segunda-feira, fevereiro 17, 2020

Dilemas

Na primeira sessão plenária de Fevereiro da Assembleia Nacional reinou, pelo menos por uma vez, o unanimismo nas posições dos sujeitos parlamentares.
Deputados, bancadas parlamentares e governo em uníssono manifestaram o seu apoio à resolução que aprova o acordo de comércio livre continental africano. As razões apresentadas a favor do acordo salientaram o potencial de um mercado constituído por mais de mil milhões de pessoas e referenciaram que para muitos o futuro pertence à África e que depois de criado o mercado continental será possível negociar com outras potências económicas em melhores condições. Um senão do acordo é o facto de obrigar à liberalização de 90% da pauta aduaneira resultando em perdas significativas de receitas para financiamento do Orçamento do Estado. Na sua intervenção no parlamento o Vice-Primeiro-ministro (VPM) Olavo Correia disse que nessa liberalização a abordagem deve ser faseada, progressiva e nunca uma decisão abrupta. Acrescentou que estudos estão a ser feitos nesse sentido para que a integração efectiva de Cabo Verde vá ao encontro dos interesses específicos do país. Fica a dúvida, porquê a pressa em integrar quando até Dezembro de 2019 só 28 países dos 54 signa­tários do acordo o tinham ratificado.
A perda em receitas aduaneiras poderia ser compensada se a integração resultasse em prazo razoável num aumento da troca de bens e serviços com esse mercado continental que fosse vantajoso para o país. Mas é o próprio VPM que reconhece que há falhas na conectividade aérea, marítima e tecnológica e sem isso não há comércio e economia. Também nota que para a integração ser efectiva Cabo Verde tem o desafio adicional de promoção das línguas francesa e inglesa que são essenciais para quaisquer transacções no continente. Resumidamente com a barreira linguística, a falta de conectividade e a quebra prevista nas receitas não é claro os ganhos para o país. O VPM terminou a sua intervenção clamando um estatuto especial para Cabo Verde, porque como pequeno país arquipelágico se for tratado como o Senegal ou a Costa do Marfim jamais conseguirá ter uma integração efectiva. Depois de toda essa argumentação fica difícil justificar o entusiamo nas posições assumidas pelos parlamentares. Os discursos produzidos parecem ter sido ditados mais pelo coração do que pela razão. O problema é que como já foi dito bastas vezes, os países têm interesses e não sentimentos.
O mais normal é que Cabo Verde na implementação da sua estratégia de desenvolvimento procurasse engajar de forma proveitosa os países vizinhos. Historicamente a sua economia sempre esteve ligada à Europa de onde recebe o grosso do investimento directo estrangeiro e que é origem de grande parte da ajuda externa, de uma fatia enorme das remessas de emigrantes e do fluxo turístico que já dinamiza mais de 25% da economia. Para além disso, é para a Europa que vão as exportações e daí é que vem cerca de 90% das importações. Poder expandir o seu comércio com os países africanos constituiria uma mais-valia importante. Exigiria porém que investimentos a vários níveis fossem feitos, entre eles os apontados pelo VPM na sua intervenção para que uma relação com benefícios para as partes fosse estabelecida. Infelizmente nada disso aconteceu. Nem foi possível com Guiné-Bissau que séculos de história, a existência de uma comunidade antiga e facilidade da língua poderiam constituir uma vantagem no estabelecimento de uma base comercial a partir da qual se pudesse dar outros saltos no continente.
A realidade é que ao longo dos anos de independência tem-se ficado pelos discursos e sem qualquer acção consequente. Ou no caso da Guiné, que se permitisse que as relações fossem inquinadas até hoje desbaratando proximidades antigas. Insiste-se em apresentar Cabo Verde como porta de entrada para a Africa Ocidental, mas não é algo que mereça qualquer crédito considerando que não há nenhum esforço dirigido nesse sentido para além de declarações políticas de amizade e boa vizinhança. Se dúvida houvesse quanto à sua influência na região, ela deixou de existir depois de Cabo Verde ter sido ostensivamente ultrapassado na candidatura à presidência da CEDEAO pelo país que em ordem alfabética lhe estava atrás. Recentemente o embaixador de Portugal no Senegal recebeu o prémio de diplomacia económica pelos seus esforços em, segundo as suas declarações ao jornal Público, fazer do Senegal a porta de entrada das empresas portuguesas na África Ocidental. Por aí vê-se o quão é pouco realista vender a imagem de Cabo Verde como a ponte ligando a Europa à CEDEAO.
Há ilhas como Hong Kong e Maurícias que desempenharam esse papel de porta de entrada para capitais e de porta de saída para exportações em relação a países situados no continente e dessa relação conseguindo um grande impulso para o desenvolvimento. É o que fizeram com a China e a Índia. Hoje as Maurícias depois de perderem a relação privilegiada com a Índia fazem-no com dezenas de países africanos para os quais servem de base segura para o investimento directo estrangeiro (IDE) que lhes é dirigido. Souberam desenvolver vantagens competitivas que lhes permitiram ser úteis aos vizinhos e ganhar extraordinariamente enquanto centros industriais, comerciais e financeiros servindo-se em boa parte da sua condição insular.
A dificuldade com Cabo Verde está fundamentalmente em engajar-se numa estratégia de desenvolvimento num quadro que bem pode chamar-se de inserção dinâmica na economia mundial e fazer o desmame da ajuda externa e dos discursos políticos que se tem de fazer quando se vive ou se opta por estar na dependência da generosidade dos outros. Até lá as oportunidades vão passar ao lado, como aconteceu com o AGOA, e dificilmente se vai investir com visão e mostrar perseverança no esforço de dotar o país de vantagens nos domínios certos que o tornem útil aos outros e integrar cadeias de valor globais e regionais. Não se pode é ficar na posição, como diz o VPM, em que sem estatuto especial na zona de comércio livre pouco se ganha com a integração, mas também não participando fica-se sujeito ao que os outros países negociarem entre si e com outras potências económicas.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 950 de 12 de Fevereiro de 2020.

segunda-feira, fevereiro 10, 2020

Tentações de Chefe

Um dos factos marcantes do congresso do PAICV que decorreu no fim-de-semana passado foi a alteração dos estatutos com vista ao reforço do controlo do grupo parlamentar e dos seus deputados.
Nos novos estatutos pretende-se que os candidatos do PAICV às eleições assumam “por escrito, o compromisso de honra de colocar o seu cargo à disposição caso recusem submeter à disciplina de voto em matérias consideradas essenciais ou objecto de orientação expressa da Comissão Política”. Normalmente nos partidos há exigência de disciplina de voto nos processos de aprovação do Orçamento do Estado ou na aprovação de moções de confiança ou de censura que, conforme o desfecho, podem levar à demissão do governo e mesmo à dissolução do parlamento. Noutras situações a vontade política do grupo parlamentar é construída nas jornadas e não simplesmente imposta pelo líder do partido ou por determinação da comissão política. Em geral o recurso a medidas administrativas coercivas para manter a autoridade só acontece em situações de fragilidade dos líderes. No caso presente, pelo contrário, parece mais uma forma ostensiva de mostrar “quem manda”, em linha com o que se passa nesta era de avanço do populismo em que nos partidos e à frente de regimes democráticos chefes estão a substituir líderes.
E é assim porque na realidade o partido não tem como forçar o deputado a colocar o cargo à disposição e a deixar o parlamento. Os deputados da nação e os eleitos municipais são eleitos directamente pelo povo. O facto de o partido constitucionalmente poder propor candidatos não o faz dono dos mandatos e capaz de obrigar o deputado a renunciar ao mandato. Obviamente que qualquer documento escrito nesse sentido pelo candidato que formalize tal obrigação para o deputado não tem absolutamente qualquer valor real. A Constituição e o regimento asseguram que assim seja. Os deputados no parlamento podem organizar-se por grupos parlamentares representativos dos partidos ou escolher serem deputados independentes. Só estão proibidos de mudar de partido para não alterar a configuração política da Assembleia Nacional saída das últimas eleições. Enquanto deputados não inscritos ou independentes mantêm essencialmente os mesmos poderes dos restantes colegas incluindo o poder de apresentar projectos de revisão constitucional. Quanto à renúncia só se verifica mediante declaração apresentada pessoalmente ao presidente da Assembleia Nacional pelo deputado ou assinatura notarialmente reconhecida e depois de anunciada no Plenário pela Mesa. Dificilmente poderá ser resultado de uma carta/compromisso assinado previamente.
Não sendo fácil nem prática a medida de coarctar os deputados pelas razões apontadas há que perguntar porquê assumi-la frontalmente. É evidente que se quis dar uma resposta ao chamado Grupo de Reflexão exagerando os efeitos desestabilizadores no grupo parlamentar produzidos por intervenções ou sentido de voto de alguns deputados enquanto se escondia a incapacidade ou indisponibilidade em produzir diálogo produtivo. A intenção principal terá sido de demonstrar maior controlo do grupo parlamentar não para fazer funcionar o parlamento com maior eficiência no quadro do sistema político e prestigiar a instituição aos olhos do público, mas sim para deixar claro a determinação em fazer da actuação no parlamento um forte instrumento de luta pelo poder. Como se pode ver pela actuação de outros actores políticos tanto em Cabo Verde como em outras democracias “chefes ou aspirantes a chefes” não têm grandes problemas em sacrificar o parlamento, a classe política e os processos democráticos desde que a sua ambição pessoal e desejo de poder se realizem.
A grande crítica à democracia representativa tem sido a falta de ligação dos deputados aos seus eleitores, a submissão dos políticos aos respectivos partidos e a defesa de interesses particulares em detrimento do interesse público. Curiosamente os políticos que se apresentam como mais sensíveis a essa crítica e que ruidosamente se propõem a mudar a situação são os que mais a agravam. Dizem que são por políticas de proximidade, clamam por renovação das hostes partidárias e acusam os outros de corrupção. Para desalojar elites existentes introduzem formas inovadoras de selecção de dirigentes partidários e deputados, aparentemente mais democráticas como sondagens, primárias, quotas e avançam com alterações estatutárias como incompatibilidades, compromissos de honra e alargamento do universos de votantes para supostamente mudar hábitos arreigados de prática política e trazer mais transparência ao processo político. No fim do dia constata-se que ficam à frente de partidos ou de países onde a sua a voz e vontade são únicas, o debate político é praticamente nulo no meio partidário e nota-se mais dependência da classe política em relação ao Estado.
É por não haver uma resposta séria e honesta às questões levantadas pelos cidadãos que a c
rise da democracia se tem agravado e que em consequência se vem verificando a ascensão de movimentos populistas nos extremos do espectro político. De facto, ninguém ganha em tentar aproveitar o descontentamento em relação ao funcionamento das instituições, ou em potenciar o cinismo em relação à política ou em alimentar a desconfiança em relação às elites e todas as entidades de intermediação e em particular os mídias. Os partidos tradicionais que nas democracias seguiram por essa via perderam terreno com o eleitorado e progressivamente deixaram de ser vistos como alternativa da governação. Entrementes os muitos desiludidos com a democracia foram refugiar-se no campo de políticas identitárias e tribais que nada mais podem trazer senão violência e atraso.
Em Cabo Verde o processo está talvez na sua fase inicial, mas já se nota que o desgaste das instituições tem sido acompanhado de algum desvio no funcionamento e na postura dos órgãos de soberania e seus titulares. Também há a percepção de que reformas essenciais em tempo útil não estão a acontecer o que não augura algo positivo quanto mais se aproximam as eleições e o eleitorado precisará ser confrontado com alternativas reais em matéria de política para o desenvolvimento do país. Se a convenção do MpD em Março afinar pelo mesmo diapasão do congresso do PAICV de Fevereiro e simplesmente revolver o caldeirão dos descontentamentos para interesse de uns, dificilmente o país ficará em posição de poder perspectivar o futuro sem que crispação, tribalismos e visão curta ponham em risco a liberdade, a democracia e a abertura económica que conseguiu até agora construir.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 949 de 5 de Fevereiro de 2020.

segunda-feira, fevereiro 03, 2020

Que prevaleça o bom senso

No dia 22 de Janeiro, Dia do Município de S. Vicente, o governo pela voz do ministro de Estado Fernando Elísio Freire anunciou o reforço da descentralização no ano 2020 com a introdução de várias iniciativas legislativas. Ao longo dos meses e supõe-se até Julho, considerando que as eleições autárquicas terão lugar em meados de Outubro, deverão ser apresentados à Assembleia Nacional propostas de lei do novo estatuto dos municípios, do novo regime financeiro das autarquias locais, da nova lei de bases do orçamento municipal, da nova lei de impostos sobre o património e do regime de projectos de mérito diferenciado.
Entretanto, o governo já fez chegar à Assembleia Nacional a proposta de lei que dota a Praia de um estatuto administrativo especial.
Mesmo pondo de lado a questão se as iniciativas são ou não exequíveis ou podem ser levadas a bom termo num quadro temporal razoável, o momento escolhido não pressagia nada de bom. Conseguir, em cima de um pleito autárquico, acordos alargados das forças políticas sobre matéria de poder local e da sua relação com o governo central não é tarefa fácil. Em 2015, um pacote similar de leis incluindo um novo estatuto dos municípios também tinha sido apresentado pelo então governo do Paicv e foi de todo impossível reunir a maioria necessária para ser aprovado. Algo semelhante tinha acontecido cinco anos antes, em 2010, quando uma lei da descentralização que previa a criação de regiões e freguesias foi contestada pelos partidos da oposição por entre outras razões por não ter sido aprovada por maioria qualificada. Se se ajuntar a todo este historial de desencontros em matéria de descentralização os episódios recentes (2019) que marcaram o processo da regionalização e a discussão da proposta de lei no parlamento não é de se esperar muito dessas iniciativas. No mínimo vai-se constatar mais um pico no ambiente de crispação política. O que ainda poderá ser mais custoso é o país ficar sujeito a um quadro institucional criado por leis que não foram suficientemente debatidas nem devidamente ponderadas as opções de políticas nelas consagradas.
O que aconteceu com a lei da regionalização não deve repetir-se. Então ficou claro para todos que os propósitos eleitoralistas eram mais do que evidentes e que por isso o debate sobre toda a matéria ficou prejudicada. Daí que as soluções encontradas, seguindo essa lógica e que fixavam o princípio de ilha-região (desafiando a realidade de regiões sócio-económicas já existentes como S.Antão-S.Vicente, ignorando a fragilidade humana e material das ilhas com população diminuta e não tendo em devida conta a complexidade da situação vivida pelas ilhas alvo de grandes investimentos e de migrações massivas) geraram tanta controvérsia. O interessante é que depois de todo esse exercício contradizia-se o princípio de ilha-região e duas regiões eram criadas na ilha de Santiago. Não é de estranhar que no fim de tudo isso só tenha ficada a dúvida se os posicionamentos dos partidos em relação à proposta de lei eram sobre a substância da mesma ou se se tratava de um jogo para ver quem ficava com o ónus de ter bloqueado a sua aprovação. Também não espanta a perda subsequente de credibilidade das instituições e em particular do parlamento. Nesse sentido, introduzir outra vez leis sobre a descentralização sem uma discussão prévia entre os partidos e entre estes e a sociedade corre-se o risco de só acumular perdas como foi de outra vez.
Como se constatou em vários momentos, 2010, 2015 e 2019, quando propostas de lei sobre a descentralização foram presentes ao parlamento, torna-se claro que não há uma visão coerente e compartilhada sobre a matéria e que se age fundamentalmente para favorecer interesses reais ou tidos como tal de certos segmentos do eleitorado. O facto de essas datas situarem-se próximas das eleições, deixam transparecer a motivação dos governantes do momento e por isso mesmo a reacção de quem estiver na oposição. O resultado é que nunca há a serenidade necessária para discussão de uma matéria que se revela de extrema importância num país que todos reconhecem como altamente centralizado. E quando, por razões nem sempre claras, se chega a algum tipo de consenso, como aconteceu em 2005, também nas vésperas de eleições, e cria-se de uma assentada mais seis municípios o que se consegue é discutível. As dificuldades em matéria de autonomia, sustentabilidade, capacidade de investimento e de gestão numa perspectiva de futuro, que os novos municípios enfrentam, deviam ter sido equacionadas no âmbito de uma lei-quadro de criação de municípios o que até hoje não existe.
Medidas de grande alcance e impacto sobre o país, em particular na forma como se gerem os recursos disponíveis, se faz a redistribuição, se mantém a coesão nacional, se investe na competitividade e se aposta no futuro deviam ser discutidas em sede mais adequada – seja ela no quadro da aprovação de leis ou mesmo de uma revisão da Constituição – para se poder fazer a melhor ponderação e aprofundar as questões resultantes. Quando não se vai por essa via, porque se está pressionado pelo eleitoralismo, a democracia revela-se no seu pior em termos de ineficiência e a credibilidade das instituições e da política sofre. É nesse sentido que a proposta do novo estatutos dos municípios com mudanças na forma de constituição dos órgãos municipais e eleições para uma única lista para a assembleia municipal e assunção pelo primeiro da lista do cargo de presidente da câmara devia ser precedida de uma alteração na Constituição que contemplasse essa solução. A Constituição portuguesa permitiu uma solução similar, mas só depois da revisão constitucional feita em 1997. Insistir em avançar com a lei, sem clarificar em sede constitucional, pode levar ao mesmo impasse sofrido pela lei de igual teor em 2015. Do mesmo modo também, em sede constitucional, podia-se densificar a questão do Estatuto Administrativo Especial para a Praia para se evitar as controvérsias à volta da lei e suprir a deficiência original deixada pelo legislador constituinte que ao aditar do artigo não o acompanhou de uma justificação.
Por estas e outras razões parece pertinente que se faça proximamente uma revisão da Constituição. Desde Maio de 2015 que já é possível avançar com uma revisão ordinária da Constituição. Em causa está a descentralização que é uma questão central do país e que merece ser tratada em tudo o que implica com a seriedade e as devidas cautelas que se aconselham num país arquipélago de parcos recursos e diminuta população. É fundamental manter a ideia global do país ao mesmo que se assegura a diversidade propiciada pelas suas ilhas que o enriquece culturalmente e potencia o desenvolvimento do todo nacional. O consultor das Maurícias Dev Chamroo, ao observar certas derivas já tinha alertado que “se Cabo Verde acreditar que é 10 ilhas diferentes não vai a lado nenhum”. Por isso, todo o processo de descentralização incluindo a questão do Estatuto Administrativo Especial da Praia, que originalmente era inseparável das opções em matéria de regionalização, deve ser discutido aprofundamento em sede própria, com serenidade e sem pressão eleitoral em cima. É fundamental que, uma vez por todas, prevaleça o bom senso e que ao invés de se multiplicar ineficiências se tenha um país mais ágil, mais competitivo e com visão para agarrar as oportunidades.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 948 de 29 de Janeiro de 2020.

segunda-feira, janeiro 27, 2020

República dividida

Finda mais uma Semana da República, que anualmente desde 2012 acontece de 13 a 20 de Janeiro e é patrocinada pelo presidente da república Jorge Carlos Fonseca, não parece que o objectivo de fazer dos feriados datas de concórdia nacional tenha sido realizado. Em declarações no dia dos heróis nacionais o PR disse que continua a pretender que não se deve seleccionar fase da história, daquela que podemos gostar mais ou gostar menos. Os jornalistas contrapõem que há muitas críticas à forma como os combatentes da liberdade da pátria são tratados.
O Primeiro-ministro por sua vez apela para que não se continue a partidarizar a figura de Amilcar Cabral e que se deixe de o considerar património de um partido político em particular para ser património da nação cabo-verdiana. Antes na sessão solene da Assembleia Nacional já se tinha repetido a habitual contestação do 13 de Janeiro como Dia da Liberdade e da Democracia com os argumentos de sem­pre: que a liberdade foi de facto inaugurada no 5 de Julho de 1975 e que a democracia realmente resultou da gene­rosidade e visão do ex-partido único evidenciadas na decisão de abertura política de 19 de Fevereiro de 1990.
Pelo ambiente político assim recriado todos os anos percebe-se que a celebração da chamada semana da república falha em unir a nação. Só expõe as fracturas de uma república ainda dividida pelo confronto entre a defesa dos princípios e os valores da democracia liberal derivados do respeito pela dignidade humana e o apego de uma clique política a legitimidades históricas e revolucionárias. Os órgãos de soberania em particular o PR e o Governo esforçam-se por ir ao encontro das reivindicações dos intitulados heróis e combatentes mas o esforço nunca é tido com suficiente. Sempre que há uma oportunidade surgem reclamações que estão a ser preteridos e que a figura de Amilcar Cabral não tem o reconhecimento devido. Parece que não chega que ao longo da semana todo o sistema de ensino do país, dos jardins-de-infância às universidades, a comunicação social pública, as Forças Armadas na comemoração do 15 Janeiro e as mais altas figuras do Estado se desdobram em manifestações de gratidão. Quanto mais recebem, mais querem.
Mas a verdade é que as democracias não funcionam com o culto de personalidade, demonstrações eternas de gratidão aos melhores filhos e legitimidades revolucionárias. Foi para acabar com isso é que aconteceu o 13 de Janeiro de 1991. Na sequência, as liberdades foram recuperadas, o pluralismo foi instituído e os governos com mandato fixo passaram a resultar da vontade popular. Permitir que esses valores e práticas regressem simplesmente para cultivar egos, cavalgar ondas identitárias e apaziguar ressentimentos enfraquece as instituições democráticas e transforma a política numa guerrilha permanente que lhe retira toda a possibilidade de contribuir para a identificação dos problemas do país e a mobilização das vontades para os resolver. É o que já está acontecer e que se manifesta na impaciência quando se procura realizar alguma coisa, na euforia fácil seguida de frustração em relação às promessas feitas e no cinismo que tem vindo a crescer em relação à política e aos políticos e aos trabalhos parlamentares.
De facto, conhecer o percurso histórico do país não significa justificar opções feitas no âmbito de projectos de poder que constituíram sacrifícios enormes em liberdade e dignidade humana, no atraso de décadas no desenvolvimento do país quando comparado com realidades insulares similares com as Maurícias e as Seicheles e numa deficiente capacidade de construir um futuro próspero. Como valorizar quem protagonizou a independência nacional se para isso sete meses antes, em Dezembro de 1974, se acabou com a liberdade de expressão e de imprensa, liberdade de reunião e de manifestação e a formação livre de partidos políticos que existia desde o dia 25 Abril e depois se enviou os adversários políticos para a prisão do Tarrafal e posterior deportação para Portugal. As liberdades suprimidas então só foram paulatinamente recuperadas em parte a partir de Maio de 1990 e tempos depois com a queda do artigo quarto em fins de Setembro do mesmo ano. O partido único não tinha que ser uma inevitabilidade histórica. Foi uma opção de poder de um grupo político com as consequências conhecidas de todos. Para ser independente o país não tinha que ser uma ditadura. E a eventual glória da independência não apaga a responsabilidade pela ditadura.
Martin Luther King Jr é homenageado no 20 de Janeiro, um feriado nacional nos Estados Unidos da América, porque protagonizou a luta pelos direitos civis e políticos fundamentais para a liberdade e dignidade dos negros americanos que a emancipação dos escravos na sequência da guerra civil americana não tinha garantido. Formalmente livres, na pratica as leis de Jim Crow e todas as práticas segregacionistas que foram instituídas nos Estados do Sul coarctaram efectivamente a liberdade, o direito de voto e a expectativa de construção de uma vida digna e de prosperidade para a população saída da escravatura. A realização do sonho descrito eloquentemente por Luther King no célebre discurso de Agosto de 1963 em Washington só poderia começar pela conquista dos direitos fundamentais.
É uma vitória similar que fundamentalmente se celebra no 13 de Janeiro. Depois de 15 anos desprovidos da totalidade de direitos civis e políticos os cabo-verdianos passaram a ser cidadãos plenos no seu próprio país. A Constituição de 1992 em reacção aos anos de ausência de direitos estabeleceu que nenhuma maioria em sede da revisão constitucional ou referendo pode limitar ou restringir os direitos, liberdades e garantias constitucionais. A sessão solene da assembleia nacional onde deputados eleitos do povo representam toda a nação na pluralidade das suas ideias e na diversidade dos seus interesses justifica-se para anualmente afirmar e confirmar os princípios fundamentais da liberdade, do pluralismo, da separação de poderes, do primado da lei e da independência dos tribunais que toda a comunidade nacional estabeleceu como garante da sua liberdade e autodeterminação. Ataque a esses princípios de que ângulo for, seja pela demagógica incursão pelo nível de concretização dos direitos sociais, seja pela tentativa de reabrir o debate quanto ao próprio dia, seja ainda pelo apontar de insuficiências ou pretensas ineficiências ao processo democrático só serve para manter a república dividida.
O argumento que se podia fazer sessões solenes do parlamento noutras datas não cola. Os outros feriados nacionais não simbolizam o mesmo e sendo mais expressão da unidade da nação prestam-se mais a um protagonismo central do PR que é órgão de soberania singular e suprapartidário. É o que se pode constatar noutras democracias. Da mesma forma também se pode ver com clareza que cultos de personalidade e legitimidades revolucionárias são incompatíveis para se estabelecer a verdade histórica, inimigas de uma real emancipação e autonomia das pessoas e contrárias a uma cultura de auto- responsabilização individual e colectiva. Há que libertar-se finalmente desta praga.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 947 de 22 de Janeiro de 2020.

terça-feira, janeiro 21, 2020

Preservar a cabo-verdianidade

No último fim-de-semana aconteceu algo provavelmente sem precedentes. Cabo-verdianos saíram à rua em protesto em todas as ilhas, em várias cidades portuguesas, em algumas cidades noutras partes da Europa e também em Brockton, nos Estados Unidos da América. Nas manifestações e marchas todos mostravam consternação, indignação e revolta pela vida perdida do jovem estudante Giovani Rodrigues, mas o móbil maior das acções de rua foi protestar contra o racismo que estaria na base da sua morte violenta.
Um outro facto novo foi toda essa movimentação ter sido essencialmente alimentada a partir das redes sociais que trataram de dar, difundir e interpretar informações sobre o acontecido ao Giovani. Várias narrativas sucederam-se para explicar o que se passou, teorias de conspiração serviram para neutralizar ou lançar dúvidas sobre notícias oficiais das autoridades portuguesas e das autoridades cabo-verdianas e conseguiu-se que o incidente que levou à morte do estudante fosse tido como uma consequência do racismo e, de alguma forma, como produto do racismo institucional português.
Para qualquer observador conhecedor das ilhas e em particular da sua história e cultura seculares do cabo-verdiano seria de quem menos se esperaria encontrar num imbróglio com cores raciais ou visado como representativo de uma parte num conflito de raças. Da mesma forma que também seria quem num cenário de crime grave, mas sem provas concludentes quanto aos autores e às motivações, menos estaria inclinado em ver logo à partida fundamentos racistas e em estar pronto a posicionar-se como vítima de perseguição racial. Muito menos ainda se esperaria que um bom número de pessoas, em particular jovens nas ilhas e no estrangeiro, comungasse da mesma visão tingida por cores raciais. A morte de Giovani é razão para uma tristeza sem fim, mas não pode ser pretexto para se legitimar algo que claramente configura um retrocesso na visão que o cabo-verdiano tem si mesmo e da sua relação com o mundo.
Se tomarmos a origem da morna nas primeiras décadas do século XIX pode-se afirmar que elementos-chave da consciência da nação cabo-verdiana, língua e música já estavam presentes há quase dois séculos. A vivência dura nas ilhas dilacerada por fomes periódicas que dizimavam milhares tinha criado um ecossistema favorável que quebrou as relações socioeconómicas do passado e criou uma realidade onde as gradientes da cor da pele deixaram de ser relevantes culminando no mundo que o mulato criou identificado por Gabriel Mariano e descrito e revivido por todos nos romances, contos e poemas de Baltasar Lopes, Manuel Lopes, Jorge Barbosa e de outros Claridosos. De facto, no mundo do cabo-verdiano não tem qualquer relevância o tom mais escuro ou mais claro da pele na escolha de qualquer pessoa para um cargo público, no ser eleito para qualquer órgão de soberania e no singrar em qualquer carreira. Nenhuma classe socioeconómica ou profissão distingue-se pela cor da pele.
Visto numa certa perspectiva, o ideal de um futuro de harmonia racial de há muito que nas condições específicas de Cabo Verde (carestia, isolamento, fomes periódicas) se tornou numa realidade e constituiu o substracto-base de uma consciência de nação que se consolidou muito antes da independência nacional. Outras sociedades em determinados momentos julgaram ter atingido esse patamar nas relações humanas só para pouco depois se constatar que ainda estão muito aquém desse objectivo. Quando Barack Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos uma onda de optimismo atravessou a América e muitos conjecturaram se os americanos já tinham passado a viver numa sociedade pós-racial. Hoje sabe-se que não é assim e que a realização desse ideal tende a ficar mais longe devido à reacção de quantos se viram ameaçados pelos reais avanços então verificados. Frustração similar verificou-se anteriormente com o Brasil que por algum tempo conseguiu projectar para o mundo a imagem de uma democracia racial, um mito que particularmente a partir dos anos oitenta se desmoronou, revelando as profundas desigualdades existentes e como são reproduzidas pela discriminação racial institucionalizada. Ora se tudo indica que Cabo Verde conseguiu o que para todos é o ideal de convivência entre as pessoas como justificar que se queira desfiar o novelo depois de tão delicadamente e fecundamente o ter criado e voltar à indignidade de ontem de julgar as pessoas pela cor da pele. Devia ser o contrário. Há que tornar a meada mais apertada e mais rica e obter assim a unidade de propósitos indispensável para fazer prosperar o país na liberdade, na diversidade e no pluralismo.
É verdade que Cabo Verde não está sozinho e que a especificidade da experiência do cabo-verdiano não se estabelece sem que de alguma forma afecte a sua relação com o mundo. No país vive-se um ambiente isento de tensões raciais que se traduz numa harmonia e tranquilidade que até seduz os estrangeiros e dá uma outra dimensão à sodade sentida quando se está ausente da terra mãe. Já menos positivo é o facto desse mesmo ambiente não o preparar para enfrentar o mundo lá fora onde em maior ou menor grau preconceitos raciais se manifestam nas relações pessoais e não se excluem actos discriminatórios mesmo à revelia da lei. É evidente que face a tais situações se o cabo-verdiano estiver seguro da sua identidade e do seu percurso não se deixará apanhar no torvelinho de relações modeladas por uma história de humilhação, violência e vitimização de base racial. Nem tão pouco irá cair na tentação de trazer para o país os estigmas, a violência e uma visão do mundo colorida por filtros raciais. Infelizmente não parece que é isso que actualmente acontece.
Vários factores têm con­tribuído para o cabo-verdiano perder de vista o percurso percorrido para ganhar cons­ciência nacional. Sabe que a caminhada vem de longe porque não ignora que a sua língua, a sua música e sua literatura têm mais de um século de existência, mas repetem-lhe todos os dias qua a luta é recente e só batendo-se contra o inimigo colonizador nos vários campos vai afirmar a sua identidade. Na corrida em que artificialmente é colocado na busca de identidade acaba inevitavelmente por ir atrás de marcadores (culturais, origens, cor da pele, ideologias) que o distinguem do inimigo declarado e lhe permitem identificar quem está com ele na luta e quem é aliado do adversário. Ou seja, é lançado num caminho em que o mais certo é ver esvaziarem-se os ganhos de séculos na construção da cabo-verdianidade em busca de uma identidade forjada numa luta ilusória que só traz com ela insegurança pessoal, bairrismos e o regresso de complexos raciais. Como bem disse o doutor Gabriel Fernandes, com a política de reafricanização dos espíritos “… os actores políticos caboverdianos acabaram por exacerbar as diferenças internas abrindo um fosso entre os próprios caboverdianos, doravante percebidos, não em termos culturais-unitários, como parte integrante de uma entidade peculiar, mas sim político-dualísticos, sob o rótulo de anticolonialista ou de colaboracionista”.
É evidente que não é esse o caminho para unir a nação, construir a democracia e prosperar. De uma concepção de si próprio não “ a partir de dentro, da sua peculiaridade cultural, mas sim de fora, da sua compartilhada situação de africanos e dominados” só se pode ter estratégias de atracção de fluxos externos suportados numa permanente e criativa vitimização. Não fica espaço para a auto-responsabilização individual e colectiva que é essencial para a construção do carácter e da integridade que orgulharia a todos os que realmente forjaram a nação e nos legaram um género musical, a morna, que em Dezembro foi declarada Património Universal da Humanidade. Em memória do Giovani o que todos deviam fazer era preservar o legado da cabo-verdianidade e mostrar a todos que sim: é possível a harmonia racial no mundo.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 946 de 15 de Janeiro de 2020.

segunda-feira, janeiro 13, 2020

Ano 2020 em perspectiva

Com a entrada no ano 2020 Cabo Verde começa a se preparar para as eleições autárquicas, que virão ainda no segundo semestre, e as legislativas e presidenciais, separadas seis meses umas das outras, que se realizarão no próximo ano. Já foi dado o pontapé de saída.
O PAICV em Dezembro último escolheu o seu líder e prepara o congresso para eleições dos seus principais órgãos em Janeiro. O MpD deverá fazer o mesmo respectivamente em Fevereiro e Março. Da movimentação dos partidos não deve haver surpresas, em linha com o que o país já se habitou depois da eleição directa dos líderes pelo universo dos militantes. Os outros órgãos eleitos (congresso, convenção e direcções nacionais) deixaram de ser instâncias de discussão viva e plural dos assuntos do país e do partido. Passaram simplesmente a repetir as posições da liderança e a se desdobrarem em manifestações de devoção ao “chefe”.
Com o aproximar das eleições e de momentos mais polarizantes da vida política, o país vai ver mais uma vez adiada a discussão necessária que urge fazer dos problemas graves que o assolam e afectam problematicamente o seu crescimento, distorcem o emprego, não permite ter uma educação de excelência e não faz desaparecer o sentimento de insegurança. Perdeu-se talvez a oportunidade de uma discussão mais aberta dos problemas e eventualmente da construção de consensos para os ultrapassar nos anos logo a seguir às últimas eleições que deviam ser de menos crispação político-partidária. Mas visto de outra forma talvez o país não estivesse pronto para isso ou as suas lideranças não estavam à altura dos desafios que se colocavam. Ou ainda, ninguém se mostrava disposto a abandonar as práticas já estabelecidas de base populista e demagógica que paulatinamente têm vindo a definir o que é fazer política em Cabo Verde. Em boa medida, a tensão e polarização própria dos períodos eleitorais nunca realmente desaparecem no pós-eleições e a crispação assim institucionalizada pelo estado de permanente campanha partidária não permite que os problemas do país sejam, sem filtros, devidamente confrontados, equacionados e resolvidos.
Em 2020, o ciclo eleitoral começa mais cedo porque o mandato nos órgãos municipais é de quatro anos. Acontece de vinte em vinte anos. Por causa disso é especial, mas de forma oposta ao que o último ciclo em que as autárquicas vieram depois legislativas foi também especial. Se em 2016 foi notório o contágio dos resultados das eleições legislativas sobre as autárquicas, aparentemente nada impede que o oposto se venha a verificar agora com a diferença de ser a eleição mais impactante a que pode ser contagiada. Tal possibilidade tem o potencial de antecipar para mais cedo a disputa nas legislativas via uma interposta luta pela conquista de câmaras municipais. No processo, a qualidade da governação não deixará de ser afectada. Haverá mais dificuldade em conseguir acordos entre os partidos em matérias que exigem maiorias qualificadas e não deixará de se manifestar a tentação do governo em fazer chegar financiamentos a câmaras ou em apoiá-las com iniciativas várias. Do lado da oposição certamente que se irá agir no sentido de escrutinar mais o funcionamento municipal e não se irá dispensar acusações de aproveitamento eleitoral. Neste aspecto o ano pode não se mostrar muito produtivo no que respeita às questões de fundo do país sendo afectado negativamente pela guerrilha política que poderá instalar-se em antecipação das eleições legislativas.
A dimensão da vitória autárquica do MpD em 2016, em que dos 22 municípios passou a controlar 18 e dos quatro restantes dois são próximos e só dois foram para o PAICV, cria um problema algo complicado nas eleições seguintes. A tendência histórica para algum equilíbrio autárquico deixa prever que a haver movimento no controlo das câmaras o mais provável é que quem tenha mais, o MpD, perca algumas, mesmo mantendo a maioria como aliás quase sempre se verificou, seja nos governos do MpD, seja nos do PAICV. A desproporção actual das câmaras nas mãos de um e do outro partido é que é inusitada e naturalmente que constitui um convite a que o adversário pressione para, seguindo a tendência natural das coisas, capturar algumas câmaras e com isso passar a ideia de derrocada eleitoral do outro. E a poucos meses das eleições legislativas imagine-se o efeito que isso poderá ter particularmente se as câmaras perdidas tiverem um valor simbólico forte no âmbito da luta política em Cabo Verde. Não será um desfecho que irá interessar o partido no governo e certamente que fará tudo para não perder terreno autárquico e sobretudo nos municípios onde uma derrota pode ser apresentada como prenúncio de derrota nas legislativas.
A complicar ainda mais o cenário descrito de se vir a batalhar pelas legislativas servindo-se das autárquicas pode surgir ainda a questão presidencial que nos últimos tempos tem sido aflorada com alguma insistência. É curioso que a eleição do presidente da república, sendo a terceira das eleições no ciclo eleitoral de 2020/21, esteja tão presente no debate público, em artigos de jornais e em posts nas redes sociais. Compreende-se que assim seja considerando que o actual incumbente não é candidato e que realmente vai-se ter um novo presidente. Para os partidos que entrementes vão se defrontar nas legislativas a preocupação logo à partida é se a candidatura presidencial escolhida será factor de coesão do partido e assim ter impacto positivo nos resultados ou de desunião com as consequências que se conhecem. As eleições presidenciais de 2011 foram instrutivas a esse respeito. Tudo isso torna muito sensível a gestão política do ciclo eleitoral que já está muito focalizado nas legislativas. De facto, nenhum candidato ao cargo irá querer esperar pelo resultado das legislativas para dar a conhecer as suas pretensões e trabalhar a sua base eleitoral. Imagine-se o que pode resultar de esforços conflituantes.
Não há dúvida que por estas e por outras razões o ano de 2020 poderá vir a revelar-se um ano difícil. E a acontecer não irá beneficiar de uma envolvente externa favorável. No plano internacional as incertezas amontoam-se à medida que os Estados Unidos procedem, sob a liderança de Donald Trump, ao efectivo desmantelamento da ordem mundial construída no pós-guerra. Guerras comerciais, impedimentos à circulação de pessoas, reconfiguração de cadeias de valor globais e enfraquecimento da vontade das nações face aos desafios globais como mudanças climáticas, pobreza e opressão são das grandes ameaças que no inicio da década todos vão ter que enfrentar. Sem excluir a possibilidade de guerras destruidoras fruto de rivalidades económicas, geopolíticas e ideológicas como os acontecimentos da semana passada no Médio Oriente e no Irão vieram relembrar com muita clareza.
A questão que se coloca é se o país está preparado para enfrentar choques que poderão resultar de qualquer perturbação do ambiente internacional de paz, de ordem e de livre comércio entre as nações. Não é líquido que esteja, nem parece que venha a estar enquanto se privilegiar o ilusionismo na política e se permitir que o exercício do poder fique refém da prática dos partidos políticos de captura e manutenção de clientelas. Fixa-se no presente, adia-se o futuro e os desafios do país nem são realmente identificados ou reconhecidos. Em pleno ciclo eleitoral, então, o desvio da realidade é maior.

Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 945 de 08 de Janeiro de 2020.

segunda-feira, dezembro 30, 2019

Vergonha!

O debate político em Cabo Verde entrou recentemente por um desses desvios bizarros em que para alguns prevalecer na discussão em curso passa por se assumirem como assistencialistas e acusar os outros de não serem suficientemente assistencialista.
Tudo isso é feito em nome da solidariedade para com os mais vulneráveis e de luta contra a crescente desigualdade social. Faz-se por ignorar as experiências do passado, marcadas pelo assistencialismo, e as razões por que as vulnerabilidades das populações em particular no mundo rural persistem até hoje. Para evitar falhas futuras, não se recorre a uma avaliação compreensiva das opções feitas e dos investimentos realizados e em como ficaram aquém dos objectivos pretendidos e do impacto prometido nos rendimentos das pessoas. Prefere-se usar os problemas das pessoas e do país como arma de arremesso político.
Mais estranho ainda é o facto de, ao trazer de volta a via do assistencialismo aparentemente, estar-se a querer que o país repita indefinidamente as mesmas soluções ou suas variantes que já demonstraram bastas vezes não resultar. Em Junho de 2015, de acordo com os documentos do Banco Mundial, fez-se o último desembolso do Crédito de Suporte à Redução de Pobreza (PRSC) no valor de 10 milhões de dólares. Esse foi o nono desembolso que se verificou desde 2005 num total de 117 milhões de dólares. Certamente que todo esse dinheiro teve algum impacto na vida das pessoas contribuindo de alguma forma para se atingir alguns dos objectivos do milénio. O problema é se o efeito perdura para além dos projectos e se a vulnerabilidade das populações não se revela na primeira crise como veio a acontecer com a seca de 2017. Uma coisa é certa, de um fracasso na luta contra a pobreza tão evidente e recente não se vai em frente insistindo nas mesmas políticas com a esperança de que na enésima vez que vierem a ser aplicadas finalmente acontecerá algo de positivo e sustentável.
Bem pelo contrário, por cada tentativa na via errada criam-se vícios, desenvolvem-se frustrações e aumenta a desconfiança nas pessoas com consequências gravíssimas na sociedade e nas comunidades onde esses programas são aplicados. Tudo fica ainda pior quando subsequentemente e de forma politiqueira se debatem os fracassos sucessivos e procura-se determinar quem é mais amigo dos vulneráveis, quem mais se dispõe a abrir a bolsa dos recursos públicos para distribuir e quem menos pede às pessoas responsabilidade e cumprimento de seus deveres como pais, cidadãos, contribuintes, munícipes etc. Ao longo das intervenções não poucas vezes deseduca-se a população quanto à origem dos problemas, quanto à disponibilidade de recursos para os resolver, quanto à natureza dos desafios a enfrentar e quanto à capacidade do próprio país em resistir a choques externos. Deseduca-se também ao instrumentalizar para ganhos político-partidários de curtos prazo interesses corporativos, reivindicações salariais e benefícios de todo o tipo sem atender às consequências futuras. Por causa disso muitos, quando confrontados com os problemas do país, não conseguem ver a ligação necessária que, por exemplo, deverá existir entre o aumento salarial e aumento da produtividade e não se lhes consegue mostrar a importância crucial de se ter um Estado com dívida controlada e de se combater a corrupção em todas as frentes, ao mesmo tempo que se garante a igualdade de todos perante a lei.
As nações, assim com as pessoas, devem ser capazes de aprender com os erros cometidos e situações extremas vividas, e daí retirar as devidas ilações. Há algumas como a Alemanha que ainda hoje faz da memória da hiperinflacção dos anos trinta uma forte determinante na atitude dos seus governantes em matéria de política monetária no que respeita à inflação e estabilidade dos preços. Um caso mais recente é o do Ruanda que, na sequência do genocídio de 1994 e do trauma colectivo, tem sabido construir uma vontade nacional focalizada no desenvolvimento rápido do país. Vê-se a lição retirada de traumas passados também em certos países da Europa como Portugal onde hoje se sente por quase todo o espectro político uma vontade de acertar as contas públicas e de diminuir a dívida pública para níveis aceitáveis. Não se esqueceram dos tempos difíceis da troika quando estava em jogo a permanência do país no euro.
O país que parece esquecer facilmente dos seus momentos difíceis e mesmo traumáticos é Cabo Verde. Pelo choque sofrido com a redescoberta da vulnerabilidade das populações rurais na sequência da seca de 2017 seria de esperar uma nova postura dos actores políticos mais em consonância para enfrentar os problemas do país e mais elucidativa para as pessoas e para a sociedade quanto às reais dificuldades do país, quanto à urgência das reformas a serem feitas e à necessidade de mudança efectiva no modelo de desenvolvimento do país. Mas assim como aconteceu no passado depois de momentos difíceis como secas, afundamentos, erupções, pressões excessivas de “parceiros” parece que tudo é esquecido para rapidamente se voltar à gestão corrente. Depois do “susto“ retoma-se rapidamente o discurso de teor marcadamente populista com laivos de demagogia política que tem caracterizado uma parte significativa da intervenção pública dos partidos. O resultado é que se deixam problemas por resolver ou se faz de conta que não existem até que na próxima crise se manifestem em reacção a choques externos, ou se dissimulem em forma de picos de criminalidade, ou se revelam em manifestações ruidosas de interesses corporativos, em reivindicações salariais irrazoáveis e em protestos de utentes insatisfeitos com a qualidade e a morosidade de serviços públicos.
A grande questão é quem ganha com esse estado de coisas. Diz-se hoje que o crescimento não é inclusivo, que a desigualdade aumentou e que o desemprego não diminuiu como prometido. Mas pergunta-se: quando é que foi realmente? Quando é que a prosperidade se mostrou sustentável e ultrapassou o tempo dos projectos, ou dos programas de investimentos de parceiros internacionais. Para que não houvesse tanto desemprego, emprego informal, baixos rendimentos teria que existir uma estrutura produtiva no país capaz de disponibilizar bens e serviços transaccionáveis e poder ocupar grande parte da mão-de-obra disponível no país. E é precisamente isso que o modelo de desenvolvimento favorecido ao longo dos anos em Cabo Verde nunca deixou que acontecesse. Mesmo quando se procurou desviar do padrão existente, as resistências à mudança foram muitas e limitaram o escopo das reformas. O discurso político que se produz em Cabo Verde, e que é ainda tributário do modelo suportado pela ajuda e outros fluxos externos, dá expressão à luta pelo controlo desses recursos. Por isso mantém refém as forças políticas e o resultado é que nem mesmo em presença de dificuldades, situações difíceis ou mesmo traumas nacionais se consegue debater construtivamente. Não há como conduzir um diálogo nacional, que realmente confronte os problemas e abre caminho para se lançar pontes, chegar a compromissos e construir vontades, na perspectiva de se colocar o país dentro de um outro modelo que leve realmente à prosperidade inclusiva que aparentemente todos reclamam. É uma vergonha.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 943 de 23 de Dezembro de 2019.

segunda-feira, dezembro 23, 2019

Morna no Expresso das Ilhas

Por ocasião da elevação da Morna a Património Imaterial da Humanidade e para assinalar os 8 anos sem a Cesária Évora, o Expresso das Ilhas reedita os editoriais publicados pelo Dia Nacional da Morna, em 2018, e pela a morte da Cize, em 2011.

A Morna que nos une
A primeira celebração do Dia da Morna a 3 de Dezembro revestiu-se de um simbolismo especial nestes tempos divisivos que se vivem actualmente. Materializou-se a vontade unânime do parlamento de estabelecer por lei a data de nascimento de B.Léza como o dia para exaltar a expressão musical caboverdiana universalmente conhecida por morna e para homenagear os seus compositores e intérpretes. Também serviu para mobilizar a energia da nação para a tarefa ingente de conseguir a consagração da morna como Património Imaterial da Humanidade, uma pretensão de Cabo Verde que já foi entregue à UNESCO, desde Março deste ano. Ao juntar os caboverdianos, a morna, essa criação do povo das ilhas com mais de um século de existência, reafirma mais vez o seu papel identitário de primeira grandeza. A par com a literatura dos pré-claridosos e dos Claridosos e também com a língua crioula na qual se expressa, confirma-se como um dos ingredientes essenciais na emergência da consciência da nação.
Interessante como a reunião à volta da morna é universal no mundo caboverdiano. Aliás, como também é a língua crioula. Abrange todas as ilhas, perpassa todos os extractos sociais, chega a todas as idades e é acarinhada em todas as comunidades emigradas. Neste aspecto difere por exemplo do reggae que há poucos dias foi reconhecida pela Unesco como Património Imaterial da Humanidade. Segundo a nota da Unesco, o reggae era voz dos marginalizados na ilha de Jamaica que depois foi adoptada por vários outros grupos étnicos e religiosos contribuindo para o discurso internacional em matéria de injustiça, resistência, amor e humanidade. Já a morna não é evidente que tivesse uma origem em algum extracto da sociedade e expressasse algum tipo de resistência. Era cantada e sentida por toda a gente. Reflectia a condição humana nas ilhas com as suas dificuldades e aspirações e também os dilemas postos por uma vivência num ambiente de escassez, de falta de oportunidades e de futuro incerto. Apropriada por todos, conferia uma identidade, uma ideia de pertença que não se afirmava em contraposição a outros próximos ou menos próximos mas que pelo contrário unia a todos num destino comum.
Nestes tempos em que por todo o mundo nações ameaçam fracturar-se na busca incessante por identidades na base étnica, religiosa e racial, género é reconfortante para o caboverdiano perceber que a sua morna é um cimento forte que mantém intacta a ideia de pertença à caboverdianidade, não interessando onde a pessoa se encontra no momento, seja no país, nas comunidades emigradas ou em qualquer parte do mundo. Até tem o conforto de que o que o agarra à sua música não é uma idiossincrasia particular de alguém cuja existência como povo brotou de algumas ilhas no meio do oceano Atlântico. Depois da Cesária nas mornas por ela cantadas ter levado o sentimento do caboverdiano a audiências entusiásticas da França ao Japão, dos Estados Unidos ao Tadjiquistão e do Brasil á China não lhe resta dúvida quanto à universalidade da música criada por B.Léza e outros compositores populares em todas as ilhas. Mais uma razão para se promover a morna com vigor junto às novas gerações, levá-la às escolas, difundi-la na comunicação social ciente de que constitui um factor de unidade nacional fortíssimo que não se pode dispensar nestes tempos em que matérias fracturantes e lógicas de vitimização criam tensões e ressentimentos que com o tempo fragilizam e até ameaçam rasgar o tecido social.
Aliás, às vezes parece que não há uma preocupação muito grande em manter a nação e a consciência nacional protegidas de eventuais forças centrífugas que as podem enfraquecer. E isso pode constituir uma falha prenhe de consequências. É um facto que, por exemplo, nas democracias o dissenso só é possível se houver consenso quanto a questões fundamentais como o pluralismo, a liberdade de expressão, a separação de poderes e a independência dos tribunais. Da mesma forma que a diversidade só é possível numa comunidade nacional se houver a aceitação geral do essencial que une todos os membros. Por analogia, pode-se ver a importância de se reforçar os elementos identitários que ajudam a manter a ideia da nação e a importância do destino comum e compartilhado quando se interage num mundo global com povos, culturas e hábitos diferentes. Ninguém desconhece que a estabilidade política é importante para o país se manter atractivo, mas não se deve perder de vista que é também fundamental não deixar enfraquecer a consciência nacional essencial para que a relação do país como o mundo se estabeleça numa base segura, ousada e com espírito cosmopolita e nunca de vítima, de timidez e baseada no assistencialismo.
A ideia da nação caboverdiana é muito anterior à independência. Não é uma identidade conseguida em oposição ao outro como poderiam sugerir as noções hoje datadas de “nação forjada na luta contra o colonialismo”. Nem é uma identidade que se reforça em resistências intermináveis e patéticas contra a língua portuguesa com as consequências que já são conhecidas de todos. Nem muito menos no resgate de um passado escravocrata que só serve para inverter o percurso já feito há quase um século de emergência da consciência da caboverdianidade tão bem expressa na morna e na literatura dos claridosos. Quem produziu as canções, os livros, contos e poemas e também quem reconheceu toda essa obra como sua e dela se apropriou não quis apresentar-se ao mundo como vítima ou como descendentes de escravos. Quiseram sim, ser vistos como um povo que apesar das agruras da existência nas ilhas nunca perdeu o alento, nem alegria de viver e nem tão pouco a esperança no futuro enfrentando as dificuldades da vida no país e no estrangeiro com o orgulho de ter nascido caboverdiano. Este é o legado que eles nos deixaram e que todos os anos deve ser renovado no Dia Nacional da Morna que nos faz sentir caboverdianos.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 5 de Dezembro de 2018
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Cesária: A revelação de Cabo Verde ao mundo

Morreu a Cesária. Cabo Verde está em choque. De todos os continentes e culturas das mais diversas vêm gestos de pesar e de tristeza pelo passamento da cantora.
Compreende-se que assim seja. É um facto que pessoas das mais diferentes vivências, culturas e níveis de exposição ao Mundo sentem-se tocadas profundamente pela voz sublime da Cesária e gratas pela experiência única de a escutar. Em muita gente constate-se que, ao deslumbre nas actuações da Cesária, segue-se uma curiosidade, quase fascínio, por conhecer a cultura e alma do povo Caboverdiano. Querem saber de que húmus emanam as suas canções e de onde retirou a vivência profunda e marcada que a sua voz tão bem transmite.
Com Cesária as pessoas comuns em todo o mundo passaram a saber da existência de Cabo Verde e dos caboverdianos. Através dela e da morna, o seu género musical de eleição, intuíram a experiência humana verificada durante séculos nas ilhas de Cabo Verde. Umas Ilhas periodicamente fustigadas pela fome e não poucas vezes deixadas isoladas no meio do Atlântico a caldear os ingredientes de uma nova Nação. Europeus, asiáticos, americanos japoneses, latinos e africanos no final dos concertos ou após ouvir um CD sentiam-se tocados pela Cesária e pela morna. Com isso os caboverdianos passaram a saber que tinham sido capazes de produzir no seu cadinho de civilização algo universalmente válido.
Em 1987 com o festival da World Music (música do mundo) foi desencadeado um processo que caminhando, a par e passo com a aceleração da globalização, abriu sensibilidades das mais díspares a géneros musicais vindos de todo o planeta.
Instrumental para isso foram os novos produtores. Surgiram para ajudar muitos artistas na realização do sonho de atingir audiências variadas e universais. A Cesária teve a sorte extraordinária de ter o caboverdiano Djô da Silva como seu produtor. No album “Miss Perfumado” a convergência de talentos na Cesária e no Djô já produzia resultados surpreendentes cujo retorno para o país, para os artistas e para a nação caboverdiana se revelariam incalculáveis.
Nos 20 anos de carreira artística internacional, Cesária Évora encheu de orgulho os corações dos caboverdianos. A sua voz fez o mundo inteiro apreender as nuances da vivência caboverdiana, como era testemunhada por homens simples nas décadas 40, 50, 60 e 70 que nas horas de lazer cantavam as alegrias, as tristezas, os amores, a vontade de partir e a sodade da terra, da mãe e da cretcheu. No meio cosmopolita de São Vicente germinaram as mornas de B.Léza, Amândio Cabral e Lela de Maninha e as coladeras de Ti Goi, Frank Cavaquinho e Manuel d’Novas que Cesária levaria a todos os grandes palcos e revelaria Cabo Verde ao mundo.
No momento de tristeza de despedida da Cesária é fundamental lembrar a sua alegria de viver apesar das terríveis provações que teve de passar ao longo da vida. Lembrar que apesar do muito que lhe foi retirado, conservou sempre a capacidade de dar. A sua oferta maior ao mundo é o Cabo Verde de todos nós e de todas as gerações antes de nós.
Com Cesária e Djô da Silva devemos retirar a convicção de que temos algo de novo e valioso a dar desde que potenciemos o talento e a criatividade das nossas gentes. E que o sucesso estará ao nosso alcance se aproveitarmos devidamente as oportunidades que surgem e criarmos o nível de organização com sentido de eficácia para extrair o maior retorno de todas as iniciativas e empreendimentos.
O momento é de celebração da vida da Cesária que hoje sobe ao panteão dos intelectuais, de homens e mulheres simples que contribuíram para a nação caboverdiana se sinta digna, una, dinâmica e com confiança no devir.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 21 de Dezembro de 2011
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 942 de 18 de Dezembro de 2019. 

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segunda-feira, dezembro 16, 2019

Crise nos partidos é crise da democracia

Constata-se facilmente hoje que a crise das democracias tem sido acompanhada, ou às vezes precedida, da crise dos partidos políticos.
De facto, várias são as democracias, umas mais consolidadas (ex. Espanha, Itália, França) outras ainda não tanto (ex. Brasil), em que partidos, anteriormente baluartes do sistema político, em pouco tempo desapareceram ou tornaram-se insignificantes enquanto emergiam novas forças políticas e se projectavam individualidades para posições cimeiras do Estado, sem seguir as vias até aí convencionais de chegada ao poder. Para muitos, a crise de democracia nestes tempos de “recessão democrática”, é tida como resultado de falhas graves na representação política e consequente aumento do distanciamento entre os cidadãos e os governantes. Também se dá como uma das suas causas a percepção de que há opacidade na condução dos assuntos públicos, que favorece certos interesses, frustra a expectativa das pessoas quanto à accountability (transparência e o prestar de contas) do sistema e contribui para o agravamento da desigualdade social. Em todo o caso, o alvo da desconfiança dos cidadãos são os partidos e estes no reagir às pressões e no procurar adaptar-se às novas exigências podem desenvolver dinâmicas potencialmente perigosas para a própria democracia.
Partidos políticos são tidos como essenciais às democracias. É através dos partidos que, legitimamente nos regimes democráticos, se consegue acesso ao poder, se assegura a existência de oposição e a possibilidade de alternância no governo. Este facto faz do partido uma máquina de conquista de poder, mas também uma organização capaz de mobilizar a vontade de largos segmentos do eleitorado, de fazer-se representante dessa vontade e de, em caso de vitória eleitoral, propiciar competência política e executiva para conduzir os assuntos do Estado, a bem de todos. O problema surge quando a vontade de chegar ao poder atropela tudo o resto e aparecem dúvidas se está realmente a representar os eleitores e a governar com vista ao interesse geral. E o problema agrava-se ainda mais quando o partido, em vez de reencontrar o equilíbrio enquanto peça fundamental da democracia representativa, procura cavalgar a seu favor a onda popular de descontentamento, juntando-se aos que se atiram contra as liberdades, o parlamento, os medias e o sistema judicial. Aí todos perdem, como se vê nos países em que já se experimenta com formas de democracia iliberal e onde são notórios os avanços para um maior autoritarismo do Estado com a contracção drástica dos direitos fundamentais.
É evidente que também Cabo Verde não fica imune a esses fenómenos. Uma simples análise da vida partidária, da interacção entre os partidos, do nível do debate político e da credibilidade das instituições democráticas, como o parlamento, demonstram isso. As peripécias à volta da liderança do PAICV vão nesse sentido. Na sexta-feira passada, a candidatura de José Sanches ao cargo de presidente do PAICV desistiu da corrida. Justificou a decisão com o que considerou ser a total falta de condições para a realização de eleições internas no partido. Desde 2004, os grandes partidos caboverdianos , o MpD e o PAICV, adoptaram a via de eleição directa dos seus presidentes para passar uma imagem de maior democracia interna e de menos caciquismo no seu seio. Com a inovação iam de encontro ao que, há algum tempo, vinha acontecendo com outros partidos nos países democráticos, que não só adoptavam eleições directas para os órgãos, como já realizavam primárias para seleccionar candidatos a presidente. Preocupante é quando, aparentemente, fazem marcha atrás e vê-se que, pela segunda vez, individualidades próximas do chamado Grupo de Reflexão no PAICV falham em materializar uma candidatura alternativa e justificam com a falta de garantia de um processo eleitoral justo e equitativo. Ou se constata que a corrida eleitoral competitiva para presidente do partido, no PAICV só aconteceu em 2014 e no MpD, nas três eleições que seguiram à alteração dos estatutos, sempre se optou pela via de candidato único. Pergunta-se onde fica a democracia interna prometida na constituição dos órgãos, o pluralismo de ideias capaz de catalisar o partido e a cultura organizacional dirigida para a criação de futuros governantes com competências múltiplas e espírito de serviço público.
A tentação de responder à insuficiências da democracia representativa com “mais democracia” servindo-se de referendos, primárias e eleições directas nem sempre funcionam. Não poucas vezes tornam a situação muito pior. São processos susceptíveis à demagogia, à intolerância e à exclusão do outro em nome do Povo ou de um bem maior. Introduzi-los nos partidos e não cuidar activamente para se garantir o pluralismo de ideias, o direito à diferença e um ambiente próprio de uma organização de aprendizagem (learning organization) para o serviço público é caminho certo para lealdades fanáticas ao chefe e para se abrir as portas ao oportunismo e carreirismo nas estruturas partidárias e eventual transferência dessas mazelas para as instituições do Estado. Não é por acaso que a Constituição exige que a organização dos partidos se regem pelos princípios de organização e expressão democráticos. Um partido, no governo ou na oposição, que se mostra deficitário na sua democracia interna está efectivamente a prejudicar-se a si próprio e ao país. A sua contribuição para a discussão das grandes questões nacionais é mais fraca, a sua disponibilidade para compromissos é menor e o seu sentido de interesse público facilmente pode ficar comprometido se for sequestrado por interesses pouco claros, sem contrabalanço interno.
Os tempos actuais nas democracias, infelizmente, são propícios a esse enviesamento que ao descredibilizar cada vez mais os partidos aumenta as possibilidades de efectivamente se matar a democracia. E é verdade que já são visíveis sinais de alguma degradação da democracia, tanto no mundo em geral como no próprio país. Nos partidos, os efeitos do desgaste são naturalmente muito maiores e mais difíceis de conter. O foco do partido no poder, seja para o conquistar ou para o manter, conforme se está na oposição ou no governo, serve de pretexto para arregimentar seguidores, calar quem discorda e extremar posições sem preocupação com os efeitos no sistema político. Os apelos à unidade do partido, que na maior parte dos casos não passam de apelos ao unanimismo, servem fundamentalmente para paralisar adversários internos. Já para os cidadãos, seria ideal que os partidos fossem um viveiro de ideias e de talentos para melhor enfrentar os desafios de uma realidade sempre a mudar e cada vez mais complexa. Nesse sentido, impõem-se mudanças urgentes na cultura partidária pouco democrática que vigora por aí. Se se quer preservar a democracia, há que salvar os seus pilares.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 941 de 11 de Dezembro de 2019.

segunda-feira, dezembro 09, 2019

Governar com verdade e responsabilidade

Na semana passada Cabo Verde foi classificado pela Internacional SOS como um dos países mais seguros para turistas. É uma boa notícia, considerando que o turismo tem sido, e tudo leva a crer que vai continuar a ser por algum tempo, o principal motor da economia nacional. A questão que se coloca é se o país continuará a ser seguro no futuro próximo ou mesmo se a sua segurança irá melhorar como seria desejável.
Os surtos de criminalidade na ilha de Santiago e na Cidade da Praia, mas também nas outras ilhas, constituem um mau presságio e já preocupam a todos. São a razão por que ainda se mantém o sentimento de insegurança não obstante todos os investimentos públicos em recursos humanos e materiais no sistema de segurança. Ainda bem que até agora os seus efeitos não se fazem sentir nos turistas como parece confirmar a Internacional SOS. Pergunta-se é até quando, se entretanto não se encontrar formas mais eficazes de lidar com a criminalidade, de a combater nas suas origens e de conter o seu impacto nas comunidades e na vida das pessoas em todos os pontos do país.
As autoridades vêm anunciando baixas na criminalidade como, aliás, quase sempre fizeram. O problema é que praticamente não convencem ninguém. O sentimento de insegurança não desvanece. As pessoas não se sentem seguras a andar nas ruas das cidades e vilas do país a qualquer hora do dia como outrora acontecia. Cabo Verde não está a ser a terra de paz e morabeza que os poetas cantaram e com que todos sonham. Há que dizer um basta a isto. Uma terra de paz não pode ter armas circulando e pessoas armadas a assaltar e atirar contra as outras em ajustes de contas e crimes passionais ou por acidente. Para isso é evidente que não chega mexer mais uma vez na lei das armas. É preciso ir mais longe e desarmar a população como já foi sugerido em editorial deste jornal (12/10/2016) e como já o fizeram vários outros países que se viram perante verdadeiras epidemias de crime.
Também para ser terra de morabeza há que apostar forte na civilidade na relação entre as pessoas e numa cultura cívica que ligue os indivíduos à sua comunidade, crie um ambiente de confiança e constitua a base de crescimento do capital social essencial para que haja cooperação entre as pessoas e a vida não seja um jogo de soma zero. Há que ir mais longe na compreensão das razões de tanta violência nas relações entre as pessoas e o que leva conflitos por motivos aparentemente menores a ganharem dimensão desproporcional e a tornarem-se mortíferas. Nesse sentido, há que identificar condicionantes do comportamento, designadamente códigos de honra, rituais de iniciação e demonstrações de masculinidade que estão por detrás de manifestações excessivas de agressividade. Por outro lado há que reconhecer como muitas vezes o crime e a violência são induzidos e alimentados por uma economia subterrânea que tende dilacerar o tecido social e a esvaziar todas as iniciativas dirigidas para tirar as pessoas e as comunidades do círculo vicioso da pobreza, da insegurança e do desespero em relação ao futuro. Sucesso na diminuição do sentimento de segurança terá que passar não só pelo combate eficaz ao crime como também na transformação do ambiente sócio-económico e cultural que o alimenta e sustenta.
E é isso que aconteceu nas cidades e países onde efectivamente se conseguiu diminuir a criminalidade e restaurar a ordem e a tranquilidade pública. Necessário foi porém que primeiro se construísse um consenso geral a todos os níveis que se devia agir decisivamente para pôr cobro à situação, mas sem pôr em causa os princípios e valores que constituem a base de uma comunidade de paz e justiça. Afinal os que cometem crimes não passam de uma pequena minoria e conhece-se da história os graves atropelos sobre a maioria inocente que podem vir de um Estado dotado de poder quase absoluto em nome da luta contra o crime. O caminho para a construção dos compromissos múltiplos entre as forças políticas e entre o governo e a sociedade, indispensáveis para uma acção compreensiva das autoridades nesse combate, não pode passar pela polarização do discurso político que, quando levado ao extremo, deixa de um lado uns que são tidos a favor dos polícias e, do outro, os que “representam” os criminosos. É o tipo de discurso que se ouviu na última reunião plenária da Assembleia Nacional, mas já que se tinha assistido em outras sessões e com o resultado negativo que se conhece. E a verdade é que não sendo simétricos os papéis do governo e da oposição no sistema político quem politicamente paga mais pelo impasse que se cria com esse tipo de situações é o governo. É ele que tem o mandato, os recursos e o poder sobre as instituições para implementar políticas e atingir objectivos de interesse geral como são a segurança e a ordem pública.
Tanto assim é que da análise das eleições nas democracias nota-se que nas eleições o eleitorado – mais do que escolher entre as propostas programáticas das forças políticas em presença – com o seu voto, geralmente, decide se o incumbente merece ter mais um mandato ou se dá ao lugar ao partido alternativo no sistema. Ou seja, quem governa tem que apresentar resultados que vão ao encontro das aspirações da população ao passo que a oposição praticamente tem é que dar prova de vida confirmando que há possibilidade de alternância. Qualquer governo que queira continuar no poder tem que saber constituir a vontade necessária geral na sociedade e nas instituições para que as medidas de política resultem e os objectivos sejam atingidos. Não pode o governo justificar-se com acusações de obstaculização por parte da oposição e muito menos com lamentos patéticos de que o país não merece a actual oposição, detendo ele o poder e o controlo dos recursos do Estado.
Governar com verdade e sentido de responsabilidade é essencial para se construir essa vontade política, mobilizar energias e assegurar que as instituições cumpram as usas funções. De outra forma interesses corporativos emergem e encontram campo para se entrincheirarem ao se aperceberem que as forças políticas dividem-se na tentativa de os apaziguar e agradar. Sacrifica-se no processo a eficiência na utilização dos recursos públicos e eficácia na dispensa de serviços aos cidadãos. É de se evitar, por exemplo, a situação que se viveu durante quase um mês em que todo o país se sentiu consternado e menos seguro com a informação de que um agente da polícia tinha sido morto por delinquentes e que depois veio revelar-se falsa. Segundo o Director da Polícia Nacional terá sido um acidente. A questão que todos colocam é quando é que se soube a verdade do acontecido e porque se optou por não a revelar sabendo o impacto que estava a ter no público e na imagem do país. Desertar as pessoas e a sociedade em situação crítica como essa não contribui para a construção da confiança que se mostra essencial para fazer de Cabo Verde um país seguro. E a verdade é que o futuro depende precisamente da capacidade de realização do sonho de fazer de Cabo Verde uma terra de paz e morabeza.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 940 de 04 de Dezembro de 2019.

segunda-feira, dezembro 02, 2019

Pressão externa a espevitar o país

Os encontros semi-anuais do governo com o Grupo de Apoio Orçamental (GAO) têm-se revelado momentos interessantes para se confrontar a visão oficial sobre a situação do país com o olhar dos parceiros que financeiramente suportam o Orçamento do Estado.
É claro que o foco da atenção dos parceiros incide fundamentalmente sobre a questão do défice orçamental, do nível de endividamento público e da sustentabilidade da dívida a prazo. Mas acabam por fazer uma análise global sobre o estado da economia nacional, salientando resultados positivos e registando evoluções promissoras na implementação de políticas. Normalmente completam o seu comunicado final com recomendações sobre caminhos a seguir em cuja formulação, muitas vezes, deixam implícitas constatações menos positivas, questionamentos de prioridades e alertas em relação a certos desenvolvimentos. Num ambiente sócio-político em que, para além do confronto entre os partidos com todas as suas limitações e tendência para o sectarismo, não são muitas as oportunidades de debate sistemático sobre a economia, a apreciação que o GAO faz da situação do país influencia e ajuda a condimentar o discurso dos diferentes interlocutores. E como os encontros, em geral, acontecem em Novembro, nas vésperas da apresentação ao parlamento da proposta de Orçamento do Estado, ou então em Junho, um pouco antes do debate parlamentar sobre o estado da Nação, o impacto é ainda maior.
Uma das recomendações que chamaram a atenção da imprensa foi a do eventual impacto de novos incentivos fiscais dirigidos a investidores nas futuras zonas económicas especiais (ZEE). Subjacente está a preocupação em não se ter receitas derivadas das actividades desses operadores que compensem a perda fiscal com os incentivos dados logo à cabeça. Daí que aconselhem a ter em devida conta critérios de custo-benefício na projecção de novos esquemas de incentivos para as ZEEs. Acrescentam ainda que “antes da formulação de políticas é importante entender quais as categorias de investidores que potencialmente se localizariam na Zona e quais os mercados que eles almejariam alcançar”. Com tais alertas procura-se evitar que se repita o que aconteceu no princípio da década quando se endividou o país para financiar os investimentos públicos que iriam dar corpo aos clusters e depois não houve o retorno prometido. O “crowding in” do investimento privado, que viria na sequência do investimento público, não se verificou e Cabo Verde acabou por acumular uma dívida externa que o colocou na posição de um dos países mais endividados do mundo. Agora já não com “clusters” mas com “plataformas” ninguém deseja que aconteça o mesmo.
A verdade é que lendo os parceiros nas entrelinhas do comunicado não há por aí muita confiança que apareça alguma coisa que, pelo menos a médio prazo, se sobreponha ao turismo como motor da economia nacional. Neste aspecto parecem estar em linha com o que diz o Banco Mundial nos seus últimos estudos vindos a público sobre a economia de Cabo Verde. Não obstante, mostram-se optimistas em relação ao crescimento do PIB, que projectam em 5% no médio prazo, estão cientes dos vários factores que o poderão comprometer e também afectar a sustentabilidade da dívida. Vêem uma saída para as incertezas e uma forma de amortecer choques externos em políticas de investimento e uma estrutura de promoção consistente, focada na sustentabilidade, ligada ao desenvolvimento local e à diversificação económica. Apelam a que reformas sejam feitas e conduzam a mais coordenação e maior competitividade do país para que se concretize o objectivo de ter o turismo a impactar positivamente os outros sectores económicos e a contribuir para prosperidade geral.
A preocupação central do GAO com a dívida pública, actualmente no valor correspondente a 120% do PIB, faz com que avalie e siga com especial atenção os possíveis riscos orçamentais que o Estado pode vir a incorrer por causa das dificuldades financeiras do sector empresarial público, de outras participações empresariais ou ainda da eventual má gestão municipal. Nesse sentido há, por um lado, pressão para se prosseguir com as privatizações e as vendas de participação do Estado e a recomendação para fortalecer nos municípios a gestão dos aumentos dos recursos orçamentais. Por outro lado, nota-se alguma apreensão quanto às recentes aquisições do Estado na telecom e na banca e incentiva-se o governo a esclarecer os planos de alienação das acções compradas. Fica por saber é se as razões para isso são de natureza ideológica ou se advêm dos constrangimentos da dívida pública. De qualquer forma, a orientação parece ser a que Estado deve libertar-se de toda e qualquer intervenção em empresas públicas ou participadas. Já está a acontecer na ENACOL e, em princípio, o mesmo vai verificar-se com a venda de 39% das acções da Cabo Verde Airlines e mais tarde com a ELECTRA.
O problema com esta abordagem da gestão económica do país é que se fixa demasiado na questão da dívida e nos riscos de endividamento, subalternizando tudo o resto. O nível de rigidez que tende a impor deixa qualquer governo sem a necessária flexibilidade para responder a desafios e situações que revelem alguma complexidade. Num país pequeno e arquipelágico como Cabo Verde, onde a intervenção estatal se mostra muitas vezes indispensável para responder a mercados imperfeitos, falhas de mercado e dificuldades em conseguir economias de escala, deve haver sempre espaço para a discussão sobre qual deve ser o papel do Estado. Há que poder questionar, sempre, qual deve ser o escopo da sua actuação e inquirir dos níveis de eficiência e eficácia que deverá demonstrar enquanto prestador de serviços aos utentes e promotor da iniciativa individual e empresarial, vital para o país prosperar. Este é um componente do debate político que o país não pode abdicar mesmo quando conjunturalmente está sob forte pressão externa devido aos constrangimentos da dívida.
Deixar-se apanhar por razões ideológicas, ou sujeitar-se a amarras para receber dádiva externa, não é a melhor via para quem, com a realidade difícil e complexa que tem, devia sempre poder orientar-se pelo realismo e o pragmatismo na sua actuação. O facto não o ter feito por demasiado tempo explica muito as dificuldades com que hoje se depara e o nível mais baixo de desenvolvimento, em comparação com realidades insulares similares. Sabe-se que nem sempre será possível contornar as pressões, mas também se conhecem as consequências de capitular perante elas. Todo o país está hoje a pagar por opções de desenvolvimento mais apostadas na sobrevivência do dia a dia do que no investimento no futuro. As recomendações da GAO vêm relembrar com força que é urgente uma mudança de atitude.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 939 de 27 de Novembro de 2019.

segunda-feira, novembro 25, 2019

Para que não seja uma farsa

Na primeira sessão de Novembro da Assembleia Nacional, a matéria da composição do futuro Conselho de Finanças Públicas (CFP) foi dos pontos da ordem do dia que mais celeuma levantou. Em discussão esteve a questão se devia ser o Ministro de Finanças a propor o presidente e dois vogais de entre os cinco membros do conselho ficando os dois restantes por serem indicados pelo governador do banco e pelo presidente do tribunal de contas.
Tratando-se do órgão superior de uma instituição de escrutínio orçamental independente compreende-se que houvesse dúvidas quanto à indicação da maioria dos seus membros pelo ministro de finanças. De facto, o que está em jogo é nomeadamente o avaliar pelo CFP da consistência em termos macroeconómicos das projecções orçamentais e também do cumprimento de regras orçamentais e da dinâmica e sustentabilidade a prazo da dívida pública, todas essas acções sob a responsabilidade directa do ministro de finanças. E o que se quer é que não haja qualquer suspeita no que concerne à sua competência técnica e a independência. Nesse sentido, atribuir competência directa ao ministro na indicação da maioria dos seus membros, mesmo que mediada pelo conselho de ministros, certamente que não ajuda.
Conselhos de finanças públicas foram criados em vários países da União Europeia a partir de 2012 e na sequência da crise do euro e da dívida soberana com o objectivo de monitorização independente das contas públicas. O figurino adoptado para a composição do seu órgão superior foi como aconteceu em Portugal o de fazer o conselho de ministros nomear personalidades indicadas em proposta conjunta pelo presidente do tribunal de contas e pelo governador do Banco central. Pela via de proposta conjunta de duas instituições com altas funções técnicas e uma cultura organizacional de independência procurava-se garantir que os indicados reunissem qualidade técnica e fossem independentes. Associando a isso, entre outros atributos, mandatos relativamente longos e não renováveis, autonomia administrativa e financeira e inamovibilidade dos seus membros assegurava-se que poderiam ser uns verdadeiros watchdogs fiscais. A experiência portuguesa neste aspecto foi rica porquanto não faltaram tensões entre o CFP e outras entidades públicas incomodadas com os seus pareceres, à medida que o país nos anos difíceis da Troika e nos anos seguintes procurava fazer uma gestão orçamental, e em particular do défice e da dívida, em conformidade com as exigências europeias.
A adopção por Cabo Verde de instituições com esse perfil tem razão de ser. Quer-se com isso granjear credibilidade na gestão da contas do Estado, transmitir confiança que as previsões orçamentais de diminuição do défice orçamental vão-se verificar e que se irá trabalhar para que a dívida pública, ainda a níveis demasiados elevados, seja sustentável. E porque atingir tais objectivos é essencial para o país ser atractivo para o investimento externo e assegurar um bom ambiente de negócios, não se pode ficar a meio de caminho na forma como são constituídos os órgãos e alimentar dúvidas futuras quanto à sua competência e independência. Também não é procurando inovar com exigências de 15 anos ou 10 anos de experiência para os cargos de presidentes e vogais do CFP, que mais parecem critérios administrativos de antiguidade, ou estabelecendo que os órgãos fiquem adstritos à Chefia do Governo que se vai garantir capacidade técnica e autonomia.
Em instituições similares no estrangeiro, designadamente em Portugal, por causa do elevado grau de tecnicidade exigido abre-se a possibilidade de nomear vogais do CFP que não sejam nacionais do país, uma ideia que podia revelar-se interessante em Cabo Verde ainda carente de quadros altamente qualificados em domínios chaves. Outrossim, porque quem é fiscalizado e avaliado é o governo que executa o orçamento, afirma-se a autonomia fazendo o CFP tomar posse perante o presidente do parlamento que é um órgão plural e fiscaliza o poder executivo. Um grande desafio de todos estes conselhos fiscais seja nas experiências mais antigas como na Holanda ou nos Estados Unidos e mais recentemente na Suécia, Reino Unido e Hungria é garantir a autonomia e sobreviver ao descontentamento e críticas que num momento ou outro provocam junto de quem governa. Independentemente de algum mal-estar que eventualmente podem provocar, o facto é que os CFP com as suas análises, estimativas e monotorização da execução orçamental, ao trazer dados acima de qualquer suspeita, podem dar um contributo enorme para um debate político mais saudável e útil sobre a situação económica e financeira do país.
A opção por ter um Conselho de Finanças Públicas não deve ser visto como mais uma dessas medidas cujo principal objectivo é passar a imagem do país como de “bom aluno” junto das organizações internacionais e da União Europeia, na perspectiva de conseguir mais ajuda. Fez-se e continua-se a fazer muito disso, des­cur­ando os resultados e possíveis benefícios das medidas adoptadas e fixan­do simplesmente nos efeitos imediatos dos fluxos externos. Seria bom que no acaso actual houvesse um comprometimento para se ter um órgão de escrutínio orçamental realmente inde­pendente. Para isso, seria fundamental que se alterasse o quadro de nomeação dos seus membros porque como popularmente se diz não basta à mulher de César ser séria, tem que parecer ser séria. 
Nesse sentido não bastam as garantias do ministro de finanças quanto à indicação dos três membros do CFP, há que alicerçar a nomeação em bases institucionais sólidas. Um simples olhar pela actual estrutura do governo e pela actuação dos governantes não deixa dúvidas quanto à abrangência das funções do ministro de finanças que também é vice-primeiro-ministro. O poder que acaba por concentrar não deixa de causar desequilíbrios com impacto até na relação com os colegas ministros como visivelmente ficou patente ao público no processo de preparação do orçamento de 2018 e actualmente se nota no que alguns críticos já chamam de subalternização do papel do primeiro-ministro. Num quadro desses dificilmente se mostra credível que as suas indicações para os vários conselhos de administração de entidades públicas e empresariais são efectivamente escrutinadas em sede de conselho de ministros. E como parece, acreditando no que foi dito no parlamento por todas as forças políticas, que ninguém quer um Conselho de Finanças Públicas, que no futuro venha a revelar-se uma farsa, então que se legisle em conformidade para lhe garantir competência técnica e independência efectivas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 938 de 20 de Novembro de 2019.

segunda-feira, novembro 18, 2019

Resiliência democrática precisa-se

O trigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim aconteceu no sábado passado, dia 9 de Novembro. Por todo o mundo e em especialmente nas democracias o evento foi saudado com especial relevo nos jornais, rádio e televisão e relembrado em conferências, fóruns e artigos de opinião.
Nas universidades, think tanks e centros de estudos políticos e estratégicos foi matéria de apreciação sistemática em múltiplos encontros procurando perspectivar como foi possível regredir da euforia inicial e da aparente imparável vaga de democracia dos primeiros anos da década de noventa para o que agora se configura como uma espécie de recessão democrática. Foi também momento para se interrogar sobre as razões que têm levado multidões anteriormente entusiásticas com a liberdade e a democracia a apoiar populistas e demagogos que abertamente se declaram iliberais e questionam os direitos fundamentais, o primado da lei e a independência dos tribunais. E ainda para se saber porque gente que lutou e sofreu pelos ideais da cidadania plena, do civismo e do pluralismo presentemente se deixa arrastar por demagogos que cavalgam as ondas do medo contra o outro e cultivam o ódio sob a capa de políticas identitárias.
Em Cabo Verde, os trinta anos da queda do Muro de Berlim passaram praticamente despercebidos. Apesar do Cabo Verde moderno e democrático também ser parte vaga da democracia que partindo do desmoronamento do comunismo e do império soviético se propagou pelo mundo inteiro e derrubou regimes autoritários e totalitários, não há uma assunção explícita dessa herança. E isso é particularmente sentido nos órgãos de comunicação social pública que pela sua própria missão de informar e formar deviam ser os primeiros a cultivar os princípios e valores da liberdade e da democracia inscritos na constituição que resultou dessa vaga da democracia. A verdade é que mais facilmente os veremos em menos de um mês a comemorar os 45 anos da tomada da Rádio Barlavento, um acontecimento que efectivamente marcou o fim da liberdade de imprensa no país e da presença de privados na comunicação social durante quinze anos. Assim se tem verificado durante anos seguidos e dificilmente este ano será excepção.
O mesmo se pode dizer da Universidade Pública que se esperaria que fosse o grande centro de debate de ideias e a sede da mais ampla liberdade intelectual e liberdade de expressão e nessa medida relevasse o grande acontecimento da Queda do Muro de Berlim que inaugurou uma nova era no país e no mundo. Estranhamente a preocupação da universidade pública criada em 2006 é, nestes dias de Novembro e Dezembro, de comemorar 40 anos do ensino superior em Cabo Verde que supostamente teria sido iniciado com um curso de formação de professores em 1979. Um curso que o então Primeiro Ministro na abertura solene do mesmo definiu o perfil do professor pretendido como “um professor nacionalista e comprometido com a materialização dos princípios políticos do Partido, o PAIGC”. Não se percebe que tipo de valores se pretende resgatar de uma ligação com tal curso de formação de professores quando da universidade pública se espera que, em oposição aos propósitos que o nortearam, preze e exalte os princípios e valores de liberdade intelectual, da autonomia e da tolerância.
O descaso de entidades e de instituições públicas em matéria de defesa da liberdade e da democracia não é algo que só acontece em Cabo Verde. Queixa-se por esse mundo fora que uma das razões da recessão democrática actualmente vivida advém do facto de já não se ter memória presente do que é viver sem liberdade e sem uma imprensa livre, ser sujeito a prisões arbitrárias e não contar com um sistema judicial que administre justiça e obriga o Estado a cumprir a lei. Por isso que há quem queira testar o sistema estabelecido e submetê-lo a pressões anti-sistemas vindas de demagogos e populistas. Há quem nem queira se responsabilizar pela sua manutenção e cultive o cinismo em relação às instituições e à classe política. Há ainda quem sonhe com democracias de participação perfeita, de transparência absoluta e de corrupção zero. E tudo o que não corresponder, a todo o momento, ao sonho é motivo para indignação, seguido de frustração e posterior apatia ou militantismo violento. Estranhamente ninguém espera que a democracia soçobre por causa dos solavancos e choques a que é submetida. Tomam-se as liberdades e a democracia como garantidas mas a realidade é que não estão mesmo, como se pode constatar da ascensão do autoritarismo em vários países com tradição democrática.
Em Cabo Verde acresce-se a tudo isso o facto de a defesa dos princípios e valores democráticos ser enfraquecida pela presença forte de vários simbolismos dos primeiros anos da independência. As instituições e a própria classe política dividem-se em procurar equilíbrios e convivências de valores que de facto estão nas antípodas um do outro. O resultado é que prejudica a assunção de uma cultura democrática de real tolerância do outro, abre espaços para ambiguidades onde vão refugiar todas as resistências a reformas e à modernização do país, impede efectivamente o exercício da liberdade intelectual e não deixa energia para pensar o futuro e nele investir. A falta de “resiliência” democrática que tudo isso traduz pode revelar-se ainda mais problemática no ambiente actual no mundo em que as democracias estão sob ataque, os efeitos negativos da globalização aumentam com o enfraquecimento da ordem mundial e as expectativas das pessoas tendem a exacerbar-se com o acesso às redes sociais e total exposição ao que o mundo pode oferecer. Acossada a democracia poderá não haver reservas em termos de confiança e convicção que permitam resistir e recuperar-se de estragos causados.
Sinais preocupantes já se notam. As reacções ao surto da criminalidade e à insegurança não têm sido as melhores. Algumas configuram compressão de liberdades para responder a problemas de segurança. Outras querem “colaboração” do sistema de justiça acusando-se de demasiadamente garantístico. Ainda outras clamam para uma espécie de guerra ao crime com envolvimento de militares. O que não se vê é uma efectiva responsabilização pela situação acompanhado de um diagnóstico que vá além da procura de bodes expiatórios e de justificação porque é que depois de tantos meios materiais e humanos disponibilizados não há resultados sustentáveis. Entre os pilares da democracia está a exigência de “acountability” e o respeito pelo primado da lei os dois princípios de um Estado de Direito que os acontecimentos que se seguiram à queda do Muro Berlim tornaram possível. Há que os preservar e manter sempre a memória de como foram conquistados e como seria trágico ter de os perder.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 937 de 13 de Novembro de 2019.