A propósito do Programa de Casa para Todos e da auditoria à IFH que põe a empresa em situação de falência o porta-voz do grupo parlamentar do PAICV deixou saber que o programa tinha sido concebido pelo seu partido, então no governo, para uma franja da população que por não ter posses só pode ser servida numa base social e não na base económica e financeira. O problema é que os meios para implementar o programa não resultaram de uma solidariedade social e nacional mobilizada para o efeito. Vieram de meios financeiros postos à disposição através de uma linha de crédito da Caixa Geral de Depósitos avalizada pelo Estado português que se comprometeu a bonificar os juros. Do arranjo feito podia-se prever custos acrescidos porque exigia-se que os consórcios fossem liderados por empresas portuguesas e que grande parte dos bens e serviços tivessem origem portuguesa. Também sabia-se, logo à partida, que as vendas de casas não iam cobrir as despesas porque como diz o deputado o público-alvo não tem posses. O resultado só podia ser um.
A auditoria recente confirmou a falência anunciada do programa Casa para Todos mas desde o seu início, em 2010, vinham-se somando críticas ao programa por parte da oposição e de outros sectores da sociedade, designadamente de operadores nacionais da construção civil, e do próprio FMI. O governo ignorou todos os avisos porque o que tinha em mira eram principalmente ganhos políticos com impacto eleitoral. A vitória nas legislativas de 2011 demonstraram que por aí o governo foi rigoroso nos seus cálculos. O país depois arcou com as consequências com a dívida pública a ultrapassar os 125% do PIB, a economia a estagnar-se e o sector de construção civil em ruína mas estes problemas não são os que perturbam o sono de quem vê a governação primariamente como reciclagem de recursos externos mantendo o Estado no centro do processo. A realidade é que quando se tem tal perspectiva priorizam-se ganhos políticos e eleitorais sobre quaisquer outras considerações de custo e benefício dos projectos. Para a sociedade, porém, diz-se que os objectivos são sociais e deixa-se entender que quanto às dívidas não há razão para preocupação porque no “final do dia” ou serão perdoadas, ou serão adiadas e reestruturadas.
Não é pois de estranhar as propostas de perdão ou de renegociação dos quase 200 milhões de euros do Programa apresentadas pelo actual governo ao governo português no âmbito da Cimeira Luso-Cabo-verdiana. Situam-se dentro do que já era expectável que viesse a acontecer considerando as discrepâncias já conhecidas no Programa Casa para Todos em termos de custo-benefício e retorno sobre investimento. Tinha-se criado com esse tipo de situações algo que pode configurar um “moral hasard”. Ou seja, tinha passado a ser hábito contrair dívidas com base em estudos que dão como viáveis os projectos, mas sabendo de antemão que cumplicidades diversas vão aumentar consideravelmente os custos e alguém os terá que pagar. A factura por uma via ou outra acabaria sempre suportada pelo povo enquanto quem concebeu a jogada somaria vitórias políticas e ficaria alcandorado em posição de poder.
Os estragos porém não ficam por aí. O impacto desse modus operandi do governo e do Estado sente-se transversalmente na sociedade, no Estado e na forma de fazer política. A preocupação com ganhos convenientes e “à cabeça” para além de qualquer razoabilidade económica financeira não é certamente a melhor atitude que se quer ver implantada numa sociedade. Retira previsibilidade quanto aos resultados, mina a cooperação entre as pessoas e legitima o ilusionismo oficial que despreza factos, trafica em meias verdades e valoriza o cinismo na condução dos assuntos públicos. O cultivar da imagem de “bom aluno” ou da boa governação como forma de manter os fluxos da ajuda externa e ir empurrando com a barriga os problemas tem os seus limites como veio a demonstrar a repentina queda de Cabo Verde de 57 para a posição 116 no índice da liberdade económica da Fundação Heritage. De facto, dificilmente podia-se continuar a manter a camuflagem sobre a gestão da dívida pública que ultrapassa os 125% insistindo que eram empréstimos concessionais quando a economia estagna e aumenta o risco orçamental com a má gestão acumulada de vários anos de grandes empresas públicas como a TACV, a IFH e a EECTRA.
Hábitos com décadas de existência custam muito a ultrapassar, mas para produzir riqueza nacional e alimentar expectativas de prosperidade futura tem que se ter os pés bem firmes na realidade. Não se pode programar redes de estrada, construir barragens, portos e aeroportos, investir na água e energia, canalizar enormes recursos para educação e formação profissional e depois ficar muito aquém dos resultados prometidos. Com diz Justin Yifu Lin, ex-economista do Banco Mundial e autor de várias obras sobre o desenvolvimento económico, para se conseguir resultados as intervenções ao nível de infraestruturas, de logística e de apoio às empresas devem ir no sentido do reforço das vantagens comparativas do país. De outra forma fica-se com a imagem já conhecida de estradas sem carros, portos sem navios e aeroportos sem tráfego e não se conseguem os investimentos privados que deveriam crowding in, como prometido no início do processo de endividamento que praticamente duplicou a dívida do país.
Infelizmente, escutando as discussões no parlamento sobre “esquerda e direita” nesta sessão de Fevereiro, sente-se que os desafios que se colocam ao país depois de anos seguidos de estagnação económica ainda não estão a ter a ponderação devida. O jogo político ainda quer se situar na disputa de quem melhor distribui benesses, descurando de onde vêm os recursos, mesmo sabendo que a esquerda tradicional há muito que promove modelos de produção de riqueza sem pôr de lado a sua preocupação com a igualdade. Já se impõe que as forças políticas em Cabo Verde passem o debate político para outro patamar e façam um esforço conjunto, naturalmente com as nuances que as diferenciam, para que o país e toda a sociedade e principalmente o Estado mude de paradigma e passe a trilhar o caminho baseado em factos e na procura da verdade que leve ao crescimento económico e ao desenvolvimento.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 795 de 22 de Fevereiro de 2017.