A dois meses das eleições legislativas são notórias as movimentações de partidos, sindicatos, associações, grupos de interesses e personalidades para beneficiar ainda da situação actual e desde já ficarem bem posicionados para o que segue.
O governo desdobra-se em inaugurações por todas as ilhas, municípios e outros pontos do território nacional; partidos da oposição apontam o não cumprimento de promessas e minimizam obras feitas; sindicatos marcam manifestações, ameaçam greves e reivindicam aumentos, promoções e progressões para trabalhadores do sector público; grupos de interesses diversos pelas razões as mais espúrias, como se viu na última sessão do parlamento com a petição de ex-militares, procuram extrair benefícios do Estado em forma de pensões e outras facilidades; e personalidades apanhadas na luta intrapartidária para listas de deputados salvaguardam-se para o amanhã. Com o futuro imprevisível e os outros sectores da economia à espera de uma oportunidade de retoma, o Estado tornou-se o foco da atenção de todos. Na corrida aos recursos públicos assim desencadeada nem a pandemia da Covid-19 mostra-se capaz de forçar a olhar para os lados.
Em vários momentos de lucidez surgem vozes na sociedade cabo-verdiana que apelam a mudança de atitude e a troca de “chip”. Os apelos invariavelmente caem em saco roto ou são esquecidos. Entretanto, o mundo não pára e o país inexoravelmente vai ficando para trás porque as reformas para a modernização não chegam a tempo. Neste processo o país vai acumulando dívida pública, aumentando vulnerabilidades, reproduzindo precariedade e perdendo oportunidades. Mesmo quando beneficia de uma conjuntura internacional favorável como aconteceu entre 2016 e Março 2020 com todas as grandes economias do mundo a crescerem em simultâneo, não consegue dar o salto. Não fez as reformas no tempo certo. Suficientes, porém, revelaram-se os três anos de seca para revelar as vulnerabilidades que persistem no país não obstante ter vindo a crescer até o surto do coronavírus a taxas que se aproximava dos 6% do PIB.
A chegada da Covid-19 a partir de Março de 2020 acabou por mostrar cabalmente a extrema fragilidade de uma economia pequena, insular, muito pouco diversificada e dependente do turismo. O grande problema é que, quase um ano depois do início da pandemia, não se vislumbram alterações substantivas na forma como os actores políticos e sociais se comportam. Não há muitos sinais de que realmente se quer mudar de atitude, trocar de chip ou iniciar preparativos para um eventual take off. Num mundo em que a normalidade anterior desapareceu, quer-se continuar a funcionar como se nada tivesse acontecido.
A questão que se pode colocar é, ou o choque da pandemia não foi suficiente para uma chamada à realidade, ou então o país de tão preso que está na sua forma de estar, viver e sobreviver que nada já o afecta. A falta de reacção adequada a situações anteriores de erupções, desastres, naufrágio e até de massacre que não foram seguidas de mudanças consequentes nas instituições, nos procedimentos e na postura das autoridades já deixava entender isso. Não se esperava é que, mesmo com uma pandemia global sem uma previsão de acabar tão cedo, a tentação de persistir em fazer o mesmo fosse tão forte. Não muito ausente dessa atitude provavelmente estará a crença que a dívida pública entretanto acumulada será perdoada, que a ajuda externa até irá aumentar por causa da covid-19 e que o interesse dos operadores estrangeiros não se alterará no “novo normal”.
Ajuda a manter essa inércia o sentimento que muitos parecem nutrir de que a pandemia da covid-19 poderá ter os dias contados particularmente depois que várias vacinas com elevados níveis de eficácia foram criadas. A realidade porém é muito mais complexa como demonstra o aparecimento de várias variantes do coronavírus mais contagiosas e algumas talvez até mais letais. A luta de vários anos que vai opor o coronavírus em mutação rápida e o sistema imunitário humano com a ajuda das vacinas certamente terá consequências. Prevê-se que depois de contida a pandemia, em vários países a doença vai ficar endémica com surtos epidémicos periódicos. Também sequelas da doença não deixarão de manifestar-se entre os muitos milhões de recuperados. Os constrangimentos que tudo isso irá provocar a todos os níveis asseguram que não haverá o regresso à normalidade anterior.
É evidente que será profundo o impacto que a Covid’19 vai provocar nas economias nacionais e na economia mundial. Como reagir a essas mudanças é o grande desafio que se coloca a todos, sejam países desenvolvidos, emergentes ou mais pequenos e frágeis como Cabo Verde. Há que reformular políticas, prioridades e atitudes. Recentemente Ruchir Sharma, autor do livro Milagres Económico do Futuro, no jornal Financial Times, aconselhava os países em desenvolvimento a fazer as reformas necessárias para aumentar a produtividade e a competitividade e a não seguir o exemplo dos países ricos que procuram estimular a economia com injecção de liquidez recorrendo a mecanismos financeiros que aumentam extraordinariamente a dívida pública. Estes, além de terem capacidade para pagar a dívida ainda beneficiam de juros baixos e mesmo negativos o que dificilmente acontecerá com os outros países menos desenvolvidos.
Pensar diferente é também o que aconselha Dani Rodrik. O economista de Harvard propõe para ultrapassar a situação actual de grandes desigualdades sociais e esvaziar os extremismos políticos que se faça um comprometimento sério para criação de um grande número de postos de trabalho que também sejam bons empregos. Num artigo no Project-Syndicate ele nota que em África constata-se que grandes empresas industriais de capital intensivo são produtivas, mas empregam poucas pessoas enquanto pequenas e médias empresas têm muitos trabalhadores, mas produtividade muita baixa o que leva globalmente a salários mais baixos, não criando os bons empregos. Ao Estado aconselha um novo papel para resolver esse e outros problemas, nesta nova era pós-pandémica e de necessidade de um novo contrato social, numa linha próxima daquela que Mariana Mazzucato expõe no seu novo livro Economia de Missão.
Em Cabo Verde infelizmente o papel do Estado não é visto como promotor e facilitador de processos de criação de riqueza. É mais compreendido no papel que aparece todos os dias na televisão a representar. O papel de distribuidor de riqueza que o faz paternalista, realizador de sonhos da população e generoso para com as reivindicações das pessoas. Com o Estado nessa função todos, as pessoas e a sociedade, correm o risco perder a noção de como se cria valor. Também sempre vai aparecer quem tente extrair valor para servir a si próprio e à uma clientela. Globalmente acaba por verificar-se uma grande destruição de valor com as ineficiências, os desvios e as oportunidades perdidas.
Mudar de atitude ou trocar o chip deveria passar por redefinir o papel do Estado numa a perspectiva em que a criação de riqueza não estaria desligada da sua distribuição e utilização na potenciação dos recursos do país e em particular do capital humano. Infelizmente o que parece estar na ordem do dia é o poder e a corrida aos recursos. A possibilidade real de “um bloqueio, se não colapso do Estado” se não houver perdão da dívida externa e investimentos externos transformadores, como referiu o Vice-Primeiro-Ministro, na segunda-feira, devia servir de travão efectivo a tais ímpetos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1003 de 17 de Fevereiro de 2021.