segunda-feira, janeiro 22, 2018

Ordem da Liberdade

Celebrou-se no passado sábado, o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia e com uma sessão solene da Assembleia Nacional e uma intervenção do Presidente da República. Dezoito anos após a criação do feriado nacional e na segunda comemoração assumida por todos os órgãos de soberania ainda a data mantém-se controversa.
 Continua a ser vista em quase oposição ao dia da independência, o 5 de Julho, e ao dia 20 de Janeiro que relembra a morte de Amilcar Cabral. Não devia ser assim porque o que é celebrado é a democracia com as suas promessas de liberdade, justiça e verdade. No dia 13 de Janeiro, o cabo-verdiano, ao dirigir-se às urnas para expressar a sua vontade através de voto livre e plural, viu reconhecida a sua dignidade humana. Não mais ele seria o objecto muitas vezes sacrificado da ânsia de poder de protagonistas de lutas reais ou fictícias pela sua libertação. A partir daí, seria ele próprio sujeito do seu destino a afirmar direitos inalienáveis do indivíduo, a escolher de vontade própria o rumo da sua vida e a determinar livremente quem são os seus governantes.
A II República que nesse dia deu os primeiros passos e depois seria consagrada na Constituição de 1992 tem precisamente no respeito pela dignidade humana a sua pedra basilar. Por isso é que o 13 de Janeiro não pode deixar de ser a data maior da democracia cabo-verdiana, assim como o 25 de Abril é a de Portugal e 6 de Dezembro, o Dia da Constituição, é a da Espanha após a ditadura de Franco. A disputa à volta do simbolismo do 13 de Janeiro ao pretender trazer à liça outros valores que supostamente estariam acima da dignidade humana de cada indivíduo e da vontade popular livremente expressa não pode deixar de enfraquecer as bases onde se assenta o regime democrático. Acaba por dificultar o consenso necessário para que o sistema beneficie do dissenso e não se divida em partes irreconciliáveis, para que a busca da verdade prossiga sem sectarismos perniciosos e para que a democracia se defenda dos seus detractores. Detractores que não são só os que preferiam um outro regime, mas principalmente os que pelo populismo e demagogia minam as instituições, degradam o espaço público com o culto do cinismo e recorrem a paixões primárias para calar e dobrar os outros, excitar tribalismos de toda a espécie e criar lealdades cegas à volta de potenciais autocratas.
Hoje vários estudiosos dizem que o mundo depois da euforia, que se seguiu à queda do Muro de Berlim e prosseguiu ainda durante mais de uma década, está a viver uma autêntica recessão da democracia. Proliferam os livros que se debruçam sobre o recuo ou as falhas do liberalismo, que vão buscar lições da tirania do século XX, que registam com preocupação a explosão populista e observam com apreensão a forma como, na actualidade, as democracias dão sinais de morrer. O que se passa nos Estados Unidos com Donald Trump, mas também o que se vê em outras democracias com destaque para a Hungria, Polónia, Turquia e o Brasil faz lembrar com alguma contundência algo que talvez se tenha esquecido algures sob o efeito do entusiamo democrático de anos atrás: a democracia não é irreversível.
Como já dizia Thomas Mann no livro “Próxima Vitória da Democracia” a democracia não é simplesmente regras. É também uma forma de viver. Chama à acção e encoraja todos a dar o máximo da sua capacidade. Também clama por uma responsabilidade moral para impedir que prevaleçam os que mostram desprezo pela razão, negam e violam a verdade a favor do Poder e dos interesses do Estado e apelam aos baixos instintos e ao sentimento para trazer à tona a estupidez, o conformismo e a mediocridade.
Ninguém deve ficar indiferente quando surgem sinais de assalto à democracia designadamente na forma de rejeição por actos ou palavras das regras do jogo democrático, na negação da legitimidade dos opositores, na tolerância ou encorajamento à violência e em indícios de alguma vontade em limitar os direitos fundamentais, em particular a liberdade de expressão e de imprensa. Tampouco se deve permitir que resquícios ideológicos de outrora continuem a minar a base consensual da democracia suportada na dignidade humana sobrepondo a libertação nacional à liberdade individual. Nem permitir que a procura da verdade seja permanentemente torpedeada com tácticas que alternadamente apelam à vitimização, a sentimentos de gratidão e a superioridade de melhores filhos ao mesmo tempo que impedem que as reais vítimas dos quinze anos de opressão sejam reconhecidos, merecedores de desculpas e compensados. Para isso, tenta-se perpetuar uma certa interpretação do heroísmo muitas vezes mítico outras vezes fabricado, reclamado por alguns privilegiados em detrimento do heroísmo simples mas impactante feito de “luta persistente, por vezes anónima em defesa de valores cívicos que a marcha da civilização trouxe ao primeiro plano da dignificação humana”.
A comemoração do Dia da Liberdade e da Democracia no dia 13 de Janeiro terá o efeito maior na reafirmação do consenso da república à volta da importância central na dignidade humana e na consolidação da democracia se também for o momento escolhido para reconhecer e exaltar homens e mulheres que se distinguiram pelo seu amor à liberdade e pela sua devoção à causa dos direitos humanos. Nesse sentido, urge criar uma nova ordem honorífica, uma Ordem da Liberdade, para galardoar serviços prestados à causa da Liberdade e da Democracia. Cabo Verde até o momento só tem as ordens honoríficas herdadas do regime de partido único. Obviamente que não estão em sintonia com os princípios e valores do regime democrático. Façamos votos para que no 13 de Janeiro de 2019 a Nação cabo-verdiana através do Presidente da República tenha possibilidade de reconhecer os que lutarem pela Liberdade e Democracia com a medalha da Liberdade criada entretanto por Lei da Assembleia Nacional.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 842 de 17 de Janeiro de 2017.

segunda-feira, janeiro 15, 2018

Interesses de ocasião

O Presidente da República a discursar na cerimónia de tomada de posse de novos membros do governo pôs enfase na importância da estabilidade política e social do país como factor fundamental para o desenvolvimento. Apontou o desenvolvimento inclusivo, a justiça social, a solidariedade com os mais vulneráveis e o reforço institucional como necessários para se garantir a estabilidade, mas considerou como elemento determinante a Segurança e a Ordem Pública.
É evidente que a memória dos três dias de greve da polícia nacional da semana anterior esteve sempre presente ao longo do discurso. Não aconteceu o pior, mas a autoridade do Estado ficou beliscada com o espectáculo dos polícias a desfilarem ruidosamente pelas ruas e a negar-se ao cumprimento da requisição civil decretada pelo governo. Não é por acaso que o PR, apesar de reconhecer os interesses em causa no processo que levou à greve, foi peremptório em dizer que a sociedade não pode ficar à mercê de interesses de ocasião.
Greve da polícia é sempre problemática por razões óbvias que têm a ver com a necessidade permanente de garantir a todo o momento a ordem, a tranquilidade e a segurança pública. Geralmente é proibida nas democracias. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em resposta a um recurso de um sindicato espanhol da polícia foi claro a dizer que a polícia, pelo facto de todos os agentes estarem armados e da necessidade deles prestarem um serviço ininterrupto, não pode fazer greve na medida em que tal acção põe em causa a segurança pública e a prevenção da desordem. O tribunal acrescenta que o facto de estarem armados os faz diferentes de outros servidores públicos e justifica a restrição dos seus direitos a se organizarem.
A Constituição cabo-verdiana, apesar de prever a possibilidade da lei restringir designadamente os direitos dos agentes à reunião, manifestação e associação, não é explícita quanto à proibição ao direito à greve como o faz, por exemplo, a Constituição portuguesa. Se para vários juristas há o entendimento que a lei pode restringir mesmo no actual quadro constitucional para o sindicato e os polícias que participaram na greve não parece não haver qualquer dúvida quanto à sua legalidade. Isso significa que poderá haver mais greves no futuro. Desta vez não aconteceu nada fora do ordinário e não houve colapso da ordem jurídico-constitucional, mas nada garante que será o mesmo num outro momento.
Aparentemente o aviso de pré-greve em Março de 2017 falhou em alertar as autoridades para a possibilidade real de uma greve da polícia e de possíveis consequências disso. A forma como o governo pareceu ter sido apanhado de surpresa tanto pela greve como pela recusa de muitos agentes em aceitar a requisição civil sugere que não levou suficientemente a sério as ameaças do sindicato em Março nem o pré-aviso de greve de 14 de Dezembro. Sinais de alguma agitação reivindicativa também se fizeram sentir noutras forças ao longo do ano e em particular nos agentes prisionais. Não se notou porém qualquer acção do governo em clarificar o estatuto das forças de segurança em matéria de direito à greve e de direito à reunião e manifestação. Também não se conhece iniciativa em sede da revisão constitucional para abrir o diálogo sobre o assunto e criar vontade política para uma solução definitiva do problema. O mais estranho é que perante essas omissões não parece que em algum momento tivessem sido desenvolvidos planos de contingência com provável assistência dos militares na sua missão de defender a ordem constitucional num caso de colapso da segurança pública provocado por uma greve generalizada da polícia nacional. O que se viu foi a tentativa de requisição civil que o sindicato e vários agentes se recursaram a cumprir.
O presidente da república na sua intervenção fez um apelo para se concretizar aquilo a que chamou de “concordância prática” entre exigências do estado de direito democrático em confronto. Em particular diz que é importante o diálogo, qualquer diálogo que se destine a afastar o espectro da inquietação social. Não é um apelo que tem grandes possibilidades de chegar às pessoas nestes tempos em que já se tornou normal noticiar as reacções perante qualquer agravo ou diferença de opinião como sendo de indignação ou de revolta. Nem mesmo parece chegar onde mais investimentos se fez, como é o caso da polícia. O governo saído das legislativas de Março de 2016 já no orçamento de 2017 tinha feito um esforço orçamental apreciável de mais 178 mil contos para ajustes salariais, progressões e promoções na polícia e milhares de contos tinham sido investidos em viaturas, equipamento de comunicações e outros meios essenciais para a corporacão. Mesmo assim, parece não ter encontrado espaço para um diálogo construtivo. Satisfeitas as reivindicações antigas, pede-se logo mais.
A não disposição para o diálogo que ficou manifesta na relação com a polícia é sentida noutros sectores da sociedade e em particular em sectores da administração pública em que é mais fácil desenvolver-se o espírito corporativo. Pergunta-se até onde ficou a paz social que estaria implícita no acordo de concertação estratégica que o governo assinou com os parceiros sociais. Por outro lado, sente-se que o défice em serviço público que todos se queixam em relação à administração pública tem a sua contraparte no esforço dirigido para manter os privilégios e obter uma maior fatia de recursos públicos. No processo, perde-se eficiência e a eficácia na mesma proporção que aumentam as resistências a reformas que realmente podiam mudar o status quo. Isso é evidente no domínio da segurança, como o é nos domínios da justiça ou da educação e em vários outros sectores da actividade no país. Aliás, as queixas das pessoas, os índices de competitividade e os dados do Doing Business apontam precisamente para aí.
Nesta encruzilhada na vida do país o grande desafio será fazer as pessoas deixarem de competir por recursos num jogo de soma zelo e cooperar mais, conter os interesses corporativos e dar mais atenção ao interesse geral e posicionar-se mais para criar riqueza, conhecimentos e competências várias em vez de simplesmente usufruir do que é dado ou retirado aos outros. O futuro vai depender de quando e como o soubermos vencer.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 841 de 10 de Janeiro de 2017.

terça-feira, janeiro 02, 2018

Tardia e de eficácia duvidosa


Quando veio, já não se tratou do simples reforço com secretários de estado que muitos vinham sugerindo praticamente desde a entrada em funções do governo em 2016. O PM optou por mudar a estrutura do governo. Não demitiu ninguém, mas distribuiu por três ministérios as pastas que anteriormente estavam com o ministro José Gonçalves. Também nomeou vice-primeiro ministro o actual ministro das Finanças e entregou-lhe a coordenação da política económica e financeira e das reformas económicas e o planeamento estratégico para a competitividade e para o emprego. Ainda elevou o ministro da presidência do Conselho de Ministros ao cargo de ministro de Estado com funções de coordenação da agenda política e da política de comunicação e imagem do governo. No total, o governo passou a contar com 20 elementos: o PM, treze ministros e seis secretários de Estado.
Oficialmente apresenta-se como objectivo principal da remodelação a procura de eficiência e eficácia na governação, mas dificilmente vai-se deixar de notar que também se tratou de dar expressão formal ao ganho em peso político conseguido até agora pelo ministro das Finanças Olavo Correia, evidenciado publicamente no processo de elaboração do orçamento do estado e na gestão de dossiers sensíveis como o da TACV. Já os outros ajustes vêm na sequência dessa nomeação e da necessidade de repor equilíbrios políticos. A questão crucial é se os sinais enviados para a sociedade realmente convergem para passar uma mensagem de confiança que há visão e competência governativa para equacionar e resolver os extraordinários e complexos problemas que o país enfrenta no presente e próximo futuro. E é essa mensagem que o país precisa neste momento quando se encontra numa encruzilhada e tem de mudar de rumo porque “alguém” esteve a “esticar a corda até o limite” e comprometer o futuro com políticas que deixaram dívida pesada, o país sem competitividade, com capital humano inadequado e com um sector privado fragilizado.
A verdade é que a divisão do anterior ministério da economia em três ministérios e a absorção de alguns dos seus departamentos no ministério das Finanças pode outra vez trazer à tona a ideia de que a economia continua a ser “filho de um deus menor” nos governos caboverdianos. Aliás, o facto de ao longo de todos estes anos ainda não se ter melhorado significativamente o ambiente de negócios, baixados os custos de contexto, delineado um plano de acção para a diminuição dos custos de factores e resolvido o problema dos transportes deve-se em boa parte à ausência de vontade política resoluta para remover os obstáculos institucionais, combater os interesses que beneficiam do status quo e criar incentivos geradores de uma nova atitude na actividade económica. Os avanços da economia informal, as fragilidades no ambiente de concorrência e a relutância de muitos em correr riscos e em desenvolver actividade empresarial são prova disso. Fica-se com uma ideia das dificuldades em implementar reformas económicas notando, por exemplo, que o governo anterior do PAICV, em quinze anos, teve sete ministros de economia, mas só três ministros das Finanças. Por isso, qualquer sugestão de perda de peso político no sector, quando o mais urgente para o país são as reformas económicas, não pode ser tomada como uma boa notícia.
A expectativa de muitos é que logo à partida o ministro da Economia fosse coadjuvado por secretários de estado com capacidade tecno-política para planear a reforma profunda dos sectores sob tutela com vista a uma organização moderna e efectiva da economia nacional. Levou a melhor a opção por um governo pequeno fruto da ideia peregrina que é poupando no novo grupo dirigente que se começa a dominar uma máquina ineficiente, cheia de vícios e agressivamente hostil a reformas. O resultado é o que se vê. As tentativas de mudança arrastaram-se, a autoridade tende a diluir-se no afã de se conseguir controlo com os parcos recursos disponíveis e as reacções do sistema em forma de fugas de informação, reivindicações salarias e greves não tardaram a surgir. O número de passeatas, de confrontos laborais e greves já verificados nestes 19 meses de governação já deverá ter ultrapassado o que aconteceu na década anterior. Aparentemente nem há muita ponderação em certas tomadas de posição. O caso da Polícia Nacional em greve nos próximos dias pela primeira vez na história do país e depois de ter sido contemplada com aumentos significativos no orçamento para fazer face a reivindicações salariais antigas e progressões e promoções, não deixa de ser estranho. Experiências de outros países alertam sempre para a importância de manter foco na governação e mostrar capacidade de liderança para fazer as reformas no momento certo a fim de não ser apanhado por interesses corporativos e outros instalados em certos sectores da administração pública ou ligados ao Estado.
A situação do país não é fácil e os vários anos de estagnação tiveram impacto nas pessoas, aumentando incertezas em relação ao futuro. Há que gerir as expectativas para que a atitude certa seja a de as pessoas cooperarem entre si para o seu ganho pessoal e para o bem do país e não caírem na tentação de cada um procurar “arrebatar” para si próprio o máximo que puder dos recursos públicos. Para isso conta muito num mundo tentado pela pós-verdade, pela demagogia e pelo populismo insistir numa governação honesta. Convém também pôr em devida perspectiva a situação do país, sem cair na tentação de usar o passado como arma de arremesso político, confrontar os muitos projectos ilusionistas que ainda dominam o discurso político com a realidade crua dos factos económicos e mostrar ser capaz de rever políticas, traçar outras estratégias e desencadear iniciativas realistas que ponham o país no caminho seguro do desenvolvimento. A resposta ao fiasco da CEDEAO, por exemplo, não devia ser, sem qualquer avaliação prévia, a criação de um ministro-adjunto para Integração Regional junto do primeiro-ministro. O país já não tem mais folga para ilusões, titubeações e teimosias.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 839 de 27 de Dezembro de 2017.

terça-feira, dezembro 26, 2017

Fracasso custoso

A corrida de Cabo Verde à presidência da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) revelou-se um fracasso. Terminou em recriminações, na busca de bodes expiatórios e em exercícios de auto-dúvida de como o país se vê e é visto pelos outros e como projecta a sua imagem no resto do mundo, em particular em África. A justificação oficial por se negar Cabo Verde a presidência da CEDEAO foi o incumprimento no pagamento da dívida que vem de há mais de 14 anos atrás. Uma justificação que, porque se quis ignorar o plano apresentado para o pagamento e os pagamentos do ano 2017 já feitos, suporta a acusação feita pelo Presidente da República Jorge Carlos Fonseca que teria havido “arranjos políticos”, supõe-se de bastidores, e que deram a vitória à Costa de Marfim.
Pensando bem, dificilmente podia ser de outra forma. Cabo Verde, um país arquipélago e lusófono no meio de potências regionais francófonas e anglófonas, à primeira vista não estaria em melhor posição para ajudar no equacionamento dos problemas dos países do continente e encontrar as melhores vias de cooperação entre os estados para os resolver. Não partilha dos múltiplos e complexos problemas próprios dos países do continente, designadamente das comunicações, das migrações, das doenças endémicas, não se confronta com tensões étnico e religiosas e ameaças do terrorismo e não se depara com o grande desafio de ir além das indústrias extractivas e passar à industrialização e aos serviços necessários para resolver os problemas de crescimento sustentável e desemprego em África. Os seus problemas são de outra natureza e escala. As relações comerciais e outras com os países da comunidade mantêm-se diminutas e não dão sinais de grande dinâmica.
 Por outro lado, não se viu suficiente empenho do governo em fazer do seguimento da regra da ordem alfabética para preenchimento do cargo de presidente da CEDEAO uma oportunidade para uma posição de relevo no plano internacional enquanto interlocutor privilegiado em relação com entidades em África, com a União Europeia e com outros países da Asia e das Américas. Já em anos anteriores a regra tinha sido dobrada para dar a presidência a Burkina Faso em vez de o entregar ao Benim. Não era portanto algo seguro. Estranha-se que sabendo isso não houvesse um esforço diplomático mais dirigido para demonstrar a utilidade de uma presidência de Cabo Verde. Pelo contrário, o que se assistiu nos últimos meses poderá ter passado sinais de desinteresse e/ou de fragilidade. Viu-se como a questão da presidência da CEDEAO tornou-se numa espécie de corrida interna com vários candidatos a se oferecerem sem que o governo tomasse uma posição e demonstrasse que tinha efectivamente controlo do processo. Também certamente não se deixou de notar que um evento de maior importância como a Cimeira da União Europeia e África, em Abidjan, há três semanas atrás, e com presença de entidades ao mais alto nível, Cabo Verde não se fizesse representar pelo presidente da república ou pelo primeiro-ministro. Já com muita coisa em desfavor, não estranha que o país tivesse perdido para quem realmente tem propósitos claros e sabe mover-se para angariar apoios políticos.
O fracasso na corrida para a presidência da CEDEAO poderá ter uma consequência inesperada que é de afectar negativamente a estratégia de atracção de investimento externo. O país vem insistindo em atrair investimento externo, apresentando Cabo Verde como via de acesso ao mercado de 300 milhões de pessoas na região da África Ocidental. É uma das muitas ficções que tendem a persistir em todos os governos. Os magros números das importações e exportações em relação à África indiciaram sempre a fragilidade dos laços comerciais existentes com a região e agora com a perda espectacular é a influência política para entendimentos e outras formas de cooperação que foram postas em causa. De certa maneira, tudo isto não devia ser novidade para ninguém. Só por teimosia ou por razões ideológicas profundas é que se pode insistir que o futuro de Cabo Verde reside fundamentalmente na sua relação com a região africana próxima, que, por sinal, não é das mais dinâmicas e onde o país tem no Senegal o seu concorrente directo. Oportunidades de negócio certamente existem mas aproveitá-las não tem sido fácil, e não é por preconceito como sugerem alguns. Afinal Cabo Verde foi governado 30 anos dos 42 de independência a começar pelos primeiros 15 anos por uma  força política que se intitula partido africano de independência.
A ficção que são certas forças políticas ou certos sectores da população que não querem dinamizar a relação com os países vizinhos só serve para reforçar políticas identitárias que cá em Cabo Verde como em toda a parte do mundo prestam-se a criar divisão e a fragilizar o tecido social e cultural da nação. Não é por acaso que hoje reina a divisão entre os caboverdianos quando muitas décadas atrás, antes da independência, a consciência da caboverdianidade era partilhada por todos nas ilhas independentemente das suas convicções ou ligações políticas. A introdução dos ideais do pan-africanismo e da negritude no pós-independência deu o mote para uma política de divisão, criando antagonismos de toda a espécie: entre patriotas e colaboracionistas, resistentes culturais e aculturados, africanistas e europeístas, defensores do crioulo e defensores do português.
O resultado desta ofensiva ideológica que já foi caracterizada de reafricanização dos espíritos e que ainda encontra respaldo no sector educativo e na comunicação social estatal é a imagem do povo dividido, pessoas confusas com as suas origens e identidades e um país com falta de clareza e coerência na relação com outros povos. Países pequenos e insulares como Cabo Verde, por exemplo as Maurícias e Singapura, devem boa parte do seu sucesso ao facto de terem conseguido instilar nas pessoas a ideia do destino comum, uma ideia do que é ser cingapuriano ou maurício ultrapassando as diferenças étnico-linguistas das suas sociedades. Fazer o caminho contrário a eles e em direcção à divisão, quando no ponto de partida a nação estava consolidada, não é certamente a via para se conseguir mobilizar as forças da nação, para criar confiança em nós próprios e ganhar a confiança dos outros.
A relação de Cabo Verde com todos os actuais e potenciais parceiros depende da nossa capacidade de compreender quem somos e potenciar o que realmente nos distingue – um país fruto da expansão europeia pelo mundo, mas contrariamente ao que se verifica noutras criações similares espalhados, não se nota que o poder económico, o poder político e o estatuto social têm ligação com a raça, coloração da pele ou origem familiar no antigo colonizador. Se estivermos cientes do que somos, poderemos relacionar com todos sem quaisquer complexos de superioridade ou de inferioridade e saberemos onde focalizar a nossa energia sem deixarmos iludir por ficções ideológicas identitárias ou de outra natureza e com a convicção certa de que “as nações não têm sentimentos, mas sim interesses”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 838 de 20 de Dezembro de 2017. 

segunda-feira, dezembro 18, 2017

Incongruências

O Dia Nacional da Rádio foi mais uma vez comemorado pela Rádio de Cabo Verde no dia 9 de Dezembro, desta feita com uma conferência sobre “Desafios do jornalismo na era da pós-verdade: Rádio Pública e o combate às Fake News”. Coube ao Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, fazer a abertura do acto e desenvolver o tema “Fake News, uma ameaça à Democracia?” O insólito neste e noutros actos similares nos anos anteriores é o facto de comemorarem nesta data um acontecimento, a Tomada da Rádio Barlavento pelas hostes do PAIGC em Dezembro de 1974, que para todos os efeitos simboliza o oposto de tudo o que, em democracia, deve reger a comunicação social e em particular a rádio pública. A data significou o fim do pequeno período do pluralismo que desde o 25 de Abril de 1974 até ao momento prevalecera em Cabo Verde, o fim das rádios privadas e o primeiro acto do que viria a ser o regime de partido único que durante quinze anos iria suprimir as liberdades de expressão, de informação e de imprensa no país. 
Desde 1992 que a Constituição estabelece que aos órgãos públicos da rádio e televisão se deve garantir a expressão e o confronto das correntes de opinião, a independência dos jornalistas perante o poder político e poder económico e a isenção dos mesmos órgãos face ao Estado. Também dispõe que jornais podem ser criados sem necessidade de autorização e que privados podem operar livremente na rádio e na televisão mediante licença conseguida em concursos públicos. Face a tais comandos constitucionais não se descortina como a celebração simbólica da tomada da Rádio Barlavento reforça uma cultura da rádio pública alicerçada nos princípios e valores neles subjacentes. A insistência na data parece configurar o que hodiernamente se vem chamando de pós-verdade em que emoções e preferências pessoais de grupos sobrepõem aos factos e acabam por constituir uma realidade alternativa completamente impermeável a toda e qualquer demonstração em contrário. Ironicamente, pós-verdade é o tema escolhido para discussão nas comemorações deste ano.
Na sua intervenção, o Sr. Presidente da República deixa enteder que o fenómeno da pós-verdade não tem grande alcance ou impacto em Cabo Verde. Tudo indica que ele está equivocado. A comemoração da tomada da Rádio Barlavento depois de mais de 25 anos de democracia, assim como a celebração de personalidades, instituições e datas reminiscentes do regime anterior só continuam possíveis porque realmente se vive no país um ambiente de pós-verdade. As emoções, as lealdades e aderência à historiografia do antigo partido único desafiam, com a ajuda do Estado e da ideologia ainda presente nos órgãos públicos da comunicação social e na educação, quaisquer factos que põem em causa a narrativa dos auto-proclamados libertadores da pátria, de facto, supressores de liberdade nos quinze anos que se seguiram à independência. Entre muitos exemplos que se podia trazer à colação, só assim se explica que o Presidente da República eleito democraticamente tenha presidido em Novembro deste ano ao simpósio de homenagem ao presidente que nunca foi eleito por voto popular. Ou que a Uni-CV, ontem, tenha celebrado o Dia da Literatura Inglesa com uma palestra sobre o legado literário de Amílcar Cabral e dos seus contemporâneos.
O controlo do espaço público, do espaço educativo e do espaço comunicacional só é possível porque em boa medida impera a pós-verdade. Não é por acaso que, não obstante a grande produção de livros e outras publicações, muito raras são as obras que se debruçam sobre o que aconteceu no país entre 1975 e 1990. Escreve-se sobre o antes da independência e a transição de 1990 mas deixa-se cair um pano escuro sobre os 15 anos como se constituíssem um tabu. Dizem eles que esses foram os anos de construção do estado, do regime político possível e da viabilização do país independente. O facto que só depois do 13 de Janeiro é que as instituições modernas e a cidadania plena se tornaram uma realidade, que a promessa de liberdade e democracia foi cumprida e que ainda não acabou a dependência externa não parece afectar essa narrativa. Na conferência o presidente da república interroga-se se também Cabo Verde está na era da pós-verdade. A realidade alternativa que tudo subordina à narrativa da luta de libertação faz crer que a pós-verdade não é um fenómeno novo e mínimo em Cabo Verde. Pelo contrário, o país conhece-o de há muito e apesar dos vários governos democráticos e de duas alternâncias já verificadas, não consegue libertar-se dela.
Nota-se a sua persistência na incapacidade do país em lidar com o sofrimento, a humilhação e a indignidade infligidas a várias pessoas em todas as ilhas durante os tais anos que se procura manter na obscuridade. Quando vozes na sociedade e também este jornal chamaram a atenção em 2016 para o trigésimo quinto aniversário dos acontecimentos de 31 de Agosto, que tanto penalizaram indivíduos e famílias em S. Antão, dos órgãos representativos da república, o Presidente e o Parlamento, não se ouviu nada. Da mesma forma, neste ano do quadragésimo aniversário das prisões e torturas em S. Vicente em 1977 também não se ouviu um pedido de desculpas do Estado de Cabo Verde e muito menos se falou em qualquer forma de reparação para os que sofreram prisão, sevícias e perda de vida na sequência de brutalidades de agentes da autoridade. Chega-se ao ponto de comemorar o dia dos direitos humanos sem que se faça referência à luta aqui travada tanto durante o regime de Salazar/Caetano como no regime do partido único para que se tivesse um Estado subordinado a uma Constituição que consagrasse a liberdade e a dignidade humana como os seus princípios maiores e, por isso, limitado no poder de coerção que podia exercer sobre qualquer pessoa. O catálogo extensivo desses direitos na Constituição de 92 resulta dessa luta, mas disso ninguém fala para não perturbar a narrativa da pós-verdade.
Para a defesa efectiva dos direitos humanos tanto no presente como no futuro é da maior importância saber o que significou no passado viver sem esses direitos e estar completamente à mercê de um Estado opressor. O mesmo conhecimento do passado que deve servir de suporte quando hoje se trabalha para ultrapassar os obstáculos na consolidação das instituições, se procura pôr de pé uma comunicação social livre e se esforça por edificar uma economia não dependente e dinamizada pela iniciativa individual e empresarial. Para que a nova atitude prevaleça, porém, é preciso que os órgãos de soberania se sintam mais obrigados aos princípios e valores constitucionais e menos tentados pelas emoções e lealdades suscitadas pela pós-verdade.  

 Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 837 de 13 de Dezembro de 2017. 

segunda-feira, dezembro 11, 2017

Vejamos se nos entendemos

A TACV continua a marcar agenda política. Na semana passada foi trazida à baila na discussão da proposta do Orçamento do Estado e logo de seguida foi objecto de interpelação parlamentar. A comissão de inquérito ainda está a ouvir antigos gestores e dirigentes políticos e na segunda-feira os Ministros da Economia e das Finanças foram chamados à comissão parlamentar de finanças para prestar declarações sobre os negócios realizados com a Binter e a Icelandair.  Entretanto, a par das incertezas à volta dos despedimentos na empresa, da criação do hub na ilha s Sal e consequente transferência de vários trabalhadores surgem questionamentos sobre essa relocalização e aparente perda de importância do aeroporto da Praia com supostos prejuízo de muitos passageiros com destino para o exterior e em particular para as comunidades emigradas.
Entre os muitos males da TACV fala-se da dívida, da má gestão, dos custos exagerados de estrutura e do pessoal em excesso. As culpas pelo que aconteceu à empresa são atiradas por todos os lados, atingindo governantes e gestores. Mesmo na situação crítica em que se encontra não se notam sinais de algum consenso sobre como chegou ao actual estado de falência e muito menos de como agir para evitar a liquidação e procurar salvar os activos acumulados e potenciá-los a bem do país. Prefere-se fazer das extraordinárias dificuldades da empresa matéria de arremesso político, campo para o jogo das culpas e pretexto para o levantamento de suspeições de corrupção que nunca chegam a confirmar-se mas denigrem a imagem do país e deixam a população mais cínica em relação aos políticos e à política. O que importava agora era criar uma vontade nacional capaz de encontrar e apoiar uma solução que oferecesse ao país a possibilidade de não se submeter às pressões dos parceiros internacionais mais inclinados à liquidação total da TACV como forma de recuperar a ajuda orçamental suspensa. Infelizmente não é o que se vê.
Já devia ser claro que uma das razões pelos problemas da TACV é o facto de realmente não se separar a gestão da transportadora aérea da condução da política de transportes aéreos do país. Num país arquipélago e relativamente remoto, as ligações inter-ilhas e entre as ilhas e o resto do mundo são cruciais para o desenvolvimento. Acrescentando a isso à existência de comunidades expressivas nos vários continentes cuja ligação afectiva com o país convém manter entre outras razões pelo impacto económico das remessas e das visitas periódicas, vê-se como é de suma importância ter uma política de transportes que responda às necessidades de circulação de pessoas, ao turismo e às actividades económicas viradas para a exportação de bens e serviços. Se durante algum tempo foi necessária manter-se a transportadora nacional como instrumento central dessa política tanto no serviço doméstico como nas ligações às comunidades, é evidente que não era uma situação a perdurar por muito tempo, considerando os custos que era obrigada a suportar com as alterações que se verificam no mercado dos transportes aéreos ao nível global. Num novo quadro a transportadora nacional deveria com transparência ser ressarcida dos custos incorridos nas rotas não rentáveis no âmbito do que fosse considerado serviço público e também uma política de transportes visando aumentar a conectividade do país com o mundo deveria ser implementada de forma autónoma sem se deixar limitar pelas estratégias de rentabilização da empresa pública. Ao se insistir em confundir as duas, só se podia ter como resultado o aumento de ineficiências, o crescimento dos custos e o acumular de dívidas.
O novo governo instalado em 2016, confrontado com a clara falência da TACV e posto perante a urgência de a liquidar para limitar riscos orçamentais, optou pelo caminho que há muito se devia ter seguido. Separou os dois serviços de transporte aéreo e de seguida optou por ceder o tráfego doméstico a uma empresa privada e por reorientar o serviço internacional para o negócio de hub aéreo na circulação de passageiros entre América do Sul, Europa, África, Estados Unidos e Canadá. Para aumentar as chances de sucesso chegou a acordo com a Icelandair – que vários anos atrás foi bem-sucedida em criar um hub no Atlântico Norte com base na Islândia – para gerir a TACV e repetir a façanha no Atlântico Médio, a partir da ilha do Sal. Naturalmente que ao longo do processo forças políticas e outras entidades manifestaram discordâncias ou preocupações em relação às negociações havidas seja com a Binter nos voos domésticos seja com a Icelandair para a criação do hub. A própria GAO, no seu comunicado de 1 de Dezembro, alerta para a necessidade de, no âmbito das privatizações, se assegurar que as transacções individuais respeitem os princípios da competitividade, abertura e optimização na afectação de recursos.
Um facto, porém, é que se tinha de agir e se agiu mesmo que não haja consenso quanto à forma, que insuficiências ainda se mostram no serviço inter-ilhas particularmente quando se trata de cobrir as necessidades de carga de operadores económicos e quando aparentemente a actual operadora não está melhor preparada para desempenhar certos papéis em momentos críticos, em situações de urgência e nas evacuações. As controversas ligadas à relocalização da TACV na ilha do Sal para a criação do Hub ainda tem como base o não reconhecimento que a TACV tem de mudar de modelo de negócios para poder sobreviver e ainda capitalizar os activos acumulados. E o modelo de negócios implicando uma capacidade de processamento em simultâneo de vários aviões, a possibilidade stopover de vários dias, atractivos diversos com base em facilidades fiscais nas compras em zonas francas, etc., identifica a ilha do Sal como tendo as melhores condições para isso. A economia nacional ganhará com todos os negócios aí engendrados.
 A preocupação com os chamados voos “étnicos” deve ser resolvida no âmbito de uma política de transportes que torne mais fácil, mais barato e mais conveniente voar para Cabo Verde e para suas diferentes ilhas. É uma questão estratégica de fundo que importa assumir. Ao emigrante cabo-verdiano interessa-lhe fundamentalmente viajar para Cabo Verde no momento que lhe aprouver, a custo mais baixo e com melhores regalias no transporte de bagagem. Não lhe importa que a viagem seja ou não feita num avião da TACV. Mas certamente que ficará satisfeito se TACV conseguir ser bem-sucedida com a mudança de seu core business e poder ver aviões identificados como a marca Cabo Verde Airlines a transportar milhares de passageiros de um continente para o outro. Assim deveremos ficar todos.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 836 de 06 de Dezembro de 2017. 

terça-feira, dezembro 05, 2017

Convicções ou ligeireza?

O Ministro das Finanças Olavo Correia há dias num encontro com empresários portugueses na cidade do Porto anunciou uma nova Lei Cambial que depois de entrar em vigor em 2018 “vai liberalizar todos os movimentos de capitais de Cabo Verde com o exterior”. Tirando o facto de que a lei ainda não existe – não se sabe oficialmente se a proposta da nova lei cambial foi aprovada no Conselho de Ministros e muitos menos agendada para a discussão e eventual alteração no parlamento – suscitam muitas dúvidas se o simples anúncio de livre movimento de capitais constitui efectivamente um forte atractivo para o investimento directo estrangeiro no contexto de uma economia pequena e frágil. O ministro vê benefícios na possibilidade de transacções de e para Cabo Verde serem feitas “sem qualquer restrição burocrática” ao mesmo tempo que relembra que o escudo cabo-verdiano tem uma paridade fixa com o euro.
O perigo inerente na associação de políticas de livre movimentação de capitais com a existência de paridade fixa, ainda por mais na forma de um peg unilateral não parece ter despertado atenção especial. Não se registou qualquer eco do assunto na comunicação social e do parlamento nada se ouviu porque ainda não chegou lá. São conhecidas porém o papel que tais políticas tiveram designadamente na origem da crise financeira dos países do sudeste asiático em 1997, no Brasil, Rússia e Argentina em 1998-1999 e também em vários outros países noutros momentos. Como reacção, alguns países acabaram por adoptar meios de controlo do chamado “hot money”, os capitais que entram à procura de oportunidades lucrativas e que podem sair em debandada ao mínimo sinal deixando para trás graves perturbações monetárias, reservas delapidadas e dívida externa complicada, particularmente a do sector privado.  
A forma como o governo de Ulisses Correia e Silva vem comunicando políticas muitas delas de fundo e com implicações fortes na vida das pessoas e do país tem deixado as pessoas, a sociedade e até entidades como o Presidente da República de alguma forma perplexas, algo  confusas ou pelo menos com a ideia de que haveria mais coisas a acrescentar. Um exemplo recente está na proposta de lei de orçamento onde se foi ressuscitar o que tanto o primeiro ministro como o ministro das finanças assumiram como sendo políticas de substituição de importações. As alterações aduaneiras previstas no artigo 26 da proposta de lei do orçamento visam proteger a indústria nacional nos domínios do leite e derivados, sumos e água engarrafada. Supõe-se com esse tipo de política que o consumidor perante o preço mais elevado do produto importado passe a consumir o produto nacional e por essa via se viabilize e se rentabilize o investimento nacional.
A experiência de aplicação desse modelo de desenvolvimento em vários países demonstrou que realmente não funciona. Toda a gente fica a perder: os consumidores acabam sempre por pagar mais caro porque a tendência é de o preço do produto nacional com o tempo aproximar-se do importado; a prazo, a indústria nacional no seu conjunto não beneficia porque os produtores perdem a motivação para se tornarem competitivos no preço e na qualidade e serem capazes de conquistar mercado tanto a nível nacional como internacional; também o país não ganha porque com essas politicas a tendência é para as autoridades adiarem as medidas para melhorar a competitividade incluindo as que deviam priorizar a diminuição de custos de factores, a criação de sistemas de transportes terrestres, marítimos e aéreos mais eficientes, o abaixamento dos custos de contexto e a melhoria do ambiente de concorrência com o combate a monopólios e a outras formas de controlo do mercado.
O caminho para proteger o empresariado nacional deve ser outro. O país precisa realmente de um sector privado focalizado em ser competitivo, em contribuir para o aumento da produtividade nacional e em conquistar mercados para exportação de bens e serviços. Não ajuda muito que durante décadas a ênfase nos investimentos públicos, num quadro em que o modelo económico foi por demasiado tempo de reciclagem da ajuda externa deixou o sector privado fragilizado, dependente muitas vezes dos favores do estado e pouco capacitado para aproveitar as oportunidades criadas pelo investimento directo estrangeiro em particular no domínio do turismo. Reverter a situação não pode ser simplesmente pela via das medidas simples administrativas que ignoram a complexidade da situação encontrada, fingem não ver os interesses instalados e subestimam os incentivos existentes que vão no sentido contrário ao pretendido numa economia dinâmica de promover a iniciativa individual e de premiar o gosto pelo risco e a vontade de criar e inovar. A história económica de vários países e também de Cabo Verde demonstra que quem ficou por essas medidas simplistas falhou redondamente e acaba praticamente preso numa economia com fraca capacidade de exportar, com elevado grau de informalidade e baixa produtividade.
Enquadra-se provavelmente nessa busca por algo facilmente identificável e relativamente fácil de implementar a importância dada pelo governo à questão do financiamento no global dos problemas enfrentados pela empresas e potenciais empreendedores. O resultado é o grande esforço que o governo tem posto em criar linhas de crédito, bonificar taxas de juro e instituir fundos de garantia para minimizar o risco dos investimentos. São medidas importantes mas podem não ser as que as empresas mais precisam se tiver em conta que o sistema bancário não tem problemas de liquidez e só não estende crédito a juros mais baixos devido a riscos macrofinanceiros e o risco-país que percepciona não obstante os estímulos vindos do banco central designadamente no que toca a relaxamento das taxas directoras. Muito mais tem que ser feito na criação de um ambiente de negócios que realmente favoreça e compense o indivíduo pela sua iniciativa e pelo seu esforço e disponibilidade em correr riscos  
Como alguém notou recentemente, “se a comunicação falha repetidamente é porque falha aquilo que há a comunicar”. Ou seja, quem não reflecte aprofundadamente sobre a complexidade da situação herdada e procura formular estratégias e medidas de política para a ultrapassar, dificilmente vai poder comunicar eficazmente. No fim do dia as medidas vão dar a impressão de terem sido tomadas com ligeireza mesmo que tenham por de trás a firme convicção de que são as mais adequadas e as mais justas.  E os resultados certamente que ficarão muito aquém do que foi prometido, o que nos dias de hoje de avanço do populismo, constitui um desfecho a evitar a todo o custo porque pode deixar as pessoas mais descrentes e cínicas em relação à política, aos políticos e à própria democracia.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 835 de 29 de Novembro de 2017. 

segunda-feira, novembro 27, 2017

Mais coerência s.f.f

A comunicação social esteve em debate ontem num fórum presidido pelo Primeiro-Ministro Ulisses Correia e Silva. O tema era Serviço Público da Rádio e Televisão mas, como seria de esperar, a questão do papel e da sustentabilidade dos órgãos privados da comunicação social foi trazido à baila. Logo nas intervenções iniciais o Governo apressou-se a anunciar a sua nova lei de incentivos e os 15 mil contos orçamentados para a imprensa escrita e órgãos digitais ao mesmo tempo que deixava no ar promessas de futuras progressões nesse montante e também de benefícios em noutros domínios como a formação. Quanto à questão crucial da publicidade para a sustentabilidade de uma imprensa privada com expressão a nível nacional, o PM remeteu para o próximo ano a definição dos limites à publicidade angariada pelos órgãos públicos.
A realidade da comunicação social em Cabo Verde é ainda marcada pela preeminência dos órgãos estatais vinte sete anos após o 13 de Janeiro e 25 anos de vigência da Constituição de 92 que consagrou o princípio do pluralismo e as liberdades de expressão, de informação e de imprensa. Os avanços da sociedade cabo-verdiana, tanto na instalação e consolidação das suas instituições democráticas como na reestruturação da sua economia deixando de lado os velhos monopólios estatais e promovendo a concorrência nos diferentes sectores, não tiveram correspondência no sector da comunicação social. O monopólio anterior do Estado, em particular na rádio e na televisão, manteve-se praticamente intacto como é apregoado todos os dia nos canais públicos em declarações que é a maior rádio e a maior televisão de Cabo Verde. Outra coisa não podia ser considerando a sua história desde a independência em que, expropriadas todas as rádios privadas, a rádio estatal e posteriormente a televisão passaram a beneficiar do financiamento público via orçamento do Estado, da taxa de televisão e da maior fatia da publicidade comercial e institucional. O que estranha é a manutenção desta situação mais de duas décadas de democracia pois sabe-se qual é em geral as consequências desse estado de coisas, designadamente no que toca ao excesso de pessoal, ao sobredimensionamento dos meios acompanhado de ineficiências diversas, à falta de estímulo para uma gestão que faculte autonomia financeira e diminua a dependência do Estado, à tentação de viver das receitas publicitárias sem falar no que alguém já chamou do peso genético simbólico de décadas de serviço ao Estado.
A suspeita que poderá ter persistido uma cultura de prestar serviço a quem manda é a fonte principal de um conflito que normalmente envolve todas as forças políticas prontas todas elas para acusarem os órgãos e os jornalistas de parcialidade, de discriminação e de serem objecto de pressão. Paradoxalmente, tais acusações acontecem quando estão no governo e quando estão na oposição. A excessiva capacidade de influenciação dos órgãos públicos comparada com a dos privados faz da rádio e da televisão públicas um campo de batalha particularmente virulento onde não se sabe onde termina a tentação de quem governa em fazer uso da sua posição privilegiada para passar a sua mensagem e começa a desconfiança dos opositores de que alguma manipulação está a acontecer. Em tal ambiente muito dificilmente se pode esperar que apareça e se desenvolva o jornalismo de referência que todos consideram ser fundamental  neste mundo de fake news, de pós verdade, em que as redes sociais parecem já estar a assumir o papel de mediação, até agora detido pela comunicação social e que é essencial para o funcionamento e consolidação da democracia. Que os órgãos públicos não conseguirão ser porta-estandarte do jornalismo de excelência e de referência que todos almejam é um facto que reconhecem e deixam transparecer nas suspeitas trazidas a público e nas acusações de auto-censura. Que a batalha pelo seu controlo é um dos factores de continuada crispação política no país é um facto também indesmentível. Por isso, continuar a alimentar a “criatura” através de fluxos financeiros de três ou mais fontes de recursos não parece ser muito inteligente, particularmente quando se sufoca outras vias e se impede que um novo paradigma de comunicação social se erga e se consolide em Cabo Verde, um paradigma mais consentâneo com o que se encontra nas democracias modernas.
 A Constituição da República determina que haja sempre um serviço público de rádio e televisão. Não estabelece porém qual deve ser a sua dimensão. Provavelmente dependerá da orientação ideológica do governo dimensionar  os canais públicos  simplesmente para suprir as imperfeições do “mercado de comunicação social” em termos de pluralismo e de universalidade ou alternativamente colocá-los em posição de maior peso vis-à-vis aos órgãos privados. A opção por uma maior fatia no “mercado” da comunicação social contraria de algum modo políticas que tendem a uma maior autonomia da sociedade civil, a dar um papel decisivo ao sector privado na dinamização da vida socio-económico e cultural do país e a promover uma cultura de transparência e “accountability” essencial num Estado de Direito. Não é por acaso que a experiencia de várias democracias designadamente Portugal, Espanha e França dá conta da dinâmica verificada na comunicação social e na quantidade e qualidade de informação disponível para as pessoas na sequência de licenciamento de rádios e televisões privadas acompanhado de limitações ou mesmo proibição de publicidade nos órgãos de serviço público.
O governo de Ulisses Correia e Silva prometeu 15 mil contos em incentivos para contribuir para a sustentabilidade da comunicação social privada. É manifestamente insuficiente. O Expresso das Ilhas paga mais do que essa quantia anualmente à gráfica local só para impressão enquanto em regra recebe por ano mais ou menos 2 mil contos do Estado para compensar os seus múltiplos gastos. Alargar a distribuição de incentivos anteriormente dirigidos para a imprensa escrita também para os online que não têm despesas de impressão e de distribuição nem precisam que o leitor contribua com cem escudos para ter acesso ao conteúdo não contribui para minorar as dificuldades com que os jornais se confrontam na actualidade. Dificuldades essas tornadas piores com a concorrência dos órgãos públicos que com o acesso privilegiado a publicidade institucional e financiados por outras vias em certos momentos podem praticar preços que até sugerem operações de dumping. É evidente que continuando assim dificilmente se poderá inverter a herança recebida do partido único da hegemonia dos órgãos públicos com todas as consequências já conhecidas, designadamente na qualidade da comunicação social e da própria democracia.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 834 de 22 de Novembro de 2017. 

terça-feira, novembro 21, 2017

As estiagens já não deviam meter medo

2017 já está a perfilar-se como um dos anos terríveis de seca. De acordo com as declarações à imprensa do ministro Gilberto Silva  pluviosidade neste ano ficou pelos 109 mm quando a média das precipitações no país é inferior a 300 mm. Calcula-se em mais 17.000 as famílias afectadas pela crise gerada pela falta de chuvas que directamente prejudica tanto a agricultura como a criação de gado. Devido à escassez geral, culturas tradicionais de sequeiro não foram feitas, os regadios estão a sofrer com a diminuição drástica de água disponível e o gado sem o precioso líquido fica em risco de sucumbir e não tem pasto para se sustentar. O rendimento de muita gente no mundo rural, que normalmente depende do que pode extrair da terra e da criação de animais para completar outros benefícios que recebe designadamente as remessas de familiares, de repente ficou sem um dos seus pilares. Todo o país se alarmou. O governo promete avançar com programas de emergência e diligências já foram feitas para mobilizar ajuda internacional. O que ficou claro mais uma vez foi que, 42 anos após a independência nacional, a vida continua tão precária como antes para muita gente em Cabo Verde. 
Anos de seca não são novidade no país. Séculos de existência pontuados por crises periódicas, que em vários momentos resultaram em fomes mortíferas, dão conta da fragilidade das ilhas. A irregularidade das chuvas contribuiu para manter a população pequena e nunca deixou que uma economia agrária realmente se viabilizasse. Com a independência a ajuda internacional passou a contribuir decisivamente para que as secas não se transformassem em momentos de calamidade para as populações. Já na edificação de uma economia rural que diminuísse a precariedade da existência das pessoas, a ajuda não foi tão bem sucedida, não obstante os muitos milhões gastos na construção de estradas de desencravamento, de diques e barragens e ainda nos mil e um projectos dirigidos às populações ao longos dos anos cujos resultados muitas vezes não se viam depois de terminado o financiamento. Vários factores contribuíram para que dos enormes investimentos feitos se obtivessem os magros resultados hoje constatados e que aparecem nas estatísticas oficiais como, por exemplo, as que põem o interior de Santiago com o menor rendimento per capita do país. 
O principal factor seguramente foram as políticas públicas que se revelaram incapazes de criar uma outra base de sustentabilidade que permitisse ao país crescer e criar empregos fora do mundo rural. Aparentemente a história das sucessivas secas ao longo dos séculos não serviu muito para desencorajar tentativas de reviver o mundo rural quase nos mesmos moldes de sempre. As opções de política desde o início focalizaram-se nas populações lá onde viviam com intervenções e projectos ostensivamente anunciadas para aumentar a autonomia e melhorar a base de existência das pessoas mas que na prática serviram essencialmente para tornar as pessoas dependentes do Estado. Explicitamente com essas políticas procurava-se evitar o êxodo rural mas empregos suficientes para reter as pessoas dificilmente podiam ser criados. A estrutura da propriedade não se alterou significativamente, persistindo as pequenas explorações familiares, as culturas continuaram basicamente as mesmas salvo algumas inovações e os constrangimentos de transportes, distribuição e de acesso a mercados mais alargados não foram ultrapassados. A produção agrícola do país continuou a ser essencialmente de subsistência. Por isso que qualquer quebra nas precipitações expõe tão abertamente a precariedade dos rendimentos das pessoas que dela vivem.
A opção pelo desenvolvimento com base na reciclagem da ajuda externa alimentou-se durante anos dessa precariedade, tanto induzida como reproduzida, mobilizando a generosidade internacional para responder às situações de emergência que ciclicamente surgiam. Embalados nessa via os governantes não procuraram durante largos anos criar alternativas efectivas de emprego na indústria e nos serviços. Constrangimentos ideológicos e outros impediram que se adoptassem políticas de atracção de investimento directo estrangeiro, que se fomentasse o turismo e se desenvolvessem indústrias viradas para a exportação como aconteceu nas Maurícias e em vários outros países que originariamente tinham uma economia predominantemente agrária. Pagou-se essa “negligência” com o chamado desemprego estrutural que andou sempre nos dois dígitos e entre os jovens à volta dos 40% e com a persistência da vulnerabilidade da população que segundo o Ministro de Finanças ainda alberga no seu seio 170 mil pobres e 50 mil pessoas em estado de pobreza absoluta.  
A facilidade com que recentemente muitos se deixaram levar pelo ilusionismo das barragens que mobilizavam toneladas e mais toneladas de água para suportar clusters de agronegócios e criar emprego no mundo rural mostra o quanto é arreigado o sonho em certos círculos que se Cabo Verde chovesse, acabavam os problemas e seriamos todos felizes. Muita política faz-se explorando esses sentimentos. O resultado é que muitos recursos que podiam ser aplicados em sectores da economia capazes de criar emprego, aumentar a produtividade e contribuir mais para a produção da riqueza nacional,  são investidos nos mesmos projectos que já provaram não ter retorno significativo. Não é à toa que após muitos milhões de contos aplicados no mundo rural em Cabo Verde grande parte da agricultura não passa de uma agricultura de subsistência incapaz de se suster sem subsídio do Estado e muito pouco resiliente face a quebras na pluviosidade. 
Devia-se esperar que esta crise, ao revelar de forma dramática a fragilidade da abordagem que se tem feitos dos problemas do país, servisse de alerta e de convite à uma mudança de atitude. É um facto que crises similares no passado não tiveram esse efeito. Espera-se que desta vez, em que claramente o país está numa encruzilhada, se veja a luz. É urgente uma nova atitude que finalmente ponha o país no caminho da modernização em que, a exemplo de outros países que souberam abandonar a postura nostálgica em relação a um passado muitas vezes fictício, o foco seja colocado nos sectores de mais peso na economia e com maior potencial de crescimento. A agricultura deverá ter sempre um papel importante mas há que ultrapassar os constrangimentos da distribuição, transporte e acesso a mercados, focalizar em produtos de maior valor acrescentado e inovar para a tornar mais produtiva, a fim de libertar mão-de-obra para sectores mais dinâmicos. Talvez assim se construa uma nação em que, com o poeta, se pode dizer: “…as estiagens já não nos metem medo”. 


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 833 de 15 de Novembro de 2017.

segunda-feira, novembro 13, 2017

Nós e a Revolução de Outubro

Ontem dia 7 de Novembro, 25 de Outubro no calendário juliano, completaram-se cem anos da revolução russa que, parafraseando o escritor americano John Reed, em dez dias abalou o mundo. De facto depois da tomada de poder em S. Petersburgo pelos bolcheviques comandados por Lenine nunca mais o mundo foi o mesmo. A luta de ideias a que deu origem, opondo o comunismo à democracia liberal e constitucional e a economia estatal à economia de mercado, marcou todo o século 20. Surgiram rivalidades geopolíticas em todos os continentes à medida que revoluções similares eram tentadas e a partir da segunda guerra mundial materializou-se a divisão do mundo em dois blocos político-militares com capacidade nuclear de destruição de toda a humanidade. O ciclo de antagonismo ideológico aberto pela revolução russa só viria a fechar-se em 1991 com o desmoronar da União Soviética após acontecimentos como a Queda do Muro de Berlim em 1989 e libertação de toda a Europa de Leste do jugo soviético.
As promessas da revolução de uma sociedade sem classes, sem exploração do homem pelo homem e com garantia que todos receberiam segundo as suas necessidades seduziram muitos não só na Rússia como em todo o mundo designadamente intelectuais, artistas e jovens. Também provocaram reacções que depois viriam a revelar-se de grande impacto na forma de organização da sociedade e na relação entre os povos. Nas democracias mais frágeis, a resposta ao desafio comunista levou em alguns casos ao fascismo e noutros a derivas autoritárias de toda a espécie com custos humanos e de liberdade sem precedentes, como foi o caso da Alemanha Nazi. Nas democracias consolidadas, o desafio comunista foi respondido com dinâmica económica que alargou a classe média e com a edificação do Estado social que procurou acautelar os interesses dos trabalhadores e estendeu a todos os serviços sociais de saúde, da educação e da protecção da infância e da velhice. Já o confronto com os países detentores de impérios coloniais contribuiu para fazer do comunismo a grande referência ideológica de muitos nacionalistas na África, Ásia e na América Latina na luta pela independência e posterior utilização das suas soluções na condução da economia e na organização da sociedade.
O falhanço do comunismo em trazer a prometida prosperidade económica acrescido dos extraordinários sacrifícios impostos com a perda da liberdade, a perseguição política dos opositores, os milhões enviados para trabalhos forçados e outros milhões condenados à morte em fomes artificialmente criadas precipitou o seu desmoronamento em todo o mundo nos últimos anos da década de oitenta e início dos anos noventa. O fenómeno da queda em cadeia de regimes totalitários em todo o mundo foi chamado de grande extinção leninista por alguns autores. Lembrou a desaparição rápida dos dinossauros no Jurássico. Para autores como Fukuyama o fim do combate ideológico com a vitória da democracia liberal e da economia de mercado sobre o comunismo na época configurava simultaneamente o fim da história em que já não haveria alternativa aos princípios e valores da dignidade humana, da liberdade individual, do pluralismo e do primado da Lei. Os factos porém vieram posteriormente confirmar que, como há dias escreveu Anne Applebaum no Washington Post, as ideologias totalitárias nunca morrem e nem acaba a sua capacidade de seduzir.
Cabo Verde também viu o regime de partido único soçobrar e desaparecer nessa grande extinção leninista. Quinze anos antes o país tinha ganho a independência ficando sob a direcção do PAIGC, um movimento de libertação que como vários outros se inspirou na ideologia e nos métodos organizativos do partido de Lenine. Como seria de esperar, o regime cerceou as liberdades, hostilizou o sector privado e consolidou o poder único do partido numa perspectiva  totalitária. Como partido de inspiração leninista via-se como intérprete do devir histórico do país, único conhecedor dos reais interesses dos caboverdianos e um demiurgo criador de nações à maneira como foram criados o povo soviético e o povo ioguslavo: a luta de libertação é, como não deixava de repetir, um acto de cultura. Ainda predispunha-se a criar um chamado homem novo ideologicamente educado, livre de complexos burgueses ligados à propriedade e à família e sem nenhum interesse pela democracia representativa com as suas eleições livres e plurais e seu Estado de Direito. Curiosamente o fim do regime, como aconteceu noutras paragens, acelerou com o fracasso repetido em ultrapassar as dificuldades económicas seguida de estagnação no fim dos anos oitenta. Quando se quis reestruturar para ganhar espaço político, perdeu ostensivamente.
O centenário da revolução russa é um dos tais momentos para relembrar o quanto prejudicial e mesmo catastrófico foi o facto das pessoas se deixarem levar por uma ideologia que prometeu tudo e só, de facto, matou a liberdade, substituiu a verdade pela mentira e na sua ânsia de poder orientou-se pelo princípio segundo o qual os fins justificam os meios, abrindo caminho para regimes cruéis e responsáveis pelas maiores mortandades na História. Como diz Anne Applebaum no artigo citado há sempre que explicar às novas gerações as consequências do desvio iliberal e assegurar-se que saberão reconhecer as tácticas de  quantos denigrem a democracia representativa e procuram nas várias estratégias de reprodução do actual modelo de desenvolvimento manter a dependência das pessoas, fragilizar as instituições e minar a confiança nos procedimentos democráticos.   


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 832 de 08 de Novembro de 2017. 

segunda-feira, novembro 06, 2017

Banco Mundial surpreso?

Na semana passada uma equipa do Banco Mundial apresentou no quadro do Diagnóstico Sistemático do País (SCD) uma apreciação sombria sobre o percurso de Cabo Verde nos últimos anos. Ouviram-se frases como “a qualidade das infraestruturas está abaixo de países semelhantes”, “o maior crescimento vem do sector público e o sector privado não um papel significativo”, “a eficiência da administração pública está a declinar”, e “educação e formação inadequada da força laboral”. Também os técnicos do Banco Mundial não deixaram de apontar que, em relação à problemática da redução da pobreza, “depois de tantos anos a gastar dinheiro em programas sociais não sabemos quão efectivos foram porque há muito poucos dados” e ainda de constatar que “a dívida pública disparou, situando-se acima dos 120% do PIB”, facto que está a impedir o país de se tornar “resiliente aos choques externos”. 
As frases só surpreenderam porque vinham de quem as proferiu. Há anos que as forças políticas da oposição, observadores de vários quadrantes e operadores económicos privados chamavam a atenção para a dívida crescente, infra-estruturas de valor duvidoso, educação de fraca qualidade e o efeito negativo da administração pública sobre o ambiente de negócios e a competitividade do país, sem encontrar muito eco nos documentos e declarações finais das sucessivas missões do FMI e do Banco Mundial. Pelo contrário, não poucas vezes ficavam na posição de corroborar as posições do governo e de suportar expectativas de crescimento que viriam a revelar-se muito abaixo do real. Em 2014 a previsão de crescimento situou-se oficialmente no intervalo 3,5% - 4% do PIB, mas na realidade foi de 0,6%. Em anos anteriores a disparidade entre a previsão e a realidade não foi muito diferente mas isso não impediu que nos documentos oficiais dessas instituições não subsistissem muitas dúvidas, por exemplo, em relação à dívida pública que o governo de então insistia que era perfeitamente sustentável porque concessional. Compreende-se que não é próprio dessas instituições fazer o papel dos partidos da oposição ou de porta-voz das críticas da sociedade civil e das preocupações dos agentes económicos, assim como não deve certamente ser seu papel dar respaldo ao que oficialmente se diz para fugir à responsabilidade e não tomar as medidas que as circunstâncias impõem.
O facto porém é que com o passar do tempo o problema torna-se mais complexo, a situação se agrava e não há muito por onde ir. Ninguém sabe o que fazer quando o recurso à ajuda externa e ao crédito diminui consideravelmente e no meio termo o país não conseguiu pôr de pé sectores da economia que pudessem funcionar como motores do crescimento e da criação de emprego. Entrementes as empresas públicas ameaçam soçobrar sob o peso da dívida acumulada e, no ambiente de incerteza e riscos macrofinanceiros, o investimento privado nacional e estrangeiro não consegue substituir o investimento público no ritmo desejado. O resultado é o fraco crescimento, as dificuldades de criar emprego e a dependência crescente de sectores que, embora dinâmicos por impulso do exterior como é o caso do turismo, na prática não conseguem arrastar suficientemente o resto de economia.
Nesses momentos – o encontro da semana passada com Banco Mundial é um exemplo - depois de anos de aparente complacência com resultados medíocres, eis que essas instituições como que reaparecem e exigem medidas draconianas sem demonstrar grande preocupação com as consequências para além de limitar o défice orçamental, conter a dívida pública e assegurar os pagamentos externos. Com se viu no caso da TACV, insistem com a reestruturação/liquidação da empresa e não têm rebuços em usar a suspensão da ajuda orçamental como instrumento de pressão ao governo. No mesmo sentido vão outras medidas de reestruturação propostas, incluindo privatizações, dirigidas primariamente para colocar esses índices em valores mais geríveis mas que a prazo podem revelar-se pouco adequadas para garantir crescimento rápido e o desenvolvimento sustentável da economia. O facto de não se sentirem co-responsáveis pelo que possa vir a acontecer ao país apesar das periódicas missões de monitorização e aconselhamento devia servir para lembrar aos legítimos governantes que está nas suas mãos a responsabilidade pelo desenvolvimento do país.
Essas organizações internacionais têm a sua própria agenda que nunca é idêntica à agenda nacional apesar de eventualmente partilharem elementos comuns ou convergirem em atingir os mesmos objectivos e metas. As doações, empréstimos ou investimentos no âmbito de ajuda externa seguem uma lógica que pode ter pontos de contacto com aspectos da estratégia nacional mas não são coincidentes. Nenhum país do mundo se desenvolveu com base simplesmente nas prescrições das instituições de Bretton Woods. Todos tiveram que encontrar a sua via, traçar a sua estratégia e ser capaz de negociar com as instituições estrangeiras multilaterais de forma a potenciar ao máximo os recursos disponibilizados em benefício de um crescimento rápido e inclusivo. 
Pôr definitivamente de lado o modelo de reciclagem de ajuda e abraçar a via que colocará o país na posição de criar riqueza deve passar também por rever toda a relação com essas instituições de forma a que não seja marcada pela submissão, facilitismo e ausência de uma estratégia própria. Depois de décadas de condicionamento do comportamento do Estado e dos seus agentes devido à ajuda externa há que construir o caracter e a competência esperados de um povo independente.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 831 de 31 de Outubro de 2017.

segunda-feira, outubro 30, 2017

Ir além do corporativismo

O presidente Marcelo Rebelo de Sousa, em 2016, num discurso proferido no início do ano judicial em Portugal disse que desde os fins dos anos noventa a Justiça está sob um escrutínio mais apertado dos portugueses. Clamam por uma justiça menos lenta e mais acessível e o país, por sua vez, precisa de uma justiça mais eficaz no dirimir de conflitos, na defesa dos direitos e em fazer cumprir obrigações legalmente estabelecidas para ser mais competitivo e atrair mais investimento privado nacional e estrangeiro. A atenção recente sobre a justiça seguiu-se a períodos em que o foco sobre os problemas do regime democrático inaugurado com o 25 de Abril recaía algures: nos primeiros tempos era ultrapassar a relação com os militares de Abril, depois foi abrir a Constituição para suportar uma economia de mercado e por último a necessidade de integração na Europa. Com as energias concentradas nos centros políticos de decisão deixou-se evoluir por si próprio o poder judicial sem o acompanhamento que os tribunais como órgão de soberania e fundamentais para o sistema democrático e para o Estado direito mereciam. O resultado, como notado no último Painel sobre a Justiça na União Europeia (2017), Portugal está entre os países com a justiça mais lenta: “A Justiça portuguesa demora, em média, 710 dias para resolver processos cíveis, comerciais e administrativos nos tribunais da primeira instância, sendo apenas ultrapassada pela do Chipre, que ascende aos 1085 dias”
Situação análoga terá acontecido em Cabo Verde, uma democracia ainda mais jovem em que a edificação das instituições democráticas revelou-se algo mais complexa porque realizada num ambiente pressionado para fazer a mudança na continuidade tendo como “parceiro” no papel de força política de oposição o partido que durante 15 anos encarnou o regime anterior. A actividade política necessária para garantir a estabilidade política e ao mesmo tempo realizar as reformas profundas que se impunham no processo de transição de uma economia estatizada para uma economia de mercado concentrou grande parte da atenção dos sujeitos políticos e da sociedade em geral. Como em Portugal, o poder judicial em Cabo Verde, que todos agora em democracia queriam que fosse independente e sem estar sujeito a interferências estranhas, pôde durante muitos anos navegar “abaixo do radar” do escrutínio público. Nesse quadro persistiu a lentidão da justiça conhecida por todos e aproveitada por muitos para conseguir a impunidade em muitas situações com prescrições de casos e com impossibilidade prática de execuções, de despejos e de cobranças de dívidas. Quantas vezes cidadãos e operadores económicos prejudicados nos seus interesses na relação com o Estado também não ficaram com forte impressão que agentes ou entidades públicos aproveitaram-se da esperada lentidão da justiça para não os ressarcir nos seus direitos.
Hoje, depois de anos de estabilidade democrática e de alternâncias dos partidos no governo, há mais tempo para um olhar mais profundo e escrutinador sobre o sector da justiça particularmente porque insiste em não responder com resultados às expectativas das pessoas. Depois de anos a pedir meios e recursos diversos, a sua eficácia não se alterou significativamente com perdas para as pessoas, para as empresas e para o país que se vê sem competitividade e sem atractividade para o capital estrangeiro tão fundamental para o crescimento económico e para a criação de empregos e para a expansão das exportações de bens e serviços. O empoderamento das magistraturas com alargamento das suas competências na gestão e disciplina dos magistrados e das secretarias judiciais e as transferências de meios correspondentes não teve os resultados esperados. A percepção que faltava um esforço consequente e comprometido ganhou força quando todos se aperceberam que não conseguiam pôr de pé um serviço de inspecção dos juízes e das secretarias judicias essencial para efectiva gestão dos mesmos. Parece que os conselhos se acomodaram durante anos à falta de vontade dos magistrados em servirem como inspectores por razões de natureza pessoal, de amizade, familiaridade ou proximidade mas que naturalmente são tomadas por qualquer outra pessoa como sinal de desresponsabilização em relação ao serviço público a que são obrigados. Vinda a público, esta falha grave quanto à inspecção judicial foi a pedra no charco que deitou tudo a perder e atraiu críticas de vários quadrantes, algumas justas e outras nem tanto. As pessoas apercebiam que, se os magistrados enquanto corpo não se sentiam pressionados para se avaliarem, como iriam mostrar uma atitude diferente quando fosse de melhorar a produtividade e de aprimorar o comprometimento na prestação de serviço público.
Nos anos que se seguiram à revisão constitucional de 2010 assistiu-se ao reforço do espírito corporativo na magistratura judicial em sintonia com as alterações constitucionais no sentido de maior autonomia e independência do poder judicial. De facto, o STJ passou a ser constituído só por magistrados judiciais, o CSM ganhou maioria absoluta de magistrados e já podiam ser remunerados por funções de docência prestados a outrem. Foi alterada significativamente a relação com o governo através do Ministério de Justiça com a autonomia administrativa e financeira dos conselhos de magistratura que passaram a ter orçamento próprio que já atinge no orçamento de 2018 o valor de várias centenas de milhares de contos. Apesar do afã em transferir poderes e recursos não se verificaram os progressos na administração da Justiça que era esperada.
Neste particular, também os outros componentes do sistema, a polícia, o ministério público e a ordem dos advogados não se têm mostrado muito diferentes. Todos muito ciosos das suas prerrogativas, em geral, não têm ou são incipientes os mecanismos internos de inspecção com capacidade para avaliação de mérito ou de reavaliação de métodos ou técnicas ou planos de acção. Respondem com tiques corporativos às críticas ou exigências de melhor prestação e não poucas vezes defendem-se passando a culpa de uns para os outros ou queixando-se da falta crónica de meios. Ultrapassar este estádio em que a relação com o poder mostra-se mais no sentido de usufruto e menos de exercício é fundamental para que haja convergência de forças e de vontades que podem fazer tudo acontecer com profissionalismo e com responsabilidade. É isso que o país e as pessoas esperam de quem mesmo não sendo eleito exerce funções vitais para a salvaguarda da democracia e do Estado de Direito. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 830 de 25 de Outubro de 2017.

segunda-feira, outubro 23, 2017

À procura de economias de escala

Cabo Verde tem um problema central de escala. O relatório da Competitividade 2017 põe o país na posição 137 em 138 países quanto à dimensão do seu mercado, tanto interno como o externo. É um facto que a dimensão do país, a pequenez da sua população e a sua posição geográfica afastada dos grandes centros dinâmicos da economia mundial tornam extremamente complexa encontrar uma via rápida para o desenvolvimento. Tal constrangimento nem sempre foi tido em devida conta pelos governantes ao longo dos anos. Perdeu-se tempo com modelos de desenvolvimento com base na substituição de importações, não foram aproveitadas no tempo certo as oportunidades de exportação que existiam no quadro do Sistema Geral de Preferências e evitou-se como se praga fosse o turismo que poderia trazer procura externa necessária para a dinâmica da economia. Há mais de 25 anos que se assumiu que o caminho deve ser outro, que o país tem que se focar na produção de bens e serviços, expandir os mercados e tornar-se competitivo para poder desenvolver e prosperar.

Saber que é assim, não significa porém que se queira fazer para que aconteça. A via aparentemente mais fácil da reciclagem da ajuda externa foi a miragem que não deixou que a orientação do país fosse mais consequente em contornar o problema estrutural de mercado exíguo. Não se insistiu com políticas de atracção de investimentos externos que além de capital e tecnologia trouxesse mercados, nem se procurou no quadro de uma perspectiva estratégica mobilizar um fluxo externo forte de pessoas na condição de turistas, de visitantes, ou de pensionistas. Não estranha que cresça cada vez mais a sensação de que se esticou a corda demais e que hoje com a dívida pública pesadíssima, reformas estruturais por fazer, custos elevados de factores, um capital humano aquém do exigível e sérias dificuldades em certas empresas estatais a economia não avance com a rapidez que seria de esperar. As sucessivas quebras de eficácia em sectores-chave da vida do país designadamente nos transportes aéreos, segurança, justiça, saúde, educação, transportes marítimos, passam a impressão de que se atingiu um limiar preocupante que para não ser ultrapassado irá exigir outra atitude e outro comprometimento para se ter uma inflexão positiva no rumo que as coisas parecem estar a tomar.
Caso paradigmático do que está a passar é a questão à volta dos transportes marítimos inter-ilhas que tem dominado as conversações entre os armadores e governo. A realidade actual é que as ilhas padecem de um sistema de transporte marítimo que com regularidade, custos justos e segurança as liguem por forma a que o país deixe de ter o mercado fragmentado, imprevisível e dominado por ciclos de carências e abundâncias que na prática inviabilizam muita actividade económica ou deixam-na basicamente na condição de actividade de subsistência. De facto, sem um mercado interno unificado pelas verdadeiras auto-estradas ligando as ilhas que seria ter uma carreira regular a baixo custo não é possível potenciar para além da subsistência básica o pouco que ainda o país consegue produzir e movimentar para o mercado. Muito menos pensar em aproveitar-se da procura gerada pelo turismo em particular nas ilhas orientais para dar o salto para actividades económicas que realmente tragam rendimento significativo às famílias e sejam capaz de criar e garantir empregos em número suficiente para debelar o desemprego, há muito estrutural em Cabo Verde.
Como se pode constatar das queixas dos armadores e também dos utentes, é claro que uma primeira e grande dificuldade em ter transportes frequentes a custos razoáveis entre as ilhas está relacionado com o volume de mercadorias e de passageiros que o país consegue movimentar nas actuais circunstâncias. O mercado pequeno faz com que as ligações sejam infrequentes e caras. A falta de regularidade inibe a produção de mercadorias e prejudica o estabelecimento da relação de compra e venda que poderia hipoteticamente justificar maior frequência e custos mais baixos. Romper este círculo vicioso com subsídios, concessões de linha e eventualmente outros mecanismos, designadamente taxas e facilidades portuárias mais ajustadas devia há muito ser uma prioridade das políticas do país. Particularmente quando se está em presença de mercados potenciais em expansão rápida nas ilhas do Sal e da Boa Vista que bem podiam ser explorados se dado o empurrão inicial com sentido estratégico. O país precisa urgente que o turismo tenha cada vez maior capacidade de arrastar o resto da economia viabilizando mais iniciativas económicas, criando mais emprego e aumentando o rendimento disponível.

A consciência de que é preciso criar escala em termos de mercado, de volume de carga e de movimentação de passageiros, deve guiar a actuação das autoridades no seu esforço de aumentar rapidamente o impacto que o turismo tem sobre o resto da economia e também de diminuir as assimetrias regionais pela via da potenciação da capacidade produtiva de cada ilha. Dificilmente, porém, se conseguirá fazer isso se se continuar com o que é aparentemente a tendência actual de abrir completamente os portos da ilha do Sal e da Boa Vista ao tráfego internacional. A diminuição de carga na cabotagem que implicará com a chegada de contentores directamente do exterior certamente que não irá contribuir para o abaixamento do preço e aumento da regularidade do tráfego inter-ilhas. Os produtores nacionais terão sérias dificuldades em competir com fornecedores designadamente das Canárias que chegam directamente aos mercados turísticos dessas duas ilhas. Para o Estado, a consequência será manter indefinidamente subsídios para a cabotagem sob pena de ver aumentar ainda mais as assimetrias. Globalmente para a economia nacional significará menor participação da produção nacional, menos crescimento, mais migrações internas e desemprego persistente.
A realidade histórica do desenvolvimento económico não postula sucesso no desenvolvimento nos países que abriram completamente o seu mercado interno aos operadores estrangeiros deixando vulnerável o empresariado nacional. Em países com mercados pequenos a situação é mais complexa porque há situações em que há mercados imperfeitos e outras onde há falha completa do mercado e o Estado tem que intervir. No caso de Cabo Verde, a actuação do Estado devia pautar-se por uma actuação flexível e inteligente no sentido de ultrapassar as imperfeições do mercado, de ajudar na superação da fraqueza do empresariado local e de criar condições para o melhor aproveitamento das oportunidades. Infelizmente, não tem sido assim como bem testemunha o programa Casa para Todos e projectos similares. Às estratégias dos outros há que responder com uma estratégia própria que garanta a realização e sucesso do empresariado nacional nas condições restritivas do mercado existente no país.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 829 de 18 de Outubro de 2017.