimidade para promover o leilão dos depósitos. Segundo a Inforpress, acusou os bancos de viver às custas dos contribuintes sequestrando fundos públicos. Também teria dito que o BCV esteve muito mal alegando que os fundos não deviam ser transferidos dos bancos para o INPS tornando-se cúmplice do referido sequestro. Seguiram-se comunicados do BCN, do BCV e finalmente do INPS a explicar as respectivas posições sobre o imbróglio. Do governo que tem a tutela do INPS ainda não se ouviu nada não obstante a delicadeza da situação e os cuidados a ter com o sistema financeiro em matéria que o próprio Banco Central classifica de risco sistémico.

A questão que opõe o INPS aos bancos já tinha sido aflorada em dois números anteriores do jornal a Nação com base, supõe-se, em fugas de informação ou acesso privilegiado a fontes sem que as partes envolvidas se sentissem na necessidade de qualquer explicação pública dos acontecimentos. Não deixa de ser uma postura típica no país de, perante coisas importantes a acontecer, faz-se por ignorá-las ou então procura-se varrer para debaixo do tapete. A intervenção da dirigente sindicalista teve o condão de forçar os envolvidos a dar esclarecimentos. A partir daí que se ficou a saber que o BCV, desde 12 de Dezembro, tomou conhecimento da reclamação dos bancos e agiu para acautelar eventuais riscos sistémicos “recomendando aos bancos que se abstivessem de participar nos leilões até que “medidas de mitigação de risco e métricas adicionais de monitorização da liquidez” fossem equacionadas pelo Banco Central.

Da leitura dos comunicados emitidos percebe-se o mal-estar que foi instalado no sector e que tem perdurado por mais de um mês. Aliás, as saídas na imprensa já eram sinal disso culminando nas acusações dirigidas aos bancos comerciais e ao BCV. Quanto a eventuais efeitos no público e nos operadores económicos, o BCN fez questão, através do seu comunicado, de assegurar que os depósitos do INPS estão integralmente disponíveis e que não há condicionantes à sua movimentação. Da parte do BCV a suspensão imediata dos leilões dos depósitos do INPS traduziu a preocupação do BCV com os impactos negativos que uma eventual materialização do risco de liquidez poderia ter em instituições que, embora sem grande importância ou dimensão sistémica, desempenham um papel importante no financiamento das famílias e das empresas.

Desde a crise financeira de 2007-2008 que garantir que a estabilidade financeira, a par da estabilidade dos preços, passou a estar no centro da atenção dos bancos centrais em todo o mundo. Intervenções no mercado são despoletadas para manter liquidez no sistema financeiro e dar combate à inflação sempre que algo anómalo se manifeste. Há quase um ano atrás, por causa de retiradas súbitas de depósitos do banco Silicon Valley (SVB) nos Estados Unidos, rapidamente o banco central em coordenação com a Secretária do Tesouro, Janet Yellen, e outras instituições de regulação se movimentou para garantir liquidez com vista a evitar a corrida aos depósitos e o efeito de contágio nos outros bancos.

O SVB não era considerado um banco sistémico no sentido que a sua falência poderia causar disrupções graves no sistema. Mas há algum tempo que se apercebeu que as crises nascem onde menos se espera. Daí justificar-se ficar sempre alerta. O BCV no seu comunicado diz que já no Relatório de Estabilidade Financeira de 2022 tinha alertado que a “dependência de financiamento de depositantes institucionais [pode] aumentar o risco sistémico e de contágio para todo o sistema bancário nacional. Estranha é que, não obstante todos esses alertas, inovações no sentido de leiloar depósitos do INPS e conseguir taxas de retorno mais altas não tenham aparentemente recebido o devido escrutínio prévio para se ter uma ideia das implicações no sistema.

Os bancos queixam-se que não tiveram conhecimento do regulamento do leilão e dos critérios de selecção e o INPS contrapõe que já constavam da carta-convite e que as dúvidas foram esclarecidas durante a abertura das propostas. O BCV diz que só tomou conhecimento da matéria com a reclamação dos bancos que aconteceu após o primeiro leilão. Quanto ao governo, em particular o ministro das Finanças que, segundo os Estatutos do INPS, alínea e) do nº 2 do art. 3º, exerce a tutela conjunta com o ministro da Família e Segurança Social em matéria de “definição das regras de gestão financeira e investimentos dos fundos próprios do INPS”, não se sabe quando é que teve conhecimento da questão. Até agora não deu qualquer sinal sobre o assunto apesar de tudo o que continua a vir a público na comunicação social.

Infelizmente não é esta a única matéria sensível e urgente que, por exigir acção coordenada de vários intervenientes, precisa de uma atenção mais cuidada do governo. O problema é a tentação generalizada, que também se nota noutras paragens, de fazer da governação uma mistura de marketing político, espectáculo e actos performativos dirigidos para a mobilização de emoções. Não resta muito tempo ou disponibilidade para uma entrega a questões mais complexas e de ganhos a médio e longe prazo que são essenciais para construir um futuro sólido e com menos sobressaltos. E omissões em questões estruturantes acabam por acontecer.

É só ver como nesta questão essencial de “melhor servir e de garantir com maior segurança a rentabilização dos recursos da protecção social obrigatória” como se propõe fazer o INPS no seu comunicado não se avançou com a criação do organismo autónomo de gestão dos investimentos do INPS assim como estipula o artigo 42º dos seus estatutos publicados em Agosto de 2014. É o que existe em todos os países que procuram capitalizar de melhor forma a poupança social. Cria-se capacidade própria e autónoma para gerir uma actividade que exige níveis elevados de especialização técnica, de controlo de riscos e de eficiência e que também inspira credibilidade.

Segundo o decreto-lei nº 40/2014 devia ter sido criada no prazo de quatro meses após a publicação no BO, ou seja, até Dezembro de 2014. Seguramente por conveniências várias os sucessivos governos têm sido relutantes em seguir pelo caminho que a lei os impõe. A responsabilidade de conseguir uma melhor rentabilização dos recursos do INPS e de, ao mesmo tempo acautelar para eventuais riscos sistémicos que os seus enormes depósitos poderão provocar, cria, porém, uma nova urgência. É para se cumprir a lei. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1156 de 24 de Janeiro de 2024.

sexta-feira, janeiro 19, 2024

Semana da República: a reconciliação que não foi

 

O presidente da república tem chamado a atenção para as ameaças à democracia em várias intervenções nos últimos dias, designadamente na sessão solene do 13 de Janeiro, o Dia da Liberdade e da Democracia e nas celebrações do 15 de Janeiro, Dia das Forças Armadas. Em ambos discursos do PR fica-se com forte impressão que considera que é na natureza da disputa entre os partidos políticos que reside o essencial da ameaça ao regime democrático. Uma disputa pelo poder que, segundo ele, “passa a ser uma disputa sem quartel, visando a liquidação do adversário, com acusações, calúnias, insultos, assassinato de carácter, muitas vezes sem possibilidade de defesa, afectando as instituições da República”. Daí que considera “a importância de se reinventar os partidos políticos” e, num outro registo, que face às ameaças à democracia é “fundamental, de mãos dadas, trabalhar para manter o prestígio e a dignidade das Forças Armadas”.

Apesar do PR terminar o discurso do dia 13 de Janeiro com vivas aos partidos políticos, é de se perguntar se não se está a reforçar o sentimento anti-partido com a sugestão de que o problema das democracias modernas (crise de representatividade, a nova realidade das redes sociais e desencanto e ressentimento por razões de exclusão) deve-se essencialmente à acção dos partidos. É que esse sentimento já existe em Cabo Verde devido às décadas de salazarismo, que era um regime anti-partido, seguido de quinze anos de regime de partido único, que era contra o multipartidarismo e devia-se ter algum cuidado em não o alimentar. Sabe-se perfeitamente que ter um sistema partidário funcional é fundamental para as democracias. Ameaças não vêm das disputas entre os partidos num ambiente de liberdade e pluralismo. O mais normal é que resultem do protagonismo de forças com narrativas anti-sistema, de movimentações para coarctar os direitos fundamentais e pôr em causa a independência dos tribunais e de nacionalismos identitários que em roupagens renovadas “tribalizam” a sociedade e impedem o exercício pleno da cidadania.

Mais grave vem se revelando o protagonismo de líderes e partidos que chegados ao poder via processos eleitorais democráticos imediatamente procuram reconfigurar a relação com outros poderes e instituições. Ampliam as suas competências em detrimento de outros órgãos de soberania com custos para o equilíbrio de poderes e criando tensões e instabilidade governativa. Já aconteceu em vários países. Na Polónia o novo governo do primeiro-ministro Tusk está a desenvolver um esforço enorme para reverter os estragos causados por esse tipo de ameaças à democracia. Nos Estados Unidos a preocupação é com a possibilidade, nas eleições de 2024, do regresso a uma presidência musculada e autoritária liderada por Donald Trump.

Em Cabo Verde o confronto que já se desenha entre o presidente da república de um lado, e o governo e a sua maioria parlamentar do outro, não augura nada de bom para os próximos tempos. Corre-se o risco de vê-lo arrastar durante todo o novo ciclo eleitoral que começa este ano e vai até 2026. E a tentação será forte para as forças políticas diversas tomarem partido no confronto, na perspectiva de conseguir vantagens na corrida para as eleições autárquicas e legislativas. A acontecer, como já se notam sinais claros de colagem às posições do presidente da república nas disputas de protagonismo com o governo, não há muita dúvida que os tempos próximos poderão ser de muitos sobressaltos. Aliás, a iniciativa presidencial da Semana da República já dá sinais de como se irá proceder daqui para a frente.

A Semana da República, que já vai na 13ª edição, foi uma iniciativa do presidente Jorge Carlos Fonseca com o objectivo, entre outros, de conseguir uma espécie de reconciliação com as duas datas nacionais: o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia e o dia 20 de Janeiro, Dia dos Heróis Nacionais. A iniciativa não teve o sucesso desejado, as tensões continuaram e a data que simboliza a actual II República nunca teve o brilho que deveria merecer. Durante o seu primeiro mandato e com um governo e uma maioria parlamentar do PAICV nunca se conseguiu sequer aprovar a realização solene de comemoração no parlamento do Dia da Liberdade e da Democracia a exemplo da comemoração do 25 de Abril em Portugal ou do Dia da Constituição, em Espanha. Em contrapartida, acabou-se por instituir em cerimónia de Estado a colocação de flores na estátua de Amílcar Cabral, na Várzea, sem aparentemente qualquer formalidade legal de suporte.

Com uma nova maioria parlamentar do MpD, a partir de 2016 adoptou-se a sessão solene nas comemorações do 13 de Janeiro, mas a rivalidade entre as duas datas só se agravou com a reivindicação cada vez mais estridente da superioridade do 20 de Janeiro. Para uns, é simbólica, dá uma legitimidade histórica incontornável e inultrapassável. Daí, a crescente idolatria de Cabral e a colisão permanente com as instituições democráticas, cuja legitimidade provém do voto popular livre e plural expresso de acordo com a Constituição de 1992. A eleição do novo presidente da república, José Maria Neves, em 2021, veio dar um outro vigor à disputa. A Semana da República de 2024 vai ter o seu ponto alto com a Marcha Cabral sob o alto patrocínio do Presidente da República.

Claramente que neste quadro as disputas entre os partidos tendem a tomar expressões e tonalidades extremas porque os sistemas de referência, no fundo, opõem-se diametralmente. Os efeitos nas instituições ficam cada vez mais visíveis. Começa-se a questionar a legitimidade das decisões do parlamento com base no princípio do voto maioritário e procura-se minimizar o seu papel com pretensas recomendações do conselho da república que, de facto, é simplesmente o órgão de consulta do PR para matérias bem definidas na Constituição. Questões delicadas de politica externa e de defesa nacional cuja articulação entre o presidente da república e o governo, nos moldes definidos na Constituição e na lei, se espera que seja feita com a devida ponderação e discrição, tendem a tornar-se oportunidades para protagonismos que em nada beneficiam a imagem externa do país e afectam instituições sensíveis do país.

Também os problemas com que se depara a administração pública, particularmente no campo salarial das classes profissionais e que pela sua complexidade e responsabilidade cruzada dos sucessivos governos pela actual situação, requeriam especial atenção e cuidado no seu tratamento preparam-se para ser armas de arremesso em vésperas de pleitos eleitorais. Parece não importar o impacto orçamental das soluções propostas. Tudo parece ser legítimo para conquistar o poder, mas só o é realmente numa perspectiva de soma zero que é perpetuada pelo confronto aberto entre dois sistemas, duas legitimidades e duas narrativas do país e da sua história.

Infelizmente, não se avança para uma perspectiva de soma positiva, de win-win, em que o foco estaria no crescimento económico, no aumento da produtividade e da competitividade do país para melhor inclusão e mais justa redistribuição de rendimento. Para isso, ter-se-ia de cooperar, manter o consenso em questões fundamentais e de não cair em cultos de personalidade e armadilhas identitárias que retiram autonomia e iniciativa às pessoas e o espírito de responsabilidade que se deve ter com o presente e o futuro pessoal e familiar e também de Cabo Verde. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1155 de 17 de Janeiro de 2024.

segunda-feira, janeiro 15, 2024

Estabilidade não compagina com voluntarismos

O ano de 2024 anuncia-se complicado. Não deveria precisar de mais problemas, mas foi o que precisamente veio à tona na última semana do ano passado, a partir da presidência da república. Foi revelado ao público que a primeira-dama auferia salário, algo que acontece pela primeira vez na história do Cabo Verde democrático sem qualquer base legal.

Pelas explicações do chefe da Casa Civil publicadas num post da sua página pessoal do Facebook ficou-se a saber da intenção de dotar o país de um estatuto de primeira-dama que prevê salário por exercício de funções incluído num ante-projecto da lei orgânica da presidência. A complicação surgiu do facto de, sem ainda ter lei orgânica aprovada que é matéria absolutamente reservada da Assembleia Nacional, os salários da primeira-dama passaram a ser pagos a partir de Janeiro de 2023, em cumprimento da directiva nº 01/CCC/2023 assinada pelo chefe da Casa Civil.

A reacção geral das pessoas não se fez esperar tanto pela falta de respaldo legal como pelo montante que ultrapassou o auferido por titulares de órgãos de soberania, incluindo o presidente da república. A forma como em comunicados sucessivos a presidência da república respondeu às indagações do público e às questões dos jornalistas não foi convincente como dificilmente poderia ser por não existir suporte legal para os actos praticados. As posteriores declarações do PR não contribuíram para clarificar a situação ao ficar por solicitar ao Tribunal de contas e à Inspecção Geral das Finanças o seu pronunciamento sobre a matéria e por decisões pouco avisadas de suspender o uso de transporte e segurança pessoal à primeira-dama.

No imbróglio ainda foi introduzida a exoneração do conselheiro jurídico que pelo “timing” do acto sugeriu que se estaria a apontar um culpado ou a procurar um bode expiatório. Deixou-se o “equívoco” arrastar-se demais o que levou o presidente da república, num gesto inédito, a pedir desculpas publicamente à pessoa visada através de um post nas redes sociais. Finalmente, acabou por aparecer o chefe da Casa Civil também via Facebook a afirmar que o Estatuto de primeira-dama, embora “não sistematizado e lacunoso”, existe. Prossegue, exigindo celeridade ao governo porque, segundo ele, só “há dois caminhos possíveis: decide o Legislador (Parlamento e Governo) por fixar em diploma único, sistematizado, todo o Estatuto ou, reconhecendo o que já existe, opta pela regulação do que falta”. Fica a sugestão que todo o imbróglio actual é devido à procrastinação do legislador e em particular do governo.

Colocando a questão dessa forma, já se entra no terreno familiar da vida política no país em que tudo o que acontece resulta do conflito entre o governo e a oposição. As declarações de dirigentes do PAICV vão nesse sentido e, pelo posicionamento das hostes partidárias do lado da oposição e da maioria na embrulhada, vê-se como toda a oportunidade é boa para uns se atirarem aos outros. Não há preocupação em salvaguardar que se exerça o poder de acordo com a Constituição e a lei, que os órgãos de soberania cumpram com as suas competências próprias e que recursos públicos sejam gastos dentro da legalidade.

No caso em particular nem se quer ponderar o facto de a lei orgânica só prever um gabinete de apoio ao cônjuge do PR. O mesmo acontece em Portugal e nos Estados Unidos, onde a posição é reconhecida há mais de duzentos anos, mas é claro para todos que “a primeira-dama não é um cargo eleito; não exerce funções oficiais e não recebe salário. No entanto, ela participa em muitas cerimónias oficiais e funções do Estado”. A actual first lady, a doutora Jill Biden, é professora e trabalha. Insistir num voluntarismo em relação à matéria, fazendo vista curta ao facto de não existir base constitucional e legal e não corresponder à experiência de outras democracias com sistemas de governo tanto parlamentares como presidenciais, só pode resultar em mais descredibilização das instituições e, no contexto actual pre-eleitoral, em mais um factor de tensão entre os órgãos de soberania.

Aliás, a conferência de imprensa do paicv a atacar o Tribunal de Contas sob a capa de questionar o parecer desse tribunal sobre as contas de 2021, com afirmações do tipo governo comete ilegalidades na barba cara do tribunal de contas e nada acontece; manda fazer auditorias e acusa pessoas, é um sinal como se vai alargando para outras esferas institucionais a possibilidade de se ser apanhado na onda de polarização e de crispação política do país. Nesse sentido, por um lado, faz-se por se mostrar colado à presidência da república mesmo sabendo que esta deve ser suprapartidária e, por outro, deixa-se entender que há subserviência ao governo da parte do tribunal de contas quando devia existir independência do poder político. Já se vinha fazendo algo similar por causa das contendas do presidente da câmara da Praia com esse tribunal. A impressão que fica é que facilmente se sacrifica lealdade ao sistema constitucional e às instituições democráticas a troco de pequenos ganhos tácticos no jogo político do momento.

Com um certo tipo de “voluntarismo”, que vai ao encontro de alguma cultura revolucionária ainda existente que não se deixa constranger pelas leis, mas deixa-se levar por outros princípios entre os quais o princípio de que os fins justificam os meios, incorre-se no risco de aumentar as tensões institucionais, de prejudicar tudo e todos com falta de previsibilidade e de minar a confiança no sistema democrático. A estabilidade é uma das marcas da democracia cabo-verdiana e deve-se em boa parte ao sistema de governo parlamentar adoptado na Constituição de 1992. Inovações no sistema político tanto no sentido de mais protagonismo presidencial ou de omissões e demonstrações de fraqueza do governo tendem a perturbar o equilíbrio entre os órgãos de soberania e a criar a instabilidade que adia a resolução dos problemas. Experiências tanto em democracias mais amadurecidas como Portugal como em outras mais frágeis como São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau provam isso.

Em Cabo Verde, o Presidente da República é o árbitro e moderador do sistema, não tem iniciativa em matéria de revisão constitucional e não se pode recusar a promulgar as leis de revisão. Os governos são de maioria absoluta e só governam plenamente depois de aprovada uma moção de confiança. Nestas circunstâncias não fica muito espaço para o tipo de intervencionismo do PR que governos minoritários muitas vezes propiciam. Querer forçar nesse sentido cria tensões desnecessárias e só prejudica o sistema porque fragiliza o seu papel de árbitro e moderador. O pior acontece se na proximidade de actos eleitorais partidários se verificar tentativas de colagem e de fazer do presidente da república o chefe da oposição.

Diz-se que normalmente em sistemas de governo semelhantes ao de Cabo Verde tal pode até acontecer, mas em geral só no segundo mandato do PR. Curiosamente parece que está a acontecer agora. Se assim for não é uma boa notícia para Cabo Verde neste ano em que a nível global há muitas incertezas e o país necessita recuperar do impacto de crises sucessivas na economia, nas empresas, no emprego e no rendimento das pessoas. O que menos se precisa é de instabilidade e de “casos e casinhos” que minam a confiança das pessoas e descredibilizam a partir de dentro as instituições. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1154 de 10 de Janeiro de 2024.

 

sexta-feira, dezembro 29, 2023

Preparar-se para viver num mundo mais complicado

 Com o ano de 2023 a chegar ao fim, a percepção no seu início, algo optimista, que podia ser o ano do regresso à normalidade acabou por dissipar. Os últimos desenvolvimentos, em particular depois do ataque horrífico do Hamas a Israel e subsequente invasão da Faixa de Gaza e sua destruição, adiam o regresso à alguma estabilidade e previsibilidade nas relações internacionais. O FMI já reviu em baixa o crescimento global para o ano de 2024 e as perspectivas de paz na Europa diminuem com a retomada da ofensiva russa e a fragilização do apoio ocidental à Ucrânia.

Entretanto a volatilidade dos conflitos no Médio Oriente ameaça a liberdade de comércio com impacto nos preços e na disponibilidade dos produtos em caso de limitação da circulação na região e no Canal de Suez. Os efeitos da taxa de juros instituída pelos bancos centrais para combater a inflação ainda não resultaram em matar o dragão inflacionário, mas não se exclui que podem vir a provocar uma recessão em algumas potências económicas. Junta-se a isso a questão do clima que se torna progressivamente mais premente. 2023 foi considerado o ano mais quente de que há memória e mesmo os compromissos tirados a ferro na COP24 em Novembro último não dão garantia que se pode reverter o processo de aquecimento global.

Vive-se, de facto, um ambiente que pode configurar um esfacelamento das relações internacionais com a emergência de potências regionais, a fragilização da liderança dos Estados Unidos e a perda de eficácia e credibilidade de instituições multilaterais. A par disso, ainda se nota o protagonismo mais robusto de entidades paraestatais e terroristas que se mostram militar e tecnologicamente preparados para provocar sérias disrupções como golpes de estado e guerra civil em África, ameaças de guerra no Médio Oriente e perturbações nas rotas marítimas no Mar Vermelho e no Corno de África. Paradoxalmente o que não se descortina é um esforço colectivo, em particular nas democracias, para conter a polarização da sociedade e a descredibilização das instituições e restaurar a confiança e o contrato social indispensável para enfrentar um mundo que corre a passos largos para a desordem. A surpreendente reivindicação da Venezuela por quase dois terços do território da Guiana é só um exemplo de outros apetites que uma derrocada da ordem liberal, a concretizar-se, poderá gerar.

Em Cabo Verde, durante o ano de 2023, o regresso à normalidade no pós- pandemia da covid-19 suportou-se em grande parte no crescimento do fluxo turístico que ultrapassou o nível pré-crise de 2019 e na performance da economia cuja taxa de crescimento se aproximou do potencial de crescimento do PIB. Persistem os problemas acumulados durante a pandemia de perda de rendimentos das pessoas agravados pela inflação provocada em grande parte pelas perturbações nas cadeias de abastecimento e o impacto da invasão da Ucrânia pela Rússia sobre os preços dos alimentos e dos combustíveis. A forma de lidar com a situação actual no país e as que eventualmente poderão vir no futuro próximo com os efeitos múltiplos e complexos da policrise é que não se ajustou.

A atitude geral continuou a mesma e as reivindicações aumentaram acompanhadas de greves nem sempre razoáveis. Quanto à abordagem dos problemas manteve-se, praticamente, na linha de sempre como se a sociedade e o país não tivessem pouco tempo antes passado por situações extremas derivadas da pandemia, do isolamento e da contracção violenta da economia. A diferença é que agora parece colorida pela agenda das instituições internacionais e dos doadores em matéria de transição energética, digitalização e combate às alterações climáticas e traduzida em frases motivacionais de governantes como “Clima e mobilidade eléctrica”. Até parece que a postura que, em geral se convencionou adoptar, é de “follow the money”, seguir o dinheiro. Nesse sentido não admira que, perante o anúncio de um novo compacto do Millennium Challenge Corporation, todo o país se regozije com a perspectiva de receber financiamentos sem que se note uma preocupação especial em questionar no que será aplicado.

Questionamentos, debates e responsabilização pelos resultados da implementação de políticas públicas significam estar na politica e a fazer política com sentido de salvaguardar o bem público e servir o interesse geral. A realidade é que a exemplo do que se passa em outras democracias a polarização extrema, o protagonismo excessivo dos políticos (titulares de órgãos de soberania, governantes, e líderes partidários) e desvalorização das instituições e das suas normas têm convergido para se criar um ambiente de soma zero em que cada um procura extrair o máximo para si próprio. Neste ano de 2023, tem-se notado a degradação nas relações entre os órgãos de soberania culminando em momentos de tensão desnecessária com afirmações de semipresidencialismo no regime parlamentar, contestação do princípio maioritário nas decisões parlamentares e disputas públicas de competência na condução da política externa.

Até se convocou um Conselho da República, um órgão de consulta do presidente da república, cujos pareceres só são públicos ligados a certos actos, com uma agenda de trabalho que sugeria que daí poderiam sair recomendações. Supõe-se que seriam para Assembleia Nacional, quanto à comemoração de datas nacionais e de centenários, e para o governo, quanto à relação com o PR. Em Novembro, a aprovação de uma lei de bases do orçamento municipal na Assembleia Nacional foi condicionada pela lealdade de deputados da maior força da oposição para com a interpretação conveniente de uma norma por um presidente da câmara. Era evidente a desconformidade completa dessa interpretação com a prática de mais de trinta anos do Poder Local e com a Constituição que estipula a existência de um órgão executivo colegial responsável perante a assembleia eleita. Parece prevalecer o eleitoralismo como forma de fazer política e daí a preferência por medidas de curto prazo e de impacto imediato sem grande preocupação por fazer reformas de fundo e também por cumprir rigorosamente com as normas constitucionais.

É claro que fixar na gestão do dia-a-dia e no empurrar com a barriga colorida por tiradas narcisísticas e protagonismos deslocados não deixa o país nem preparado para responder aos desafios actuais, nem muito menos para os que já se vêem a subir acima da linha do horizonte. De facto, em 2024, a guerra na Europa pode tomar uma feição mais perigosa e o Médio Oriente corre risco de um conflito alargado com implicações graves na economia mundial. A liderança americana indispensável para se manter a ordem liberal está a enfraquecer-se com custos reputacionais de um apoio quase sem restrições a Israel. E no caso de Donald Trump ganhar as eleições do próximo ano poderá enfraquecer ainda mais ou mudar o seu foco.

São razões mais do que suficientes para se pensar Cabo Verde de uma outra forma, consolidar as instituições e assumir a atitude adequada para potenciar no máximo os recursos do país em particular o seu capital humano. Num mundo complicado a fechar-se em muros nem a emigração se pode tomar por garantido. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1152 de 27 de Dezembro de 2023.

terça-feira, dezembro 26, 2023

Compacto MCC. Integração regional é prioritária?

 

O Millennium Challenge Corporation (MCC) anunciou no dia 14 de Dezembro a escolha de Cabo Verde para mais um acordo de financiamento (compact). Como das duas primeiras vezes, em 2005 e depois em 2012 quando o país foi contemplado com o financiamento do MCC, o anúncio foi recebido com entusiasmo geral. Desta vez não se proclamou que o montante poderá significar uma “quarta independência”, mas não se ficou por menos em euforia perante a perspectiva real de vir a receber uns milhões de dólares.

Mas como era de esperar, junto como o regozijo geral surgiu logo a disputa, ao estilo habitual da política no país, para saber quem mais contribuiu para essa vitória. Partidos e personalidades políticas cada um à sua maneira procuraram atrair para si o mérito de ter conseguido os compactos do MCC. Para uns é o trabalho feito hoje, para outros é trabalho que vem detrás com os financiamentos anteriores. Já para, o MCC segundo o seu comunicado oficial, Cabo Verde foi seleccionado de entre outros países por causa do seu compromisso claro com a governança democrática e seus significativos desafios de desenvolvimento e de redução da pobreza.

Por isso mesmo, o momento devia ser menos de disputa para saber quem merece a gratidão do povo por mais um compacto do MCC e mais de focalizar em como usar a disponibilidade de financiamento para o utilizar de forma mais eficaz e estratégica para o país. Num passado recente, em 2005, e posteriormente, em 2012, foram assinados dois compactos que no primeiro caso foi direccionado para infraestruturas, nomeadamente o Porto da Praia, e, no segundo, para projectos de suporte aos investimentos no turismo, designadamente em matéria de direito de propriedade e no saneamento e abastecimento de água às populações. Com o actual compacto, segundo o mesmo comunicado do MCC, pretende-se apoiar Cabo Verde “na geração de crescimento económico através de uma integração mais profunda com a região da África Ocidental”.

É de supor que a priorização da integração regional para acelerar o crescimento económico terá sido indicação do governo de Cabo Verde e não escolha imposta pelo conselho da administração do MCC. De qualquer forma isso significa que os projectos a serem desenvolvidos no quadro do novo compacto vão necessariamente ser dirigidos para efectivar essa integração. A questão que se coloca é se é essa a primeira das prioridades nacionais considerando que há outras como, por exemplo, investir para fazer a transição energética e baixar os custos de água e energia para as famílias e para as pessoas e ainda para diminuir as importações de combustíveis e a exposição do país aos riscos de fornecimento dos mesmos e à volatilidade dos preços. Também que urge implementar uma estratégia compreensiva de saúde que responda às necessidades actuais da população e ao crescimento do turismo. E que há a necessidade premente de construir a estrutura de produção de bens e serviços transaccionáveis para melhor aproveitar o mercado que o fluxo turístico representa e aceder a outros mercados externos.

Quase a completar cinquenta anos de independência constata-se que o comércio com a região da África Ocidental ainda não ultrapassa os 3% do comércio externo do país. Alguma razão existe para que as importações e exportações no quadro da CEDEAO não tenham conseguido ganhar expressão significativa. Certamente, não será por opção política ou preferências ideológicas porque, além de se ter regularmente alternância na governação o país, durante 30 dos últimos 50 anos teve à sua frente um partido com a sigla Partido Africano da Independência. Razões outras deverão existir sendo as mais óbvias derivadas da insularidade do país que se situa a cerca de 600 km do continente.

Se para os membros da CEDEAO no continente o comércio inter-regional não chega aos 19% não se podia esperar que as trocas comercias com o continente do único membro que é insular tivessem uma dinâmica maior. Muito menos que cheguem a ponto de se transformar no acelerador do crescimento económico do país, como aparentemente se pretende, focando todo o compacto do MCC na integração regional. Uma outra questão é que os investimentos necessários para se materializar o mercado de livre comércio entre os países, particularmente em termos de transporte e de conectividade, devem ser em grande parte um esforço da própria comunidade. Aliás, é o que acontece na União Europeia e também na CEDEAO com os grandes projectos de estradas, caminhos de ferro e telecomunicações.

Na realidade não há esforço visível para se conectar com o único membro que é insular. E não seria de esperar que o mais pequeno dos estados fosse suportar por si próprio os custos. Mas, paradoxalmente, parece que é o que se pretende. Como alguém já uma vez notou a propósito da importância estratégica muita efémera que as ilhas obtêm ao longo da história, são em geral os países continentais que vêem utilidade nas ilhas e não o contrário. Investir para se fazer reconhecer útil na maior parte das vezes resulta em elefantes brancos, dívida pública pesada e desvio do foco daquilo que realmente pode aumentar a produtividade e a competitividade, em particular o investimento no capital humano.

À semelhança do surfista que nunca criou ondas e sabe que todas vão morrer na praia e deve cavalgá-las enquanto puder, a partir das ilhas dificilmente se pode criar ou condicionar mercados. Ter capacidade e sagacidade para reconhecer tendências e aproveitar oportunidades à medida que cadeias de valor e de abastecimento se criam e mudam com as transformações em curso, é fundamental para melhor se posicionar neste mundo complexo da actualidade. Para isso, porém, é essencial que o debate democrático produza os seus frutos e se evite que, sem uma discussão de fundo, mais uma vez se utilize recursos excepcionais disponibilizados ao país em iniciativas cujos resultados, o mais certo, é que fiquem muito aquém do prometido e desejado.

Debate esse que pelas implicações das opções a serem feitas não devia ser esvaziado logo à partida pela actual tendência de polarização política e de descredibilização das instituições. Um fenómeno que se nota actualmente na generalidade das democracias e ao qual claramente Cabo Verde não está alheio. Particularmente agora que o recrudescer do conflito ideológico entre valores e narrativas do regime de partido único e os valores e princípios da democracia liberal, sob a capa da comemoração do centenário de Amílcar Cabral, tem reactivado fracturas antigas e polarizado a sociedade, não deixando incólume quase nenhuma instituição incluindo os órgãos de soberania, como se pode constatar das tensões e acusações mútuas.

Num ambiente desses dificilmente se poderá debater com suficiente objectividade o mérito de estabelecer como prioridade a aposta na integração regional usando os recursos do MCC e, por essa via, fazer a economia crescer e diversificar. O mais provável é que sentimentos deslocados continuem a prevalecer sobre a razão e que nos próximos anos não se consiga ir muito mais além do ponto atingido nas primeiras cinco décadas de independência. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1151 de 20 de Dezembro de 2023.

segunda-feira, dezembro 18, 2023

Compromisso com os direitos humanos nunca acaba

 Por ocasião do 75º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos o Papa Francisco foi peremptório em afirmar que o compromisso com os direitos humanos nunca acaba. A adopção da declaração a 10 de Dezembro de 1948, logo após a segunda guerra mundial, serviu de base para o desenvolvimento de uma estratégia global para a promoção e protecção dos direitos humanos. A universalização do respeito pelos princípios e valores estabelecidos no documento que daí resultou foi ao encontro do desejo profundo de indivíduos e povos pela liberdade e democracia em todo o mundo.

Décadas depois, nos fins dos anos oitenta e início de anos noventa, contribuiu para a derrocada do império soviético e do comunismo na Europa e, na sua esteira, para a queda em cadeia de regimes autoritários e totalitários em todos os continentes. Foi o momento que também Cabo Verde soube aproveitar e libertar-se de um passado recente de desrespeito pelos direitos humanos englobando os 41 anos de regime salazarista e os quinze anos do regime de partido único após a independência nacional. Com a Constituição de 1992, o país finalmente pôde assumir os princípios e valores que 44 anos tinham sido consagrados na declaração universal dos direitos humanos e passar a reger-se por eles.

Mas como veio agora relembrar o Papa Francisco não é de baixar a guarda porque o documento “é como uma estrada principal na qual foram dados muitos passos em frente, mas muitos ainda faltam e às vezes, infelizmente, voltamos atrás”. De facto, no mundo actual de grandes incertezas, tensões geopolíticas e mesmo guerras numa dimensão que muitos consideravam improvável, não é liquido que continue o alargamento do respeito pelos direitos humanos como optimistamente se postulou quando, no princípio da década de noventa, com a vitória da democracia liberal e da economia de mercado, foi proclamada o Fim da História.

Ameaças vêm de várias direcções, designadamente dos regimes autocráticos que se esforçam por se apresentar como uma ordem alternativa à ordem liberal que também traz desenvolvimento. Também nas próprias democracias são visíveis os perigos para os direitos fundamentais nas derivas iliberais que põem especialmente na mira restrições à liberdade de expressão e de imprensa e à independência dos tribunais. A compressão de direitos que daí resulta fragiliza os cidadãos perante o poder arbitrário e discricionário do Estado, prejudica o jogo democrático e o papel da oposição e até pode chegar ao ponto de só garantir a eleição de um partido hegemónico, eliminando efectivamente a possibilidade de alternância governativa.

Um outro perigo vem da progressiva polarização de posições políticas que tem reforçado os extremos tanto à esquerda como à direita. De facto, contribui para a desvalorização do respeito pelos direitos universais a corrida para identidades cada vez mais redutoras com base na raça e no género ou ainda com base em relações múltiplas do tipo opressor/oprimido que se nota em círculos de esquerda. No mesmo sentido vai a diluição do indivíduo em colectivos nacionalistas visíveis em franjas da direita que se afirmam na hostilidade dirigida a “outros”, sejam eles imigrantes ou minorias étnicas e religiosas.

Na prática os dois extremos tendem a negar a “nossa humanidade comum” que é afirmada na declaração universal dos direitos humanos. Para a democracia, a polarização alimentada pela interacção de extremos que se tocam pode revelar-se destrutiva porque ao privilegiar emoções sobre factos impede consensos em matérias de regime, não incentiva a busca da verdade e dificulta o debate indispensável para a produção de políticas públicas e a realização do interesse geral.

Ainda um risco mais insidioso em que as democracias podem incorrer é o da complacência quanto às garantias do exercício do núcleo fundamental dos direitos civis e políticos que devem sempre existir. Às vezes, procura-se comprimi-los em nome de maior segurança e outras vezes por mero expediente para justificar a ineficácia de corporações estatais em matéria de investigação criminal e administração da justiça. Em certos círculos político-ideológicos faz-se por os preterir a favor dos direitos sociais e de direitos de outras gerações que na óptica deles devem ser prioritários.

A verdade é que a democracia é também o regime do governo limitado porque como dizia James Madison, um dos pais fundadores dos Estados Unidos da América, “se os homens fossem anjos nenhuma espécie de governo seria necessária”. Ou seja, é preciso habilitar o governo a controlar os governados, mas seguidamente é preciso obrigar o governo a controlar-se a si próprio. E um dos limites a não ser transposto é o que consta dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em Cabo Verde esse limite foi incorporado na ordem jurídica nacional com a adopção da Constituição de 1992.

As mazelas, torturas e até mortes sofridas das autoridades estatais em tempos passados sem ter direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública julgada por um tribunal independente e imparcial só foram possíveis porque não existiam limites ao poder do Estado especialmente o respeito pela dignidade humana e pelos direitos dela indissociáveis. De facto, quando, por quaisquer razões, esses direitos são diluídos ou desaparecem, abusos e atrocidades acontecem e quase sempre em nome de grandes desígnios nacionais como a luta pela independência, segurança e estabilidade governativa.

Mas porque os fins não justificam os meios usados para os atingir, o país pagou pela ausência de limites na governação em falta de liberdade, em desperdício de recursos humanos e outros e em perda de oportunidades e consequente desenvolvimento adiado. Aliás, por esse mundo fora vê-se o sofrimento e muitas vezes o desastre humanitário onde os direitos humanos não são respeitados. Para reverter a situação é preciso que como o Papa Francisco, no domingo, invocando o 75º aniversário da Declaração Universal, apoiar “todos os que, discretamente na vida quotidiana concreta, lutam e falam pessoalmente para defender os direitos dos que não contam”.

Aqui em Cabo Verde, enquanto comunidade de princípios e valores baseados no respeito pela dignidade humana, é fundamental que se continue a garantir o exercício dos direitos fundamentais a todos os cidadãos e a assegurar que o Estado em todos os seus actos, intervenções e celebrações os respeite e fortaleça. O caminho para se ter uma sociedade livre, justa e solidária passa por aí. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1150 de 13 de Dezembro de 2023.

segunda-feira, novembro 27, 2023

Passo atrás para aumentar solidariedade e confiança

 

As eleições do domingo passado, dia 19 de Novembro, na Argentina, parecem ter confirmado uma tendência geral para o extremar de posições nas democracias e para apostas dos cidadãos em lideranças que não primam particularmente pela competência e ponderação no tratamento das grandes questões dos seus países. O candidato eleito Javier Milei, armado simbolicamente de uma moto-serra, propôs durante a campanha eleitoral, entre outras coisas, cortar impostos e despesas, fechar o banco central e avançar com a dolarização da economia, liberalizar o porte de armas e proibir o aborto. Não era um programa que na situação económica dramática que a Argentina tem vivido ao longo de décadas deixaria qualquer pessoa optimista quanto ao futuro. O facto é que não impediu que tivesse ganho com 56% dos votos. A maioria, talvez cansada de soluções passadas que falharam, resolveu ir contra corrente e concordar com a declaração atribuída a um político de que encontrou o país à beira do abismo e o que se tem de fazer é dar um passo em frente.

Essa atitude não é exclusiva da Argentina. Aliás, de outros países onde também num determinado momento se teriam dados passos em direcção ao abismo vieram imediatamente votos de solidariedade designadamente de Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, e de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos. A influência política deles continua a ser significativa e, no caso do Trump, em muita boa posição para se candidatar outra vez em 2024. Por aí, vê-se que sentimentos de frustrações, ressentimento e a falta de confiança das pessoas nas instituições do país continuam a desempenhar um papel importante no apoio a soluções que, no caso dos Estados Unidos, prometem pôr em causa a própria democracia e liberdade. Mas, outros factores contribuem para a situação de desnorte, designadamente, a falta de ponderação da classe política perante situações políticas, económicas e sociais complexas, a opção pela política espectáculo e a tendência narcisística crescente no comportamento dos líderes.

Não favorece a credibilidade da democracia a forma como, por exemplo, recentemente em Portugal se interrompeu uma legislatura e um governo com maioria absoluta se vê demitido e o parlamento dissolvido. Ou, em Espanha, se contempla jogada partidária que, para conseguir maioria para governar, assume compromissos considerados inconstitucionais.

Uma das razões para o drama que se vive hoje em Israel são as divisões criadas na sociedade e no país pelo governo na sua luta contra o poder judicial. Abriram o caminho para o país ser apanhado de surpresa por ataque atroz do Hamas à sua população civil. Sendo a única democracia na região, ela é ainda mais enfraquecida com a persistência no erro que permite ao primeiro-ministro continuar a não assumir as suas responsabilidades no que aconteceu a 7 de Outubro. E que, pelo contrário, insiste em manter um governo com extremistas e incapaz de pôr fim à violência na Cisjordânia e de encontrar uma solução para Gaza que não leve à morte de milhares de inocentes.

Com isso, as democracias em todo o mundo, em particular na Europa e nos Estados Unidos, também são enfraquecidas à vista de todos, em particular na busca de uma solução de paz duradoira para a região do Médio Oriente, e as forças extremas da esquerda e da direita saem reforçadas tanto nesses países como no resto do mundo. A tentação para se dar passos em frente em direcção ao abismo nuns casos significa soluções economicamente desastrosas, noutros casos trata-se de derivas autoritárias e noutros ainda de quase colapso de governação ou mesmo de Estados falhados. A possibilidade de vir a existir maiorias eleitorais a apontar nesse sentido é real como já foi constatado no Brasil e nos Estados Unidos e agora acontece na Argentina e, segundo sondagens, poderá verificar-se nas eleições presidenciais americanas de 2024.

Ainda bem que a possibilidade de reverter situações quase dadas por perdidas também foi confirmada. A restauração da importância de carácter, decência e civilidade na actuação política é fundamental para, a par com a credibilização das instituições, se renovar o ambiente de tolerância mas também de cumprimento estrito das regras do jogo democrático. Não é, porém tarefa fácil, especialmente agora que as redes sociais dominam o espaço público, que a política tende a ser cada vez mais performativa e se afirma a atracção pelas celebridades e a apetência pelo culto de personalidade.

Por causa das crises múltiplas e, em particular, da crise existencial criada pela pandemia da Covid-19, os actores políticos deveriam ter posto uma ênfase maior na necessidade de solidariedade, na renovação do contrato social no sentido de diminuição das desigualdades e em mais confiança interpessoal e nas instituições. Infelizmente esses momentos mais difíceis têm sido desperdiçados deixando vulnerabilidades que poderão diminuir a capacidade colectiva de enfrentar ameaças, responder a desafios e lidar com incertezas várias. Em Cabo Verde também se nota esse desperdiço quando devia ser das últimas coisa a acontecer considerando a escassez de recursos naturais, a dimensão territorial e populacional e a fraca conectividade.

O não engajamento da sociedade em enfrentar solidariamente os efeitos das crises múltiplas tem aí a sua raiz. No ambiente político de campanha permanente que se vive no país a acção do governo é tida como propaganda para obter ganhos eleitorais. Já, a actuação da oposição tende a orientar-se exclusivamente para diminuir ou mesmo negar o impacto das medidas de política. Não fica muito espaço para compromissos e acordos com vista a reformas de fundo. Aproximando-se o período eleitoral, como acontece agora, a situação piora, diminui a paz social com agitação sindical e ameaças de greve e torna-se difícil agir para responder aos desafios da actualidade na sua complexidade.

As classes profissionais e os trabalhadores do sector público aproveitam para pressionar com as suas reivindicações salariais e de carreira, cientes do apoio da oposição e do momento único para extrair concessões ao governo. Isso também porque, em tempo certo e de forma coerente, abrangente e compreensiva não se tratou de fazer os ajustes justificados, ficando sectores como o da polícia resolvido e os de professores, pessoal de saúde e de outras classes diferidos no tempo. A recomendação dada pelo FMI e pelo BCV em 2022 para se conter aumentos de salários geradores de pressões sobre preços e combater a inflação não beneficiou da clareza e coerência necessárias para conter os ímpetos das pessoas perante o evidente aumento do custo de vida que enfrentam. Quando saiu a notícia do aumento no BCV a porta das reivindicações escancarou-se e as exigências salariais dificilmente vão parar.

No processo, talvez as maiores perdas sejam o sentido de razoabilidade e a capacidade de ponderação que os tempos de hoje exigem. Só se espera é que ainda haja senso suficiente para se dar o passo atrás e encontrar as vias para aumentar os níveis de solidariedade e confiança que o país tanto precisa. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1147 de 22 de Novembro de 2023.

segunda-feira, novembro 20, 2023

Para aprimorar, não para inovar

 A conversa do Presidente da República José Maria Neves com os seus antecessores, Jorge Fonseca e Pedro Pires, organizada na semana passada no âmbito de uma iniciativa PresidTalk - Inovação Política em Cabo Verde, foi certamente inédita, mas de acto politicamente inovador terá muito pouco.O PR já ouve os ex-presidentes nas reuniões do Conselho da República sobre matérias que a Constituição estipula e, naturalmente, que os pode receber em audiências privadas. Normalmente é esse o quadro porque discrição nas consultas e nas conversas é essencial. O país só tem um presidente da república de cada vez. Um exemplo de referência é a discrição de Bento XVI durante o pontificado do Papa Francisco. De outra forma, podem surgir ruídos e tentações de “eminências pardas” que prejudicam uma das funções fundamentais do PR que é a de garante da unidade da Nação e do Estado.

Um resultado da conversa que fez manchete em todos os órgãos de comunicação social foi o posicionamento das três personalidades sobre a não aprovação pela Assembleia Nacional da resolução sobre a celebração oficial do centenário de Amílcar Cabral. Em aparente contraposição ao Parlamento, defenderam uma comemoração condigna do centenário e procurou-se justificar a falta de um voto maioritário para passar a resolução com excessiva partidarização (PR) e divisão do país em duas representações colectivas, uma com referência à Independência e outra com referência à Democracia (JCF). Quanto ao ex-presidente Pedro Pires, segundo a Inforpress, foi claro a explicar que a proposta levada à Assembleia Nacional não é uma iniciativa do PAICV e sim da fundação [Amílcar Cabral], que consultou todos os líderes parlamentares e o presidente da Assembleia Nacional, e o grupo parlamentar PAICV foi escolhido para levar a proposta.

É evidente que as opiniões expressas nesse encontro, num momento tão próximo da decisão parlamentar, praticamente uma semana depois, não serviram para tranquilizar os ânimos. Enquanto “inovação política”, terá sido tomado como uma espécie de instância em discordância com o Parlamento, como aliás já o PR, por si só, tinha deixado entender. Não será simples coincidência que, na sequência, tenha surgido uma iniciativa de petição para levar a questão outra vez ao Parlamento. Provavelmente a iniciativa terá o mesmo chumbo mas agravando ainda mais a polarização social e política que parece preocupar todos. Mesmo sabendo isso, insiste-se em ir por esse caminho. Não se explica que Cabo Verde é uma democracia e, como tal, é um país livre e plural em que comemorações de centenário ou homenagens a personalidades diversas não são proibidas. Não têm que, necessariamente, serem oficiais ou do Estado e, quando o são, é por decisão da maioria no órgão próprio, o Parlamento, que é aquele que representa os cabo-verdianos no pluralismo das suas ideias e na diversidade dos seus interesses.

A partir da Constituição de 1992 Cabo Verde passou a ser uma comunidade de princípios e valores, uma república que garante o respeito pela dignidade humana e reconhece a inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos como fundamento para a paz e justiça e que assenta na vontade popular. Para trás ficaram regimes baseados na legitimidade histórica e em que o exercício do poder não era baseada na legalidade democrática. Se ainda hoje a polarização e a crispação política são extremas, tal não resulta de uma excessiva partidarização que teria nascido com a democracia, como muitas vezes se deixa entender. De facto, não há nada mais partidário do que a administração pública do regime de partido-Estado. Se continua na mesma senda é porque nunca se conseguiu consenso para, depois dos quinze anos de regime e na democracia, se proceder à sua despartidarização. Havia sempre quem se beneficiasse com o status quo e, em fazendo isso, enraizava ainda mais essa cultura de partidarismo na função pública e a transportava para outros sectores da vida na sociedade.

Também não há “separação entre o povo da independência e da democracia”, como foi aventada. O que se nota assemelha-se a uma colisão de sistemas políticos diferentes que se perpetua por causa da relutância do Estado, das instituições públicas e dos actores políticos em assumir por inteiro os princípios e valores da república. Ainda pesam as narrativas históricas que constituíam o núcleo essencial de legitimação do Estado pós independência. O Estado actual, com os seus tentáculos nas instituições, no sector educativo e no sector público da comunicação social, que é hegemónico no país, faz de guardião delas. O resultado é que impedem a assunção plena do presente com outros princípios e valores e constrangem o futuro porque não se consegue fazer política focada na procura de prosperidade geral e na criação de condições para realização pessoal de todos. Todo o imbróglio à volta do centenário de Amílcar Cabral é mais um dos momentos em que essa colisão se torna mais evidente.

Um outro ponto em que recorrentemente se sinaliza essa colisão de sistemas é na questão dos poderes do presidente da república. Da história sabe-se que em Setembro de 1990 o PAICV, ainda único na Assembleia Nacional Popular, impôs o semipresidencialismo que lhe parecia mais familiar com o regime anterior. As eleições de 13 de Janeiro de 1991 deram a maioria qualificada ao MpD que lhe permitiu mudar esse sistema de governo e adoptar um outro de cariz mais parlamentar. Essa mudança, apesar de, ao longo de mais de três décadas ter demonstrado garantir estabilidade governativa, sempre se manteve como um ponto de conflito. De tempo em tempo reaparece.

Na conversa da semana passada sobre o tema de inovação política falou-se do semipresidencialismo e da coabitação. Como não está prevista qualquer revisão constitucional e um novo ciclo eleitoral está à porta pode-se estar a anunciar um tempo de tensões acrescidas e pergunta-se com que objectivo. O país é que, positivamente, não precisa disso, particularmente na nova era de incertezas e em que mesmo uma ameaça de guerra entre grandes potências não é uma possibilidade tão remota como antes. Falar de coabitação no semipresidencialismo francês tem sentido porque o presidente é líder partidário e tem programa de governação. Já em Cabo Verde, o cargo é suprapartidário e os candidatos são propostos por grupos de cidadãos.

Não tendo programa próprio e não sendo o governo responsável politicamente perante o PR, com “inovações” na relação entre os órgãos de soberania pode-se correr o risco de ir por caminhos que fragilizem o essencial no que respeita à garantia da unidade da nação e do Estado e ao normal funcionamento das instituições. Por outro lado, pode prejudicar o papel de árbitro e moderador do sistema político quando se mostra necessário fazer cumprir as regras do jogo democrático e assegurar que as instituições de regulação, de fiscalização e de controlo de legalidade funcionem plenamente. Em particular, em questões de política externa, nas quais para obter vantagens e ser respeitado importa que a posição do país seja única e inequívoca, concertação e discrição na relação deve ser a regra. O mesmo deve acontecer com a política de defesa considerando a necessidade de garantir a unidade na relação com as forças armadas.

Fala-se muito dos movimentos populistas que, de baixo para cima, enfraquecem a democracia desacreditando as instituições. Acontecimentos no Brasil, nos Estados Unidos e no Reino Unido deixam entender que, nesses casos, os avanços do populismo podem ser revertidos. Parece mais difícil conter os estragos quando a fragilização do sistema vem de cima para baixo, como é o caso da Turquia, da Hungria e de Israel. Definitivamente, Cabo Verde não deve deixar-se tentar por essas aventuras. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1146 de 15 de Novembro de 2023.

segunda-feira, novembro 13, 2023

Desafios da nova conjuntura: O debate necessário

 

O Banco de Cabo Verde (BCV) na publicação de Outubro do seu relatório de política monetária anunciou a subida das taxas de juro de referência. As razões apresentadas foram de reduzir o diferencial entre as taxas de juro no País e no estrangeiro, em particular na Europa. Para combater a inflação, os países europeus e os Estados Unidos vêm aumentando a taxa de juros, o que tem pelo menos duas consequências importantes. Tende a arrefecer a economia desses países e atrair fluxos financeiros do resto do mundo. O impacto, porém, não fica por aí.

Para Cabo Verde, cuja moeda está ligada por um peg fixo ao euro, uma europa menos dinâmica pode significar baixa procura das suas exportações e menor fluxo turístico com consequência negativa na entrada de divisas. Também, pode significar saída de capitais do país e menos depósitos dos emigrantes à cata de uma melhor remuneração no mercado financeiro europeu. Daí a necessidade do BCV de pôr um travão à diminuição das reservas monetárias pela via de uma alta de juros que vai dissuadir esse movimento de capitais para fora. Juros altos que internamente vão tornar mais caro o crédito para o investimento e para o consumo, afectando o crescimento económico, criação de empregos e rendimentos.

Cabo Verde tem uma economia aberta e desde de Junho de 2018 permite a livre circulação de capitais. A decisão tomada pelo governo através do decreto legislativo nº3/2018 foi antecedida de algum debate público onde benefícios e riscos da medida de política foram considerados. Num seminário proferido pelo economista António Portugal Duarte, por ocasião das comemorações do vigésimo aniversário do Acordo Cambial, ele concluiu que a liberalização dos movimentos de capitais pode apresentar-se como grande oportunidade mas também pode levantar importantes desafios e acarretar grandes prejuízos para uma pequena economia. As eventuais vantagens na atracção de investimentos tinham que ser contrabalançadas com as desvantagens que saídas abruptas de capitais, “caprichos” do mercado internacional e situações externas adversas poderiam representar.

Aparentemente vive-se uma dessas situações adversas e, daí, justificar-se que o BCV, no relatório publicado, possa considerar como um sinal de alerta a “canalização de divisas adquiridas junto do banco central para investimentos no exterior” e “o risco de aquisição de divisas por parte dos bancos comerciais nacionais (…) para rentabilização nos mercados financeiros internacionais”. Um outro factor de risco que identifica seria a “saída de depósitos e/ou na redução da capacidade de atracção de novas operações” dos emigrantes. Também já constata que se vive com uma realidade de baixa, ainda confortável, de reservas externas que em 2022 era correspondente a 6 meses de importações e para 2023 e 2024 prevê-se 5,8 e 5,6 meses respectivamente.

A questão que se coloca é se só com mecanismos de mercado de alteração de taxas de juro se vai conter uma eventual drenagem de recursos. O FMI, na última missão a Cabo Verde, em Novembro, acolheu bem a decisão do BCV de aumentar as taxas directoras para diminuir o diferencial com a zona euro e para proteger as reservas cambiais. Entretanto, sabe-se que as projecções para a economia mundial apontam para uma nova era de juros altos. Na eventualidade do país acompanhar essas taxas altas por tempo prolongado, que opções existem para evitar o travão na economia que o crédito caro pode representar para o investimento e para o consumo.

O país tem um peg unilateral no euro e, em consequência, por um lado, não tem grande espaço de manobra em matéria de política monetária. Por outro, não beneficia de outras formas de apoio que poderiam vir da euroização na forma de transferências similares às do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) feitas para os países da União Europeia. Tem que encontrar outras formas de estimular a sua economia enquanto limita o diferencial nas taxas de juro e, provavelmente, não deverá pôr de parte a possibilidade de usar outros mecanismos de controlo de capitais. Outros países já o fazem para evitar os efeitos negativos do hot money e a própria legislação cabo-verdiana o permite em certas circunstâncias.

A verdade é que o mundo de hoje não é o de 2018 quando se liberalizou a circulação de capitais, ponderando os riscos, nem o de 2009 quando se aderiu à Organização Mundial de Comércio (OMC) cumprindo, logo à partida, todos os requisitos de liberalização quando não era necessário enquanto país menos desenvolvido (PMD). Eram os tempos de se mostrar, como “bom aluno”, de acordo com as linhas do chamado Washington Consensus, mesmo que depois os resultados dos financiamentos ficassem aquém do prometido e o crescimento não atingisse as taxas esperadas. Depois da Covid-19, da guerra da Ucrânia e, agora, do conflito potencialmente explosivo no Médio Oriente, a abordagem da problemática de desenvolvimento, na generalidade dos países, é outra, particularmente quando o mundo se vê a braços com uma inflação alta e na perspectiva de crescimento rasteiro em cima de tensões geopolíticas emergentes.

Cabo Verde não deve ser excepção. Nos Estados Unidos, na Europa e noutros países desenvolvidos abundam debates, designadamente, sobre “política industrial” para reconstruir a estrutura produtiva e traçar linhas de orientação para inovação tecnológica, sobre proteccionismo e sobre medidas para evitar os efeitos nocivos da excessiva desregulação financeira. Também se discute como renovar o contrato social de forma a diminuir as desigualdades sociais e incentivar a criação de empregos de qualidade e bem pagos. O tempo do chamado neoliberalismo parece ter ficado para trás quando se vê a globalização a recuar, um mundo multipolar a emergir e um Sul Global a querer afirmar-se.

Importante se torna debater na nova conjuntura qual deve ser o papel do Estado na promoção do desenvolvimento económico e em manter o contrato social em que há oportunidades para todos visto que ficaram evidentes os limites do que o mercado sozinho pode engendrar e propiciar. No meio-termo, como lembra David Pilling num artigo recente do jornal Financial Time focado na África, não convém que se caia na tentação de apostar no micro empresário, no pequeno agricultor e no vendedor de rua como via para resolver o problema da economia. É uma aposta que, segundo ele, condena as pessoas à pobreza porque, citando o economista Paul Collier, só com “ganhos de escala e de especialização” das empresas e não com o microfinanciamento é que se pode construir o edifício da economia moderna. Já sentindo em força os efeitos da mudança, como bem vem relembrar o relatório do BCV, não há tempo a perder para se iniciar o debate. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1145 de 8 de Novembro de 2023.

segunda-feira, novembro 06, 2023

Quebrar as grilhetas

 

Durante as comemorações do dia da cultura, o Arquivo Nacional de Cabo Verde anunciou a proposta da candidatura dos documentos sobre a escravatura ao Registo Internacional da Memória do Mundo da UNESCO. Aparentemente, tratando-se da primeira candidatura, e daí a sua importância para quem a propõe, foi enquadrada como parte do processo de consolidação do papel do arquivo nacional na construção da identidade cabo-verdiana como nação. O que cria alguma perplexidade no acto é a aposta que o Estado faz, e que este e outros actos similares validados pelo governo deixam entender, em colocar a escravatura no centro da história do país e em reduzir a cabo-verdianidade a um produto de uma sociedade escravocrata.

A questão que logo se coloca é quem espera beneficiar com tal reducionismo do passado de mais cinco séculos de povoamento e sobrevivência no arquipélago. Porque a verdade é que essa imagem do país e da sua história não tem eco lá fora designadamente nos estudos e publicações sobre o tráfico de escravos no Atlântico em cujo papel Cabo Verde é marginal, como se pode ver no blog Slave Voyages. Mesmo em instituições como o prestigiado museu La Renaissance Africaine, no Senegal, nota-se a “omissão da Ribeira Grande (Cidade Velha) nas descrições e exposições das rotas do tráfico negreiro” como fez saber o ex-presidente da república Jorge Carlos Fonseca num post recente no Facebook, na sequência de uma visita a Dakar.

A discrepância de percepções vê-se também no facto que para a UNESCO a razão primeira para a Cidade Velha ser Património Mundial da Humanidade é porque a Ribeira Grande foi a primeira cidade colonial europeia a ser construída nos trópicos. Já para o ministro da cultura, segundo a Inforpress, “Cidade Velha é Património da Humanidade, não pela herança judaico-cristã, da matriz portuguesa/europeia, mas sobretudo, devido ao ‘grande contributo’ dos vários povos africanos que passaram por este arquipélago”. De tudo isso fica a impressão que há uma narrativa do processo histórico do país que é oficial, resiste a factos, porque reducionista, e é ostensivamente publicitada.

Normalmente é comportamento de Estados ideológicos, teocráticos e totalitários. Não é certamente próprio de democracias liberais, onde é regra o pluralismo e o Estado está impedido de impor directrizes políticas, filosóficas e estéticas. No passado, teve-se isso com mais ou menos intensidade durante os anos do Estado Novo salazarista e durante o regime de partido único do PAIGC/CV. Pode até acontecer que ainda subsista na actual sociedade aberta como uma espécie de inércia institucional que favorece uma certa tendência ou apetite pela doutrinação da sociedade e das pessoas. Só que vem acompanhado do seu companheiro indissociável que é o conformismo e ausência de espírito crítico que naturalmente induz. E não é bom que aconteça porque quer-se uma sociedade que prospere com criatividade, mérito e propensão para correr riscos e empreender.

A insistência num passado de escravatura e em uma sociedade escravocrata típica das encontradas nas economias de plantações nas caraíbas e nas américas não tem sentido num arquipélago de baixa pluviometria e secas cíclicas seguidas de mortandades terríveis. Aliás, a cidade de Ribeira Grande, depois Cidade Velha, entrou em decadência, segundo os historiadores, antes do fim dos anos quinhentos, precisamente quando as trocas transatlânticas estavam a ganhar fôlego em antecipação dos anos áureos do comércio triangular nos séculos XVII e XVIII. A cabo-verdianidade que viria a emergir no século XIX e XX num outro contexto mundial traduzida na língua, cultura popular, música e literatura pouco poderia dever a um mundo onde só muito marginalmente pôde interagir. Daí a sua especificidade e a particularidade de ser suporte de uma consciência de nação a emergir ainda dentro do império português.

Só razões políticas poderiam justificar narrativas de regresso a um tempo anterior. Primeiro para uns poucos se intitularem de libertadores e depois vestirem as roupagens de governantes únicos. Quanto aos outros restantes, ou seja, a maioria, forçados na narrativa a se identificarem com gente escravizada e à beira de morrer à mingua, deveriam ser eternamente gratos aos libertadores e abdicar da sua liberdade e autodeterminação. A vitimização geral das pessoas subjacente a toda a narrativa servia ainda para justificar que o país não tivesse alcançado grande dinâmica económica e tivesse ficado indefinidamente a depender da ajuda externa. Até podia-se, sem qualquer tipo de conflito interior, ser eternamente vítima e pedinte e ao mesmo tempo conservar dignidade, porque independente. Imagine-se como inevitavelmente tal atitude contribui para as pessoas se conformassem com o regime e com seus fracos resultados económicos.

Paradoxalmente, a narrativa reducionista do passado do país nos seus contornos mais largos de escravatura, de reafricanização dos espíritos, de identificação de resistências e enaltecimento de revoltas populares e de um culto idólatra de um pai fundador sobreviveu ao advento da democracia e às tentativas de imprimir à economia uma dinâmica de crescimento mais rápido. Por isso não se conseguiu pôr a sociedade e os indivíduos num caminho de maior autonomia, iniciativa e de participação plena porque se mantém em tensão permanente sistemas de princípios e valores diametralmente opostos e se impede a apropriação livre de todo o legado histórico do país. Choques constantes continuam polarizando o país, restringindo as suas opções e sugando energias criativas que o podiam tirar do círculo vicioso que a falta de consenso para fazer reformas, para mudar a atitude e investir seriamente no capital humano ainda o mantém.

A prova mais recente disso foi a rejeição no parlamento de uma resolução para comemorar o centenário de Amílcar Cabral que, enquanto fundador e ideólogo do PAIGC e depois PAICV, foi o símbolo maior do regime de partido único. À partida devia ser óbvio que não podia ser distinguido da mesma forma numa democracia liberal. A fúria com que foi recebido o chumbo da resolução dá conta das enormes tensões provocadas pela intolerância dos que pretendem ter o monopólio da narrativa histórica do país.

Os efeitos já se fazem sentir na relação entre os órgãos de soberania, a que não é estranho as críticas do presidente da república de terça-feira dirigidas ao governo e ao parlamento, e também em posicionamentos díspares de membros do governo e de deputados quanto à matéria. O mais normal é que ainda venha afectar outras instituições e entidades sem que se tenha muito cuidado nos limites e na integridade das mesmas, como, aliás, vem fazendo escola nos últimos tempos.

O país de alguma forma continua sequestrado e parece que, como nos países africanos de que fala Patrick Chabal no seu livro, as elites aprenderam a usar a desordem como instrumento de política e nesse sentido procuram “maximizar os seus ganhos no estado de confusão, incerteza e às vezes de caos que caracteriza muito da política africana”. Há que quebrar as grilhetas e mudar de rumo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1144 de 1 de Novembro de 2023.

segunda-feira, outubro 30, 2023

Por uma justiça em tempo útil

 A Justiça vai a debate parlamentar no início da próxima semana como já é habitual, em Outubro de cada ano, no início de mais uma sessão legislativa. O debate precedido de entrega dos relatórios do conselho superior de magistratura e do conselho superior do ministério público e também de audições parlamentares de várias entidades próximas do sector tem como objectivo a apreciação da situação da justiça com vista a uma melhor formulação e implementação das políticas para aí viradas. Em várias declarações à imprensa já se vai sabendo qual será o mote durante o debate.

Para o procurador-geral da república a insatisfação com o actual estado da justiça é geral. Também o bastonário da ordem dos advogados faz vincar que a persistir o número actual de pendências não se terá “paz social”. Já para a ministra da justiça, que reconhece a velha questão da morosidade, existem constrangimentos que, se ultrapassados, abrem boas perspectivas. Num registo similar vai o presidente do conselho superior da magistratura que põe o foco na redução das pendências. Todos parecem convergir na problemática da eficácia do sistema, algo que é crucial para o funcionamento das sociedades democráticas na perspectiva sustentada por muitos de que se a justiça não é feita em tempo útil, ela simplesmente não existe.

Nesse sentido, seria de todo o interesse que o debate sobre a situação da justiça efectivamente se centrasse à volta de como mobilizar a vontade política e institucional para fazer as reformas, alocar meios e motivar pessoas para tornar o sistema mais eficaz. A experiência das democracias mostra que se se tornar generalizada a percepção de que a justiça não é feita, ou tarda, ou é corrompida por interesses dificilmente se poderá confrontar com sucesso as actuais crises do sistema político. Crises essas que se manifestam designadamente na crise de representatividade, na crise dos partidos, na emergência e ascensão de movimentos populistas e em derivas iliberais da governação. Aliás, nos casos em que a democracia foi afrontada de forma particularmente violenta como aconteceu nos Estados Unidos e no Brasil a integridade do sistema judicial foi fundamental para se pôr cobro às tentativas de subversão e para o regresso à normalidade democrática.

Não estranha, pois, que aqueles que procuram explorar as crises para criar espaço para soluções de governação autoritárias e iliberais tentem, por um lado, explorar o descontentamento dos cidadãos com a falta de eficácia da justiça para descredibilizar os tribunais. Por outro lado, movimentam-se para posicionar juízes particularmente nos tribunais superiores que lhes pode servir em momentos-chave em que podem estar em causa nomeadamente eleições ou resultados eleitorais, procedimentos democráticos que regem relações entre órgãos de soberania e constitucionalidade de leis e normas. Na Polónia, nas eleições de 15 de Outubro, a maioria dos eleitores votou para reverter anos de manipulação do sistema judicial pelo governo na sua deriva iliberal. Em Israel, durante meses seguidos ao longo deste ano de 2023, multidões de dezenas de milhares de pessoas manifestaram contra as tentativas do governo de Netanyahu de diminuir os poderes do sistema judicial no controlo dos actos da governação.

As consequências desse tipo de manipulação viram-se recentemente em Israel nas profundas divisões que causou na sociedade até ao ponto de forçar a tomada de posição de reservistas que deixaram em aberto a possibilidade de não prestar serviço militar nas suas unidades das forças armadas se fossem diminuídos os poderes do Supremo Tribunal de Justiça. Perante a forma como o país foi apanhado de surpresa pelos ataques terroristas do Hamas há quem pergunte se os meses de divisão e conflito aberto com o governo não terão projectado uma imagem de fragilidade do país e também baixado o nível de alerta dos serviços de segurança e inteligência e de prontidão das tropas. Também nos Estados Unidos o sucesso de forças conservadoras em criar maiorias favoráveis às suas causas nos tribunais superiores e em particular no Supremo Tribunal de Justiça tem sido um factor de divisão profunda da sociedade, alimentando guerras culturais e revendo precedentes já estabelecidos em direitos da mulher e das minorias e de regulação do ambiente.

Sempre que actores políticos, por populismo ou tendências autoritárias, procuram explorar algum desencanto com a democracia para ascenderem à posição de líderes incontestados, escolhem como seus alvos privilegiados os média tradicionais e o sistema judicial. São precisamente os dois principais instrumentos de fiscalização do sistema político com poderes: um de denúncia pública de abusos e o outro de punir infracções à legalidade e de afirmar direitos fundamentais dos cidadãos. Com a agora ajuda providencial das redes sociais tais políticos cultivam a desconfiança em relação à informação disponibilizada pela imprensa e quanto aos tribunais aproveitam-se da morosidade para descredibilizar a justiça.

A resposta ao esforço de minimização do papel de intermediação dos media deve vir de renovado comprometimento com a democracia na perspectiva de que o exercício da liberdade de expressão, de informação e de imprensa só está garantido num ambiente seguro em que as regras do jogo democráticos estão a ser cumpridos por todos. Nesta perspectiva a independência dos tribunais e a eficácia na administração da justiça no sentido de justiça em tempo útil são fundamentais para se manter o ambiente que vai permitir à democracia ultrapassar as suas crises sem o perigo de divisões sociais inimigas da liberdade e da solidariedade. De facto, há que existir um consenso básico sobre os fundamentos do sistema para que o dissenso possa manifestar-se na sua plenitude e provoque a dinâmica necessária para criar, inovar e encontrar as vias para um futuro de progresso a todos os níveis.

Os tempos actuais de policrise agravados pela crise no Médio Oriente tornam urgente que se dê um sinal de que existe vontade para remover os obstáculos no caminho de uma melhor eficácia da justiça e reconquistar a confiança das pessoas no sistema. Um sinal também para garantir que as normas e procedimentos da democracia serão sempre respeitadas e a integridade do sistema judicial salvaguardada de interferência
política e de interesses estranhos.

O debate sobre a situação da justiça podia ser a sede ideal para isso. A luta política que vem a seguir e vai desembocar no novo ciclo eleitoral teria um outro valor e conteúdo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1143 de 25 de Outubro de 2023.

segunda-feira, outubro 23, 2023

Assumir que se é livre para escolher o caminho

 Continuar a “fazer o mais do mesmo” pode ser uma opção de política. Conviria que fosse devidamente justificada quando os resultados até ao momento não são os mais encorajadores. Durante a visita do Presidente da Comissão da CEDEAO, o governo através do ministro dos negócios estrangeiros reiterou que “Cabo Verde está empenhado e determinado na integração regional efectiva”.

Sabe-se que um dos problemas com a integração é a dívida acumulada por falta de pagamento da taxa comunitária que já ascende a 30 milhões de dólares. Para a resolver, o governo, segundo o ministro, vai procurar parcerias, supõe-se para pagar a dívida, e promete não acumular mais atrasados a partir de 2024. Já quanto a eventuais ganhos para o país, mais uma vez, foi solicitado atenção especial à questão das ligações marítimas para que Cabo Verde possa beneficiar também dos grandes investimentos que são feitos no continente africano”.

Entretanto, os consumidores cabo-verdianos vão pagando a taxa comunitária mesmo que aparentemente não venha sendo repassada para a CEDEAO. O comércio com os países da região, quase cinco décadas após a independência, ainda não ultrapassa os 3% do total das trocas comerciais do país e não se espera alterações na estrutura das exportações e importações considerando o tipo de produtos produzidos na região, a condição insular do país e a actual política monetária com um peg unilateral no euro. Quer isso dizer que os benefícios continuarão a ser mínimos, e que os custos para economia e para as pessoas vão-se manter. Também, se apesar da promessa feita o Estado não quebrar o hábito de não repassar as receitas cobradas, haverá um outro custo, reputacional no caso, de mau pagador.

A grande questão que se coloca é por que manter um empenho numa integração económica que, mesmo entre os países do continente não deu grandes resultados - o comércio inter-regional não chegou a 19% comparados com os cerca de 65% da União Europeia – quanto mais para ser favorável para um país arquipélago a cerca 600 quilómetros da costa ocidental da Africa. As razões de fundo claramente que não podem ser comerciais numa perspectiva de desenvolvimento. Haverá outros interesses designadamente em captar financiamentos para grandes infraestruturas, comunicações e investimentos em capital humano promovidos no âmbito de estratégias como as da União Europeia relativamente aos Acordos de Parceria Económica (ARE) que num contexto continental terão impacto significativo. Mas pelo que se intui dos pedidos do ministro dos negócios estrangeiros ao presidente da CEDEAO, Cabo Verde não estará a beneficiar grandemente disso.

Por isso, as razões para o empenho na integração, serão fundamentalmente ideológicas contrariando o velho dictum que os países na condução da sua política externa não se deixam reger por sentimentos, mas sim por interesses. São razões que não são revistas nem mesmo quando os custos se acumulam - trinta milhões de dólares não é uma pequena quantia - ou se tornam permanentes com ramificações complicadas como são os encargos derivados da livre circulação de pessoas. Não é à toa que na Europa foi a última medida de integração comunitária.

Curiosamente, na CEDEAO foi a primeira e quando aplicada ao único país arquipélago da Comunidade, e com rendimento per capita superior ao da região, os custos podem ser exponencialmente maiores. Compreende-se assim que as Maurícias e as Seicheles também arquipélagos e pertencentes à Comunidade de Desenvolvimento dos Países da África Austral não ratificaram o acordo de livre circulação previsto. Não será mera coincidência que, sem a permeabilidade de fronteiras que isso implicaria, sejam os únicos arquipélagos africanos com entrada visa free por 90 dias na União Europeia.

A partir da Proclamação da Independência que pela voz do PAIGC se decretou que o povo das ilhas livremente tinha escolhido o seu destino africano foi introduzido um elemento ideológico que, mesmo não traduzindo a história, a cultura e o as relações comerciais do arquipélago, passou a ser um factor de condicionamento efectivo da política externa. Retirou-lhe flexibilidade e pragmatismo como em tudo o que tocava o núcleo ideológico do regime de partido único. Introduzia-se nas abordagens feitas uma rigidez perfeitamente insensível aos custos derivados ou associados das políticas e à realidade das oportunidades perdidas em certos momentos. Era como se fosse um tabu.

É interessante notar também que o problema não ficou só pela política externa e que em certas instituições do Estado, onde o simbolismo ideológico sempre pesou mais, foi difícil avançar com reformas, mesmo com o regime democrático e em qualquer governo. De facto, não se interiorizou totalmente que o povo não escolheu livremente o seu destino e que uma reflexão, suportada pela totalidade da história de Cabo Verde e não só pela historiografia oficial de um partido com pretensões de forjador de nações, deveria ser encetada para que o país encontrasse o seu próprio caminho. O resultado é que acabou por prevalecer um certo conformismo e tanto politicamente como socialmente aceitam-se os custos de disfunções institucionais ou de políticas claramente prejudiciais para o país. Tudo isso em nome de uma “coerência” que prima por negar a especificidade da experiência histórica cabo-verdiana de mais de cinco séculos e obriga a que, parafraseando Pedro Pires (2019), tem que se aceitar que Cabo Verde foi colonizado e tem que se aceitar que se teve uma sociedade escravocrata. A história e a cultura de um povo passam a ser o que a política quer e o que a ideologia impõe.

De facto, o que durante séculos foi produzido em termos de língua, manifestações culturais, música e literatura, e que há mais de um século se cristalizou na ideia da cabo-verdianidade e forjou uma consciência de nação muito anterior à independência, não foi patrocinada, dirigida, seleccionada ou filtrada pelo Estado. Os homens e mulheres que contribuíram decisivamente para a herança cultural que todos receberam não foram os escolhidos de alguma entidade visionária. Foram simples pessoas que souberam viver e sentir a sua terra e os seus tempos e pela sua arte e génio puderam exprimi-la de uma forma que contribuiu para a emergência de uma identidade nova.

Essa realidade simples devia ser lembrada todos os anos no Dia Nacional da Cultura e das Comunidades para uma melhor calibragem da intervenção do Estado nesse sector importante da vida do país. Porque, contrariamente ao que acontece nos regimes autoritários e totalitários, nas democracias o Estado está constitucionalmente impedido de impor directrizes filosóficas, estéticas, políticas e ideológicas ou religiosas. O povo já é livre para escolher o destino, e pelo exercício das liberdades e no pluralismo, pode obstar que dirigismos culturais e interpretações ideológicas da história e da cultura do país façam escola e sejam patrocinadas oficialmente pelo Estado. E, de facto, ninguém tem que aceitar nada e ninguém deve poder impor a sua verdade. Principalmente quando é acompanhado de custos sem fim à vista e de ineficiências que deixam todos mais pobres. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1142 de 18 de Outubro de 2023.

segunda-feira, outubro 16, 2023

Um Estado oceânico precisa de Guarda Costeira eficaz

 

​Na semana passada o delegado de Saúde da Ilha Brava foi peremptório ao dizer que o “transporte de doentes deixou de ser um problema”. Segundo ele, o navio da Guarda Costeira está “sempre pronto” para qualquer emergência e o transporte é feito de maneira segura porque na tripulação há uma pessoa capacitada e experiente para acompanhar qualquer paciente. Para trás ficaram os tempos de grande ansiedade quando havia qualquer emergência e também de ter que arcar com custos enormes para garantir o pernoite de um navio na ilha. Uma simples decisão e expedita implementação quanto à relocalização de uma unidade da Guarda Costeira terá sido suficiente para resolver o problema.

É interessante notar que com isso foi-se ao encontro ao que, de facto, se espera de uma guarda costeira num país arquipélago de ilhas relativamente distantes umas das outras, nem todas com acesso aéreo e muito menos durante as vinte quatro horas por dia. Emergências de vária ordem, seja de busca e salvamento no mar, seja de resposta a desastres naturais numa ilha e ainda de emergências médicas, deviam de há muito deixar claro aos governantes do país a centralidade da aposta numa estrutura com valências várias para responder a esse desafio. Infelizmente, teve-se que esperar mais de 15 anos para equacionar o problema e foi finalmente criada a Guarda Costeira, por despacho, datado de 17 de Novembro de 1993, do então primeiro-ministro e ministro da defesa, Carlos Veiga, com missões-chave de patrulhamento, fiscalização, vigilância e protecção dos mares e ajuda na busca e salvamento.

Trinta anos depois, não se pode dizer que terá sido uma das grandes prioridades do país dotar a Guarda Costeira dos meios necessários para cumprir essas missões e as outras que posteriormente foram introduzidas na Constituição após a revisão de 1999, designadamente em matéria de prevenção e repressão da poluição marítima, do tráfico de estupefacientes e armas e ainda de contrabando. Ao longo dos anos foram adquiridos alguns meios entre os quais um avião e algumas unidades navais, mas a falta de uma grande visão do que devia ser uma guarda costeira num Estado que finalmente já se reconhece como sendo oceânico não foram potenciados.

O facto de a Guarda Costeira não ter sido tomada como central para a afirmação da autoridade do Estado nos mares, a exemplo do que se passa na generalidade dos países do mundo, contribuiu para que essa autoridade ficasse dispersa por várias entidades e, logo globalmente, pouco eficaz. É o que se pode constatar, até há bem pouco tempo, ao nível da fiscalização dos mares, da protecção das praias e costas e nas respostas às emergências. Por outro lado, sem que meios fossem facultados e sem uma clara definição do seu papel, porque chamado de guarda costeira, mas inserido nas Forças Armadas, até com as cores cinzentas da marinha de guerra e não as brancas quase universalmente usadas, acabou por ficar numa posição de quase de “filho de um deus menor”.

O cumprimento das missões que lhe tinham sido atribuídas exigiam que fosse uma força de segurança (law enforcement) com funções para assegurar a autoridade do Estado na maior parte do território nacional que é o oceano circundante e o mar entre as ilhas. Dificilmente, pois, poderia assumir o papel dela esperada enquadrada numas Forças Armadas com enraizada cultura do exército e sempre chefiadas por oficiais do exército. Chegou-se ao ponto de, por resolução do governo nº6/2010 de 5 de Abril, designar como patrono um combatente/oficial do exército e fazer do seu dia de nascimento a data comemorativa da Guarda Costeira. Só recentemente passaram a ter um oficial da marinha como chefe de estado maior, mas provavelmente não é suficiente para quebrar a inércia institucional existente e superar a falta de uma autoridade própria para garantir e impor a legalidade.

Não estranha, pois, que só muito lentamente se aproxima da plenitude das suas funções como, por exemplo, posicionar-se decisivamente para diminuir o isolamento da Ilha Brava em casos de emergência como se reconhece agora, abandonadas que foram as várias tentativas custosas e ineficazes com ferry-boats e navios de marinha mercantes para conseguir o mesmo fim. Uma outra dificuldade em conseguir os meios para cumprir missões veio também do nível de cooperação internacional que podia ter estabelecido ao longo dos anos. Claramente que seria mais fácil a colaboração com guardas costeiras de outros países, que também são forças de segurança (law enforcement) e autoridade marítima, se tivessem como contraparte uma força semelhante e não algo mais próximo de uma marinha de guerra e com constrangimentos intrínsecos. Imagine-se que o âmbito das relações de cooperação seria muito mais amplo, a troca de experiência mais profunda e as doações de meios apropriados para o cumprimento das missões muito mais fácil.

Pode haver vantagem para um país arquipélago, com grandes extensões de mar e costas por fiscalizar e proteger, em posicionar-se como útil para países vizinhos que eventualmente não tenham vocação marítima extensa ou não consideram prioridade maior desenvolver grandes capacidades na guarda costeira. As Seycheles, por exemplo, souberam aproveitar-se da relativa proximidade do Corno de África com os seus problemas de pirataria para conseguir cooperação vantajosa em vários domínios, e designadamente em doação de unidades navais e meios aéreos de países tão díspares com a Índia, a China, os Emiratos Árabes e Sri Lanka. Cabo Verde, por necessidade imperiosa de ter uma guarda costeira, devia ter feito uma aposta estratégica na sua capacitação para tornar mais abrangente a sua cooperação com os outros países no sentido de garantir a segurança dos mares e o livre comércio e ao mesmo tempo mostrar-se útil na região do Atlântico Médio e da África Ocidental nos combates aos diferentes tráficos.

Algo que passaria naturalmente por clarificar a sua natureza, deixando de ser estritamente militar para ser de uma força de segurança, e pela consolidação dos poderes exercidos pelas várias entidades no quadro da autoridade marítima. Pelo que se viu nestes trinta anos da Guarda Costeira não será uma tarefa fácil de realizar tendo em conta os muitos obstáculos corporativos, culturais e ideológicos que ainda persistem. Aliás, como em vários outros sectores. Agora que finalmente se reconhece que Cabo Verde é um Estado oceânico e que a economia azul é uma das bases da construção do futuro, não há tempo para mais procrastinação ou vacilações no desenvolvimento da Guarda Costeira. A segurança dos mares é fundamental. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1141 de 11 de Outubro de 2023.