Várias razões poderão explicar por que o debate
político, como se apresenta no parlamento, na comunicação social, nas
redes sociais e outros fóruns, ainda não é muito construtivo e tende
para o baixo nível resvalando demasiadas vezes para o primário com
insultos pessoais e ataques ad hominen.
Uma delas e talvez a mais importante é a separação não assumida entre auto-proclamados patriotas e os outros
que se insiste em manter e que contamina quase todo o discurso
político. Nas outras democracias o que separa as forças políticas é a
diferença esquerda/direita,
com a esquerda a privilegiar o princípio da igualdade sobre a
liberdade e um maior intervencionismo do Estado e com a direita a pôr
enfase na liberdade e a limitar a actuação do Estado ao papel de
regulador. Por isso, divergências entre os partidos não se traduzem em
antagonismos permanentes e irredutíveis. Encontra-se sempre espaço para
diálogo, compromissos e até se pode alcançar consensos sobre matérias
de importância estratégia para o país. Em Cabo Verde, pelo contrário,
vê-se o que acontece quando na disputa política se recorre directa ou
indirectamente a acusações de falta de patriotismo: o ambiente político é
quase a todo o tempo de crispação e dificilmente se consegue construir
acordos em matérias fundamentais.
Exemplos disso não faltam: Discussões sobre privatização de empresas que deveriam debruçar-se sobre a oportunidade de se eliminar riscos fiscais, atrair investimento directo estrangeiro e obter benefícios abrangentes para a economia facilmente degeneram em acusações de venda da terra. Medidas como as de supressão de vistos com o intuito de aumentar o fluxo turístico rapidamente são apontadas como uma espécie de capitulação perante a Europa colonialista. Iniciativas como as da assinatura do Acordo SOFA tomadas num quadro de cooperação para a segurança são tidas logo à partida como cedência de soberania. Tentativas de colmatar o défice do conhecimento pelos caboverdianos da língua portuguesa com acções de promoção da aprendizagem do português são vistas como diminuição do estatuto do crioulo. Até a atitude de Cabo Verde de simpaticamente acomodar a iniciativa das autoridades portuguesas de comemorar o Dia de Portugal com as suas comunidades residentes no país serviu para acusações de saudosismo. Muitos outros exemplos podiam ser encontrados em que o diálogo necessário para se discutir e resolver problemas é enviesado logo à partida e é sempre pela mesma razão. Alguns acham-se no direito de acusar, julgar e considerar ilegítimos ideias, iniciativas e posicionamentos dos outros estribando-se num suposto estatuto de nacionalistas que exclusivamente reivindicam para si próprios.
Vozes diversas lamentam a falta em Cabo Verde de uma sociedade civil activa, de uma academia interveniente e de uma imprensa de investigação. Mas a verdade é que não há como ter participação cívica desejada com a polarização existente de base em critérios tão emocionalmente carregados. Para qualquer pessoa, intelectual ou simples cidadão, participar no debate público significa em boa medida submeter-se a ser rotulado como pertencendo ou situando-se próximo de um dos campos. Manifestações de cidadãos são invariavelmente vistas como tendo motivações político-partidárias e até opiniões e notícias publicadas podem ser consideradas parte de alguma conspiração gerada nas sedes dos partidos. Nem toda gente está para isso. Não espanta pois que muitos optem por não se envolver na política ou em prosseguir investigação de cariz histórico e sócio cultural que mexa com o pensamento nacionalista prevalecente. Nem tão-pouco que se ache estranho que o conformismo e a falta de espírito crítico imperem mesmo em círculos como os universitários onde a liberdade intelectual, a criatividade e o espírito inovador seriam expectáveis.
Mário Vargas Llosa diz num texto seu sobre o movimento independentista da Catalunha que “só de maneira fugaz e conjuntural é que o nacionalismo é uma ideologia progressista”. Na maior parte do tempo é uma perversão ideológica que se alimenta “do temor ao diferente e ao novo e do medo e do ódio contra o outro”. Também George Orwell no seu célebre ensaio sobre o nacionalismo foi claro ao mostrar que o nacionalismo, diferentemente do patriotismo, é desejo de poder reforçado pela auto ilusão e que o propósito de todo o nacionalista é conseguir mais poder e prestígio não para si próprio mas para a entidade onde escolheu diluir a sua própria individualidade. Talvez seja esse desejo de poder que justifique que mesmo hoje nas vésperas do quadragésimo quarto aniversário do 5 de Julho de 1975, quando é mais que evidente que ninguém põe em causa a independência, há quem insista num discurso nacionalista, pretendendo-se vigilante contra supostos atentados à condição de país independente. Mas, como se viu atrás, isso não acontece sem consequências. Efeitos perversos estão presentes e constituem um enorme entrave ao desenvolvimento e ao processo de consolidação da democracia, na medida em que por um lado impedem políticas com alcance estratégico e por outro enfraquecem e descredibilizam as próprias instituições democráticas.
Inverter a situação não está aparentemente nos propósitos das forças políticas em presença como se pôde comprovar pela enésima vez na última sessão parlamentar. A postura belicista das diferentes bancadas não deixou espaço para uma discussão séria e elucidativa de matérias como a segurança, a educação e o futuro da gestão dos aeroportos. Feliz ou infelizmente os governos em Cabo Verde têm sempre beneficiados de uma maioria parlamentar sólida e a falta de diálogo não tem resultado em bloqueio da governação. Até agora tal eventualidade pôde ser contornada com a vontade da maioria mas não há garantia que será sempre assim em legislaturas futuras. Impõe-se pois ultrapassar este estado de coisas, que já fez o país perder muito tempo e recursos, e focalizar na construção do futuro. Porém, para isso, a política terá de deixar de ser irredutivelmente antagonística para se basear-se no respeito pelas diferenças e poder beneficiar da dinâmica gerada pelo exercício do contraditório em ambiente de pluralismo e de protecção das minorias.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 916 de 19 de Junho de 2019.
Exemplos disso não faltam: Discussões sobre privatização de empresas que deveriam debruçar-se sobre a oportunidade de se eliminar riscos fiscais, atrair investimento directo estrangeiro e obter benefícios abrangentes para a economia facilmente degeneram em acusações de venda da terra. Medidas como as de supressão de vistos com o intuito de aumentar o fluxo turístico rapidamente são apontadas como uma espécie de capitulação perante a Europa colonialista. Iniciativas como as da assinatura do Acordo SOFA tomadas num quadro de cooperação para a segurança são tidas logo à partida como cedência de soberania. Tentativas de colmatar o défice do conhecimento pelos caboverdianos da língua portuguesa com acções de promoção da aprendizagem do português são vistas como diminuição do estatuto do crioulo. Até a atitude de Cabo Verde de simpaticamente acomodar a iniciativa das autoridades portuguesas de comemorar o Dia de Portugal com as suas comunidades residentes no país serviu para acusações de saudosismo. Muitos outros exemplos podiam ser encontrados em que o diálogo necessário para se discutir e resolver problemas é enviesado logo à partida e é sempre pela mesma razão. Alguns acham-se no direito de acusar, julgar e considerar ilegítimos ideias, iniciativas e posicionamentos dos outros estribando-se num suposto estatuto de nacionalistas que exclusivamente reivindicam para si próprios.
Vozes diversas lamentam a falta em Cabo Verde de uma sociedade civil activa, de uma academia interveniente e de uma imprensa de investigação. Mas a verdade é que não há como ter participação cívica desejada com a polarização existente de base em critérios tão emocionalmente carregados. Para qualquer pessoa, intelectual ou simples cidadão, participar no debate público significa em boa medida submeter-se a ser rotulado como pertencendo ou situando-se próximo de um dos campos. Manifestações de cidadãos são invariavelmente vistas como tendo motivações político-partidárias e até opiniões e notícias publicadas podem ser consideradas parte de alguma conspiração gerada nas sedes dos partidos. Nem toda gente está para isso. Não espanta pois que muitos optem por não se envolver na política ou em prosseguir investigação de cariz histórico e sócio cultural que mexa com o pensamento nacionalista prevalecente. Nem tão-pouco que se ache estranho que o conformismo e a falta de espírito crítico imperem mesmo em círculos como os universitários onde a liberdade intelectual, a criatividade e o espírito inovador seriam expectáveis.
Mário Vargas Llosa diz num texto seu sobre o movimento independentista da Catalunha que “só de maneira fugaz e conjuntural é que o nacionalismo é uma ideologia progressista”. Na maior parte do tempo é uma perversão ideológica que se alimenta “do temor ao diferente e ao novo e do medo e do ódio contra o outro”. Também George Orwell no seu célebre ensaio sobre o nacionalismo foi claro ao mostrar que o nacionalismo, diferentemente do patriotismo, é desejo de poder reforçado pela auto ilusão e que o propósito de todo o nacionalista é conseguir mais poder e prestígio não para si próprio mas para a entidade onde escolheu diluir a sua própria individualidade. Talvez seja esse desejo de poder que justifique que mesmo hoje nas vésperas do quadragésimo quarto aniversário do 5 de Julho de 1975, quando é mais que evidente que ninguém põe em causa a independência, há quem insista num discurso nacionalista, pretendendo-se vigilante contra supostos atentados à condição de país independente. Mas, como se viu atrás, isso não acontece sem consequências. Efeitos perversos estão presentes e constituem um enorme entrave ao desenvolvimento e ao processo de consolidação da democracia, na medida em que por um lado impedem políticas com alcance estratégico e por outro enfraquecem e descredibilizam as próprias instituições democráticas.
Inverter a situação não está aparentemente nos propósitos das forças políticas em presença como se pôde comprovar pela enésima vez na última sessão parlamentar. A postura belicista das diferentes bancadas não deixou espaço para uma discussão séria e elucidativa de matérias como a segurança, a educação e o futuro da gestão dos aeroportos. Feliz ou infelizmente os governos em Cabo Verde têm sempre beneficiados de uma maioria parlamentar sólida e a falta de diálogo não tem resultado em bloqueio da governação. Até agora tal eventualidade pôde ser contornada com a vontade da maioria mas não há garantia que será sempre assim em legislaturas futuras. Impõe-se pois ultrapassar este estado de coisas, que já fez o país perder muito tempo e recursos, e focalizar na construção do futuro. Porém, para isso, a política terá de deixar de ser irredutivelmente antagonística para se basear-se no respeito pelas diferenças e poder beneficiar da dinâmica gerada pelo exercício do contraditório em ambiente de pluralismo e de protecção das minorias.
Humberto Cardoso