segunda-feira, junho 03, 2024

Transição energética, será desta?

 A começar no dia 1º de Junho a Electra, SA será separada (unbundled) em três empresas, uma dirigida para a produção de electricidade, outra para a comercialização e a outra ainda de gestão da rede pública e também de compra, transporte e distribuição da electricidade. As mudanças segundo o governo visam conseguir ganhos de eficiência na produção e distribuição de energia e criar as condições para a transição energética, limitando a produção térmica e privilegiando as energias renováveis. Nesse sentido, as metas já estabelecidas são de atingir 30% de penetração das renováveis, solar e eólica, até 2025 e de 54% em 2030. Em 2040 espera-se chegar aos 100% com o apoio de parceiros internacionais.

Curiosamente, há mais de dez anos atrás, em 2010, também se dividiu a Electra em Electra Norte e Electra Sul com a perspectiva de aumentar a penetração das energias renováveis e diminuir a dependência dos combustíveis fósseis. As metas a atingir então, segundo a Resolução nº 19/2010 de 16 de Abril, eram de assegurar até 2020 a cobertura de 100 % das necessidades de energia eléctrica de, pelo menos, uma ilha, e de 50% do país com energias renováveis. Infelizmente, mais de uma década depois ainda se estava pelos 17% de penetração das renováveis, com uma empresa de electricidade a braços com ineficiências várias, perdas comerciais enormes e limitada na sua capacidade de investimento por um capital social negativo de cerca de 7 milhões de contos.

Metas ambiciosas foram estabelecidas nos dois momentos referidos. No primeiro, já se sabe que não se realizaram. No caso actual, também não há certezas. O FMI no relatório de avaliação técnica recentemente publicado (17 de Maio) mostra dúvidas quanto ao atingir as metas seja em 2025 seja em 2030. De facto, para se concretizar o pretendido muitos obstáculos terão que ser ultrapassados, entre eles o do enorme investimento na produção de energia, cerca de 252 MW em renováveis até 2030, e fundamentalmente na rede pública e na armazenagem de energia em baterias. Calcula-se, segundo o referido relatório, que o investimento na rede chegue a 108 milhões de dólares para estar à altura de incorporar energia de fornecedores com produção intermitente e variável, de ser gerida como um smart grid e cumprir com todas as metas estabelecidas.

É verdade que desta vez se veio com uma outra concepção na desagregação da Electra que resultou na criação de empresas por áreas funcionais de gestão de rede, produção e comercialização ao invés de uma perspectiva simplesmente geográfica de Electra Norte e Electra Sul como da primeira vez, em 2010. Na época tinha-se aflorado uma reorganização da Electra em moldes próximos da adoptada actualmente — mais próxima do que existe noutras paragens e em que há múltiplos produtores e é central uma rede moderna e bem gerida — mas foi rejeitada. Provavelmente perdeu-se tempo e oportunidades e agora há que fazer uma caminhada contra o tempo quando os efeitos das alterações climáticas se fazem sentir cada vez mais e todos clamam pela descarbonização da economia.

Por resolver, e em qualquer configuração de gestão empresarial do sistema eléctrico, fica o proverbial elefante no meio da sala: as enormes perdas comerciais por falta de pagamento e por furto de electricidade. Na generalidade das ilhas a média dessas perdas é de 14%, mas na ilha de Santiago com cerca de 55,4% da produção nacional é de 35%, o que torna complicado a situação das empresas no sector, sejam elas públicas ou privadas. Quando se prevê privatizações para atrair capitais para o sector e suportar o grosso dos investimentos necessários para se fazer a transição energética e contribuir para a descarbonização da economia, essencial se torna encontrar uma solução para essas perdas não técnicas. Aliás, também para as perdas técnicas que, para serem debeladas, também carecem de investimentos substanciais de melhoria da eficiência na rede eléctrica.

De facto, quem investe quer retorno do seu capital aplicado e espera que haja um ambiente de negócios favorável e previsível. Por outro lado, os consumidores não querem arcar com os custos dessas perdas técnicas e não técnicas suportando tarifas altas para manter viáveis as empresas de electricidade. Já por si essa situação contribui para aumentar os custos de produção com impacto em todas as empresas. Afecta ainda negativamente a competitividade nacional desincentivando investimentos que podiam contribuir para o crescimento e diversificação da economia nacional. Como combater esse mal é a questão que se tem de colocar antes das privatizações para não se ter o Estado a arcar com compensações extraordinárias a privados para garantir bens públicos (utilities) de electricidade.

Algo similar acontece com o sector de abastecimento de água à população e às empresas. Também exige enormes investimentos na rede para se limitar as perdas desmesuradas (60%) a que está sujeito. Sofre, entretanto, dos mesmos males de furtos e não pagamento de facturas numa escala igual ou superior à da electricidade. O facto da quantidade de água potável disponível no país depender cada vez mais da produção via dessalinização torna ainda mais forte e complexa a ligação entre água e energia. Os investimentos que se mostrarem necessários e a gestão cuidada a dedicar tanto ao sector eléctrico como ao sector de produção e distribuição de água, evitando custos proibitivos para os consumidores, devem ter isso em devida conta.

Anuncia-se para o dia 1º de Junho uma nova largada em sectores como energia e égua que são fundamentais para o futuro do país num momento em que a humanidade vive na iminência de assistir a profundas alterações climáticas potencialmente criadoras de escassez desses bens preciosos. Cabo Verde pela sua história devia estar melhor preparado com uma cultura de poupança de água e energia e com uma sensibilidade especial em procurar dar uso eficiente a esses factores. Infelizmente assim não aconteceu e o país nem conseguiu se antecipar ao que já se sabia que vinha à frente e adaptar-se a tempo. Nem muito menos soube recorrer à sua experiência de resiliente climático de séculos para oferecer algo inovador em bens, serviços ou experiência. Agora tem que acertar o passo com as mudanças que se estão a verificar a nível global e é importante que saiba focar-se no que é importante para não ficar para trás.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1174 de 29 de Maio de 2024.

segunda-feira, maio 27, 2024

Manter o poder judicial credível e eficaz

 

De tempos em tempos questões à volta da eficácia da justiça vêm à tona. Às vezes são trazidas por utentes, políticos, académicos, advogados e pelos próprios magistrados. Outras vezes por acontecimentos, posicionamentos e decisões com elementos conflituantes que precisam de ser dirimidos. Desta vez surge na sequência de uma entrevista do presidente do supremo tribunal da justiça (STJ) à rádio pública em que afirma que o excesso de garantias é um dos factores que também contribui para a morosidade da justiça. A ordem de advogados respondeu com um comunicado dizendo que a morosidade da justiça não reside na diminuição das garantias processuais, mas sim na melhoria estrutural e funcional do sistema judiciário.

Subjacente a todos os momentos em que se verificam desencontros de opinião quanto às causas da morosidade da justiça está a preocupação geral com o facto conhecido de que a “justiça que tarda, falha”. E numa comunidade que quer viver em liberdade, na paz e em democracia não se pode ter a percepção de que a justiça falha, que não é eficaz e não serve a todos. Por isso mesmo é que em tempo útil deve-se assegurar que conflitos de interesses são dirimidos, que os direitos dos cidadãos são protegidos e que são reprimidos quaisquer atentados à legalidade democrática. Como conseguir isso é o grande desafio que se põe em particular às sociedades democráticas para que, como dizia Martin Luther King Jr., se continue a acreditar que “o arco do universo moral é longo, mas inclina-se no sentido da justiça”.

A consecução da justiça justa pretendida por todos implica que os tribunais sejam independentes, os juízes sigam a lei e a sua consciência e que se respeite o due process of law, ou seja, se respeite estritamente os processos e procedimentos ao longo de todo a investigação, acusação e julgamento dos casos. Vital para o sistema é que haja meios necessários para o seu funcionamento e que as partes que o compõem contribuam de forma efectiva para se ter resultados em tempo útil. Obter a cooperação das partes, conciliar interesses dos vários operadores e evitar corporativismo das classes profissionais e também interferências políticas é crucial.

Inevitavelmente tensões entre as partes acabam por surgir e reclamações de operadores e dos utentes vão-se ouvir. A isso seguem-se propostas de mais meios e de reformas para ultrapassar os problemas, acompanhadas ou não da tentação de pôr a culpa das falhas sobre uns e outros. O caso actual que levou ao comunicado da ordem de advogados é ilustrativo a esse respeito. De facto, é parte de um debate que se repete várias vezes aqui e noutras paragens. Por exemplo, em Portugal, o actual presidente do STJ, Henrique Araújo, em entrevista ao jornal Observador também disse que “há um excesso de garantias de defesa. Há muitas possibilidades de parar um processo através de manobras dilatórias”. E se “se quer ter uma justiça mais célere, terá de reduzir as garantias de defesa dos arguidos para encontrar um melhor equilíbrio entre a eficácia e os direitos dos arguidos”.

Propõe-se maior eficiência processual para ultrapassar isso. Nesse quesito o legislador tem o papel central, mas é uma matéria sensível. Particularmente num país onde depois de duas ditaduras sucessivas, antes e após a independência, tem especial sensibilidade em relação a qualquer limitação nas garantias de defesa.

Outros factores poderão contribuir para melhorar a eficácia da justiça como sugere a ordem dos advogados. No comunicado divulgado há uma referência à necessidade de adopção de uma cultura de trabalho e orientada para produção de resultados. Acrescenta-se ainda que os magistrados devem trabalhar, no limite das suas possibilidades, para evitar que os prazos sejam ultrapassados”. Mais meios e uma capacitação superior para a investigação dos crimes também é sentida como fundamental para garantir aos cidadãos que a justiça está realmente a funcionar e que podem nela confiar. E como os meios não são ilimitados, particularmente num país de parcos recursos, a cooperação entre os vários operadores, especialmente entre as diferentes polícias, é essencial para se conseguir resultados em tempo útil.

Ainda factores de uma natureza diferente poderão afectar a percepção dos cidadãos quanto à credibilidade e eficácia da justiça. Nesse sentido, considerando o papel do poder judicial no controlo da legalidade e de actos dos poderes executivo e legislativo e o facto de não ser eleito e não ter meios próprios, é de maior importância garantir que não há interferência dos outros poderes na sua actuação. Não é aconselhável que se caminhe nem para a judicialização da política, nem para a politização da justiça.

A realidade, porém, é que, com o aprofundamento da crise das democracias e a falta de diálogo e de capacidade de negociar e firmar compromissos, é cada vez maior a tentação de mobilizar os tribunais para forçar a prestação de contas, livrar-se de adversários inconvenientes e ultrapassar bloqueios políticos. É um fenómeno que está a manifestar-se em várias democracias que, em certas situações, ajudaram a contornar crises como no Brasil (Bolsonaro) e no Reino Unido (Boris Johnson). Noutras situações, pelo contrário, levaram, como nos Estados Unidos, a meio de múltiplas acções judiciais contra Donald Trump, ao condicionamento efectivo do processo eleitoral para as eleições presidenciais.

Tudo isso é acompanhado de descrédito das instituições da justiça como se constata em relação à perda progressiva de prestígio do supremo tribunal dos Estados Unidos nestes últimos anos. Em Portugal a queda do governo de maioria absoluta na sequência de actuações do ministério público provocou reacções de vários sectores da sociedade que no manifesto dos 50 chegam ao ponto de dizer que “a justiça funciona quase inteiramente à margem de qualquer escrutínio ou responsabilidade democráticos”. Também em Cabo Verde, pouco depois da câmara da Praia ter sido objecto de buscas e apreensões realizadas pelo ministério público e do aproveitamento político do facto pelos partidos, é o próprio presidente da república que chama a atenção para a judicialização da política, talvez não do melhor palco, num discurso no Dia do Município da Praia.

Face ao que se vem constatando nas democracias em que a crise vem polarizando cada vez as posições e tornando difícil o debate político é de maior conveniência que se procure manter um nível de integridade do poder judicial. Para isso é de maior importância procurar garantir-lhe os meios necessários para o seu funcionamento e avançar com reformas e inovações que melhorem de forma significativa a sua eficácia. Também é fundamental que as magistraturas desenvolvam uma cultura de trabalho e de responsabilidade que, por um lado se traduza numa justiça célere, competente e justa e, por outro, se mostrem capazes de resistir às tentativas de politização da justiça. Há que garantir que em todas as circunstâncias saberão orientar-se pelos princípios e valores constitucionais e a administrar a justiça em nome do povo, aplicando a lei democraticamente aprovada. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1173 de 22 de Maio de 2024.

sexta-feira, maio 17, 2024

É preciso tirar o país do colete de forças

 

O primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva em vários momentos da semana passada ligados às comemorações à volta do campo do Tarrafal repetiu a mensagem de que é preciso ficar em paz com a história. Não foi a primeira vez. Praticamente desde a vitória nas eleições de 2016 sempre que é confrontado com o facto de a história oficial ser muita próxima da narrativa histórica do regime de partido único do PAIGC/PAICV socorre-se dessa expressão falaciosa. A verdade é que os manuais escolares repetem na democracia a mesma história do regime anterior, a comunicação social pública lê pela mesma cartilha e as instituições do Estado com as devidas adaptações prestam vassalagem aos ícones, ritos e figuras do regime de partido único. Não há realmente “paz” com a história, mas sim submissão a uma narrativa ideológica que foi legitimadora de uma ditadura.

A realização patética de duas comemorações do encerramento do campo do Tarrafal, a primeira a 1º de Maio pela presidência da república e a segunda, uma semana depois, pelo governo, no dia 8 de Maio, revelou que, não obstante as rivalidades de protagonismo, os órgãos de soberania convergiam no essencial: todos queriam fazer o país acreditar que, primeiro, a prisão do Tarrafal foi encerrada no dia 1º de Maio de 1974 e que, segundo, era um campo de concentração. Não interessa que o facto que o campo albergou 72 prisioneiros políticos depois dessa data e que ninguém mais, nem Portugal que no tempo da ditadura teve no Tarrafal mais presos políticos, a classifica de campo de concentração. O que é importante é manter a narrativa.

Até parece que se está no domínio da pós-verdade e das realidades alternativas em que a verificação dos factos, o fact checking, não é suficiente para repor a verdade. Uma situação que só se mantém porque, fazendo uso do poder do Estado e das suas ramificações nas instituições e na sociedade, impõe-se uma historiografia oficial. Com isso o caminho fica aberto para, parafraseando o PM, se calar a história, para se branquear a história e para se truncar a história. Mas como se vive numa democracia na qual a circulação de ideias, de informação e de conhecimento é livre não se pode ficar só por mentiras, omissões e desinformação. Corre-se o risco de ser apanhado em falso.

Para bloquear essa possibilidade há que mobilizar sentimentos em indivíduos e grupos recorrendo ao culto de personalidade, a patriotismos exacerbados e reivindicações identitárias que os tornem impérvios a quaisquer factos presentes ou passados que ponham em causa a sua leitura do mundo. Consegue-se isso mantendo um estado de polarização permanente da sociedade recorrendo a questões fracturantes como a tensão entre o crioulo e o português, a negação da cabo-verdianidade e a exaltação da africanidade e o contra-senso de apresentar Amílcar Cabral como ídolo tanto do partido único como do regime democrático.

Não interessa se ir por esse caminho traz custos traduzidos em perdas de cerca de quatro anos na aprendizagem das crianças e jovens do país, como foi assinalado no último relatório do Banco Mundial. Não interessa que se continuem a cavar divisões com base em diferendos identitários artificialmente criados num dos únicos países da região com consciência nacional consolidada. Nem que se insista no conflito de princípios e valores antagónicos que leva à esterilidade do debate político e à descredibilização da democracia.

Narrativas legitimadoras de regimes ditatoriais usam a história selectivamente para encontrar factos, eventos e acontecimentos que justifiquem a sua própria existência, o seu papel histórico e a inevitabilidade das suas acções. Também para cinicamente exigir gratidão de todos pelo “serviço” prestado. A história nessa óptica não é realmente o passado que se pode abordar de vários pontos de vista. Também não é o passado que se deve procurar estudar e aprender para melhor construir o futuro, evitando cometer erros anteriores. Na perspectiva dos guardiões das narrativas, o controlo do passado é fundamental para exercer o poder no presente e condicionar o futuro. É evidente que com isso a sociedade fica sujeita a um autêntico colete de forças sem real liberdade de expressão, sem liberdade intelectual, sem pensamento crítico e limitada em criatividade e inovação.

No dia 13 de Janeiro de 1991, nas primeiras eleições livres e plurais realizadas em Cabo Verde, o povo mostrou com uma maioria qualificada de mais de dois terços dos votos a sua disposição de se ver livre desse colete de forças. A força dessa rejeição foi confirmada cinco anos depois nas eleições seguintes com uma maioria qualificada ainda maior, um feito extraordinário só visto com a ANC na África do Sul. O resultado do quebrar das amarras viu-se ao longo da década de noventa em liberdade política e liberdade económica. Consolidou-se a democracia e o país aumentou extraordinariamente o seu potencial de crescimento e atingiu as maiores de taxa de crescimento do PIB de sempre, excluindo a taxa de crescimento de 2022 de recuperação da contracção de mais de 20% devido à Covid-19.

Já nas duas décadas do século XXI constata-se que se perdeu o ímpeto do crescimento com níveis de produtividade baixa, insuficiente desenvolvimento do capital humano e progressiva resistência a reformas essenciais para o aumento da competitividade do país. Não é simples coincidência que esses anos de declínio desses indicadores foram acompanhados do reforço das narrativas do regime anterior que nunca tinham sido totalmente questionadas e por isso continuaram a ser reproduzidas nos sistemas de educação e de cultura do país e promovidas por outras instituições do Estado. O mais complicado é que o partido, o MpD, que foi o portador da vontade expressa em duas maiorias qualificadas para libertar o país do colete de forças, quando regressou ao poder nas eleições de 2016, resolveu nas palavras do primeiro-ministro “ficar em paz com a história”.

Na sequência, desenvolveu-se uma tendência em seguir com uma linha de continuidade nas políticas públicas expressa na proclamação que o meu partido é Cabo Verde e que deixou o país sem os benefícios do confronto democrático de políticas alternativas. Aliás, cada vez mais se nota que os programas dos sucessivos governos orientam-se mais pelas agendas e prioridades das organizações multilaterais como as Nações Unidas e o Banco Mundial e outros parceiros do que por visões diferenciadas de desenvolvimento dos dois grandes partidos. Uma das consequências disso é a crescente dificuldade em resolver os problemas sistémicos que vão surgindo nos diferentes sectores económicos e sociais.

Fazem-se tentativas sem grande sucesso ou com sucesso momentâneo, criam-se passivos financeiros e outros, alguns problemas tornam-se quase intratáveis, mas a tendência é continuar a fazer as mesmas abordagens e a propor as mesmas soluções. Paradoxalmente esperam-se resultados diferentes. Entretanto, há gente que desiste e procura emigrar e outros como os profissionais em áreas críticas procuram tirar o máximo do sistema. Ainda há os que no jogo político usam todos os estratagemas para substituir quem está no poder, para, no fim, fazer praticamente o mesmo.

Claramente que um dos principais ingredientes em falta é o pensamento crítico. Não se aprende nas escolas, não é cultivado nas organizações e não se é recompensado por o manifestar. Em ambientes onde se normalizaram narrativas de pós-verdade é o conformismo que se impõe. E ficar em paz com o que o poder dita é a via para a sobrevivência pessoal. Não é, porém, a via para o desenvolvimento do país e para a realização do direito à felicidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1172 de 15 de Maio de 2024.

sexta-feira, maio 10, 2024

Exigir reparações não desculpabiliza má governação

 A problemática das chamadas reparações a países colonizados ou que sofreram com o tráfico de escravos no Atlântico e com a escravatura ganhou uma outra dimensão e outro vigor com as declarações do presidente Marcelo Rebelo de Sousa nos dias que antecederam as comemorações do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril. Na opinião do presidente, Portugal deve assumir a sua responsabilidade por crimes cometidos durante a época colonial e “pagar os custos”.

Reacções imediatas surgiram de todos os quadrantes com sectores da direita de feição nacionalista a condenar essa posição e sectores da esquerda com a sua visão do mundo dividido entre opressores e oprimidos a apoiar. Do governo português veio uma nota de cautela em relação a uma matéria que sempre que é levantada revela-se delicada e complexa. Já nas ex-colónias, pelo menos até agora, com excepção do Brasil e de S. Tomé e Príncipe, a questão não criou muita celeuma.

Internacionalmente a exigência de reparações pela escravatura e o colonialismo tem mobilizado adeptos mesmo nas antigas potências coloniais. Previsivelmente na maioria desses países há também uma rejeição forte de qualquer tipo de pagamento, preferindo em geral ficar por um pedido de desculpas. Entre os países da África e das Caraíbas e da América Latina o engajamento para obter reparações dos países europeus é muito forte e vem ganhando expressão mais abrangente com a criação de fundos como o Global Reparation Fund, estabelecido em 2023 junto da Organização da União Africana.

Também assim como há muita gente a favor desses fundos para compensar pelos extraordinários prejuízos causados, há quem negue pagar por eventuais culpas cometidas em séculos passados e ainda conteste por que só são exigidos aos europeus e não, por exemplo, aos árabes que também traficaram milhões de pessoas. De qualquer forma, já houve casos de promessas de pagamento como é o da Alemanha por genocídio no território da actual Namíbia e a devolução de obras de arte e artefactos, os chamados Bronzes do Benim.

Assim com a experiência de devolução não tem sido a mais positiva, considerando que em certos casos as peças foram vendidas ou desviadas para colecções particulares, também se questiona se a infusão de fundos de reparações irá efectivamente contribuir para a melhoria da vida das populações. De facto, um dos argumentos para exigir pagamentos tem como base a ideia de que o atraso desses países é derivado do colonialismo e da depauperização humana por causa do tráfico de escravos. E certamente que esses males tiveram impacto.

O problema é que, passados mais de sessenta anos após a independência, fica cada vez mais difícil explicar a estagnação económica, as manchas de pobreza extrema e a forte vontade dos jovens em emigrar para a Europa e os Estados Unidos mesmo com risco de perda da própria vida. Num número crescente de países da África a constatação de que o atraso provém fundamentalmente da má governação até já levou que no desespero as populações tenham optado por apoiar golpes militares. O facto de que em vários países onde tal se verificou não ter faltado recursos naturais ricos e montantes consideráveis de ajuda externa corrobora a ideia de que mais transferências de dinheiro em forma de reparação não irão alterar o panorama existente.

Provavelmente terão o mesmo destino que as elites detentoras do poder nesses países têm dado aos recursos existentes ou disponibilizados ao longo de décadas. Ninguém estranhará se forem desviados, delapidados ou mal aplicados e que em consequência não se altere significativamente a situação da população e as perspectivas de crescimento. Aliás, é o que já poderá estar a acontecer com muito dos financiamentos externos em nome das alterações climáticas, transição energética e digital e economia azul.

A avidez com que as elites governativas repetem os discursos e os slogans à volta dessas reformas, que realmente são cruciais para o crescimento e para integração futura dos países na economia mundial, não augura que tenha havido uma real mudança de atitude em relação ao passado. O mais provável é que não se continue a ter preocupação de eficácia na implementação das políticas e que o foco seja colocado mais nos meios do que nos resultados. E sem retornos sustentáveis não há como trazer benefícios duradoiros para a população. Pelo contrário, tende a retirar autonomia às pessoas e deixá-las mais dependentes do Estado. Nesse sentido, aventar a possibilidade de mais meios, via reparações, só ajuda essas elites com a promessa de olear ainda mais a máquina e com renovado sentimento de dependência das pessoas devido à expectativa criada.

No caso de Cabo Verde, com os seus constrangimentos já conhecidos, qualquer incentivo a uma postura de maior dependência como a levantada, pela hipótese de reparações por vitimização no passado, só torna mais difícil escapar dos círculos viciosos em que o país tende a se enredar. Mesmo quando são claramente visíveis como o que vem tornando a questão dos transportes no país quase intratável e cada vez mais custosa a tentação é de neles ficar preso. Perante, por exemplo, as dificuldades da TACV em garantir transporte aéreo nas ilhas, percebe-se que não interessando os custos, a vontade do político é anunciar novas rotas e o mesmo é a do jornalista a perguntar pelos voos para a América e para o Brasil.

Também o Banco Mundial, num relatório sobre desenvolvimento do capital humano apresentado esta segunda-feira, pode estabelecer que no total dos anos de escolaridade “existem quase quatro anos durante as quais as crianças não conseguem adquirir a aprendizagem esperada” e recomendar “um ambiente de aprendizagem com os professores a falarem mais português na sala de aula”. Logo se vão ouvir vozes a apresentar o crioulo como facilitador para aprender o português. Não interessa que, com índice relativamente baixo de capital humano, o país poderá segundo o mesmo relatório estar a perder 1.3 % do crescimento económico futuro.

A mesma postura paradoxal vai-se encontrar quando se está perante uma queda de oito pontos na liberdade de imprensa. O mal maior como apontam os Repórteres sem Fronteiras está na autocensura dos jornalistas e é derivado em parte da posição dominante dos órgãos públicos da comunicação social. Absorvem o grosso das receitas para o sector, captam a maior fatia da publicidade e são mais atractivos para os recursos humanos. Toda a gente sabe que com tal distorção todo o sector é condicionado, acusações de manipulação não vão desaparecer e a qualidade do trabalho jornalístico não melhora. Ninguém, porém, está disposto a alterar a situação inaugurada com a tomada das rádios privadas no dia 7 de Dezembro de 1974.

Entretanto, como vários outros tipos de problemas no país, vai-se continuar a escondê-los e a viver sempre na expectativa de algo - pode ser a promessa das reparações - que vai manter a máquina a funcionar. Nem sempre foi assim. A vivência nas ilhas, remotas e com secas e fomes periódicas, desenvolveu um carácter nas gentes que certamente não era de dependência, mas sim de resiliência e sobrevivência. Algo mudou e, como reconheceu o ex-presidente da república Aristides Pereira, em 1988, as “frentes de trabalho de alta-intensidade de mão-de-obra (FAIMO), eram o local onde se degradava a consciência laboriosa do povo”. Há que evitar a armadilha da vitimização para se recuperar autonomia, caracter e dignidade e poder atingir o desenvolvimento desejado por todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1171 de 8 de Maio de 2024.

sexta-feira, maio 03, 2024

Equívocos não trazem paz inclusiva

 Equívocos diversos continuam a fazer mossa em Cabo Verde. Às vezes são equívocos à volta da história e da memória. Outras vezes derivam da incompreensão que o país é, de facto, insular e de pequena população, pobre de recursos e localização remota. Ainda há os equívocos de competência entre os órgãos de poder exacerbados pelo crescente protagonismo dos actores políticos.

A celebração dos 50 anos da libertação dos presos do campo do Tarrafal hoje dia 1º de Maio é um dos tais acontecimentos envolvidos em equívocos que desembocaram em confrontos entre a presidência da república e o governo: o presidente da república encaminhou os visitantes da sua página do facebook para o esclarecimento do chefe da casa civil da presidência sobre a suposta falta de articulação com o governo publicado nessa rede social. A réplica do ministro da cultura veio logo de seguida no mesmo espaço mediático.

Um primeiro equívoco é o de confundir o acto de libertação dos condenados pelo regime salazarista no dia 1º de Maio de 1974 com o fim de actos ditatoriais em Cabo Verde e também com o encerramento do campo do Tarrafal como prisão para presos políticos. Não foi nem uma coisa nem outra. Actos ditatoriais iriam ser praticados em Cabo Verde por mais uma década e meia, começando em Dezembro de 1974 com a prisão no Tarrafal de 72 pessoas consideradas inimigas do PAIGC. E o encerramento do campo do Tarrafal só se tornou definitivo com o decreto lei nº 3/75 de 19 de Julho de 1975.

É evidente que a confusão só ajuda os que queram manter a narrativa do PAIGC que a sua luta se estendia a Cabo Verde e até tinha prisioneiros num campo de concentração. Uma ideia que é reforçada ao se associar Angola e Guiné-Bissau nas celebrações e a obter a chancela de Portugal. O desencanto posterior dos que lá estiveram presos dá conta de como essa narrativa era, de facto, uma farsa que apenas visava pôr o poder nas mãos dos “melhores filhos do povo”.

Por outro lado, ao conjugar as comemorações do 25 de Abril com a celebração da saída dos presos do campo do Tarrafal quer-se afirmar que nos dois casos era a mesma a motivação de luta contra a ditadura. Na realidade, o 25 de Abril deu origem a um movimento popular que levou Portugal a uma democracia liberal e constitucional. Já em Cabo Verde aconteceu precisamente o contrário. Abriu o caminho para a captura do movimento popular com vista à substituição de uma ditadura por outra.

Na mesma linha de reforço de certo tipo de narrativas, equívocos vão-se sucedendo com a designação oficial do campo do Tarrafal como campo de concentração. Historicamente foi colónia penal desde 1936 até 1954 com 300 presos políticos. Em 1962 foi reaberto como campo de trabalho com ala para presos políticos e outra para presos de delito comum. A designação de campo de concentração só vai aparecer na resolução do conselho de ministros nº 33/2006 de 14 de Agosto de 2006 do governo do PAICV talvez para dar força dramática à narrativa histórica a que está apegada. Sem se saber porquê foi continuada nos governos do MpD a partir de 2016, ultimamente na proposta de candidatura a património mundial.

Não é uma designação universalmente assumida, nomeadamente pelas instituições portuguesas e compreende-se, considerando que a imagem moderna dos campos de concentração é a dos campos nazis durante a segunda guerra mundial. A assunção oficial desses equívocos pelo Estado de Cabo Verde leva a que sejam reproduzidos em documentos oficiais, nas escolas, e na comunicação social. Tudo isso para justificar uma narrativa histórica que pela sua natureza marcadamente ideológica polariza a sociedade e não é inclusiva. Como tal, no passado, levou à ditadura do partido único e excluiu muita gente. No presente, divide a sociedade e agora alimenta fracturas entre órgãos de soberania como se pode constatar do último choque público entre a presidência da república e o governo.

A presidência da república resolveu assumir as celebrações dos cinquenta anos da libertação dos presos políticos como Homenagem do Estado. Mas como escreveu o reconhecido jurista e antigo assessor jurídico de primeiros-ministros e presidentes da república, Dr. Eurico Pinto Monteiro, comentando o esclarecimento do chefe da casa civil da presidência da república no Facebook, a comemoração “deveria ter sido objecto de uma resolução do conselho de ministros que criaria uma comissão de honra presidida pelo presidente da república e uma outra executiva da qual fariam parte a ministra da presidência do conselho de ministros e o chefe da casa civil, além de outras entidades”. Evitar-se-iam “incidentes” como os que aconteceram.

A verdade, porém, é que é muito provável que tais incidentes continuem a verificar-se. Não só por causa da disputa de protagonismo dos actores políticos, mas também devido a um certo “activismo” à volta de temáticas caras a narrativas ideológicas em colisão directa com os princípios e valores constitucionais. É exemplo disso os “incidentes” na sequência da não aprovação pelo parlamento da proposta de comemoração oficial do centenário de Amílcar Cabral e agora esse confronto à volta do campo do Tarrafal. E há outros exemplos preocupantes de uma certa guerrilha institucional que não poupa até mesmo sectores sensíveis como os negócios estrangeiros e as forças armadas.

Claramente que o país não precisa dessas distracções em particular quando a conjuntura internacional é preocupante com o aumento de tensões geoestratégicas e a reconfiguração das relações comerciais, afectando preços, cadeias de abastecimento e cadeias de valor. Procurar soluções para dificuldades nacionais nos transportes e em vários outros sectores-chave para o futuro como energia e água, educação e saúde não se compadece com a manutenção de uma cultura política que ainda se alimenta de narrativas já provadamente exclusivas. E muito menos surtem efeito apelos para se construir vontades para as enfrentar e vencer.

De facto, não se pode continuar a reproduzir fracturas permanentes na sociedade, a aumentar a ineficácia do Estado e a inibir o desenvolvimento forçando o país a se manter num circulo vicioso. Equívocos alimentados pelo Estado e as suas instituições devem ser ultrapassados não só para evitar incidentes como também para restaurar a paz inclusiva à cidadania. Há que também deixar espaço livre para o exercício do espírito crítico tão crucial para se encontrar os caminhos que podem levar à prosperidade, em Liberdade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1170 de 1 de Maio de 2024.

terça-feira, abril 30, 2024

50 anos após 25 de Abril: Responsabilidades por assumir

 

Amanhã dia 25 de Abril completam-se cinquenta anos sobre o golpe militar em Portugal que pôs fim à ditadura salazarista que vigorou durante 48 anos. Na sua origem estaria a constatação de que a defesa do último império colonial se tinha tornado insustentável com a guerra a pesar na economia, com a pressão internacional e com tensões nas forças armadas.

Ao golpe seguiu-se um movimento popular que tanto em Portugal como nas colónias rapidamente se converteu numa revolução com a bandeira dos três Ds: Descolonização, Democracia e Desenvolvimento. Internacionalmente o golpe de 25 de Abril ficou conhecido por ter sido o primeiro de muitos outros processos de mudança que nas duas décadas seguintes, em todos os continentes, iriam elevar o número das democracias no mundo ao seu apogeu. Para Samuel P. Huntington, a Revolução dos Cravos de 25 de Abril foi o percursor da terceira vaga da democracia.

No cumprimento do primeiro D, descolonização, foi adoptada em Julho de 1974 a lei constitucional de 7/74 em que Portugal reconhecia, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o direito dos povos à autodeterminação com todas as suas consequências incluindo a aceitação da independência das colónias. O problema com que rapidamente os sucessivos governos portugueses se depararam nos meses seguintes foi o de garantir a ordem institucional necessária para se proceder conforme a lei. As liberdades que vieram com o 25 de Abril, designadamente de expressão, reunião e manifestação, de imprensa e de formação de associações e partidos originaram uma dinâmica social e política espontânea e sem paralelo em todos os territórios sob administração portuguesa.

Claramente em vantagem se posicionaram os grupos que se reivindicavam de ligações aos movimentos de libertação. Sabendo ao que vinham e focados no objectivo último de conquista do poder, rapidamente conseguiram atrair multidões e organizar militantes. Tentativas da sociedade em produzir propostas alternativas goravam-se quase à nascença ou eram tidas como inimigas a eliminar. Por outro lado, a identificação ideológica de esquerda dos grupos ligados aos movimentos de libertação deu-lhes acesso especial a sectores esquerdistas nas forças armadas portuguesas presentes nas colónias. O resultado é que o direito à autodeterminação dos povos não foi realmente exercido e o poder foi entregue aos movimentos de libertação. Na prática, os auto-proclamados libertadores dispensaram o consentimento dos povos e tal qual conquistadores apossaram-se do poder recebido das mãos do Movimentos das Forças Armadas (MFA).

O que se seguiu confirmou a intenção primeira da conquista do poder. Em todos os novos países independentes instalaram-se regimes ditatoriais de partido único. Onde não havia movimentos rivais procederam à intimidação brutal da população e das elites anteriores chegando a casos como o fuzilamento de centenas de pessoas na Guiné-Bissau. Nos casos onde existiam movimentos de libertação rivais, desencadearam-se guerras civis que duraram décadas e que resultaram em muitos milhares de mortos. Como se pode também constatar, não se concretizaram os outros Ds do 25 de Abril. Não tiveram democracia, nem conseguiram desenvolver-se.

A incapacidade dos governos portugueses em cumprir com a sua própria lei e garantir o direito à autodeterminação dos povos viu-se mesmo no caso de Cabo Verde onde não se tinha verificado luta armada. Também aqui como disse o então ministro da Coordenação Territorial, Almeida Santos, em entrevista ao jornal Público de 11 de Abril de 2004, as forças armadas queriam entregar o poder ao PAIGC. Para contornar o problema Almeida Santos em conversa com dirigentes do PAIGC propôs que aceitassem uma consulta popular nos seguintes termos: Vocês ganham a consulta popular por 90 por cento e nós salvamos a face. E assim aconteceu, disse ele: ganharam por 92% e salvamos a face.

É evidente que a consulta popular não foi nem livre, nem plural porque precedida de prisão de todos os adversários políticos, do controlo da comunicação social com a tomada das rádios privadas e do apoio explícito das forças armadas portuguesas. Para além disso, toda a acção política do PAIGC tinha como base a ideia que era o único representante do povo e que a independência só podia acontecer sob a sua direcção. Nesse sentido não podia deixar de ter uma componente intimidatória para os recalcitrantes e condicionante dos indecisos.

Feita a descolonização com a preocupação primeira de “salvar a face”, Portugal prosseguiu com os seus objectivos de implementar a democracia e construir o desenvolvimento. Realizaram-se eleições para a Assembleia Constituinte em 1975 e adoptou-se uma nova Constituição em 1976 com muita luta política, mas de qualquer forma num ambiente livre e plural. Ajudou também no processo a intervenção militar no dia 25 de Novembro de 1975 que contrariou derivas complicadas e assegurou que uma democracia representativa e liberal tivesse a possibilidade de se instalar. Não tiveram a mesma sorte as ex-colónias deixadas à mercê de conquistadores trasvestidos de libertadores que viriam a controlar o poder nas décadas seguintes, impedindo a democracia e adiando o desenvolvimento. Em Cabo Verde as liberdades de Abril só se tornaram realidade quinze anos depois com o 13 de Janeiro de 1991 e com a Constituição de 1992.

As comemorações do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril deviam ser acompanhadas da assunção da responsabilidade pelos enormes sacrifícios e sofrimentos causados por uma descolonização tardia conduzida por um país esgotado e com as suas forças armadas quase em debandada. Na falta disso, devia-se, pelo menos, poupar aos povos que se viram a braços com regimes ditatoriais o espectáculo de ver autoridades e instituições portuguesas a validar as narrativas histórico-políticas que os legitimaram e a honrar personalidades que os incarnaram como paladinos da liberdade.

Narrativas não são factos e a história com toda a sua complexidade não pode ser reduzida à versão dos que ditatorialmente impediram outras visões, percepções e opiniões. A Revolução dos Cravos fez-se para que não continuasse a ser assim depois da noite salazarista e para que a liberdade, a autonomia e a dignidade de todos fossem recuperadas.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1169 de 24 de Abril de 2024

sexta-feira, abril 19, 2024

Concertar nas prioridades para evitar instabilidades

 Na cerimónia do Dia da Cidade do Mindelo, no passado 14 de April, a presidente da assembleia municipal chamou a atenção para instabilidade do sector da indústria conserveira na ilha de S.Vicente mostrando preocupação com a protecção dos postos de trabalho existentes. Uma instabilidade que em grande medida provém do facto de, depois de mais uma década após a instalação das fábricas, o país ainda não ter adquirido suficiente capacidade de captura de peixe para as alimentar de matéria-prima. Por causa disso as exportações de conservas dependem de derrogações sucessivas no pagamento de direitos que as tornam competitivas no mercado da União Europeia. Também do volume de vendas dependem os postos de trabalho e a vontade das empresas em continuar a produzir lucrativamente no país.

O problema, aparentemente, é que não se absorveu que a prioridade do país era criar capacidade de captura de peixe e não renovar a derrogação de direitos como parecia sugerir a auto-satisfação dos governantes nos anúncios anuais da dádiva. Na falta de políticas dirigidas e aplicadas tempestivamente no sector, como estaria implícito no quadro da cooperação de “aid for trade”, não se podia esperar um outro impacto em termos de emprego, rendimento e exportações que não fosse de instabilidade. A não clarificação das prioridades e a falta de acção estratégica e planificada, mesmo quando identificadas, têm dessas consequências que deixam no ar a ideia que no país está-se sempre a recomeçar.

De facto, é a impressão com que se fica, sempre que se escutam os debates sobre os diferentes sectores da economia, designadamente sobre a agricultura, a pesca, os transportes, o turismo e a energia e também sobre as reformas a fazer na administração pública, no sector empresarial do Estado e no ensino. Nesse sentido, invoca-se a necessidade de mobilização de água, mas não se acrescenta mais valor com novos produtos, organização e expansão de mercados. Movimentam-se recursos na pesca, mas não se consegue dar o salto para a pesca industrial. Os transportes aéreos e marítimos em termos de custo e serviço ficam aquém do que seria necessário para unificar e potenciar o mercado interno.

Nos debates sobre o turismo a tentação de dispersão para nichos, ainda por se revelarem viáveis, tira o foco do produto que tem possibilidade de expansão rápida e impacto transversal na economia. Evita-se também discutir o excessivo roubo de energia devido em grande parte para não se enfrentar os problemas subjacentes e que têm a ver com falta de civismo, cultura de marginalidade e falhas na afirmação da autoridade do Estado. Com essa omissão não se reconhece suficientemente a importância central de se baixar o preço da electricidade e da água para os consumidores, para as empresas e a competitividade da economia nacional.

Tratando-se de grandes reformas, ainda se está por debater o papel do Estado num país arquipelágico com uma pequena população distribuída por nove ilhas. Um obstáculo é a herança de uma administração centralizada controladora de uma economia estatizada nos primeiros quinze anos pós-independência que não foi ultrapassada. Algo que se mantém porque, entre outras razões, a gestão da ajuda externa conjunta com as organizações multilaterais contribui para reproduzir o peso e a influência do Estado sobre o sector privado e a sociedade no seu todo. Na prática, o Estado ainda se coloca no topo da proverbial cadeia alimentar e não se pode falar totalmente de um sector privado autónomo e uma sociedade não marcada pela dependência estatal. A classe média que os teóricos da democracia veem como fundamental numa democracia consolidada ainda está por se afirmar.

Por isso que as tentativas de reforma da administração do Estado têm ficado aquém do desejável numa perspectiva de melhorar a competitividade do país com a diminuição dos custos de contexto. No sector empresarial estatal as reformas parecem mais seguir a agenda de parceiros internacionais do que a ajudar a suprir falhas de mercado e a apoiar o desenvolvimento do sector privado nacional. A reforma do ensino, no quadro de desenvolvimento do capital humano, ainda está por ter o mais forte comprometimento do Estado e o engajamento de toda a sociedade para ser vista com a maior aposta do país. A herança do igualitarismo, da massificação sem preocupação com a qualidade e da desconfiança em relação ao conhecimento dificultam a emergência da cultura de excelência e de meritocracia que o país precisa.

Quando se trata então de políticas inovadoras não se clarifica o que se pretende, insistindo com expressões grandiosas e chavões como economia azul, economia verde, transição digital e transição energética. A insistência nos meios (linhas de crédito, infraestruturas e formação para empreendedorismo) acaba por obscurecer os objectivos ficando os resultados dos projectos por serem avaliados numa perspectiva de custos e benefícios e de externalidades positivas criadas.

Com uma outra visão menos condicionada pelos projectos que ditam políticas em vez do inverso, talvez Cabo Verde pelas suas características arquipelágicas e carestias diversas e condição remota pudesse se apresentar como um grande laboratório para os problemas que tarde ou cedo quase todo o mundo vai ter designadamente em matéria de alterações climáticas, escassez de água, armazenagem de energia, acesso de pequenas comunidades a serviços públicos e a telemedicina. Talvez por aí se pudesse encontrar soluções inovadores e comercializáveis e não se limitar muitas vezes a ser um cemitério de projectos que apresentados como promissores não sobrevivem ao término do seu financiamento.

A realidade actual é que são perceptíveis “instabilidades” em vários sectores e não só na indústria conserveira. Nos transportes é claramente visível. Socialmente sente-se nos níveis de criminalidade, no excesso de suicídios, na percepção de insegurança que causa angústia e leva à depressão. Já se sente a contaminação noutros sectores como a educação em que as reivindicações dos professores enquanto justas poderão não ter solução total imediata, mas, entretanto, mexem com a eficácia das escolas e afectam os alunos. De outros grupos profissionais poderão vir reivindicações também justas.

A saída desta situação provavelmente terá que passar por se chegar a algum consenso em relação às prioridades-chave do país e num espírito de solidariedade compreender que a democracia não é só de direitos, mas também, como alguém disse, de uma cidadania comprometida com deveres para comunidade e seus valores

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1168 de 17 de Abril de 2024.

segunda-feira, abril 15, 2024

Cultura democrática é essencial para a estabilidade

 A propósito da organização de uma conferência sobre “Liberdade, Democracia e Boa Governança: Um olhar a Partir de Cabo Verde” não se perdeu a oportunidade de mais uma vez os partidos se digladiarem em público com acusações de aproveitamento por parte do governo. Os pretextos no caso poderão ter sido a sua realização e pertinência, os custos envolvidos e ainda a escolha dos convidados e oradores. Haverá alguma verdade nisso, mas na prática a troca de galhardetes não deixa de ser mais um exemplo de como predomina no país a política de soma zero.

Desconfiança quanto às reais intenções aparece sempre que se procure projectar para fora a imagem do país potenciando algo positivo como é no caso a sua posição nos rankings internacionais da democracia. Mas devia ser óbvio que quando o país ganha com marketing bem feito junto de parceiros e da comunidade internacional algum reflexo disso vai recair sobre o governo da república independentemente de quem no momento o representa. E não há como ser diferente. Aliás, também a oposição contribui para a boa imagem do país, como demostrou o líder do PAICV nestes dias da conferência na ilha do Sal, ao corroborar a ideia de “que nós temos uma democracia que em termos de regra cumpre, temos eleições regulares, mandatos regulares, com cidadãos e partidos a participarem nas eleições", e também ao apontar, e sem quaisquer entraves, falhas na governação.

Uma boa imagem não significa que não se notam imperfeições na democracia, que não são visíveis alguns sintomas da crise similares aos encontrados actualmente em todos os países democráticos ou que não faltam posicionamentos anti-sistema que alargando fracturas podem pôr em perigo o próprio regime democrático. Como é dito repetidas vezes o maior activo de Cabo Verde é a sua estabilidade governativa. Para a conservar deviam convergir todas as forças políticas e a sociedade de forma a que em momento algum seja posta em causa, em particular nos de alternância política.

Por outro lado, Cabo Verde é um país com uma economia pouco diversificada e muito dependente de um sector do turismo extremamente sensível a flutuações na percepção de estabilidade e segurança. O apoio dos parceiros, ainda de grande importância no actual estádio do seu desenvolvimento, também depende da confiança que governos estáveis, duráveis e democráticos podem proporcionar. A aprofundarem-se os sinais de crise, com correspondente descredibilização das instituições, não se pode tomar como certo que o padrão de estabilidade conservado até agora irá manter-se num futuro próximo. A dificuldade em criar governos estáveis em países como Espanha e recentemente Portugal pode estar a assinalar problemas similares em Cabo Verde, talvez já nas próximas legislativas.

Aliás, é o que pode acontecer se continuarem as tensões políticas do mesmo teor dos vividos no país e que provocam a erosão e a descredibilização das instituições. Uma outra contribuição pode vir das tendências anti-sistema que põem em causa a competência dos órgãos de soberania, o princípio da separação dos poderes e procuram subordinar o Estado a narrativas iliberais. Num cenário desses corre-se o risco de que a exemplo das democracias mencionadas nenhum partido consiga obter nas urnas uma maioria absoluta. E Cabo Verde ainda não foi posta à prova perante a perspectiva de um governo minoritário.

De facto, os anos de estabilidade vividos em democracia foram anos de maioria absoluta de um só partido num sistema praticamente bipartidário. No início da actual legislatura, em 2021, viram-se os sinais do que poderá vir a verificar-se no futuro. Devido a fracturas aparentes na maioria parlamentar, que teriam vindo a público nas eleições do presidente e da mesa da Assembleia Nacional, viveram-se momentos de incerteza em particular na aprovação da moção de confiança ao governo e posteriormente na aprovação do Orçamento do Estado. As soluções que começaram a desenhar-se com a UCID para viabilizar o governo não tiveram desenvolvimento posterior, mas deixaram desconfiança e ressentimento na relação com o partido governamental. A abertura à intervenção do PR na questão orçamental revelou fragilidades do governo contribuindo provavelmente para posteriores momentos de tensão entre os dois órgãos de soberania.

No sistema político cabo-verdiano a inexistência de uma maioria absoluta nas eleições legislativas pode levar a situações complicadas do mesmo tipo. A Constituição exige a aprovação uma moção de confiança para se ter governo e isso só é possível com maioria absoluta. Em vários outros países simplesmente se exige que não seja aprovada uma moção de rejeição ao governo. Com isso, abre-se caminho para um governo minoritário que pode manter-se até que contra ele não se erga uma maioria negativa. Já em Cabo Verde a exigência logo à partida de uma maioria implica que se tenha uma cultura de negociação e compromissos entre os partidos, algo que actualmente é quase inexistente e tende a tornar-se mais rara. É só ver a dificuldade já de vários anos em conseguir entendimento para eleger os órgãos externos da Assembleia Nacional.

A dificuldade que se pode vir a ter no futuro já é discernível no que se vive nos municípios da Praia e de S. Vicente. Sem maioria absoluta, no caso da Praia por opção do próprio presidente da câmara municipal e no caso de S. Vicente devido aos resultados das eleições, a impossibilidade de se chegar a acordo entre as partes leva no primeiro caso à aprovação do Orçamento sem seguir os procedimentos legais e, no segundo caso, a bloqueios e funcionamento com orçamento de anos anteriores. Em todos os outros municípios, e na maioria dos casos ao longo das três décadas de poder local, a maioria absoluta até agora garantiu estabilidade. Se a regra passar a ser maioria relativa não haverá garantia que o ambiente de estabilidade que se vive na generalidade dos municípios irá continuar.

Os sinais que se vêem no país e os que vêm de fora não fazem acreditar que o ambiente político, a natureza das disputas políticas e própria postura dos actores políticos e também dos cidadãos em relação à política vão mudar. Pelo contrário, nota-se que a descredibilização das instituições tende a aumentar e que a política se torna cada mais performativa e menos de substância. O que faz escola é a exibição do narcisismo, é algum desdém pelos factos e pela verdade e é o apego a narrativas fracturantes da sociedade.

Mesmo as eleições, como as últimas verificadas em Portugal, não conseguem inverter o processo. Pelo contrário, mostram a dinâmica de ascensão de blocos antagónicos que se retroalimentam e não se vê suficiente vontade para romper com o círculo vicioso. A impressão que fica é que se deixou enfraquecer demasiado os consensos sobre os princípios e valores democráticos e o respeito pelo primado da lei que mantêm coesa a comunidade e permitem traçar propósitos comuns.

Para Cabo Verde a imagem de estabilidade é essencial. Mantê-la, passa por inverter a actual erosão da cultura cívica, por um maior comprometimento com os procedimentos democráticos e por renovação dos laços de solidariedade. A grande prova será o novo ciclo eleitoral, seja pelos desafios que poderá vir a colocar, seja pelos que o país poderá se deparar neste mundo de mudanças geopolíticas, alterações climáticas e transformações tecnológicas. É fundamental que se reúna o consenso necessário para a vencer.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1167 de 10 de Abril de 2024.

segunda-feira, abril 08, 2024

Representatividade e responsabilização devem caminhar lado a lado

 

A preparação para as eleições autárquicas no último trimestre do corrente ano já começou. O MpD, o partido no governo e maioritário nas autarquias, anunciou os seus candidatos a presidente das câmaras municipais há mais de três semanas, mas dos outros partidos ainda não foram revelados nomes para a corrida eleitoral. De entre os efeitos no público do anúncio do MpD destacou-se o facto de não ter para as 22 câmaras municipais uma candidata mulher. Não foi proposta a recandidatura da actual presidente da câmara de Santa Catarina e não foram apresentadas outras candidatas noutros municípios. A colisão directa com o espírito da lei da paridade, que essa decisão partidária acabou por configurar, criou a possibilidade de outros partidos se mostrarem diferentes e não hipócritas propondo candidaturas no feminino.

O cargo de presidente da câmara afirma-se cada vez mais central nos municípios – por lei é órgão executivo singular – e, por isso, não se pode pretender que se está a cumprir com a paridade compensando a todo o momento a ausência de candidatas para o lugar com candidaturas femininas para segundo da lista da câmara ou mesmo primeiro da lista para a assembleia municipal. Os partidos, enquanto organizações democráticas e representativas da comunidade política e promotores de princípios e valores como igualdade de oportunidades para todos, têm como uma das suas principais funções preparar e seleccionar candidatos aos órgãos do poder político para ganhar e governar com competência. Nesse sentido, a selecção não pode ser vista como um processo opaco e sujeito a jogadas, nem tão simplista como sondagens para avaliar a notoriedade dos pré-candidatos. Deve ser antes tida como resultado da ponderação exaustiva em órgãos próprios ou de métodos transparentes e competitivos como são as primárias partidárias. Quando não é assim, contribui para aprofundar ainda mais a chamada crise de representatividade que é uma das manifestações da crise da democracia que hoje assola o mundo.

Representatividade e responsabilização caminham lado a lado. Se a representatividade não é reconhecida porque diluída ou imposta, não há a quem exigir contas. Também se é concentrada num indivíduo sem contrabalanço de outros órgãos a tendência é para o caciquismo e relações de dependência que não deixam espaço para uma real responsabilização. Nos municípios cabo-verdianos, apesar da Constituição estabelecer que a câmara municipal é responsável perante a assembleia municipal, a verdade é que todo o poder tende a concentrar-se no presidente da câmara. Daí que que os partidos na preparação das autárquicas ponham o foco na escolha dos candidatos a presidente da câmara e coloquem em segundo plano os candidatos para a câmara e assembleia, afectando negativamente a qualidade da representação dos munícipes nos seus órgãos de poder político.

É evidente que assim a democracia local fica comprometida. Cria-se uma espécie de círculo vicioso em que a fragilidade dos órgãos colegiais tende a aumentar com a concentração do poder no presidente da câmara e com a diminuição em simultâneo da sua capacidade de controlo institucional e imagem junto dos munícipes. A experiência de mais de trinta anos de poder local deixa entender que na generalidade das situações também a influência dos partidos tende a diminuir à medida que o presidente da câmara vai ao longo do mandato construindo a sua base de apoio. Base essa que com sucessivos mandatos tende a consolidar e que a partir de certo momento permite inverter a relação com o partido deixando de ser o escolhido do partido para se impor como candidato nos seus termos. Verdade seja dita que também aquele que não construir base própria dificilmente consegue ir além de um mandato. Há sempre rivais à espreita nas estruturas do partido.

As crises persistentes nos municípios de S.Vicente e da Praia são exemplos de como desvios no exercício do poder democrático ao nível municipal acabam por degenerar em bloqueios, caciquismos e em ilegalidades flagrantes. Revelador da ausência de mecanismos sócio-políticos de responsabilização é a própria impotência das direcções dos partidos em lidar com essas situações. Não as conseguem resolver ou ultrapassar e, pelo contrário, sentem-se forçadas a seguir a posição do presidente da câmara. Preocupante também é a tendência para transportar para a Assembleia Nacional as lutas políticas municipais. Além de se desperdiçar tempo precioso do parlamento, ainda se contribui para aumentar o tempo que os média, em particular a rádio e a televisão públicas, dedicam às câmaras municipais nas disputas políticas nacionais.

De facto, a impressão que se tem é que cada vez mais a arena política principal do país move-se para os municípios. O excessivo eleitoralismo que sempre caracterizou a política municipal facilita esse tipo de jogo político onde também se vêem como protagonistas o governo e os deputados nacionais. Com convites selectivos e agendas convenientes nem sequer se deixa de fora o presidente da república. No processo o que acaba por prevalecer é a lógica de campanha permanente com disputa feroz de recursos e o discurso do abandono e do ressentimento. Em termos de políticas, a tendência é para não se ver o país no seu todo, nem mesmo das suas nove ilhas, mas cada vez mais na perspectiva dos seus 22 municípios. O problema é que com perda de escala e mais rigidez no tratamento dos constrangimentos ao desenvolvimento aumenta-se a ineficiência na utilização dos escassos recursos e diminui-se a eficácia das políticas. Paradoxalmente também a autonomia municipal é de alguma forma sacrificada.

A ideia do município parte do princípio da existência de interesses específicos das comunidades no país que não se esgotam no interesse nacional. A eleição dos seus órgãos de poder político devia garantir de forma democrática a prossecução desses interesses específicos. O facto de só estar sujeito à tutela de legalidade e não ter tutela de mérito devia ser suficiente para manter à distância os órgãos de soberania e seus titulares. Se a percepção da autonomia não se confirma será por razões de fragilização das suas instituições devido ao funcionamento deficiente dos mecanismos de responsabilização, à fraca participação da comunidade, à pouca expressão de uma comunicação social local e à cultura eleitoralista em que “vale tudo”. Na verdade, há pouca discussão das políticas locais, mas muita disputa de recursos e protagonismo com o governo. E para os políticos locais criar uma base de suporte à autonomia não parece tão importante como concentrar recursos para influenciar e agir.

Pode-se estar ainda longe do poder local como cantinho de experimentação democrática, mas na oportunidade oferecida por cada ciclo eleitoral devia-se fazer um esforço para se realizar o objectivo de participação política efectiva. Para isso, há que ter preocupação com a representatividade e a responsabilização política e garantir a autonomia municipal. Os partidos têm o dever de apresentar candidatos qualificados – respeitando a diversidade – capazes de apresentar propostas de políticas e propiciar debate para a consecução dos interesses municipais. Quando, como é caso actual, em que há candidatos que são membros do governo deviam deixar o cargo logo que anunciados publicamente em nome da autonomia municipal e da própria eficácia governativa.

Também da sociedade sempre poderia vir uma iniciativa de candidatos promovida por “grupo de cidadãos” que, sem cair na tentação de imitar os partidos, ajudasse a criar uma democracia local sem caciquismo e clientelismo. Talvez assim se construísse um poder local mais próximo de cumprir com os seus desígnios constitucionais de levar a democracia a todos os cantos do país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1166 de 3 de Abril de 2024.

sexta-feira, março 22, 2024

Equívocos para continuar a controlar o passado e o futuro

 O governo apresentou na segunda-feira, dia 18 de Março, o programa de comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e da libertação dos presos do Campo do Tarrafal. Não se conhece se o acto foi precedido da publicação de uma resolução do governo. Sabe-se, porém, por uma nota da presidência da república de 23 de Fevereiro último que o PR decidiu promover pelos 50 anos do 1º de Maio de 1974 um quadro de celebrações de Estado para “honrar o sacrifício dos que foram prisioneiros no Tarrafal”. Já meses atrás, em Janeiro, a Fundação Amílcar Cabral tinha integrado no seu programa para 2024 do centenário do seu patrono “comemorações conjuntas do 25 de Abril e da libertação dos presos políticos” e Pedro Pires tinha considerado “fundamental a intervenção do Estado de Cabo Verde e importante a intervenção da Presidência da República” nas celebrações. É precisamente o que está a acontecer.

O problema é que o processo decisório no Estado democrático parece estar invertido. Uma entidade privada lidera e o governo condescende. O parlamento não aprova comemorações oficiais, mas o governo contorna a posição da sua maioria parlamentar. O presidente da república vai numa outra direcção querendo elaborar um substancial programa comemorativo “em articulação com outros órgãos de soberania, câmara municipal do Tarrafal e outros parceiros”. Pode-se até ficar com a impressão que se voltou aos tempos do velho PAIGC/CV força, luz e guia da sociedade e do Estado.

E não é para menos se se considerar que finalmente já foi autorizada a celebração oficial do 25 de Abril em Cabo Verde. Até agora a data foi praticamente ignorada porque conflituava com a ideia expressa por Pedro Pires recentemente à Voz da América que a independência do arquipélago foi feita pelo PAIGC e pelos seus militantes e não por qualquer outro interveniente. O 25 de Abril não seria um movimento autónomo, mas sim produto da derrota infligida na Guiné e, como tal, de importância secundária. Muda-se de ideia porque, depois da visita do presidente do parlamento português Santos Silva à Fundação Amílcar Cabral e da sua declaração que a luta pela liberdade era a mesma daqueles que lutaram contra a ditadura e daqueles que lutaram contra o colonialismo, há acordo para associar as datas do 25 de Abril e do centenário de Cabral.

Ou seja, como diria George Orwell, continua-se a querer controlar o passado para poder controlar o presente e o futuro. Nesse sentido, é preciso perpetuar os equívocos. O 25 de Abril de 1974 é referenciado pelos cientistas políticos como o início da Terceira Vaga da democracia e, de facto, em Cabo Verde com a Revolução dos Cravos veio a libertação dos presos políticos no 1º de Maio, a liberdade de expressão e de imprensa, a liberdade de reunião e de manifestação e a liberdade de criação de partidos políticos. O equívoco está em celebrar o Grande Dia dizendo que a luta era a mesma de todos pela liberdade, quando realmente as liberdades de Abril praticamente desapareceram em Cabo Verde, em Dezembro de 1974, e com a independência nacional se instalou uma outra ditadura.

Um outro equívoco com a celebração da libertação dos presos da ditadura no campo do Tarrafal no dia 1º de Maio é de se fazer de esquecido que afinal o estabelecimento prisional foi mais uma vez reaberto, em Dezembro de 1974, para receber presos políticos cabo-verdianos entre eles militantes dos partidos considerados adversários/inimigos do PAIGC. Já não o número de 20 cabo-verdianos presos pelo regime salazarista, mas sim, segundo José Pedro Castanheira, 70. Na verdade o slogan “Tarrafal Nunca Mais” se em Portugal não mais se traduziu em polícia política e em presos políticos, já em Cabo Verde, por mais 15 anos, dezenas de pessoas em várias ocasiões (1977, 1979, 1980, 1981 e 1987) foram presas, sofreram sevícias, torturas e mortes em outros “tarrafais” nas instalações militares. Até agora, apesar de o parlamento, em junho de 2019, lhes ter reconhecido o agravo e estipulado pensão financeira pelos maus tratos e torturas, não há ainda de facto reconhecimento pleno do Estado de Cabo Verde, dos partidos políticos e da sociedade pelo atropelo grave aos seus direitos e à sua dignidade. Não faz sentido celebrar a libertação dos presos políticos da ditadura salazarista sem que haja pedido de desculpa pública do Estado por todas as atrocidades do regime de partido único.

Cabo Verde teve que esperar 15 anos para voltar a exercer as liberdades que depois do 25 de Abril por escassos meses, entre Maio e Dezembro de 1974, pôde desfrutar. Só em 1992 iria dotar-se de uma Constituição que consagraria a democracia liberal, garantindo a liberdade e a plena cidadania a todos os cabo-verdianos. Não se pode, pois, dizer retrospectivamente que a luta contra a ditadura salazarista era a mesma luta que os autoproclamados libertadores desencadearam nas colónias. Como se veio a constatar rapidamente, na sequência do 25 de Abril e do desmoronamento do império colonial, o objectivo de todos era substituir uma ditadura por outra. O projecto de poder do partido ou movimento era indissociável ou até podia sobrepor-se ao projecto de libertação. Para isso recorria-se a todos os meios inimagináveis para eliminar eventuais adversários ou rivais. Daí os presos políticos, as torturas, os fuzilamentos e as guerras civis que duraram décadas.

Insistir no equívoco só ajuda a perpetuar as narrativas que os chamados libertadores ainda se servem para controlar o passado e com esse poder controlar o presente e o futuro. Se alguma dúvida houvesse dos enormes estragos provocados, a situação real de corrupção, de pobreza e de desesperança que leva muitos a procurar emigrar para a Europa é bastante elucidativa. Como alguém disse já é tempo da África se libertar dos seus libertadores. Seria uma boa ajuda nesse sentido se certos sectores da vida pública e académica portuguesa não procurassem acomodar as vaidades e as narrativas de quem durante décadas não trouxe liberdade e não promoveu prosperidade aos seus povos e países. Muito menos que lhes emprestassem com honrarias renovada credibilidade e até suporte científico para os seus desvarios revolucionários. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1164 de 20 de Março de 2024.

quinta-feira, março 14, 2024

Salvaguardar a autonomia do BCV

A iniciativa do INPS de organizar leilões para depósitos na perspectiva de conseguir maior rentabilização das poupanças da instituição continua a provocar polémica. No passado dia 1 de Março o BCV, depois de, em Dezembro, ter recomendado aos bancos que se abstivessem de participar nos leilões veio dar-lhes razão na reclamação então apresentada. No comunicado, o BCV deixou claro que o processo de leilões violou o princípio de transparência e que seria passível de anulação pelas entidades competentes. O insólito aconteceu quando, numa conferência de imprensa, no dia 8 Março, com a presença dos dois ministros de tutela, o ministro das Finanças veio contrapor ao BCV afirmando que o INPS andou muito bem em avançar com os leilões e que são para continuar.

Na segunda-feira, o presidente da república em entrevista à TCV relembrou ao governo a autonomia do BCV e a sua função de entidade reguladora independente do sistema financeiro. Razão por que, segundo ele, o governo “não pode realizar reunião entre o Banco Central, o INPS e o próprio governo para articular posições” como se propôs fazer o ministro das Finanças nas suas declarações da sexta feira passada. De facto, a lei orgânica do BCV, de 2002, é clara em afirmar  que a autonomia do Banco Central deve ser respeitada, não podendo nenhum órgão ou pessoa influenciar o governador ou qualquer membro do conselho de administração no desempenho das suas funções.

 A lei traduz a opção por uma maior autonomia e independência do Banco Central que foi consagrada na revisão constitucional de 1999 na sequência da assinatura do Acordo Cambial que criou o peg fixo com o euro. O respeito pelos seus pressupostos trouxe ao país anos de inflação baixa e uma imagem de país com estabilidade cambial e do sistema financeiro. Não se pode com ligeireza ou voluntarismos fragilizar a arquitectura institucional que tem suportado essa estabilidade.

De acordo com o ministro das Finanças na TCV a iniciativa dos leilões é uma questão nova para o INPS, para o BCV e para o próprio Governo e que nem o BCV tem ou tinha regulamentos nessa matéria. A pergunta que se põe é: sendo os leilões de depósitos uma inovação, por que se avançou com o processo sem primeiro o regulamentar e sem aparentemente o acordo explícito da tutela dos dois ministros. Leilões de produtos financeiros não são propriamente desconhecidos no país. Acontecem regularmente com as emissões de obrigações e bilhetes do tesouro.

A diferença é que são regulados respectivamente pelos decretos-leis 59/2009 e 60/2009 de 14 de Dezembro que remetem para o Banco Central /Auditoria Geral do Mercado de Valores Mobiliários, aspectos operacionais de realização de leilão, de liquidação financeira e de consulta. Também é sempre ouvido previamente o BCV/AGMVM quando são estabelecidas as condições de emissão e outras questões técnicas ligadas aos leilões dos títulos do tesouro.  Na Bolsa de Valores os títulos são oficiosamente cotados e colocados por leilão. 

Por aí pode-se constatar que há processos e procedimentos em matéria de leilões já consolidados no país e com enquadramento institucional adequado que dificilmente permitem dizer que se está perante uma situação completamente nova. De facto, novidade parecem ser os leilões de depósitos de fundos sociais. Aparentemente não se registam muitos exemplos no mundo lá fora.

O caso mais referido é do Banco da Rússia onde, por razões de gestão de excesso de liquidez estrutural e também de imposição legal de aplicação de contribuições para fundos de pensões, se realizam leilões periódicos de depósitos. São realizados na Bolsa de Moscovo, o Banco da Rússia estabelece as regras para garantir transparência, protecção dos fundos de pensões e promover a competição entre os bancos e certifica-se que há conformidade com as directivas do ministério das finanças. Ou seja, há todo um enquadramento institucional prévio para se colher os benefícios do processo e para assegurar a estabilidade e a confiabilidade do sistema.

Também em Cabo Verde devia-se começar por dar esse enquadramento legal a todo o processo a exemplo do que foi feito com os leilões dos Títulos do Tesouro.  É evidente o interesse geral em rentabilizar os fundos do INPS, mas há que fazê-lo sem deixar quaisquer dúvidas quanto à transparência do processo e salvaguardando a integridade do sistema financeiro. Por outro lado, há que assacar responsabilidades e conter os eventuais estragos institucionais e reputacionais por um imbróglio que se arrasta há três meses, uma parte em surdina e mais recentemente às claras como deixam entender os sucessivos comunicados vindos a público.

Já são claros os sinais do confronto político que se anunciam e o posicionamento do governo na conferência de imprensa da sexta-feira não serviu para apaziguar a situação. Depois da chamada de atenção do presidente da república para a necessidade de se garantir o normal funcionamento das instituições, devia-se procurar pôr o processo de rentabilização dos depósitos do INPS no caminho certo e com a supervisão adequada.

 Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1163 de 13 de Março de 2024.

 

segunda-feira, março 11, 2024

De mãos dadas para enfrentar os desafios da modernidade

Março, Mês da Mulher, é sempre o tempo ideal para um olhar sobre a grande caminhada para garantir direitos e oportunidades em pé de igualdade com os homens. Extraordinários avanços já foram feitos, em particular nas democracias, enquanto atrasos se mantêm em muitos países e autênticas regressões se verificam noutros. O acesso generalizado à educação nos diferentes níveis e a empregos em todos os domínios tem traduzido muito desse progresso.

É evidente a contribuição dada para a produção de riqueza global, para a diminuição extraordinária da pobreza e para um sentimento de realização contagiante que acabou por elevar para um outro patamar a vida de milhões de meninas e mulheres em todo o mundo. Afinal, trata-se da metade da humanidade e o seu bem-estar e felicidade significa ganho para todos.

Infelizmente, toda essa caminhada ainda não é feita sem que seja pontuada por muito sofrimento, violência, discriminação activa e tentativas de exclusão. Mesmo nas sociedades mais democráticas nota-se uma reacção agressiva de certos sectores da sociedade face aos grandes avanços conseguidos pelas mulheres. Em alguns países como o Irão e o Afeganistão essa reacção aos ganhos da modernidade toma formas extremas e é uma das fontes de alimentação da revolução que inequivocamente tem como uma das suas finalidades a subjugação da mulher. Em todo o mundo verifica-se o recrudescer da tensão entre homem e mulher, um fenómeno que provavelmente não está alheio a reconfiguração das lutas emancipatórias das minorias em lutas identitárias, pondo em confronto opressor e oprimido, e também o extremar de posições devido ao efeito polarizante das redes sociais.

As guerras culturais que hoje marcam uma boa parte da agenda política são marcadas pelo que são as expectativas dos diferentes grupos sociais quanto ao papel do homem e da mulher na sociedade. Não é à toa que já se nota um posicionamento diferenciado dos dois sexos na tradicional divisão de política nas democracias entre a esquerda e a direita com as mulheres a pender para esquerda e o homem a situar-se à direita. Numa matéria particularmente divisiva como o chamado direito ao aborto, em que estão em causa os direitos da mulher sobre o seu próprio corpo e de ter ou não filhos, os tribalismos de esquerda e de direita funcionam plenamente.

Há dois anos atrás a maioria conservadora dos juízes no supremo tribunal dos Estados Unidos conseguiu revogá-lo causando grandes perturbações sociais e políticas com impacto nas eleições estaduais e federais. Na segunda-feira, dia 4 de Março, esse direito foi introduzido na Constituição na França através de uma emenda constitucional aprovado pelo parlamento. É a primeira vez que isso acontece na história das constituições democráticas.

Em várias situações de conflito aberto ou mesmo de guerra é visível a centralidade da questão do papel da mulher na sociedade e da sua dominação pelo homem. Muitas das paixões, da crueldade e do ressentimento que alimentam esses processos hoje a acontecer em vários pontos da África, do Médio Oriente e de outros continentes justificam-se pelo desejo de subjugação das mulheres. Em resultado, são votadas à exclusão e impedidas de conseguirem uma educação, são violadas e mortas para desmoralizar as hostes inimigas e até usadas como escudos humanos para conduzir furtivamente operações militares. No ataque a Israel a 7 de Outubro e na invasão de Gaza e ainda nos relatos de atrocidades verificadas em teatros de guerra como Etiópia, Ucrânia e no Congo tem-se uma ideia do pesado fardo de dor e sofrimento que recai sobre as mulheres nos conflitos armados em particular quanto se assumem como existenciais.

Também ao nível micro de pequenas cidades, das vilas e das famílias as notícias demasiados frequentes de violência doméstica que acaba por desembocar no assassinato da mulher e algumas vezes acompanhado do suicídio do homem deixam entrever que há questões complexas no processo emancipatório e que precisam ser enfrentadas para se poder chegar à almejada igualdade de direitos e oportunidades. Em Cabo Verde, nos últimos dias, o homicídio da passada segunda feira, em Porto Novo, a tentativa de assassinato e suicídio no Fogo são os mais recentes casos de acontecimentos similares que vêm se repetindo no país e têm lançado os números de homicídios e de suicídios para níveis preocupantes.

Há que compreender que se está a viver um período particularmente difícil no mundo inteiro com crises de vária natureza, designadamente climática e migratória, com novas tensões geopolíticas e com a possibilidade de reconfiguração de espaços e relações económicos. Em simultâneo, está-se perante um momento único na história da humanidade em termos de participação das mulheres na vida política, económica e social e cultural que, ao dar suporte à autonomia pessoal e estimular a competição em todos os domínios, abre a possibilidade da criação de tensões com relações e papéis sociais anteriormente existentes para o homem e para a mulher no espaço familiar, na empresa, na política, etc. Tudo isso concorre para criar alguma ansiedade em relação ao futuro e mesmo insegurança quando as pessoas, principalmente os homens, veem os seus empregos tradicionais destruídos, sentem-se impreparados para os novos empregos e ressentem a perda do estatuto social.

Mas, porque avançar é preciso e sem deixar ninguém para trás, o grande desafio que se impõe a todos é como fazê-lo sem cair em tensões paralisantes, na violência do género e em tentações de fazer recuar a história como prometem os diferentes fundamentalismos religiosos e alguns líderes de clara inclinação autocrática. Para isso é fundamental que a atenção não fique só por continuar a incentivar o avanço extraordinário que as mulheres têm feito. É preciso que incida sobre a necessidade de preparar os homens e especialmente os jovens rapazes para o mundo de competição de hoje, mas também de colaboração e solidariedade com as meninas num quadro de igualdade de direitos e de oportunidades.

A humanidade não pode sobreviver e muito menos prosperar com as suas duas metades de costas viradas. O 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, é também o dia para se lembrar que a caminhada deve ser feita de mãos dadas, não obstante todos os percalços que inevitavelmente acabam por aparecer. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1162 de 6 de Março de 2024.

 

segunda-feira, março 04, 2024

Os tempos não estão para activismos fracturantes

 Assiste-se actualmente em Cabo Verde ao renascer da tendência para o pensamento único sob a capa de slogans como “cumprir Cabral”, “cultura é resistência” e agora “oficialização Já! do crioulo”. Este último slogan saiu do fórum sobre a língua cabo-verdiana realizado no quadro das actividades realizadas no sábado passado a propósito do dia internacional da língua materna. O activismo que dá corpo a essa tendência autorreferencia-se pela aderência à ideologia da luta de libertação, pelo pan-africanismo e pela negação da especificidade da cabo-verdianidade. Até se faz reconhecer nas suas actividades através de uma espécie de “dress code” supostamente de resistência em que prefere o uso de indumentária típica de países do continente africano ou então a que distinguia os dirigentes do regime anterior.

Daí não viria nenhum mal ao mundo se fosse somente mais uma corrente de pensamento numa sociedade democrática e plural. O problema é que tem o patrocínio claro das instituições do Estado incluindo o suporte de órgãos de soberania, do sistema educativo do país, da universidade pública e da comunicação social do Estado. Com a percepção desse apoio institucional não estranha que ambicione e procure a ser único e que demonstre ostensivamente a sua intolerância em relação a ideias, narrativas ou factos que contrariam os fundamentos da sua ideologia. No caso da oficialização do crioulo a ajuda estatal tem outras utilidades, como bem comentou um dos mentores da sua promoção: “Ten ê ke ser ufisializódepadnher pa fazê tude u ke mestê fazê” (tem que se oficializar já para pôr dinheiro para fazer tudo o que é preciso fazer).

A citada expressão em crioulo recorre ao alfabeto fonológico ALUPEC como, aliás, toda a comunicação do Fórum da Língua Materna. Isso acontece porque com o apoio do Estado foi o alfabeto que se impôs em detrimento do alfabeto etimológico que escritores, poetas, compositores e outros cabo-verdianos usaram por mais de um século. Pondo de lado obra consolidada e intimamente ligada às bases fundantes da cabo-verdianidade na música e na literatura e o facto do crioulo ter base lexical portuguesa em mais de 90% adoptou-se um alfabeto fonológico não por razões práticas ou culturais, mas sim por razões fundamentalmente ideológicas. Na linha do pensamento único tinha-se que impor a realidade alternativa conjecturada em tempos revolucionários da origem africana dos cabo-verdianos. A escrita na base do alfabeto etimológico revelando as origens da sua língua materna não podia denunciar o contrário.

Curiosamente nas ilhas chamadas ABC, nas Caraíbas, onde também se fala um crioulo de base lexical em boa parte de origem portuguesa uma delas, Aruba, adoptou o alfabeto etimológico para o papiamento e a outra, Curação seguiu o alfabeto fonológico no seu papiamentu. Seria interessante estudar o impacto prático da adopção dos dois alfabetos com as suas vantagens e desvantagens tendo, porém, em conta que, diferentemente de Cabo Verde com língua oficial portuguesa, o papiamento tem muito pouco do holandês, que é a língua oficial nas duas ilhas. Sem falar que não há programas de reafricanização dos espíritos do tipo existente em Cabo Verde que enviesam qualquer abordagem da realidade cabo-verdiana suportada no facto de que a consciência nacional emergiu em Cabo Verde muito antes da independência e não como resultado de lutas anticoloniais.

Talvez por causa disso não se nota nessas duas ilhas o tipo de activismo frenético que se vê em Cabo Verde. O papiamento é uma das línguas oficiais nas duas ilhas desde há mais de dez anos, mas não é língua da administração pública e apesar de ser ensinada nas escolas não é a língua de ensino. Ao holandês é reservado esse papel. Não é uma situação muito diferente do que se passa em Cabo Verde. Aqui as normas constitucionais pertinentes estão na constituição no artigo 9º sob epígrafe línguas oficiais, mas ainda não há paridade com o português. O presidente da república exprime-se oficialmente também em crioulo, o debate parlamentar muitas vezes acontece em crioulo e nos tribunais pode-se depor também em crioulo. Com esse nível de assunção pela sociedade e pelo Estado não se pode dizer com seriedade que a língua cabo-verdiana é discriminada ou secundarizada.

Por razões práticas que têm a ver designadamente com o facto de não se ter uma escrita estandardizada, suporte documental e outros recursos disponíveis em crioulo é que ainda não foi adoptado pela administração pública e pelo sistema de ensino. Precipitar o processo com voluntarismos do tipo “oficialização Já” que só servem de alimento para guerras culturais não terá qualquer efeito positivo por falta de meios de suporte para a sua materialização efectiva. Não deixará, porém, de ser disruptivo, com consequências potencialmente graves. Saber isso e insistir na mesma linha só se compreende se o objectivo é alimentar a polarização social e política mesmo quando o discurso vai no sentido contrário.

Cabo Verde chegou à independência com todos os cabo-verdianos a falar crioulo sem distinção com base no estrato social, no nível de educação ou na ilha de origem. Aparentemente dentro do império português o crioulo era consensual como língua de comunicação de todos os cabo-verdianos enquanto o português era a língua da administração do estado e a língua de ensino. Também parece que não havia conflito significativo no uso das duas línguas. A literatura fundante da cabo-verdianidade era expressa quase toda ela na língua portuguesa. O crioulo, por seu lado, desenvolvia-se na sua expressividade e plasticidade como nova língua na concepção de John McWorther, linguista da Universidade de Columbia e autor de vários livros sobre os crioulos, servindo-se do português mas sem perder a sua identidade. O Dr. Baltasar Lopes notou o facto no seu livro O Dialecto Crioulo de Cabo Verde ao escutar estudantes do liceu a discutir filosofia, física e matemática em criolo nos intervalos das aulas.

A forma como o consenso foi rompido e em consequência fracturas tão grandes foram abertas na sociedade cabo-verdiana é algo que devia merecer a reflexão de todos. Hoje é evidente que Cabo Verde, não obstante os enormes investimentos no sistema educativo do país ao longo de décadas, está longe de ter os níveis de competência linguística que o desenvolvimento no mundo globalizado exige e que podiam constituir vantagem na realização da vocação do país como prestador de serviços. Para isso terá contribuído certamente o desperdício de energia em guerras culturais quando o foco deveria ser outro: educar toda a criança e todo o jovem para ser mais proficiente no uso das línguas que permitem o acesso ao conhecimento, à tecnologia e ao estreitar das relações com outros povos, dando conteúdo à ideia de Cabo Verde como Terra da Morabeza.

Infelizmente os tempos não se mostram mais favoráveis para se arrepiar caminho. Agendas politicas ideológicas potenciadas por comemorações de datas de referência vão exacerbar os conflitos e as fracturas sociais e políticas. A sobreposição com o ciclo eleitoral poderá levar a intolerância ainda mais longe. O envolvimento ambíguo do Estado e dos seus titulares já está a criar tensões institucionais e os sinais apontam para dificuldades acrescidas à frente. O que se observa noutras democracias de deterioração da vida pública e de perda do sentido de Estado parece estar a ganhar terreno no país. Cabo Verde não se pode dar-se a esse “luxo”. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1161 de 28 de Fevereiro de 2024.

sexta-feira, fevereiro 23, 2024

Debater abertamente para ter agenda própria

 Todos queixam-se que em Cabo Verde não se debate o suficiente, que o debate quando acontece é repetitivo ou de fraca qualidade e que não poucas vezes é pontuado por acusações mútuas e tacticismos que acabam por o inviabilizar. Curioso é que neste ambiente de debates difíceis ou inefectivos, decisões cruciais para o futuro são tomadas, investimentos custosos são realizados e riscos são assumidos, sem que se tenha clara consciência do que se passa, para além do espectáculo mediático-político criado para os apresentar. É como se o país estivesse mergulhado permanentemente em bagatelas políticas e questiúnculas com implicações eleitorais de curto prazo, enquanto, por outras vias nem sempre devidamente escrutinadas, se vão implantando determinantes do que eventualmente no futuro poderá ser expectável, seja em termos de oportunidade como de rendimentos.

Na última semana, o governo lançou iniciativas de peso no domínio do turismo com a “Marca Cabo Verde” e no domínio da energia com a “Central de Armazenamento de Energias Renováveis” na ilha de Santiago. O Governo anunciou também a continuação das privatizações com a selecção de parceiro estratégico para a CV Handling e a venda de 10% das acções a emigrantes e a trabalhadores da empresa. Até o fim desta semana estará em conversações com a Millennium Challenge Corporation (MCC) com vista ao financiamento de projectos para a integração de Cabo Verde na região da África Ocidental. Não há, porém, notícia que houve preocupação em debater os desafios nestes sectores-chave para o futuro que, com os desenvolvimentos mundiais recentes (pandemia, guerras e inflação), tornaram-se ainda mais imprevisíveis convidando a uma reavaliação das abordagens, à possível alteração de objectivos e a novas alianças.

De facto, assim como não se tem apercebido de que houve qualquer esforço especial para se debater e avaliar a relação do país com a CEDEAO, face à clara degradação das relações entre os países da comunidade nos últimos tempos, também em relação a outros domínios-chave para o país não se tem sentido essa urgência. Mesmo quando as falhas são notórias, como no domínio dos transportes aéreos, em que não se tem tido o sucesso previsto com parceiros estratégicos escolhidos e se acumulam dívidas, ou fica-se com serviço mais precário e muito aquém das expectativas criadas, não há realmente um debate das razões de fundo. Todos acabam por se limitar às denúncias e acusações mútuas e, quando propostas são apresentadas para se ultrapassar a situação, de quase todos os quadrantes vem o “mais do mesmo”.

Vê-se, por exemplo, que há convergência quase total para se usar a TACV para ligar o país à diáspora e também para se ter serviço público de transporte marítimo entre as ilhas, mas não há assunção dos custos envolvidos nem do facto que dificilmente se vai conseguir satisfação geral com o nível do serviço prestado. Ou seja, a questão vai continuar a ser matéria de arremesso político ao mesmo tempo que o problema dos transportes é sempre adiado e com o acumular dos custos torna-se progressivamente intratável. A impressão é que os reais constrangimentos do país (problema de escala, fraca conectividade, estrutura produtiva limitada e insuficiências do capital humano) não são reconhecidos. Aparentemente prefere-se lidar com o irreal traduzido na proclamação que Cabo Verde é uma Nação Global.

A mesma atitude nota-se na forma como são apresentadas as novas iniciativas. Com a nova “Marca Cabo Verde” quer-se “transformar cada ilha num destino turístico que seja autêntico, genuíno e diferenciador”, como disse o Primeiro-ministro. Isso seria o ideal, mas o facto é que a grande procura turística que já tem o impacto directo de 25% no PIB é fundamentalmente de sol e praia. Uma procura que ainda não chegou a um milhão de turistas, como desde de há mais de dez anos se vem apontando como meta a atingir, por razões que em boa medida têm a ver a com falta de foco e engajamento das autoridades e de uma estratégia acompanhada de investimentos tempestivos para potenciar a atractividade das ilhas turísticas. Os recursos públicos são finitos e devem ser dirigidos para atrair essa procura externa e criar a possibilidade das outras ilhas beneficiarem da exportação “cá dentro” de bens e serviços para além do potencial turístico específico que poderão desenvolver. De facto, é de se ponderar se o que mais serve o país é a dispersão de recursos à procura desse ideal, ou se é ganhando escala num sector capaz de grande efeito de arrastamento na economia, que já é de 40%, como assinala o Banco Mundial, mas que pode ser muito maior.

No sector energético o governo optou por uma “Central de Armazenamento de Energias Renováveis” na ilha de Santiago com base num sistema de bombagem para elevação de água e posterior reconversão em energia eléctrica através de turbinas após descarga. Os estudos vêm de 2011, 2014 e 2017 e focam-se numa solução hídrica num país de baixa pluviometria e praticamente árido. A questão que se coloca é se com o grande investimento de 66 milhões de euros para uma potência de 20 megawatts não haveria outras opções menos complexas, com menos riscos e mais flexível e adequada para a produção desconcentrada de electricidade. Do início dos estudos em 2011 para cá houve inovações tecnológicas importantes na produção de baterias e tudo leva a crer que, além de que com o tempo vão ficando mais baratas, são ideais para equilibrar as redes eléctricas públicas quando injectadas com a electricidade intermitente de parques solares e eólicos.

Quanto à privatização da CV Handling, sem ainda se materializar os sinais claros de aumento substancial e sustentado do tráfego aéreo para o arquipélago, na sequência da concessão dos aeroportos à Vinci, o seu anúncio pode sugerir que se está simplesmente a seguir uma agenda de privatizações mais ligada a compromissos com o Banco Mundial do que às necessidades da economia ou oportunidades reais do país. O problema é que da última vez que se deu a entender que se estava a cumprir agendas foi em fins de Fevereiro de 2019 com assinatura da venda de 51% da TACV à Loftleidir da Icelandair. Em Junho do mesmo ano o Banco Mundial premiou o país com 40 milhões de dólares de ajuda orçamental que tinha retido durante anos até à privatização da TACV. Depois viu-se o que aconteceu e a culpa não é só da pandemia.

É verdade que o país tem que ser ousado, imaginativo e correr algum risco para ultrapassar os enormes constrangimentos ao seu desenvolvimento. Tem também que mostrar que aprende com os seus erros e ser capaz de demonstrar que dentro do possível segue a sua própria agenda e não a dos outros. No processo é sempre responsabilidade maior do governo confrontar o país com as opções possíveis e elucidá-lo quanto aos constrangimentos. Se o país tem um “Business Plan” certamente não passa por pretender ser bom aluno, mas, sim, por o colocar no caminho para o desenvolvimento sustentável com boas práticas, transparência, visão e sentido estratégico. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1160 de 21 de Fevereiro de 2024.