segunda-feira, março 04, 2019

Caboverdianidade sem complexos

Na semana passada, 21 de Fevereiro, celebrou-se mais um Dia da Língua Materna. Como de há muito acontece nessa data foi mais uma oportunidade para as opiniões se dividirem à volta do crioulo. Há quem insista na urgente oficialização do crioulo e há outros que perguntam qual é a pressa. O Presidente da República aconselha “a definição de regras claras para a sua escrita” e que isso seja feito “num espaço de tempo razoável”.
 O Governo através do Ministério da Cultura em comunicado diz que quer “prosseguir com a sua oficialização através da Constituição da República e por fim avançar com a padronização”. Acrescenta ainda que a “padronização é moroso e pode levar duas ou três gerações para que ela passe a ser assumida naturalmente pela sociedade”. A Constituição da República no nº2 do artigo 9º parece apontar num outro sentido ao determinar que “o Estado deve promover as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”. Supõe-se que já havendo reconhecimento do crioulo no texto constitucional trata-se é de dar o passo seguinte de também ser língua escrita o que só é possível depois da padronização. Destes aparentes desencontros em como proceder não é de estranhar que hajam dúvidas quanto às prioridades, que surjam agendas dos mais apressados para acelerar o processo e que se ouçam vozes a aconselhar prudência para que a questão não seja factor de divisão quando, como bem lembra o PR na sua mensagem, o crioulo é “um dos principais traços de união entre os caboverdianos”.
A enfase no discurso repetido todos os anos a propósito do Dia da Língua Materna tem sido posta na oficialização do crioulo como acto indispensável para a dignificação da língua. E aí é que começam as divergências, porque vê-se na relação do cabo-verdiano com a sua língua que ela não precisa ser oficializada para ter dignidade. Aliás, a relação que há séculos todos os cabo-verdianos independentemente da sua origem, posição socioeconómica e nível de educação têm com a sua língua materna, visível na forma como é expressa em todos os momentos da sua vida e em particular na sua música, não deixa entender que o seu uso é acompanhado de qualquer sentimento de inferioridade. Mesmo oficialmente ninguém se sente diminuído porque recorre ao crioulo para se comunicar no parlamento, ou enquanto membro do governo ou na qualidade de presidente da república, nem tão pouco quando trata com a administração pública e depõe nos tribunais. A diferença com a língua portuguesa é que a sua escrita ainda não está padronizada para que designadamente os documentos da administração pública e a comunicação oficial do Estado possam ser escritos nas duas línguas. Trazer a questão da dignidade quando não há uma relação de opressão e de subjugação – Cabo Verde é independente há mais de 43 anos – só contribui para pôr as duas línguas em rota de colisão. No processo criam-se anticorpos na aprendizagem do português com evidentes prejuízos para o esforço, essencial para o exercício pleno da cidadania, de tornar os caboverdianos fluentes nas duas línguas.
Reduzir problemas complexos à questão de dignidade é sempre útil para aqueles cujo objectivo central é reforçar a identidade das vítimas versus os opressores ou simplesmente a do “nós”contra os “outros”. Na época actual em que proliferam políticas identitárias e em que questões fracturantes trazem vantagens diversas a quem se apresenta como resistência face à opressão de toda espécie, seja real ou virtual, a tentação é grande para se enveredar por esse caminho. Quantas carreiras políticas e também noutras áreas não foram assim fabricadas supostamente para terminar a opressão, para dar força à resistência ou para restituir a dignidade. A verdade é que na generalidade dos casos o problema não é de facto resolvido mas as divisões na sociedade persistem e tendem a tornar-se extremas. As divisões e os desencontros por causa do crioulo não são de hoje e tudo leva a crer que vão se repetir e poderão aprofundar-se considerando os ventos de feição que hoje sopram em todo o mundo. Os seus efeitos em particular na aprendizagem da língua portuguesa e na qualidade do ensino em geral não deixarão de se fazer sentir. A exemplo de outras sociedades que se deixaram apanhar nesse tipo de armadilhas, o mais provável é que aumente a debandada dos com maiores posses para colocar os filhos em escolas privadas.
Cabo Verde não devia estar a confrontar-se com certo tipo de divisões culturais com que outras nações se deparam. A consciência da caboverdianidade vem de longe e é muito anterior à independência. É evidenciada na língua, na música, na literatura e em várias outras manifestações de cultura, mas opções várias de política terão levado a que não se aprofundasse o conhecimento do processo da emergência dessa consciência nacional. O estudo do passado ficou demasiado sujeito a conveniências várias. Curioso que dias atrás por ocasião do 70º aniversário do desastre da Assistência o historiador António Correia e Silva tenha chamado a atenção para o aparente esquecimento das fomes periódicas com milhares de mortes que assolaram o arquipélago durante séculos até a última fome de 1947. Parece que o país esteve demasiado tempo a entreter-se na consolidação de uma herança escravocrata enquanto as fomes que a sua literatura narra nas obras de Manuel Lopes, Baltasar Lopes, Luís Romano, Teixeira de Sousa e de muitos outros escritores e poetas ficavam num segundo plano. Talvez porque nas fomes as causas eram fundamentalmente as secas enquanto falar da escravatura permitia mais facilmente desenvolver uma cultura de vitimização mais conducente com a “escolha do destino africano” feito no acto de proclamação da independência de Cabo Verde.
Depois dessa “escolha”, o esforço de reafricanização dos espíritos que se seguiu só podia levar a divisões como a referida à volta do crioulo assim como ao aparecimento de outras linhas de fractura à medida que a história dos cinco séculos de existência era submetida a análises de conveniência e a procura de conformidade com a ideologia desses tempos e a racionalidades de poder. Para se distanciar o crioulo do português e fazer dele uma língua de resistência tinha-se que se deixar a escrita etimológica usado nos trabalhos de Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Ovídio Martins, Luís Romano e outros para adoptar o ALUPEC, como se a base lexical do crioulo não fosse quase toda ela de origem portuguesa. A crise identitária que se abriu com ofensivas em várias outras áreas para além da linguística deixaram feridas na sociedade que se podem descortinar nas disputas entre ilhas, em certos discursos políticos e na atribuição de valor ao património cultural prejudicando a coesão do país. Infelizmente, o processo erosivo continua porque as instituições do Estado em geral com destaque para o sistema educativo dão seguimento ao trabalho de outrora. O Estado democrático dá sinais de se ter mantido refém do passado e por isso as divisões na sociedade e a crise identitária aprofundam-se, enfraquecendo a vontade da nação, dificultando uma visão do todo nacional e deixando espaço para que lógicas identitárias das mais nocivas possam desenvolver. Há que reverter a situação e fazer da afirmação da caboverdianidade sem complexos a chave para um futuro de desenvolvimento.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 900 de 27 de Fevereiro de 2019.

segunda-feira, fevereiro 25, 2019

À procura de soluções que funcionem

Os transportes marítimos em Cabo Verde tiveram um novo desenvolvimento na semana passada. O governo assinou o contrato de concessão do serviço público com a empresa portuguesa Transinsular vencedora do concurso público lançado há um ano atrás.
 A concessão vai ser gerida pela nova empresa Cabo Verde Inter-Ilhas na qual a Transinsular vai ter 51% do capital social e nove armadores nacionais os restantes 49%. No quadro do acordo assinado, da actual frota o que estiver apto será integrado na nova empresa e os restantes navios serão vendidos ou abatidos. Quanto aos trabalhadores acontecerá algo análogo, sendo indemnizados com possível contribuição do Estado aqueles que não se ajustarem à nova oferta de trabalho. Com a mudança deixa-se de ter um sector marítimo tradicionalmente dinamizado por vários operadores privados para se ter essencialmente um grande operador cobrindo todo o arquipélago. No processo, alterações no que tem sido a economia do sistema, a sua localização, os seus agentes e fornecedores e as suas exigências em mão-de-obra vão eventualmente acabar por se verificar. Espera-se que já se tenha previsto o impacto delas e planeadas as vias para as amortecer.
Há décadas que os sucessivos governos andam à busca de soluções de transportes marítimos que permitissem ao país minimizar a sua condição arquipelágica e unificar o seu mercado interno. Soluções estatizantes, mistas ou só com operadores privados não resultaram em fornecer o serviço desejado ao nível de segurança, previsibilidade e frequência. A única rota, a de S. Vicente/Santo Antão, que sempre se conseguiu manter por si própria é a excepção que revela o que falta às outras. Não há carga nem número de passageiros suficientes para viabilizar a circulação entre todas as ilhas na frequência desejada. Vários factores contribuem para que seja assim, designadamente o facto de o país ter uma pequena população, o mar entre ilhas ter caracter oceânico e não encorajar viagens, a estrutura produtiva ser diminuta e os bens transaccionáveis perecíveis e em pequena quantidade. Para colmatar as insuficiências não faltaram intervenções do Estado seja de forma directa com embarcações, seja de forma indirecta com subsídios dados a privados para cobrir rotas com as de Fogo/Brava, Santiago/Maio e Santiago/Boa Vista. Segundo dados de um estudo do Banco Mundial, os subsídios chegaram a atingir valores de cerca de cem mil contos em 2010, não incluindo o subsídio concedido à Fast Ferry.
A verdade é que toda esta intervenção do Estado e a iniciativa e perseverança dos operadores privados têm-se mostrado incapaz de manter um serviço sustentável de transportes marítimos. A chamada à realidade aconteceu de forma dolorosa na sequência de desastres que envolveram encalhes sucessivos de navios, desaparecimentos inexplicáveis e afundamentos que culminaram na morte de passageiros e tripulantes resultantes da perda do navio Vicente. Era evidente que o sector dificilmente conseguia suportar-se respeitando o exigido pelos regulamentos em termos físicos, de recursos humanos e de segurança. Não ajudava em nada que os armadores além de se depararem com uma economia sem grande dinâmica de crescimento ainda tinham de lidar com ineficiências nos portos e taxas portuárias excessivas. Apesar das intenções manifestadas em unificar o mercado, as medidas políticas governamentais dirigidas ao sector não tinham a coerência nem se articulavam de forma a garantir a sua sustentabilidade e muito menos o investimento na sua renovação e modernização.
Foram então opções governamentais a vários níveis que na prática impediram que uma actividade económica bastante enraizada na história e uma clara vocação do país não pudesse ser potenciada e transformada numa fonte de riqueza nacional. A essa falha junta-se o subaproveitamento dos recursos da pesca para relembrar o quanto se perdeu na aposta num modelo de desenvolvimento que reforçou a dependência e o virar para dentro. Também o quanto se perdeu em não incentivar a iniciativa privada e em não abrir o país para investimento traduzido em capitais, know-how e mercados que lhe permitisse ultrapassar os constrangimentos de falta de escala, de escassez de recursos naturais e de distância dos grandes mercados. O resultado é mesmo quando chegou finalmente o turismo, movimentando anualmente centenas de milhares de pessoas, a estrutura económica do país nos vários sectores não tinha como aproveitar devidamente o que essa procura massiva de produtos e serviços podia proporcionar. Não havia estrutura produtiva adequada, nem canais de distribuição, standards de qualidade, nem transportes adequados para a servir com fiabilidade e de forma competitiva.
Agora o governo apresenta uma solução compreensiva para a questão dos transportes marítimos na espectativa que o resto irá fazer a sua parte na engrenagem que faz mover a economia. A solução encontrada tem custos e não despicientes para quem estava no sector. A questão é saber se de facto com os transportes resolvidos irá verificar-se um aumento significativo da produção de bens dirigidos ao global do mercado interno e ao mercado do turismo que justifique esses custos actuais e também os futuros se se tiver de continuar os subsídios por falta de suficiente carga e passageiros. O que aconteceu no sector dos transportes marítimos está-se a verificar noutros ou futuramente vai se fazer sentir em mais outros. É o que dá insistir em políticas que permitem a alguns a extracção de valor a seu favor, que facilitam a reprodução de um ambiente destrutivo de valor e não incentivam na economia a criação de valor. Todos ficam mais pobres. E soluções tardias, por si sós, podem não trazer a salvação esperada.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 899 de 20 de Fevereiro de 2019.

segunda-feira, fevereiro 18, 2019

Realizar o potencial da pesca

Na semana passada, dia 5 de Fevereiro, celebrou-se por todo o país o Dia do Pescador. Mais uma vez nas múltiplas cerimónias e encontros realizados foram invocados os recursos marinhos apreciáveis que supostamente o país tem na sua vasta zona económica exclusiva.
Também não se deixou de interrogar o quão extraordinário seria se fosse possível explorá-los. A realidade que os dados estatísticos teimam em demonstrar é que não se consegue ultrapassar as 15 mil toneladas de um potencial de 40 mil. As consequências da subexploração são diversas sendo uma delas a pobreza persistente entre os pescadores e as suas famílias, particularmente nas ilhas onde não podem complementar a pesca com outra actividade. Apesar do estado em que globalmente se encontra o sector, não é de minimizar a sua importância. Ocupa 5.000 pescadores e 3.000 peixeiras e são os produtos da pesca que perfazem mais de 80% das exportações do país, empregando cerca de 2.000 pessoas. O problema que se vem arrastando praticamente desde sempre é como dinamizar o sector para criar riqueza e ser fonte de rendimento crescente para as populações.
Um estudo do Banco Mundial (BM) datado de 2005 já deixava perceber que a gestão do sector das pescas sempre pecou pelo peso excessivo do Estado. O modelo estatizado, adoptado logo após a independência servindo-se da ajuda externa, procurou focar-se na construção de infraestruturas, na aquisição de embarcações e na criação de instituições de apoio, mas os resultados ficaram aquém dos perspectivados. Segundo o BM mais de 200 milhões de dólares da ajuda externa foram investidos de 1978 a 2004 e o que se verificou é que não se conseguiu crescimento no sector. Pelo contrário, caiu a captura relativamente ao que se verificava nos princípios dos anos 80. Paralelamente os rendimentos da população ligada à pesca estagnaram e em muitos casos diminuíram. A governação também falhou em não acautelar uma fiscalização adequada da zona económica exclusiva que pelo menos pudesse conter a delapidação dos recursos marinhos por entidades não autorizadas. A opção foi ter forças militares em terra e não equipar uma guarda costeira que efectivamente policiasse os mares.
O que se passou com as pescas, uma fonte potencial de criação riqueza em Cabo Verde, é a repetição do que se passa em outros sectores. O país tem poucos recursos naturais e periodicamente sofre calamidades naturais que diminuem ainda mais os existentes. Paradoxalmente por razões várias, mas em particular de liderança, não se chegou nunca a erigir como seu desígnio nacional a construção de uma base produtiva capaz de criar riqueza, de manter o país a crescer de forma sustentável e de propiciar emprego e rendimento para a sua população. Diz-se que é isso que se pretende, mas os meios escolhidos, os objectivos traçados e as prioridades seleccionadas demostram que, de facto, não é assim. A forma como o país foi conduzido ao longo dos anos alimentando-se da ajuda externa levou-o a acomodar-se na posição de dependência. Nesse sentido as instituições orientaram-se para maximizar o fluxo da ajuda externa. A cultura administrativa ligada à redistribuição dessa ajuda paulatinamente se sobrepôs e abafou outras possíveis culturas, sejam elas de produção ou de prestação de serviço. A nível individual das pessoas os incentivos existentes convidam à concorrência feroz pelos recursos disponibilizados, servindo-se de diversas vias entre as quais a partidária.
Em tal ambiente é muito difícil desenvolver a atitude indispensável para construir o presente e conquistar o futuro que se revela no espírito de cooperação, na necessária confiança e na vontade a nível individual e colectivo em cumprir leis e seguir regras. Não estranha pois que os referidos 200 milhões de ajuda externa investidos à razão de 7,5 milhões de dólares anuais durante 26 anos não deram os resultados pretendidos, nem tão pouco que outros muitos milhões que entraram no país pela via de doações e de empréstimos concessionais tenham ficado muito aquém dos objectivos propalados. É verdade que o país cresceu, que hoje é muito diferente do que foi há décadas passadas e que o rendimento global das pessoas aumentou. Porém, comparado com outros países em condições similares, os ganhos são menores, as vulnerabilidades são mais persistentes e o potencial para continuar a crescer, findo o grande período das ajudas, não é o mesmo. Acrescenta-se a isso o facto de, à sombra das ajudas globalmente dirigidas ao país, crescer uma elite abastada, uma espécie de classe média ligada ao Estado que as administrava e redistribuía, enquanto a população, por exemplo, ligada à pesca ficava em geral mais pobre. Repetia-se o que invariavelmente se vê em países que vivem de renda, seja ela recursos como petróleo e os minérios ricos, ou ajuda externa. A prosperidade de alguns tem um preço pago colectivamente na alta taxa de desemprego e na persistente vulnerabilidade de largas camadas da população.
A diferença entre os resultados de desenvolvimento obtidos por Cabo Verde comparativamente aos de países como Maurícias e Seicheles reside essencialmente no facto que em tempo próprio esses países souberam atrair investimento directo estrangeiro (IDE), investiram com seriedade numa educação de qualidade e adoptaram uma atitude favorável à construção de uma base produtiva geradora de riqueza. Em Cabo Verde, pelo contrário, a relação com o IDE tem sido mais passivo do que proactivo. Massificou-se a educação, mas não se apostou com seriedade na qualidade. E a atitude não mudou significativamente apesar dos evidentes ganhos do IDE, designadamente nas indústrias ligados ao pescado, que se traduziram no ano de 2018 em mais de 80% das exportações de bens e em cerca de 5.000 postos de trabalho directos e indirectos, e no sector do turismo que tem sido o motor do crescimento da economia nacional e gerador de milhares de empregos. Postos de trabalho esses designadamente nas conserveiras que poderão ficar em perigo se medidas atempadas na relação com a União Europeia não forem tomadas.
 país e as suas instituições acomodaram-se por demasiado tempo ao maná que vem do exterior. Mesmo perante a evidência do preço pago, isso custa mudar. Com as resistências instaladas, ano após ano vê-se que fica difícil melhorar a competitividade e a produtividade. Depois de décadas de investimentos na educação, o país ainda não acordou completamente para as consequências da deficiente qualidade do ensino. A hostilidade latente contra o investimento externo torna difícil amortecer atempadamente o seu impacto nas comunidades (Sal e Boa Vista) e melhor aproveitar as oportunidades criadas. A insistência na vitimização que justifica e até torna respeitável às pessoas viver na dependência dos outros constitui um travão ao desenvolvimento da atitude certa para o desenvolvimento. A atitude que promove a confiança, o civismo e o cosmopolitismo essenciais para enfrentar e lidar com o mundo de forma proveitosa. A atitude que por trazer crescimento sustentável fará os pescadores e seus familiares mais felizes em futuras celebrações do Dia do Pescador.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 898 de 13 de Fevereiro de 2019.

segunda-feira, fevereiro 11, 2019

Trocar o “fácil” pelo estratégico

Várias acções do Governo nos últimos tempos, designadamente a publicação da carta de política de Mobilidade Eléctrica no BO, os benefícios inscritos no Orçamento de 2019 para facilitar financiamentos no sector das renováveis, a introdução de lâmpadas LED na iluminação pública e a utilização do Fuel 380 na produção de energia na Praia têm demonstrado uma atenção crescente sobre a questão energética no país.
Não é simples coincidência que também em todo o mundo se fala com preocupação das alterações climáticas, da descarbonização da economia, de se apostar nas energias renováveis e da necessidade de mais eficiência energética. Está-se a ir com o que o resto do globo, em particular depois dos Acordos de Paris, de 2015, onde houve um comprometimento quase unânime de se tomar medidas de contenção das alterações climáticas. A questão que se coloca é como o país está a encarar a sua posição nesta matéria: se é para fazer como no passado e simplesmente aproveitar-se dos projectos e dos recursos disponibilizados sem preocupação real com os resultados e com a sustentabilidade dos mesmos. Ou se vê o momento como oportunidade para uma viragem séria numa questão fundamental como é a energia, a sua disponibilidade e qualidade, o seu custo para as famílias e para as empresas e o impacto que a reestruturação do sector poderá ter directa e indirectamente na criação de novos empregos.
De facto, não é novidade ver o governo abraçar projectos dirigidos para o aproveitamento de energias renováveis, para poupança de energia ou para formação de pessoas no sector. O problema é se os objectivos proclamados são atingidos e se o potencial que o investimento supostamente cria é desenvolvido e consegue produzir frutos permanentes. É sabido de há muito que, neste como em outros sectores, Cabo Verde é em boa medida um cemitério de projectos. Percorrendo as ilhas encontra-se por todo o lado maquinarias, oficinas, laboratórios, instalações vazias e equipamentos diversos adquiridos no âmbito de projectos, mas que findo os mesmos ficaram subaproveitados ou simplesmente passaram a acumular poeira. O desperdício não fica por aí. Também se verifica nas formações feitas com a agravante de se tratar de pessoas que já tinham legitimamente criado expectativas.
Compreende-se que tenha sido assim ao longo dos tempos. A lógica de reciclagem de ajuda externa leva a estas situações. Quem a gere fixa-se nos meios e tende a dar como cumpridos os objectivos se os meios forem propiciados. É evidente que daí resultam frustrações sucessivas das pessoas beneficiárias e baixo retorno dos investimentos realizados. O problema são os países que se deixam apanhar nessa lógica e em geral dão a aparência de conviver muito bem com esse modelo. Também há quem beneficie e muito com isso. Invariavelmente cria-se uma elite abastada à volta do Estado enquanto um desemprego “estrutural” teimosamente perdura, mantendo vulneráveis segmentos da população, curiosamente a população alvo dos projectos.
Uma outra consequência indesejável de se deixar projectos de doadores ou de parceiros passar por políticas públicas são os custos elevados que todos acabam por arcar directamente nos preços de bens e serviços fornecidos ou indirectamente através de impostos que depois os vão subsidiar. A energia e a água, por exemplo, são demasiado caras em Cabo Verde. O custo destes factores além de constituírem um peso nos rendimentos das pessoas são um ainda maior obstáculo ao desenvolvimento de negócios e contribuem para manter baixa a competitividade dos bens e serviços cabo-verdianos. Opções em grande parte motivadas por questões ideológicas impediram que uma gestão racional do sector fosse feita e investimentos essenciais tivessem acontecido nos momentos certos. O improviso, a incerteza e a imposição de soluções desadequadas contribuíram para que o país hoje tenha dos custos mais elevados de energia e água. Entrementes, esses dois bens essenciais por pressão de doadores passaram a ser fornecidos por empresas separadas mas não é líquido que globalmente se vá beneficiar com isso. Conseguem-se financiamentos para as renováveis, mas ainda não se sentem os efeitos no custo da energia. Por outro lado, as mesmas renováveis abrem a possibilidade de descentralização da produção de energia e mesmo de água, mas aparentemente ignora-se isso. Não se concilia o facto com a opção pelas “centrais únicas” que realmente têm ganhos de escala na produção, mas apresentam custos quase proibitivos no transporte e na distribuição num território com a orografia e a dispersão da população existente nas ilhas.
Agora envereda-se pelos carros eléctricos. Até já se definiram benefícios fiscais para quem os compra e já há postos de recarga disponíveis. Mas para além do óbvio que é o acesso imediato aos muitos fundos de apoio internacional que vão surgindo em nome das alterações climáticas não é claro o que realmente se pretende e porque é prioritário. Compreende-se que países com indústria automóvel e capacidade de inovação na produção de baterias, aerogeradores, painéis solares e inteligência artificial se tenham apressado a definir etapas para melhor se posicionarem no desenvolvimento de tecnologias do futuro e dominarem os mercados nacionais e globais. Não é porém o caso de Cabo Verde onde nem a poluição é pretexto para se apressar uma transição para veículos limpos ou onde a perspectiva de vender “créditos de carbono” pode revelar-se interessante. Até acção em contrário os carros deverão ser movidos pela electricidade produzida por combustíveis fósseis. Para que não se continue a agir simplesmente por impulsos de doadores impõe-se que o país tenha a sua política própria e saiba negociar com os parceiros e conciliar interesses nacionais com eventuais interesses que manifestem.
É evidente que Cabo Verde tem as melhores condições para exploração de energias renováveis como a solar e a eólica. Seria de maior importância que o país definisse políticas claras de expansão do aproveitamento dessas fontes de energia pelas famílias, empresas e instituições no quadro de um esforço global de abaixamento dos custos de energia e água. A pequenez do país, a fragmentação em ilhas e a dispersão da população deviam ser incentivos poderosos para se encontrar formas inovadoras de fazer chegar a todos energia barata. Também a busca incessante para encontrar empregos de qualidade e sustentáveis para os jovens e para a população em geral devia ser o maior incentivo para se fazer promover a expansão das renováveis. Neste domínio, paradigmático é o exemplo da Califórnia e também de outros países que pela via legislativa e regulamentar criaram mercados para as renováveis que depois se traduziram em empregos designadamente na instalação e manutenção de equipamentos, em assessoria em matéria de eficiência energética e em poupanças significativas para todos. No caso de Cabo Verde elas poderiam incluir os consumidores com contas menos pesadas, a Electra com menos pressa em fazer novos investimentos e o país com menos importação de combustíveis fósseis. Desenvolver políticas estratégicas é essencial para, a prazo, se baixar os custos, conseguir retorno adequado dos investimentos, criar empregos e almejar melhor qualidade de vida.


Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 897 de 6 de Fevereiro de 2019.

segunda-feira, fevereiro 04, 2019

O Espectro do populismo

Ninguém já duvida que o panorama político mundial está a alterar-se. Mudanças acontecem por todo lado, mas nas democracias notam-se melhor porque são mais visíveis e têm maior impacto.
 O mundo olha fascinado e ao mesmo tempo apreensivo para o que se passa nos Estados Unidos, no Reino Unido e na França. Também em outros países como Itália, Hungria e o Brasil, cada um à sua maneira, a dinâmica de certas forças postas em movimento aumenta as incertezas do mundo actual. O mesmo se verifica na Espanha onde há muito muito dividiram o espaço político que anteriormente era dominado por duas forças políticas e em Portugal, onde recentemente no caso do Bairro da Jamaica deram sinais de estar a emergir. Cabo Verde não fica fora desse “filme” que está a desenrolar-se aos olhos de todos. As últimas manifestações de jovens em vários municípios da ilha de Santiago e anteriormente dos Sokols em S. Vicente sugere que algo está a mover-se. E se o que se passa noutras partes sinaliza o que pode vir a acontecer aqui é bom que os actores políticos e a sociedade se acautelem em relação às consequências de certas derivas.
De facto, não se pode pensar que Cabo Verde esteja “blindado” contra esses fenómenos. Há quase 30 anos, em 1989, não ficou imune aos efeitos da derrocada dos países comunistas na Europa de Leste e dos partidos de inspiração leninista no resto do mundo. Depois da visita a 26 de Janeiro de 1990 do papa polaco João Paulo II que tanto contribuiu para essa derrocada também o país se pôs em movimento. Menos de um ano depois terminou o regime do partido único e os caboverdianos viram-se em Liberdade e na Democracia. Se agora está-se perante ao que alguns estudiosos chamam de recessão da democracia não é de estranhar que os seus efeitos perniciosos tarde ou cedo se façam sentir. É, por exemplo, de esperar que também aqui se manifeste a tendência notada lá fora da perda de influência dos grandes partidos, do reforço de forças extremistas e do descrédito das instituições. Ou então que aumente a polarização social e política em detrimento do pluralismo, que o diálogo seja substituído por manifestações de indignação e de ressentimentos e que a tolerância ceda lugar a sentimentos de exclusão por razões políticas e outras. Aliás, tudo isso de uma forma ou outra já está presente. Falta é aparecer novos actores, novas forças políticas e novas formas de agir e participar na esfera pública. Mas sente-se que isso também já está na forja e que é uma questão de tempo e de oportunidade para darem sinal da sua graça. As três eleições, uma atrás da outra que se vão realizar em 2020 e 2021 poderão vir a ser esse momento.
Vários factores contribuíram para a actual recessão democrática nas democracias europeias e norte-americana. Destacam-se entre eles a crise económica financeira de 2007/2008, os efeitos da globalização no mercado de trabalho, o aumento da desigualdade social e a percepção de que os governos nacionais se mostram quase impotentes aos ditames de instituições supra nacionais e ao poder económico e financeiro das multinacionais. Sobre essa base de descontentamento acenderam-se paixões de base nacionalista e xenófoba recorrendo ao fenómeno das migrações, ao relativo insucesso das políticas do multiculturalismo e às ameaças do terrorismo. Daí foi um passo para que o medo, a indignação e o ressentimento instigados passassem a ser os propulsores utilizados por demagogos e populistas para se instalarem na esfera pública e em vários casos a ganhar eleições, a ocupar o espaço dos grandes partidos e a constituírem-se em verdadeiras alternativas de governação. Muitos eleitores por não se sentirem representados nos partidos tradicionais e por falta de confiança nos seus governos optaram por apoiar extremistas e demagogos seduzidos pelas promessas de soluções fáceis e rápidas para problemas complexos do país e da sociedade.
No caso de países como Cabo Verde o desencanto com a democracia pode também vir do facto de os cidadãos e eleitores não se reverem nos partidos do arco da governação. Tendem a manter um estado de permanente crispação política impedindo o debate e dificultando muitas vezes que iniciativas positivas sejam tentadas ou continuadas. No mesmo sentido vai a adopção generalizada pelos poderes eleitos de um modus operandi em que se está em campanha permanente e em que se submete-se as pessoas a múltiplas visitas e auscultações que depois não são seguidas de resultados imediatos. Acresce-se a isso o recurso sistemático no discurso político a figuras de vitimização, de descriminação e abandono para justificar a situação das pessoas. Com isso reproduzem-se relações de dependência na relação entre o político e o eleitor/cidadão que deixa as pessoas susceptível a demagogos e populistas, precisamente porque é uma relação que só faz crescer frustração e ressentimento.
Também não ajuda que políticas apresentadas como estratégicas para o país como a educação e formação, regionalização e inserção na economia mundial com o turismo, investimento directo estrangeiro e exportações depois não recebam tratamento prioritário em recursos, atenção de governantes e disponibilidade da administração pública e seus agentes. Quem disso se queixa são principalmente os jovens que ressentem-se da qualidade do ensino, essencial para a produtividade e competitividade do país, sacrificada pela opção em massificar até o ensino universitário. São os mesmos que não vêm a economia a criar postos de trabalho em número e qualidade porque os governantes não conseguem focar-se na atracção de investimento externo que, como mostram os dados recentes do INE, permitem ao país exportar, fazer do turismo o motor da economia e empregar milhares de pessoas. Ainda são os mesmos que ficam perplexos quando vêm o Cardeal Dom Arlindo Furtado expor com simplicidade as fragilidades óbvias da política de regionalização que tanta atenção tem requerido do governo nos últimos anos.
A verdade é que a situação actual do país em que já não é mais possível manter-se o modelo da reciclagem de ajudas externas, em que a dívida pública também já não permite que se contraia grandes créditos para investimentos públicos e em que a economia ainda não cresce o suficiente para as pessoas verem o futuro com algum optimismo pode vir a revelar-se perigosa. Há que encontrar uma saída e há que preparar o país e a suas gentes para o enorme desafio que é o desenvolvimento sob pena de, num futuro próximo, as populações virem a ser seduzidas por algum demagogo ou populista. E a tragédia da Venezuela está aí para relembrar o que invariavelmente resulta dos exercícios de populismo, quando os povos se deixam tentar por caminhos pretensamente fáceis.


Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 896 de 30 de Janeiro de 2019.

segunda-feira, janeiro 28, 2019

Avisos que vêm de longe

O FMI, no World Economic Outlook, publicado no dia 21 de Janeiro reviu em baixa o crescimento da economia mundial para o ano de 2019 e 2020. Como disse a presidente Christine Lagarde na apresentação desses dados ainda não se pode falar de uma recessão mundial, mas o risco de um declínio no crescimento económico global claramente aumentou. Vários factores contribuem para isso entre os quais se destacam a guerra comercial que opõe os Estados Unidos da América à China, a baixa na taxa de crescimento da China para valores (6,6 % do PIB) não vistos nos últimos 28 anos e a volatilidade dos mercados financeiros que já aumentou os custos de acesso ao capital.
 O quadro poderá revelar-se ainda pior para a Europa se a tendência actual de travagem do ritmo de crescimento se agravar com as incertezas geradas pelo Brexit, as tensões sobre o Euro vindas da Itália e a persistência da instabilidade na França. Considerando a proximidade da economia nacional à Europa, não é difícil adivinhar as consequências para Cabo Verde de uma conjuntura globalmente menos promissora e particularmente má para os países europeus de onde partem os fluxos que alimentam o turismo nacional.
A economia cabo-verdiana entrou numa trajectória de crescimento desde o último trimestre de 2015 atingindo taxas de crescimento do PIB de 4,7 % em 2016, 4,0 em 2017 e prevê-se 4,5 em 2018. O crescimento dos últimos anos apesar de contrariar as taxas à volta de 1,5% dos anos anteriores ainda não atingiu o mínimo de 7% desejável para colocar o país no caminho do desenvolvimento com impacto geral sobre o emprego, os rendimentos e a qualidade de vida dos caboverdianos. A conjuntura económica global e em particular da Europa tem sido favorável e já propiciou aumento nas exportações de bens e serviços e também no turismo que se tem revelado o principal motor de crescimento. A perspectiva do advento de tempos menos bons deve aumentar o nível de alerta de todos e em particular dos governantes quanto à urgência das reformas para elevar o potencial de crescimento, melhorar a competitividade e aumentar a produtividade. Christine Lagarde aconselha que face à conjuntura pouco favorável se aumente a resiliência aos choques externos com reformas, com uma gestão mais criteriosa dos recursos públicos e com investimentos dirigidos para mais crescimento. Insiste também na necessidade de maior inclusão para melhor se aproveitar as promessas da revolução digital em curso no mundo inteiro. A pertinência desses conselhos para Cabo Verde é por demais evidente.
Mais um ano de seca veio relembrar as vulnerabilidades do país e a precariedade da vida das populações nas zonas rurais. A insistência por demasiados anos num modelo económico que favorecia a reciclagem da ajuda externa e praticamente hostilizava a iniciativa privada, a atracção do investimento externo e a promoção do turismo não podia deixar de ter graves consequências. Perpetuou situações de pobreza e desesperança em vários pontos do país. E não se verificou a transformação da economia que deveria, por um lado, conduzir a uma agricultura mais produtiva, fornecedora de produtos de maior valor acrescentado e ligada a mercados, e, por outro, dirigir um número cada vez maior de pessoas para os sectores de maior produtividade na indústria e serviços.
O problema é que mesmo hoje não parece que, como colectivo, se tenha real consciência das consequências das opções do passado. Continua-se a querer mobilizar mais água sem que se explicite que agricultura praticar e que mercados atingir. Quer-se desenvolver o turismo e ao mesmo tempo fixar as populações no mundo rural. Entrementes as migrações acontecem porque o emprego está onde há investimento externo e desastres urbanos como as barracas acontecem e as pessoas sofrem porque, em matéria de políticas públicas, as prioridades estão trocadas. Promovem-se panaceias em workshops, fóruns e conferências para dar ideia de que algo vai mudar quando, de facto, as coisas continuam praticamente o mesmo. Mexe-se no lado da oferta porque é politicamente mais fácil e conveniente – os anúncios de milhões, as linhas de crédito abertas, as obras financiadas por doações e empréstimos concessionais – mas falha-se em antecipar que os mercados precisam ser desenvolvidos, regulados e às vezes complementados com intervenção pública estratégica. Demonstra-se que, apesar das promessas reiteradas de mudança, a administração pública continua a se fixar nos processos sem preocupação com os resultados e com o nível de serviço prestado ao cidadão e ao utente. Teima-se em não explorar a flexibilidade que abordagens diferentes em relação às ilhas poderiam propiciar na procura de vias para melhor ligar o país à economia mundial. E também em experimentar formulas outras de administrar o território que não repetissem a cultura centralizadora e burocratizada predominante. Pelo contrário, propõe-se que se aplique de Santo Antão à Brava a forma encontrada para a regionalização, sem se importar com as especificidades das ilhas.
A rigidez na implementação de políticas, consequência do modelo económico rentista e também de um certo tipo de exercício de poder que quando forçado a escolher entre “desenvolver” e “controlar” sempre optava por “controlar”, só podia fazer de Cabo Verde um país de oportunidades perdidas. Mesmo perante a realidade da perda progressiva da ajuda externa, a tendência foi agarrar-se a sucedâneos. As negociações na concretização de investimentos na Boa Vista e no Sal nem sempre foram devidamente prepa­radas. O resultado é que os investimentos públicos avultados exigíveis não se mostraram suficientes e muita carga para se manter o destino competitivo teve que ser arcada pelas pessoas vindas das outras ilhas que depois se deparavam com problemas não resolvidos de habitação, de sanidade pública, de saúde e de segurança e com preços inflacionados. Não estranha que com esta atitude também não houvesse muita preocupação em assegurar que o turismo tivesse um real efeito de arrastamento sobre o resto da economia nacional.
De 2001 a 2016 a ilha de São Vicente só beneficiou de 3% de todo o investimento directo estrangeiro chegado a Cabo Verde. Este facto é elucidativo do descaso das autoridades sobre a economia da ilha e também do país. Em São Vicente o Estado não precisa fazer tanto investimento público para acomodar investimento privado. Já existe em energia, água, rede de esgoto, porto e aeroporto e o défice do parque habitacional não é tão grande como noutras ilhas. População não falta e facilmente pode absorver trabalhadores vindos de outras ilhas. Outrossim, o efeito de arrastamento na economia local, na economia das ilhas vizinhas e no conjunto da economia nacional é mais facilmente conseguido do que em qualquer outro sítio. Com a participação no PIB nacional a diminuir – 15,9% em 2015 e 14,8 % em 2016 segundo os dados do INE – pergunta-se por que então não se fizeram esforços necessários de atracção de investimento para a ilha que beneficiaria extraordinariamente todo o país. Provavelmente falta de visão. Talvez as nuvens escuras que pairam sobre a economia mundial, os avisos de Christine Lagarde e as secas repetidas contribuam desta vez para finalmente se focar no que urgentemente se deve fazer para pôr o país no caminho que o leve ao desenvolvimento, reduza a vulnerabilidade das pessoas e propicie um futuro para todos.


Humberto Cardoso



Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 895 de 23 de Janeiro de 2019.

segunda-feira, janeiro 21, 2019

Memória não é história

Todos os anos com o feriado nacional de 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, o discurso político no país divide-se. De um lado agressivamente posicionam-se os que aproveitam o evento para realçar a importância da independência sobre todo o resto. Do outro lado, ficam os que numa postura às vezes quase defensiva procuram mostrar o quanto a liberdade e a democracia são essenciais para afirmação do princípio constitucional de respeito pela dignidade da pessoa humana. Desde 2017, quando o Dia da Liberdade e da Democracia passou a ser celebrado com uma sessão solene da Assembleia Nacional, tornou-se mais visível o confronto sobre qual deve prevalecer: independência ou dignidade da pessoa humana. Na sessão solene deste ano o líder parlamentar do PAICV na sua intervenção deixou claro que não devia haver dúvidas. Os caboverdianos foram informados por ele que o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, foi praticamente uma dádiva dos que “trouxeram” a independência e governaram sozinhos durante quinze anos até que o povo ganhasse “maturidade” e pudesse autogovernar-se.
O confronto anual não fica porém só pelo 13 de Janeiro. Como o feriado dos heróis nacionais é no dia 20 de Janeiro proliferam actividades durante toda a semana que centradas na figura mítica de Amílcar Cabral na prática em nada diferem do que acontecia antes da implantação da democracia. Assim, nas escolas e em conferências e palestras promove-se a historiografia da luta de libertação na Guiné com os mesmos elementos e pressupostos que sempre constaram da propaganda oficial do PAIGC. As forças armadas celebram com pompa e circunstância o seu aniversário a 15 de Janeiro que, referenciando-se a uma data anterior à própria independência do país, revela-se de facto como pretexto para homenagear o grupo de dirigentes que manteve o país preso num regime ditatorial. Aliás, foram eles próprios que instituíram a data. Também como o 20 de Janeiro é dia da nacionalidade reafirma-se Amílcar Cabral como fundador da nacionalidade num país em há mais de um século já se tinha plena consciência da nação como é bastamente provada pela literatura e música cabo-verdianas e várias fontes externas.
Tanta incongruência não pode deixar de gerar conflitos. Mesmo que não se faça a apologia do partido único como o regime ideal para Cabo Verde neste momento, ao insistir em manter viva a ideologia a ele subjacente, não se está de facto perante a sua rejeição. Procura-se apresentar o regime como uma etapa necessária talvez para se conseguir a “maturação” de que fala o líder do grupo parlamentar do PAICV na sua intervenção. No processo dilui-se a incompatibilidade ideológica com os princípios da democracia liberal, com perda evidente para o exercício da cidadania e concomitante descaso com a defesa da democracia. Ao mesmo tempo no subconsciente colectivo reforça-se a gratidão para com os que primeiro “trouxeram” a independência e quando chegou o tempo próprio “brindaram ” o povo com a democracia.
É claro que tudo isso é possível porque não há verdadeiramente muitos estudos históricos sobre o Cabo Verde independente. Aparentemente o interesse oficial tem privilegiado estudos sobre a escravatura e manifestações de resistência contra o poder colonial e até a busca de quilombos escondidos no interior das ilhas. A preferência reflecte a preocupação com o reforço da historiografia oficial da luta pela independência. Já para compreender a história recente todos os anos na chamada semana da república não poucas vezes convidam-se antigos dirigentes do regime a partilhar as suas memórias em palestras dirigidas a estudantes nos liceus e escolas e em conferências por todo o país. Mas a verdade é que a memória não é história principalmente quando não é memória pluralista. A objectividade dos factos, do contexto e das circunstâncias é sempre prejudicada no relato de memórias cuja motivação principal é justificar acções passadas e defender a legitimidade de um regime, hoje universalmente rejeitado e visto como contrário à liberdade e um entrave ao desenvolvimento.
A situação mantém-se 28 anos após o 13 de Janeiro e a adopção da Constituição de 1992 só porque, como diria Gramsci, a guerra ideológica não foi ganha pelo novo regime democrático. O núcleo essencial da ideologia do regime anterior mantém-se dominante e é defendido e reproduzido pelas instituições do Estado, pelo sistema educativo e propagado pelos órgãos públicos da comunicação social. Por isso até agora não houve desculpas do Estado nem reparações para as vítimas do partido único enquanto até há pouco tempo se via ainda crescer o número de “combatentes” da independência que do Estado queriam compensação. E rituais do Estado como a deposição de flores na estátua de Amílcar Cabral foram instituídos sem o respaldo da lei aprovada no parlamento como é prática nas democracias. Também alterações na lei militar consagrou antigos dirigentes em posições cimeiras, em total desacordo com as tradições republicanas. Para todos o protagonismo dos antigos dirigentes na defesa do seu legado ideológico é visível e muito presente e conta com o total apoio dos órgãos de soberania.
Não se pode nestas circunstâncias estranhar que a crispação política e a excessiva partidarização ainda sejam a norma no país apesar de serem deploradas aparentemente por todos. Resultam em grande parte do conflito inevitável de se ter uma democracia permeada por uma ideologia que justificou uma ditadura. Em face de qualquer contestação a este estado de coisas o consenso entre os dois maiores partidos sobre a democracia liberal e constitucional, essencial para se manter vivo e construtivo a dinâmica democrática desaparece e em seu lugar gera-se desconfiança. Daí é só um passo para no exercício do contraditório se proceder a deslegitimação das posições do outro. Com isso quantas vezes se deixou de reflectir e decidir sobre os problemas do país só porque se tem de salvaguardar os protagonistas de ontem e as suas opções de política.
A via para se ver livre desta situação passa por expurgar das instituições do Estado essa ideologia e obriga-las a cumprir a lei e a se abster de impor “ideologias, correntes filosóficas ou estéticas” particularmente aos mais jovens. É o que determina a Constituição e os órgãos de soberania e os seus titulares têm especial responsabilidade em fazer com que seja cumprida. Não se pode esquecer que se celebra o 13 de Janeiro justamente para renovar e reforçar o compromisso de todos com os princípios e valores da Liberdade e da Democracia que estão plasmados na Constituição de 1992.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 894 de16 de Janeiro de 2019.

segunda-feira, janeiro 14, 2019

Populismo não é solução

O populismo é no início deste ano de 2019 a grande preocupação nas democracias tanto novas como consolidadas. Uma das razões é o facto de – na sequência das suas irrupções no espaço público, emblematicamente verificadas no Reino Unido com o Brexit, na América com eleição de Trump e também na Itália em 2018 – se ter tornado notório que o populismo apesar das suas promessas não traz soluções. Vê-se, por exemplo, no desorientamento gerado pelo processo da saída da Grã-Bretanha da União Europeia, ou então no caos que a administração Trump tem criado nos Estados Unidos e na arena internacional e no desnorte que se vive na Itália.
Onde, porém, se mostra mais pernicioso é na forma como mina a democracia representativa, desacredita o parlamento e a classe política, fragiliza o sistema partidário até ao ponto de quase colapso dos partidos tradicionais em alguns casos (França, Itália, Grécia) e abre caminho a soluções políticas autocráticas. Curiosamente isso acontece trinta anos depois do que para todos parecia imparável a vaga democrática que se iniciara com as movimentações populares na Europa de Leste ao longo de todo o ano de 1989 e que culminou com a queda do Muro de Berlim e no derrube do comunismo e de ditaduras de partido único em todo o mundo.
Na época o politólogo Francis Fukuyama até prognosticou um Fim da História no qual a democracia liberal ganharia ascendência universal sobre todos os outros regimes políticos. Hoje sabe-se que não foi assim e que regimes autocráticos em directa competição com as democracias mostraram possuir vitalidade inesperada para crescer e ganhar peso económico a ponto de poder rivalizar em influência política com as potências ocidentais nos diferentes continentes, em particular na África. Como seria de esperar nem sempre o resultado das rivalidades nascentes se mostrou benigno. Pelo contrário, o mundo acabou por se tornar um lugar mais perigoso de viver à medida que todos se acotovelavam para criar ou para manter o seu espaço de influência. Nota-se isso no aumento das tensões geopolíticas ligado a protagonismos de cariz populista e nacionalista dos estados e de entidades sub-estatais. Sente-se no impacto das incertezas no plano económico global criadas pela guerra comercial das grandes potências. Também constata-se no cansaço democrático e na incapacidade em inflectir a tendência de crescente desigualdade social nos países desenvolvidos e em confrontar o problema das migrações internacionais cujo potencial de destabilização é conhecido. Tudo isso concorre para que a democracia liberal não seja o íman todo-poderoso que todos almejaram quando no fim da guerra fria parecia agregar todos.
A democracia cabo-verdiana também é tributária dessa terceira vaga que trinta anos atrás tinha varrido regimes totalitários e autocráticos em todos os continentes. No próximo domingo, 13 de Janeiro, vai-se comemorar os 28 anos do dia que em Liberdade e num ambiente de pluralismo pela primeira vez o povo cabo-verdiano pôde exercer o seu poder soberano para escolher os seus governantes. Uma forma de o fazer é aproveitar a data para avaliar o estado da nossa democracia que tanto custou a conquistar e que certamente também tem sido afectada pelas pulsões e derivas populistas às vezes de forma subtil outras vezes de forma clara. Vários sinais como, por exemplo, as tentativas de minimização do parlamento, os ataques aos partidos políticos, a fragilização das instituições em geral e o extremar dos discursos com consequente degradação do debate político, recurso a promessas demagógicas, e negação do adversário deixam entender que os efeitos do populismo já se se fazem sentir com força no meio político e social cabo-verdiano. E não é porque o sistema partidário continua formalmente o mesmo que garante que ainda não foi penetrado pelas tácticas e ideologia populistas. Aliás, o facto dos sintomas já se manifestarem na postura das instituições, na actuação de elementos da classe política e mesmo em movimentos inorgânicos que aqui e acolá vão surgindo à procura de causas para um activismo mais robusto é revelador já do impacto causado pelo populismo na vida nacional.
Nos tempos de hoje dificilmente a sociedade e os indivíduos vão poder escapar à influência populista que grassa pelo mundo. O empoderamento dos indivíduos via redes sociais acessíveis a todos assim como a sua manipulação por algoritmos dessas mesmas redes que os induzem a agrupar-se numa base identitária que os opõe a outros na base de raça, etnia, religião, preferência política, etc., tem pelo menos dois efeitos devastadores: primeiro, extrema posições e eleva o nível de crispação dos discursos com perda significativa e crescente para a importância que se dá aos factos, à procura da verdade e à exigência de honestidade na tomada de posições. Segundo, o acesso aparente a todos via rede social cria a falsa ideia de se ser ouvido, de estar a participar e de uma proximidade a governantes que lhe pode dar uma satisfação mesmo que ilusória e efémera que dificilmente vai encontrar num quadro de funcionamento normal da democracia representativa.
Ninguém vai poder evitar os males causados à cidadania e à participação política provocados pela utilização de certas tecnologias que tendem a exacerbar as piores tendências nas pessoas. O tempo, a educação no uso e possivelmente a regulação da internet vão um dia conseguir isso. Até lá é fundamental que se dê atenção às instituições democráticas, às suas normas e às regras de funcionamento. A desilusão de muitos com o sistema político não é uma simples produção das redes sociais ou resultado da má influência de alguns demagogos isolados. A classe política em geral e várias lideranças nos partidos tradicionais têm contribuído para isso. Infelizmente demasiados têm caído na tentação de cavalgar a onda populista juntando-se ao coro dos que põem em causa o pluralismo, que desacreditam o parlamento, hostilizam a comunicação social e apresentam-se com discursos anti-partido e anti-política para melhor combater as elites.
Em mais um aniversário do 13 de Janeiro a resposta a todas essas derivas, que escondem ambições de poder inconfessáveis, deve ser o de defender de forma consequente os princípios e valores da democracia liberal. Também é o de exigir utilização rigorosa dos recursos do Estado para melhor combater a corrupção. Ainda é o de insistir numa ética e num ethos de serviço público que valorize quem se preste a ser político e consolide juntos dos cidadãos e de toda a sociedade a confiança na honestidade e compromisso dos seus governantes com a defesa do interesse público e com a procura do bem geral. A luta contra o populismo fundamentalmente passa por isso.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 893 de 9 de Janeiro de 2019.

segunda-feira, dezembro 31, 2018

Ninguém ganha com ataque aos mediadores

As manifestações quase periódicas de tensão entre o poder político, os jornalistas e os seus órgãos representativos vieram outra vez à tona na sequência das declarações do Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas que tem sob a sua alçada o sector da comunicação social.
 Abraão Vicente na comemoração dos trinta anos da agência de notícias estatal teria dito que a Inforpress tem sido a base de toda a produção jornalística da imprensa escrita. Teria acrescentado ainda que mais de 50% das notícias dos outros jornais privados são notícias da Inforpress. Um juízo de valor sobre o trabalho dos jornalistas ficou implícito quando afirmou que o aproveitamento das notícias da Inforpress são feitas “sem nenhum esforço de reescrita e muitas vezes sem a necessária citação da fonte”. Como seria de esperar, houve imediata reacção da associação dos jornalistas. A AJOC num comunicado disse que há “um total desconhecimento por parte da tutela das condições materiais de produção de informações nos OCS privados e do próprio funcionamento do campo mediático de Cabo Verde”.
Um primeiro aspecto que salta à vista neste imbróglio é o que pretende o ministro com essas declarações. Começou por dizer que o maior contributo que o Estado pode dar ao sector privado é uma agência de notícias para logo depois passar a impressão de estar a destratar os jornais privados por alegadamente estarem a usar o fornecido pela Inforpress em cerca de 50% da sua produção. Aparentemente contradiz-se. Afinal quer ou não canalizar as notícias da agência para os outros órgãos de comunicação social? O sucesso das agências avalia-se pelo número de órgãos que fazem uso da matéria disponibilizada. Não deriva da competição directa com eles. As agências comerciais beneficiam da publicidade no uso do material fornecido às vezes gratuitamente para construírem uma reputação e vender produção exclusiva. As agências estatais, em regra criadas para passar uma imagem favorável do país no exterior e veicular a perspectiva oficial dos acontecimentos, certamente que ficam felizes quando a imprensa repassa as suas notícias. Por ai vê-se a gratuitidade e o contra-senso das afirmações feitas tanto em relação aos jornalistas como aos jornais privados.
E a grande verdade é que o governo não tutela a comunicação social e muito menos exerce sobre ela e sobre os seus profissionais uma tutela de mérito. Se do ponto de vista orgânico e funcional tal pretensão é despropositada, do ponto de vista político é contraproducente. Tudo o que de essencial diz respeito à comunicação social está directamente na Constituição da República no capítulo dos direitos fundamentais, em particular nos artigos sobre liberdade de expressão, direito de informação e liberdade de imprensa. A legislação ordinária não os pode esvaziar e mesmo em sede de revisão constitucional não podem ser limitados. Pode-se acrescentá-los, como aconteceu na revisão de 2010 em que se criou uma autoridade para a comunicação social, eleita pelo parlamento por maioria qualificada, para regular o sector. Procurou-se com isso afastar ainda mais a possibilidade de interferência a coberto do papel que sempre tem o Estado de assegurar as garantias fundamentais para o exercício das liberdades, no caso específico, de promover o pluralismo, impedir a concentração dos órgãos e cuidar da independência dos jornalistas.
Quanto à intervenção directa do Estado na comunicação social, a Constituição estipula tão-somente que deve existir um serviço público de rádio e televisão. Exigências específicas são feitas em relação ao ambiente no serviço público. Insiste-se no pluralismo interno nas notícias, reportagens e entrevistas em concordância com o princípio segundo o qual o Estado não deve impor uma corrente filosófica, estética ou política aos cidadãos. Outrossim, garante-se a independência dos jornalistas perante os vários poderes e impõe-se que os directores dos órgãos do serviço público sejam nomeados com parecer prévio favorável da entidade reguladora. Com este enquadramento restrictivo na intervenção estatal e muito aberto em relação à iniciativa privada o que pode causar estranheza é o facto de após largos anos de regime democrático o sector da comunicação social continue a ser esmagadoramente dominado pelos órgãos públicos. Para isso certamente que conta a história pós-independência em que o regime de partido único praticamente acabou com os privados no sector, como aliás aconteceu noutros sectores. Mais difícil de compreender é porque a hegemonia do público manteve-se até hoje. Só pode ter sido resultado de opções feitas, sendo uma delas certamente o acesso privilegiado dos órgãos públicos ao diminuto mercado publicitário cabo-verdiano deixando em desvantagem o sector privado. Parece que agora algo similar se pretende numa suposta competição entre agência de notícias e jornais online privados, beneficiando a parte estatal de vantagem inicial de investimentos públicos num jogo claramente de cartas marcadas.
O ministro em vários momentos usou expressões como “informação de qualidade”, “qualidade jornalista”, “qualidade de jornalismo” e “imprensa privada de qualidade”. Talvez isso queira transmitir uma preocupação com os chamados “fake news” e exprimir a urgência de os combater. O problema é que o epíteto de “fake news” popularizado por Donald Trump tem sido atirado contra os jornais e outros médias por autocratas e candidatos a autocratas em reacção ao escrutínio apertado em que na democracia estão sujeitos. Se se quiser fazer diferente não é aconselhável que se tenha posicionamentos que podem configurar ataques à imprensa privada e aos jornalistas. Já bem-vindas serão acções concretas no sentido de aumentar o mercado para as publicações com a aquisição para as bibliotecas e outras estruturas públicas e no quadro de campanhas da luta contra a iliteracia funcional. Quanto à questão se há bons ou maus produtos jornalísticos é melhor deixar o cidadão e o consumidor decidir por si próprio em ambiente de liberdade e pluralismo.
Hoje é notório um discurso partilhado por certos políticos e com eco em alguns sectores da sociedade que tende a pôr em questão todas as instituições de mediação, entre as quais os médias, que até agora viabilizaram as democracias, promoveram o desenvolvimento científico e mantiveram os poderes político e económico sob escrutínio. Podem estar desiludidos com a situação actual, mas o facto é que a alternativa – que já se pode vislumbrar na ascensão de autocratas, no crescimento de sentimentos de ódio e ressentimento e de racismo e xenofobia e no tipo de violência espontânea que se assistiu na França nas últimas semanas – não é a mais aconselhável. Há quem pense que plataformas como as redes sociais e formas de democracia directa poderão substituir a democracia representativa e a imprensa livre e plural com o seu papel de mediadores na relação entre o estado e os cidadãos. A história passada e recente mostra que não é assim tão simples. A verdade que dificilmente se pode ter diálogo sem mediadores é particularmente relembrada nesta época natalícia. Celebra-se o nascimento de Jesus Cristo, o mediador enviado por Deus, para restabelecer o diálogo com os homens.

 Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 891 de 24 de Dezembro de 2018.

quarta-feira, dezembro 26, 2018

Diálogo plural das ilhas

Bastas vezes ouve-se repetida a frase “Cabo Verde no seu processo de desenvolvimento encontra-se numa encruzilhada”. Em traços largos quer-se com isso dizer que o modelo de desenvolvimento até agora adoptado já se esgotou e há que encontrar outro caminho; que o país está sobrecarregado por uma dívida pública acima dos 125% do PIB e ainda não consegue crescer a taxas que seriam desejáveis para assegurar a sustentabilidade do desenvolvimento; e que se tornam cada vez mais notórias as deficiências estruturais em sectores-chave como a administração pública e a educação que afectam negativamente o ambiente de negócios, a empregabilidade e a competitividade do país.
 Completa a fotografia o facto notório que o turismo mesmo sendo o grande impulsionador da economia fica muito aquém do desejável no efeito positivo de arrastamento sobre o conjunto da economia que mostra ter noutras paragens. Perante a percepção, mais ou menos disseminada desde há alguns anos, de se estar quase a “patinar” sem poder ultrapassar os constrangimentos principais do país, a questão que se coloca é, como avisa o Banco Mundial no relatório-diagnóstico de Cabo Verde (SCD), se tudo isso não irá conduzir à exclusão social com possível impacto na criminalidade e à perda de coesão social com eventuais efeitos nocivos na estabilidade das instituições, na confiança no futuro e na crença na democracia.
Entretanto algo mais complicado poderá verificar-se. Quebra nas expectativas futuras das populações pode ter efeitos erosivos no que une a todos nas ilhas se se deixar que disputas por recursos se alimentem de frustrações e ressentimentos, uns apresentando-se como vítimas do centralismo e outros como alvo de discriminações passadas. Uma das consequências de o país nunca ter-se libertado da ajuda externa foi o agravamento das assimetrias regionais e a macrocefalia da capital. Uma outra, com repercussão ainda maior, foi a criação de uma mentalidade hostil a negócios, refractária quanto ao investimento privado e em particular ao investimento directo estrangeiro e de aceitação relutante do turismo. Virada para dentro, centralizadora e rentista, a atitude prevalecente das autoridades não permitiu que se completasse a reorientação da economia para atrair investimento estrangeiro e promover a exportação, precisamente a formula que permitiu a muitos pequenos países crescer, resolver o problema do desemprego e a se desenvolverem. A história passada e recente do país demonstra claramente a ligação causal entre a prosperidade nas ilhas com a ligação que se fizer com o mundo via exportações, serviços prestados ou turismo. Por isso fechar o país mesmo quando se faz conversa para inglês ouvir de atracção de investimento externo, significa de facto condenar as pessoas nas ilhas à uma pobreza estrutural da qual dificilmente têm conseguido escapar.
Da mesma forma simplificar a problemática do desenvolvimento reduzindo-a à questão da centralização sem perceber por que ela existe e o que a mantém, não ajuda. Pode-se abrir caminho para discussões intermináveis à volta da descentralização, da regionalização ou da simples desconcentração dos recursos, mas o facto é que mantendo o quadro actual dificilmente se conseguirá descentralizar. Pelo contrário, o mais provável é que a cultura administrativa burocrática e centralizadora prevalecente ao nível central se reproduza a nível municipal como todos podem verificar que já acontece e no futuro se manifeste a nível regional, se se efectivar a regionalização. É interessante que haja quase unanimidade entre os políticos em designar a centralização como a origem dos problemas. É evidente que convém a muitos políticos locais que os problemas com que se debatem na sua comunidade possam ser imputadas à acção de outras pessoas e resultam do poder estranho e distante. A forma mais primária de fazer política é socorrer-se de armas identitárias e incitar uns a resistir na luta contra o “outro”. Entra-se num jogo em que eleições são ganhas por quem for mais exímio em apresentar e manipular essas paixões. Para os votantes abre-se depois um longo caminho semeado de frustrações e ressentimentos e em que cada vez mais vão-se dar conta dos tiques de cacique e de autoritarismo dos políticos eleitos e em que o desenvolvimento prometido vai continuar a ser mais uma miragem.
É evidente que num país arquipélago como Cabo Verde permitir que se proceda desta forma não deixará de conduzir a situações em que todos perdem. O diálogo que deve existir entre ilhas é substituído por reivindicações extremadas em que cada vez mais haverá menos pejo em fazer uso de cartas identitárias para as justificar. Inversamente, menos enfase será posto no desenvolvimento a partir de uma perspectiva nacional, numa base estratégica do país e sempre com atenção que Cabo Verde é mais do que o somatório das suas ilhas. De uma convivência de séculos as ilhas participaram todas na produção do cadinho cultural de onde veria a emergir a ideia da caboverdianidade e a consciência da nação. O contracto social subsumido na Constituição reconhece isso e afirma a igualdade das ilhas. Não se pode deixar sem contestação a política que – em vez de fazer da diversidade das ilhas uma fonte de enriquecimento cultural e do diálogo plural em busca dos melhores caminhos para o desenvolvimento – se enverede pela vitimização, pelo ressentimento e por exigências de privilégios baseadas em razões dúbias e divisivas.
Na luta pelo desenvolvimento, um dos grandes combates a ser travado deve resultar na inflexão da tendência para se olhar para dentro como se o país tivesse dimensão para sustentar sozinho a dinâmica económica necessária. Ninguém tem, muito menos Cabo Verde que pelos seus números irrisórios em quase tudo, designadamente população, água disponível, terra arável e outros recursos não tem base para economias de escala. Mesmo que tivesse não seria suficiente. A ligação com o mundo em termos de capitais, tecnologia e mercados continuaria a ser imprescindível. Ficar pela bitola baixa que é a oferecida pela ajuda externa só podia conduzir a encruzilhadas difíceis de ultrapassar. Este é um tema que S. Vicente com a sua formação e desenvolvimento ligado ao mundo deveria sempre manter bem vivo no diálogo entre as ilhas. Como se vê, no Sal e na Boa Vista, dinâmica económica ganha-se com ligações das mais variadas e vantajosas com a economia mundial que se puder estabelecer. Mas considerando os aspectos negativos já conhecidos e ainda o facto do impacto do turismo ficar aquém do possível é fundamental que se deixe de ser passivo na relação com os  investidores. Há que ser proactivo e estratégico na atracção do investimento estrangeiro e firme, seguro e exigente na qualificação das pessoas.


Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 890 de 19 de Dezembro de 2018.

segunda-feira, dezembro 17, 2018

Voluntarismos e omissões

Os problemas de S. Vicente e do seu desenvolvimento sofreram redobrada atenção do público depois de, no dia 5 de Dezembro, o Primeiro-Ministro Ulisses Correia e Silva ter dito que a retoma dos voos internacionais a partir dessa ilha não é uma decisão administrativa ou política do Governo. Reacções de incredulidade multiplicaram-se na comunicação social e nas redes sociais vindas de partidos da oposição, de operadores económicos, de cidadãos comuns e do próprio presidente da câmara. Ninguém esperava que o chefe do governo reduzisse a problemática dos transportes da ilha ao “interesse e à viabilidade comercial”, ou dito de outra forma, a uma simples resposta do mercado.
Se, de facto, não é bom para o país que seja a TACV a ser o único instrumento de política dos transportes aéreos do país, com as consequências que se conhecem da derrapagem económico-financeira da empresa, também não é de aceitar que o Estado e o governo se omitem em matéria de ligações inter-ilhas e internacionais. Em última instância serão sempre decisões políticas e administrativas do governo em matéria de conectividade do país, de atracção do investimento externo, de promoção das exportações e do turismo que irão determinar se haverá aumento suficiente de passageiros e de carga para viabilização comercial de eventuais rotas. Ou seja, a bola estará sempre do lado do governo. Tem é que mostrar vontade e foco para a pôr em movimento.
Em situações de falha de mercado ou de mercados imperfeitos como acontece em particular nas realidades insulares o governo não pode abster-se de uma intervenção qualificada e estratégica ficando à espera que o mercado funcione. Algo similar aconteceu com o transporte marítimo inter-ilhas e as consequências são conhecidas. As autoridades durante demasiados anos deixaram o sector praticamente ao sabor do que o mercado oferecia sem a regulação que se impunha, sem uma política de facilitação da ligação inter-ilhas e de diminuição dos custos inerentes em taxas e outras barreiras burocráticas e sem o apoio consistente e estratégico à iniciativa privada nacional no sector. Veja-se agora a situação dos armadores e o custo dos transportes que penaliza todos e desencoraja operadores económicos. Recorde-se as perdas em vidas humanas e em bens materiais de alguns anos atrás.
São visíveis na história do país as consequências dos voluntarismos e omissões dos sucessivos governos ditados às vezes por questões ideológicas, outras vezes pelos constrangimentos impostos pela ajuda externa e outras vezes ainda por falta de visão estratégica. Em vários sectores, inconsistências várias têm impedido que se potencie os investimentos feitos, que se aproveite devidamente as oportunidades e que mesmo os ganhos conseguidos se acumulem e se conjuguem para um maior impacto a todos os níveis e, em particular, para maior dinâmica de crescimento e de criação de emprego. Por isso sabe-se hoje que o país juntou dívida pública crescente com crescimento baixo, que o sistema educativo ficou desajustado para as necessidades do mercado de trabalho e que o turismo comparativamente não traz os benefícios para o resto da economia expectáveis noutras economias insulares similares a Cabo Verde.
Todas as ilhas perderam com políticas desajustadas e incoerentes, mas em S. Vicente a perda provavelmente é maior. É verdade que ao longo dos anos fizeram-se muitos investimentos públicos que se juntaram ao legado acumulado de experiência, de cultura e cosmopolitismo. Mas, sem uma estratégia consistente, o retorno de todo esse potencial tem ficado muito aquém do esperado com prejuízos para a economia do país e para a manutenção de equilíbrios demográficos, socioeconómicos e culturais que convém perservar num país arquipelágico. Um indicador crucial que mostra essa falha de políticas e de estratégia para a ilha e para o país é a percentagem de investimento directo estrangeiro (IDE) que chega a São Vicente. O relatório de UNTACD sobre o IDE apresentado em Génova no dia 4 de Dezembro coloca-a no período entre 2000-20016 em 3%, muito abaixo do que é recebido na Ilha do Sal (50%), na ilha de Santiago (33%) e na Boa Vista (8%). Sem o capital, o know-how, a tecnologia e os mercados que vêm com o IDE, compreende-se que a economia de S. Vicente tenha praticamente estagnado com consequências graves para todo o país.
O padrão de distribuição do IDE pelas ilhas não resultou das acções de promoção e atracção do investimento externo. Segundo o relatório da UNCTAD a posição do país às manifestações de interesse em investir tem sido simplesmente reactiva. Ou seja, não houve um esforço dirigido e estratégico para levar o investimento onde fosse mais proveitoso para o país e ficou-se por onde mais interessava aos investidores. Não estranha que a escolha recaísse sobre o que o país tem de mais valioso em termos de sol, praia e mar, o que implicou custos extraordinários designadamente em migrações internas e em investimentos públicos em estradas, energia, água, saneamento e habitação. A falta de capacidade negocial e também de visão das autoridades não permitiu que, por um lado, se procurasse potenciar o que já estava investido e, por outro, que aceitando investimentos nas ilhas menos povoadas e mais desprovidas de infraestruturas que se insistisse na co-participação dos investidores em remediar a situação particularmente em relação à habitação para os futuros empregados, na maioria vinda de outras ilhas. Nos bairros da Ilha do Sal e da Boa Vista vêem-se os sacrifícios que as pessoas foram forçadas a fazer porque não se soube negociar. Já em São Vicente depara-se com excessivo desemprego porque o governo não se empenhou em levar o IDE para onde o retorno podia ser maior e com menos investimento público e menos sacrifícios para as pessoas.
A TACV foi reestruturada em Maio de 2017 acabando com o serviço doméstico de voos e criando a Cabo Verde Airlines com um modelo de negócios reduzido a um hub situado na Ilha do Sal que procuraria interligar passageiros dos diferentes continentes com possível stopover na ilha. No novo esquema aparentemente ficaram de fora os voos para Lisboa a partir da Praia e de S.Vicente e os voos para Senegal. Não se deu talvez a devida atenção ao facto que a ligação directa com Lisboa a partir de vários pontos do território nacional era vital para a dinâmica económica de várias ilhas e para a conexão com o mundo assim como também o era a ligação com Dakar. Decisões políticas do governo foram entretanto tomadas com consequências directas para as perspectivas de desenvolvimento das ilhas afectadas e em particular para S. Vicente, que tem grande parte da sua economia dependente do nível da sua conectividade com o mundo. Quando há uma inflexão na política de transportes e a TACV retoma os voos para Senegal e para Lisboa a partir da Praia, o governo não pode pura e simplesmente omitir-se. Legitimamente tanto a população como os operadores económicos devem poder exigir que o governo reavalie a situação e tome a medida certa que melhor potencie o desenvolvimento da ilha e do país.

Humberto Cardoso



Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 889 de 12 de Dezembro de 2018.

segunda-feira, dezembro 10, 2018

A Morna que nos une

​A primeira celebração do Dia da Morna a 3 de Dezembro revestiu-se de um simbolismo especial nestes tempos divisivos que se vivem actualmente. Materializou-se a vontade unânime do parlamento de estabelecer por lei a data de nascimento de B.Léza como o dia para exaltar a expressão musical caboverdiana universalmente conhecida por morna e para homenagear os seus compositores e intérpretes. Também serviu para mobilizar a energia da nação para a tarefa ingente de conseguir a consagração da morna como Património Imaterial da Humanidade, uma pretensão de Cabo Verde que já foi entregue à UNESCO, desde Março deste ano. Ao juntar os caboverdianos, a morna, essa criação do povo das ilhas com mais de um século de existência, reafirma mais vez o seu papel identitário de primeira grandeza. A par com a literatura com dos pré-claridosos e dos Claridosos e também com a língua crioula na qual se expressa, confirma-se como um dos ingredientes essenciais na emergência da consciência da nação.
Interessante como a reunião à volta da morna é universal no mundo cabo-verdiano. Aliás, como também é a língua crioula. Abrange todas ilhas, perpassa todos os extractos sociais, chega a todas as idades e é acarinhada em todas as comunidades emigradas. Neste aspecto difere por exemplo do reggae que há poucos dias foi reconhecida pela Unesco como Património Imaterial da Humanidade. Segundo a nota da Unesco, o reggae era voz dos marginalizados na ilha de Jamaica que depois foi adoptada por vários outros grupos étnicos e religiosos contribuindo para o discurso internacional em matéria de injustiça, resistência, amor e humanidade. Já a morna não é evidente que tivesse uma origem em algum extracto da sociedade e expressasse algum tipo de resistência. Era cantada e sentida por toda gente. Reflectia a condição humana nas ilhas com as suas dificuldades e aspirações e também os dilemas postos por uma vivência num ambiente de escassez, de falta de oportunidades e de futuro incerto. Apropriada por todos, conferia uma identidade, uma ideia de pertença que não se afirmava em contraposição a outros próximos ou menos próximos mas que pelo contrário unia a todos num destino comum.
Nestes tempos em que por todo o mundo nações ameaçam fracturar-se na busca incessante por identidades na base étnica, religiosa e racial, género é reconfortante para o cabo-verdiano perceber que a sua morna é um cimento forte que mantém intacta a ideia de pertença à caboverdianidade, não interessando onde a pessoa se encontra no momento, seja no país, nas comunidades emigradas ou em qualquer parte do mundo. Até tem o conforto de que o que o agarra à sua música não é uma idiossincrasia particular de alguém cuja existência como povo brotou de algumas ilhas no meio do oceano Atlântico. Depois da Cesária nas mornas por ela cantadas ter levado o sentimento do cabo-verdiano a audiências entusiásticas da França ao Japão, dos Estados Unidos ao Tadjiquistão e do Brasil á China não lhe resta dúvida quanto à universalidade da música criada por B.Léza e outros compositores populares em todas as ilhas. Mais uma razão para se promover a morna com vigor junto às novas gerações, levá-la às escolas, difundi-la na comunicação social ciente de que constitui um factor de unidade nacional fortíssimo que não se pode dispensar nestes tempos em que matérias fracturantes e lógicas de vitimização criam tensões e ressentimentos que com o tempo fragilizam e até ameaçam rasgar o tecido social.
Aliás, às vezes parece que não há uma preocupação muito grande em manter a nação e a consciência nacional protegidas de eventuais forças centrífugas que as podem enfraquecer. E isso pode constituir uma falha prenhe de consequências. É um facto que, por exemplo, nas democracias o dissenso só é possível se houver consenso quanto à questões fundamentais como o pluralismo, a liberdade de expressão, a separação de poderes e a independência dos tribunais. Da mesma forma que a diversidade só é possível numa comunidade nacional se houver a aceitação geral do essencial que une todos os membros. Por analogia, pode-se ver a importância de se reforçar os elementos identitários que ajudam a manter a ideia da nação e a importância do destino comum e compartilhado quando se interage num mundo global com povos, culturas e hábitos diferentes. Ninguém desconhece que a estabilidade política é importante para o país se manter atractivo, mas não se deve perder de vista que é também fundamental não deixar enfraquecer a consciência nacional essencial para que a relação do país como o mundo se estabeleça numa base segura, ousada e com espírito cosmopolita e nunca de vítima, de timidez e baseada no assistencialismo.
A ideia da nação cabo-verdiana é muito anterior à independência. Não é uma identidade conseguida em oposição ao outro como poderiam sugerir as noções hoje datadas de “nação forjada na luta contra o colonialismo”. Nem é uma identidade que se reforça em resistências intermináveis e patéticas contra a língua portuguesa com as consequências que já são conhecidas de todos. Nem muito menos no resgate de um passado escravocrata que só serve para inverter o percurso já feito há quase um século de emergência da consciência da caboverdianidade tão bem expressa na morna e na literatura dos claridosos. Quem produziu as canções, os livros, contos e poemas e também quem reconheceu toda essa obra como sua e dela se apropriou não quis apresentar-se ao mundo como vítima ou como descendentes de escravos. Quiseram sim, ser vistos como um povo que apesar das agruras da existência nas ilhas nunca perdeu o alento, nem alegria de viver e nem tão pouco a esperança no futuro enfrentando as dificuldades da vida no país e no estrangeiro com o orgulho de ter nascido cabo-verdiano. Este é o legado que eles nos deixaram e que todos os anos deve ser renovado no Dia Nacional da Morna que nos faz sentir cabo-verdianos.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 888 de 05 de Dezembro de 2018.

segunda-feira, dezembro 03, 2018

É a hora do sector privado?

Há anos que governantes de todos os quadrantes políticos vêm prometendo delegar para o sector privado um papel preponderante na economia nacional. Uns talvez façam a promessa com convicção e outros nem tanto. E assim é porque após a queda do muro de Berlim e do desmoronar das economias estatizadas e de planificação central já ninguém defende a marginalização ou o aniquilamento da economia privada. Também há que ter em conta os incentivos para se estar em sintonia, pelo menos formalmente, com os relatórios das organizações multilaterais que insistem na importância do sector privado e põem ênfase particular no empreendedorismo e no seu papel na criação de empregos e no crescimento económico.
Não fica, pois, nada fácil escapar ao “discurso” dominante, ou pretender que não se o absorve nos programas de governação quando os tempos, o envolvente externo e as dependências múltiplas o favorecem. O problema é que os anos e os governos passam e, independente de mais ou menos convicção na promoção do sector privado, o panorama global fundamentalmente não se muda muito e a centralidade do Estado na economia mantém-se.
De facto, na prática, não se nota evolução significativa no sector privado capaz de desencadear a transformação estrutural essencial para o desenvolvimento sustentado do país. A conexão com o investimento externo ainda não é suficientemente expressiva. Nichos ou segmentos dinâmicos do mercado interno e externo estão por ser identificados. Os investimentos públicos não se têm mostrado particularmente vantajosos para o empresariado nacional. O aprovisionamento do Estado em bens e serviços não dá sinais claros de fazer parte de uma política compreensiva de apoio e estímulo à actividade económica local e nacional. A preocupação com o financiamento tem dado resultados na facilitação de crédito bancário, mas muito aquém do esperado. As dificuldades das empresas são múltiplas e não se resumem ao financiamento, mas têm também a ver com a relação com a administração pública burocratizada, os custos de factores, os problemas de transportes, concorrência desleal e falta de regulação, o que facilita a actividade informal.
Não espanta que após longos anos de discurso, supostamente a favor de uma economia de iniciativa privada, o que se constata no país é que se estará perante um sector em algumas áreas estagnado, noutras em retirada e noutras ainda com alguma dinâmica e mesmo mostrando potencialidade, mas já sem evidente possibilidade de ir mais além. A agricultura sem muitos produtos de alto valor acrescentado e com limitações de mercado – entre outras razões por causa de transportes, standards de segurança alimentar e deficiências nas redes de distribuição – dificilmente consegue sair do nível de subsistência, com toda a precariedade que acarreta. No comércio a retalho é visível como a presença de lojas ligadas a grupos estrangeiros vêm ganhando espaço em todo o território nacional, chegando ao ponto de, em algumas ilhas, terem atitudes monopolistas. Foi notório como o empresariado nacional na construção saiu beliscado dos investimentos nas obras públicas durante a primeira metade desta década devido às opções que objectivamente favoreceram outros operadores.
Também a falta de uma política adequada para os transportes marítimos não privilegiou a classe dos armadores e, pelo contrário, contribuiu para os deixar numa situação em que poderão vir a ficar de fora da solução encontrada para garantir as ligações inter-ilhas. No sector da pesca, mesmo com o Frescomar e outras oportunidades que surgiram, não se chegou a focalizar com determinação no aumento da capacidade nacional de captura de peixes e no que poderia representar para a consolidação de privados nacionais no sector. Faltou uma estratégia deliberada nesse sentido, como faltou noutros sectores designadamente os ligados às tecnologias de informação e comunicação em que o foco na NOSI impediu que oportunidades outras, designadamente nas chamadas Business Processing Operations (BPOs), fossem consideradas e apoiadas. A ausência de uma estratégia para o sector privado nacional mostrou-se ainda mais quando investimentos de grande dimensão se realizavam no turismo e não houve preocupação sistemática para procurar pontos de entrosamento com a actividade empresarial nacional na perspectiva de a fortalecer, de a incentivar a ser competitiva e de a elevar em qualidade. Devia ser a oportunidade, há muita esperada, de dar o salto na actividade privada do país sob estímulo de uma procura externa intensa, permanente e próxima, ou seja de “exportar cá dentro”. As situações caóticas permitidas na ilha do Sal e da Boavista são consequência dessa ausência de políticas que ainda mais sacrificam as pessoas que vão ali trabalhar, negando-lhes qualidade de vida e os meios para se valorizarem e crescerem com a expansão do turismo nas suas vertentes possíveis.
A UNCTAD do sistema das Nações Unidas, no seu último relatório de Novembro de 2018 sobre a importância do empreendedorismo na transformação estrutural dos países menos desenvolvidos (LCD), foi clara em dizer que muitas vezes o discurso do empreendedorismo é feito só na perspectiva de auto emprego, de combate à pobreza e de melhoria de qualidade de vida. Ou seja, a acção do Estado, e de outras entidades próximas, fica pela promoção do empreendedorismo de necessidade e não dá a devida atenção ao empreendedorismo de oportunidade, aquele que pode operar transformações estruturais passíveis de garantir sustentabilidade futura ao desenvolvimento do país. No relatório insiste-se nas políticas industriais dirigidas, para fazer crescer o sector privado nacional em áreas chave e estratégicas, na perspectiva de exportação ou de criar aglomerados de empresas conexas. Aconselha-se que se optimize o impacto dos investimentos externos com uma maior articulação com empresas nacionais fornecedoras de bens e serviços. Diz-se claramente que o Estado não deve ficar pelo financiamento, deve ir mais além e apoiar o empreendedor em várias fases do seu negócio, designadamente no desenvolvimento do produto e dos mercados e em ganhar dimensão, como aliás fazem os fundos de capital de risco em vários países. Outro instrumento que aconselham a usar para estimular é o aprovisionamento em bens e serviços no quadro de uma política clara e transparente e que revele opções, sofisticação de procura e visão de futuro, como fez a Costa Rica para dar espaço e incentivar o sector privado a desenvolver-se no sentido escolhido.
Os países bem sucedidos na luta pelo desenvolvimento não foram certamente os que que se deixaram ficar por slogans como start ups e adopção de modismos à volta da inovação e empreendedorismo. Já se teve disso no passado recente e vê-se onde o país e o seu sector privado se encontram neste momento. Como frisa o relatório citado há que se ultrapassar esses discurso e mover-se decididamente com políticas compreensivas e abrangente para a transformação estrutural do país, a exemplo do que os países bem sucedidos fizeram. Continuar a falar do sector privado e vê-lo a mirrar todos os dias, a perder oportunidade, a não ser competitivo e a frustrar-se com a indiferença do Estado não é o que certamente se pretende. O país é pequeno e amiúde revela falhas de mercado, ou insuficiência no funcionamento, que o mercado por si só não consegue desenvolver. Aí precisa do Estado empreendedor de que fala Mariana Mazzucatto e encontra respaldo no exemplo de vários países desenvolvidos. Nesses países, o Estado teve um papel decisivo para darem o salto em frente, crescerem e internacionalizarem-se. Por ai é que se tem que caminhar, para que finalmente o sector privado possa desempenhar esse prometido papel preponderante.


Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 887 de 28 de novembro de 2018.