quarta-feira, janeiro 30, 2013

Infra-estruturas: ilusionismo e fuga à responsabilidade

Governantes adoram infraestruturas. Portos, aeroportos, estra­das, diques e barragens, escolas e outros edifícios públicos são obras visíveis e facilmente aproveitáveis para granjear apoio popular. Ga­nhos políticos conseguem-se em vários momentos: no anúncio, na assinatura de contrato, no lançamento da primeira pedra, nas visi­tas de seguimento e finalmente na inauguração. Mas nem sempre as promessas de desenvolvimento que as acompanham se realizam. Depois do fulgor das festas da inauguração muitas vezes a vidas das pessoas continua no marasmo de sempre.
Como bem escreve Justin Yifu Lin no seu recente livro “Em busca da prosperidade” o desenvolvimento pressupõe identificação e aprovei­tamento de oportunidades em linha com as vantagens comparativas do país e facilitação do crescimento das empresas de forma a serem competitivas no mercado interno e no mercado global. Segundo o mesmo autor, o investimento nas infraestruturas hard (portos, ae­roportos , estradas, transportes, telecomunicações e energia) e nas infraestruturas soft (instituições, educação, formação) só se mostra rentável se resulta da correcta identificação de oportunidades e se é feito no tempo certo e sequenciado ou encadeado de forma a facili­tar e potenciar a actividade empresarial. Obras realizadas por razões populistas e eleitoralistas ou com base em pressupostos não condi­zentes com os recursos e vantagens do país facilmente se transfor­mam em elefantes brancos e em monumentos ao desperdício e à má gestão de fundos públicos.
Infraestruturas dão votos e ajudam governos a manterem-se no poder. Por isso é grande a tentação de as construir numa perspectiva de ganhos de curto prazo. Os custos vêm depois em dívida acumu­lada, em produtividade baixa e fraca competitividade externa. As dificuldades terríveis por que passa Portugal e outros países advêm desse cálculo mal feito. Casos que não serviram de exemplo às auto­ridades caboverdianas.
Nos últimos anos o governo embarcou na construção de infraes­truturas por todo o país atraído por uma linha de crédito que, de fac­to, condicionou a escolha das obras e que impôs a obrigatoriedade da presença maioritária de empresas portuguesas nos consórcios e a utilização de produtos de exportação portugueses. Desses inves­timentos condicionados e feitos sob pressão das eleições de 2011 não resultaram níveis de emprego e crescimento económico que o país precisa. Bem pelo contrário, o endividamento público já atingiu pontos críticos e a população terá que suportar aumento generaliza­do de impostos e taxas, e ficar mais pobre, para que o governo possa equilibrar as contas públicas.
A essa falha em dinamizar a economia, como prometido, vêm-se juntar notícias de auditorias a obras na Boa Vista e no Fogo que dão conta de práticas complicadas nos processos de adjudicação. Os re­latórios referem-se a práticas que poderão estar na origem de falhas graves como a queda da ponte de Ribeira D’Água, na Boa Vista, a ultrapassagem por muitos milhões do custo inicial de muitas obras e no aparecimento de indícios de apropriação indevida de fundos públicos por pessoas ou entidades. O governo procurou alijar a sua responsabilidade ou repassando-a para quem já não é ministro ou atribuindo as falhas à pressa em fazer e a insuficiências técnicas do país. O risco de desvios nos concursos e adjudicações de obras por causa das condicionantes existentes e do eleitoralismo permanente para proveito de uns e outros nunca foi assumido.
Governos presidem sobre a gestão de fundos públicos cuja origem são os impostos actuais dos contribuintes ou empréstimos que futura­mente são pagos pelos mesmos contribuintes. O Estado, por si, nada produz. Por isso, a utilização pelo governo desses fundos na pros­secução do interesse geral deve ser feita com a devida parcimónia e com assunção plena de responsabilidade pelos actos praticados.
Há uma inversão perversa da realidade quando se faz crer ao cida­dão de que obras feitas pelo Estado ou apoios recebidos do Estado são dádivas ou prendas dos governantes e por isso não se discutem se os critérios foram os melhores e se foi ponderado o custo-benefí­cio. Tudo para reforçar a crença no Estado providência e a depen­dência das pessoas numa perspectiva de manutenção do poder. Há que pôr cobro a estas situações. O combate pela responsabilização dos poderes públicos é central para que se tenha um governo do povo, pelo povo e para o povo.
                                                                                                                                                    Humberto Cardoso
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 30 de Janeiro de 2013       

quarta-feira, janeiro 23, 2013

Cuidar das vantagens comparativas

 Chamou a atenção do mundo a decisão da França em intervir no Mali, primeiro com bombardeamentos aéreos e posteriormente com soldados e carros de combate, para conter o avanço de combatentes islamitas nessa região do deserto do Sahara. Vários países do norte da África como a Líbia, Argélia e países subsaarianos designadamen­te o Mali, e o Níger encontram-se no epicentro da movimentação jihadista. Uma vitória dos islamitas no Mali poderia transformar-se num pesadelo regional. A natureza transnacional e messiânica do movimento não deixaria de afectar outros países da costa ocidental africana com significativa população muçulmana.
A presença já constatada de grupos islâmicos ligados à Al-Qaeda em países como a Mauritânia e a Argélia e com ramificações noutros países vizinhos augura problemas graves no futuro imediato. Nessa perspectiva a disponibilidade da França e também do Reino Unido e dos Estados Unidos em apoiar forças africanas da CEDEAO revela-se da maior importância. No passado recente na Costa do Marfim e intermitentemente em países com a Nigéria e o Níger confrontos violentos verificam-se entre a comunidade muçulmana e a comu­nidade cristã. A introdução do radicalismo islâmico pode inflamar ainda mais os ânimos e lançar a África Ocidental num espiral des­cendente com o aumento do tráfico de drogas, de armas e de pessoas e o desenvolvimento do terrorismo. Se isso ainda for acompanhado da prática de tomada de reféns estrangeiros, como aconteceu na se­mana passada na Argélia, dificilmente o futuro se mostrará risonho. Poucos quererão investir ou visitar países inseguros e ameaçados por fanáticos dispostos a aplicar a sharia, a lei islâmica.
Cabo Verde encontra-se a mais de 400Km da costa africana e a sua população autóctone é essencialmente cristã. O facto porém não o faz imune à desestabilização que vem do continente. O aumento do tráfico, da criminalidade e do terrorismo na região não deixará de afectar as ilhas num sentido ou noutro. A permeabilidade das fron­teiras criada pelos acordos de livre circulação da CEDEAO garante que, a exemplo do que aconteceu antes, fluxos de refugiados pode­rão dirigir-se para ilhas se a situação nos países vizinhos se agravar. E com eles virão problemas que constituem desafios acrescidos às autoridades em diversos domínios designadamente, no cultural, saúde pública, habitacional e segurança. Sem falar que a pequena população de Cabo Verde na globalidade e o número escasso de ha­bitantes em certas ilhas fazem com que movimentos migratórios em direcção ao arquipélago coloquem questões de segurança nacional que provavelmente não teriam cabimento em territórios maiores e com uma população de milhões.
O Turismo já se revelou como actividade económica com maior dinamismo e maior potencial futuro. São países europeus os pro­dutores dos fluxos turísticos em direcção a Cabo Verde. O aumento crescente do número de turistas deixa entrever que Cabo Verde tem alguma vantagem comparativa no sector. Deixando de lado a beleza das ilhas, factores como o clima ameno, a ausência de choque cultu­ral e a proximidade da Europa certamente que concorrem para isso. A estratégia certa numa perspectiva de desenvolvimento turístico deve ser de conservação e aprofundamento das vantagens existen­tes e de investir para melhor competir com destinos com vantagens similares.
É evidente que uma eventual desestabilização da região constitui­ria um perigo grave para o desenvolvimento turístico futuro do país. Se com a pressão imigratória se agravarem problemas de segurança, emergirem choques culturais e o país ficar mais exposto a doenças endémicas e outros problemas próprios do continente, as vantagens de ser ilhas vão diluir-se por completo. Ainda bem que a experiência amarga do dengue despertou as autoridades para a necessidade de medidas enérgicas de protecção das ilhas do contágio exterior e tam­bém de combate aos vectores de transmissão das doenças. A insula­ridade tem custos óbvios mas também tem benefícios que podem traduzir-se em vantagens. O Governo parece estar a perceber que assim é e já se mostra mais receptivo a medidas eficazes de controlo de fluxos imigratórios.
Por tudo isso é fundamental que os acontecimentos no Mali e em toda a região sejam seguidos com maior atenção e que medidas cla­ras e efectivas sejam tomadas para proteger Cabo Verde de eventu­ais evoluções negativas na costa ocidental africana. 

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 23 de Janeiro de 2013

quarta-feira, janeiro 16, 2013

No quadragésimo aniversário, o olhar para a frente




 
 Nº 581 • 16 de Janeiro de 2013

EDITORAIL:  No quadragésimo aniversário, o olhar para a frente

 Passaram-se 40 anos após a morte de Amílcar Cabral. Em Co­nakry na noite de 20 de Janeiro de 1973 o líder do PAIGC foi ba­leado por camaradas do próprio partido chefiados por Inocêncio Kani. O caso nunca foi completamente esclarecido, mas supõe-se geralmente que, para esse desfecho, convergiram interesses múl­tiplos: cansaço da luta e conflito de guerrilheiros com a liderança, tentativas de decapitação do PAIGC por certos sectores do gover­no português, ambições megalómanas de círculos próximos do Sékou Touré.
A adopção de uma narrativa oficial que atribuiu toda a cul­pa à polícia política portuguesa, PIDE/DGS, escondeu rivalida­des, camuflou dissensões entre caboverdianos e guineenses, mas assegurou a unidade necessária para levar a guerra avante com sucesso. Conflitos futuros, porém, iriam pôr fim ao projecto da unidade Guiné-Cabo Verde e destruir vidas em lutas incessantes pelo poder. Cabo Verde sofreu quinze anos de ditadura do parti­do único antes de conseguir a liberdade e a democracia e a Guiné, ainda sob a tutela dos “libertadores”, esforça-se por sobreviver como Estado e por não perder a esperança.
Neste ano do quadragésimo aniversário, a lembrança do assas­sinato de Cabral poderá ter especial significado. Não só porque se trata de uma data redonda, mas principalmente porque sente-se que há uma vontade geral de finalmente se saber o que aconteceu. A reacção de espanto perante as declarações do dr. José Maria Neves na campanha presidencial sobre a morte de Cabral deno­tam o quão profundamente enraizadas estão as narrativas criadas pelo PAIGV para se legitimar. O facto histórico que na sequência do assassínio procedeu-se a uma “verdadeira caça aos cabover­dianos em Conakry , os quais foram brutalizados, encarcerados e ameaçados de execução sumária” não consegue concorrer com a “estória” conveniente de que Amílcar teria sido alvo de “três tiros da PIDE”.
Historicamente nota-se que nos regimes totalitários, quando já se conseguiu o domínio da população pela via da ideologia legi­timadora do poder, eventuais convulsões passam a vir quase que exclusivamente de dentro do partido. A Guiné é um caso para­digmático disso. Em Cabo Verde, como não houve luta armada, a legitimidade do PAIGC/PAICV era mais vulnerável à contestação como ficou demonstrado no 13 de Janeiro. O povo aproveitou a oportunidade de voto livre para rejeitar o regime. Talvez porque tinha a percepção disso, a clique dirigente manteve-se basicamen­te unida durante os 15 anos e nunca deixou que as tensões inter­nas extravasassem para além de certo ponto.
Não tem por isso qualquer razão as comparações feitas entre a dinâmica interna dos partidos na democracia e o que se passa nos partidos revolucionários. O repúdio geral por certas declarações (ratos, intriguistas) feitas nas campanhas presidenciais vem do facto de se exigir o seguimento de preceitos democráticos na vida interna dos partidos. Órgãos são eleitos, os adversários políticos não são executados e níveis de pluralismo consubstanciados no direito de tendências são aceitáveis e salutares na vida partidária. Muito diferente do que se passava no partido de Cabral. Organi­zações revolucionárias acabam sempre por devorar os seus pró­prios criadores na onda de violência e terror que inevitavelmente desencadeiam com a crença cega no princípio amoral de que “os fins justificam os meios”.
As comemorações dos dois feriados nacionais, 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, e 20 de Janeiro, dia dos heróis nacionais, separados uma semana um do outro, ainda deixam transparecer as profundas divisões políticas no país. A postura do Governo e das instituições a ele ligadas é tépida num feriado e entusiástica no outro. A Assembleia Nacional, que representa o pluralismo do país, refugia-se no silêncio passando a acção para os grupos parlamentares individualmente. Com o novo presiden­te da república há assunção plena de que a Lei consagra tais datas como momentos da unidade da nação. A morte violenta de Amí­lcar Cabral deve relembrar a todos da importância na prossecu­ção dos ideais e na defesa do interesse comum de se respeitar os princípios da liberdade e do pluralismo e não permitir que, sob pretexto algum, seja sacrificada a dignidade humana em nome de pretensos valores mais altos.
Esta data assinala também uma mudança no Expresso das Ilhas, agora com uma imagem renovada e um site novo para acompa­nhar a inovação dos media a nível global. O grande objectivo é prestar um serviço com cada vez mais qualidade aos nossos leito­res, mantendo sempre os princípios que norteiam este semanário: rigor, independência e criatividade.

segunda-feira, dezembro 31, 2012

2012 – O despertar do protesto




 Nº 579 • 31 de Dezembro de 2012

EDITORIAL:  2012 – O despertar do protesto
O ano 2012 foi marcado em vários países por eleições que evidencia­ram a insatisfação dos cidadãos relativamente aos resultados e métodos da governação e às falácias e ilusões disseminadas pelos líderes. A exem­plo do que acontecera em 2011 a participação nas campanhas teve muito do movimento popular interventivo no estilo do “Occupy Wall Street” e as vitórias foram em muitos casos (França, Grécia e Estados Unidos ) para os que propunham estilos renovados no governar. Nos casos como na Rússia, em que os velhos métodos de Putin ainda vingaram protestos subsequentes, demonstraram que se anseia por uma outra relação com o Estado, um objectivo para o qual cidadãos de Myanmar, unidos por Aung San Suu Kyi, deram passos significativos neste 2012.
Em Cabo Verde as eleições autárquicas deixaram claro o descon­tentamento progressivo da população para com o Governo. Quebra de promessas, falhanços repetidos em resolver problemas de emprego, se­gurança, energia e água e ainda exemplos de favoritismo e partidarização do Estado contribuíram para minar a confiança das pessoas. Já as eleições presidenciais de 2011 tinham sido afectadas pelo mesmo fenómeno. No ano de 2012 outros acontecimentos designadamente a manifestação do dia 1 de Junho, promovida pelas duas centrais sindicais e a oposição quase unânime dos operadores económicos e dos sindicatos aos aumentos dos impostos e a certas medidas preconizadas no Orçamento do Estado para 2013 vieram confirmar que a descrença se alastra.
Do governo ainda não veio sinal de que procura ajustar-se aos novos tempos de maior contestação às suas políticas. Viu-se na discussão do OE de 2013 em como não cedeu aos pedidos para ponderar as medidas a se­rem tomadas com potencial efeito perverso no emprego, no rendimento disponível das pessoas e na economia em geral. Mesmo nos casos onde recua, como é o dos vistos dos turistas e do investimento necessário para assinatura de convenções de estabelecimento com operadores (passou-se de 20 para 10 milhões de contos), a impressão com que se fica é que não se trata de flexibilidade, mas sim de “trabalho feito em cima dos joelhos”. O que parece comandar é a vontade de arrecadar receitas a todo o custo, resultante de uma perspectiva estreita e de curto prazo que não acautela a economia real que é a base de receitas presentes e futuras.
Neste ano do vigésimo aniversário da Constituição da República de­via-se ter bem presente que a democracia e a liberdade implicam relações entre os governantes e os cidadãos na base do consentimento destes e do dever de responsabilidade e de prestação de contas daqueles. As crises por que passam as democracias na actualidade têm a ver com a percepção de que se está sob o efeito de políticas ditadas por entidades supranacionais e não eleitas como a troika, a Comissão Europeia e os mercados de ca­pitais ou tomadas por governos à revelia das pessoas, suportando-se em maiorias partidárias subservientes e em máquinas de marketing político. Nos países em que as instituições democráticas são mais consolidadas essas crises eventualmente serão resolvidas restaurando o princípio basilar de que “o governo é do povo, pelo povo e para o povo”. Nas novas democracias tanto poderá verificar-se um recentrar com novas eleições como um agravamento da situação mantendo-se o governo com postura cada vez mais iliberal, menos respeitador dos procedimentos constitu­cionais e avesso à assunção plena de responsabilidade.
Nos últimos tempos os cabo-verdianos têm consistentemente dado sinal de que o país precisa de uma cidadania mais activa. Em matérias como eleições, direitos de consumidores e regionalização sente-se o peso crescente da participação de cidadãos. A exemplo do que se passa em outras partes do mundo não se está a deixar tudo para os partidos. As reacções, porém, nem sempre são benévolas. Há que evitar tentativas particularmente do Estado e de outras entidades públicas de absorver ou cooptar iniciativas de cidadãos. As democracias precisam do pilar fundamental que é uma sociedade civil forte e autónoma para se con­solidarem.
Encontrar vias para o país e para as suas empresas e as suas gentes se adaptarem a uma situação internacional difícil e imprevisível nos seus contornos a médio prazo pressupõe atitudes de governantes que não a arrogância e o autismo. A libertação da energia, da criatividade e da capacidade de iniciativa necessária só se verifica quando se respeita a liberdade, o pluralismo e o primado da lei e se compensa o mérito. É isso que as nossas falhas e o sucesso dos outros vêm demonstrando. Forçar o governo a reconhecer que assim é, devia ser central para movimentos de cidadania no ano 2013.
O Expresso das Ilhas deseja-lhe boas entradas e um Ano Novo feliz e próspero.


segunda-feira, dezembro 24, 2012

Natal com alegria verdadeira



 
 Nº 578 • 24 de Dezembro de 2012
Editorial: Natal com alegria verdadeira
O Natal é já amanhã. Todos os anos, com o aproximar da época natalícia, a atitude das pessoas muda. Há maior aproximação fami­liar, nota-se uma maior preocupação com os outros e uma sensação de paz e alegria que se instala. Há quem diga que o Natal suste-se sob os pilares da religião, da infância e da caridade. De facto em antecipação aos festejos do nascimento de Jesus, o Menino-Deus, a atenção vira-se para os filhos e para as crianças em geral e há maior predisposição para a solidariedade sem rosto.
Para muitos, o espírito do Natal está nesse dar sem esperar con­trapartida. Quando deixa de ser isso e passa a ser essencialmente uma época de troca de prendas perde-se alguma coisa. “Dar” e “receber” ficam no mesmo plano, comparam-se valores trocados e, não poucas vezes, por causa disso em vez da alegria e harmonia esperada no momento de celebração do Natal e de abertura de prendas perduram ressentimentos e conflitos. Boa parte da crítica às tentativas de fazer do Natal uma data simplesmente comercial tem a ver com o consumismo desenfreado que o desvirtuamento dos valores do “dar” provoca.
Em Cabo Verde nem o Natal com a sua mensagem de solidarie­dade e generosidade consegue que se desvie uma vírgula do ritual entre doadores e recipientes protagonizado em grande destaque todos os dias nos órgãos da comunicação social. Assim, a par dos espectáculos habituais de distribuição de cestas básicas, lâmpadas de pouco consumo, kits escolares, escovas de dentes, etc., introdu­zem-se prendas de Natal e festas para crianças e idosos onde quase sempre pontificam membros do governo. É evidente para quem assiste a essas cenas diárias que os principais beneficiários desses actos são os “supostos” doadores, muitas vezes intermediários de benfeitores anónimos. Como também é evidente a reprodução do espírito de dependência e a humilhação dos recipientes manifesta nas palavras de gratidão que pronunciam aos microfones solícitos da comunicação social. A falta de caridade e de solidariedade nesses rituais fere profundamente o espírito de Natal e é contra tudo o que ele representa.
O Natal é claramente uma festa civil e religiosa. É virada para a família, para a comunidade e para o divino. A política e o Estado deviam manter uma distância respeitável. Em Cabo Verde acontece o contrário. É o momento de se multiplicarem as aparições de membros do governo em particular do Sr. Primeiro-ministro na comunicação social em encontros diversos com vários grupos de vulneráveis e com crianças. Segundo o site do governo criam-se “momentos reconfor­tantes que ajudam a retemperar as forças e trazem maior inspiração para que o Chefe do Executivo continue a trabalhar em prol do bem comum”. Espera-se provavelmente que no Natal, a Nação faça as suas preces para que o PM continue inspirado.
A omnipresença da política e do Estado em tudo transmite uma sensação de sufoco. Não é por menos que se diz que a sociedade civil em Cabo Verde ainda está por se afirmar. Todas as iniciativas para serem levadas avante ou ganharem visibilidade têm que conseguir algum alto patrocínio de figuras cimeiras da república. Há dias viu-se como o festival de Ribeira da Torre de homenagem a Cesária Évora coincidiu com vários lançamentos de pedra, inaugurações e proclamações do governo. Ainda bem que na cacofonia criada ainda se falou da CIZE.
Comporta-se como se nada existisse para além da política. E isso inibe a iniciativa dos indivíduos, desencoraja a inovação e provoca desmotivação geral. Quando a política está em todas as actividades económica, social e cultural e faz-se com crispação e polarização de posições, há muitos que optam por não serem apanhados no fogo cruzado. Outros, provavelmente menos criativos e ousados, aproveitam as oportunidades abertas pelo status quo. De qualquer forma muito da dinâmica possível perde-se no processo.
É preciso deixar espaço para as pessoas e para a sociedade. Como diz o Papa Bento XVI, há que festejar o Natal com “a paz, a vida e a alegria verdadeira”.
O Expresso das Ilhas deseja a todos um Feliz Natal. Boas Festas.

quarta-feira, dezembro 19, 2012

Por um Cabo Verde sem armas






 Nº 577 • 19 de Dezembro de 2012
Editorial:  Por um Cabo Verde sem armas

 O massacre das crianças na cidade de Newtown nos Estados Unidos reacendeu mais uma vez o debate sobre a posse individual de armas tanto nesse país como a nível mundial. Vários países, al­guns deles, caso do Reino Unido e da Austrália, depois de situações igualmente traumáticas, fizeram a opção de praticamente banir armas de fogo ou de as restringir severamente. A isso seguiu-se uma quebra brusca em certos crimes. Estudos diversos revelaram uma correspondência directa entre a abertura legal para ter armas e a probabilidade de acontecerem acidentes e crimes de assaltos e homicídios onde estão implicadas.
O parlamento caboverdiano, em Novembro último, aprovou na generalidade uma proposta de lei de armas trazida pelo governo que ficou pelo meio-termo. Não proíbe, mas deixa abertura para indivíduos maiores de 21 anos, em querendo, poderem obter uma licença de uso e porte de armas. Comparando o regime de restrições na lei apresentada com a de outros países, nota-se que não é muito rígido. Pode até dar a impressão que cabe a qualquer indivíduo o direito de obter uma arma de fogo e de fazer uso dela. No preâmbulo da lei justifica-se a não preferência pela proibição com exemplos do Reino Unido e no Brasil que, segundo o texto, teriam falhado no controle de armas.
O debate sobre o uso e porte de armas de fogo traz sempre a questão se há ou não um direito individual em as possuir. Nos Estados Unidos da América muitos citam a Segunda Emenda Constitucional como garante desse direito e como suporte para negar ou limitar restrições legais ao acesso a armas. Noutros países a tradição de caça e do desporto do tiro não deixa que se vá além de um certo limite nas medidas restritivas. Mas nos estados de di­reito democráticos em que a autoridade do estado se afirma pelos meios legais, muito poucos são aqueles que sentem a necessidade de se armarem para se defenderem de crimes dirigidos contra a sua pessoa e à sua propriedade. Evidências múltiplas demonstram que nem mesmo a polícia consegue evitar estragos colaterais quando faz uso de armas de fogo. Nas mãos de indivíduos, por regra sem treino suficiente, só podia ser pior. O resultado é que perdem-se mais vidas em acidentes e crimes passionais do que enfrentando assaltantes armados em legitima defesa.
A realidade caboverdiana de pequeno país arquipelágico e pouca população diverge consideravelmente da realidade de países conti­nentais e com milhões de habitantes. Não há tradição de caça que justifique um lobby a favor de facilitação de licenças. Nunca houve guerra e não há razões outras para a população se armar. Custa a compreender que Cabo Verde, com 9500 armas (dados do Small Arms Survey, 2007) fique em 96º lugar num total de 178 países. Só uma política de impunidade podia ter permitido que armas distribuídas às antigas milícias continuassem em circulação, como ressalta o estudo da Afrosondagem de 2008, que fronteiras fossem deixadas permeáveis à entrada de armas e que o comércio de com­pra e venda de armas florescesse. Mais incompreensível ainda que no espaço constrito das ilhas não se tenha erradicado a produção artesanal das chamadas “boca bedju”.
Acidentes com armas de fogo como os de terça-feira passada em Santa Cruz acontecem com mais frequência, assim como crimes em que conflitos menores são extremados por razões espúrias e desembocam em mortes desnecessárias. Legalizar o uso e porte de armas ajuda as autoridades no controlo de quem as possui mas não muda necessariamente as circunstâncias em que serão utilizadas por razões outras que não as apresentadas na obtenção da licença. Com mais armas em circulação aumenta as probabilidades do seu uso impróprio pelo dono ou por alguém que lhe é próximo.
Para um país como Cabo Verde, sem tradição relevante de uso de armas de fogo e sem razões evidentes para os seus cidadãos andarem armados, a opção do governo devia ser tendencialmente proibitiva. As pessoas não têm que se armar em defesa própria. Cabe ao Estado garantir a segurança, a ordem e a tranquilidade pública. Na discussão na especialidade da lei de armas os deputados e o governo poderão encontrar soluções que ajudem a pôr fim à imagem violenta que recentemente Cabo Verde vem projectando e resgate a imagem de “terra de paz e morabeza” cantada pelos nossos trovadores.