segunda-feira, novembro 23, 2020

Parar de Cavar

 

Sempre que a questão da TACV vem à baila o governo é peremptório a dizer que “a CVA continuará a existir e a ser a companhia de bandeira”. Para qualquer observador não deixa de ser temerário fazer uma afirmação dessas nos tempos actuais da pandemia da Covid-19, de forte recessão mundial e de crise profunda no sector da aviação comercial.

Se para países altamente desenvolvidos como a Alemanha a decisão de financiar a Lufthansa para sobreviver os momentos difíceis que os especialistas do sector dizem que vão prolongar-se até pelo menos 2024, para outros mais modestos como a Islândia essa não é uma opção que possam considerar.

No caso de Cabo Verde com as fragilidades estruturais da sua economia e a dívida pública a aproximar-se dos 150% do PIB uma decisão de tal envergadura pelas suas implicações financeiras deveria merecer a maior ponderação. Não é porém o que recebe. Qualquer debate sobre o estado actual e o futuro da TACV desperta paixões avassaladoras e é motivo de troca de acusações mútuas entre as forças políticas. Em geral, soluções não são apresentadas e dos embates só se depreende que há acordo genérico e vontade em preservar a empresa aparentemente mesmo à custa do endividamento.

O último aval do Tesouro para a empresa se financiar foi concedido com a justificação que se impunha pagar os salários em atraso aos trabalhadores. Avales anteriores de várias centenas de milhares de contos procuraram viabilizar operações da companhia em vários momentos quando procurava desenvolver um hub na ilha do Sal que iria ser instrumental na movimentação de passageiros entre Europa e América do Sul e entre Africa e América do Norte. Os mais recentes avales porém têm suportado financiamentos de custos fixos existentes não obstante a companhia aérea ter deixado de voar desde 19 Março com o fecho das fronteiras devido à pandemia da Covid-19.

Sem estar a gerar receitas e com o próprio plano de negócios inviabilizado com a crise no sector é evidente que os avales do Estado tornaram-se operações de alto risco com implicações no défice orçamental e dívida pública. A empresa dificilmente hoje ou no futuro próximo terá condições de cumprir as suas obrigações junto dos credores deixando o Estado completamente exposto. Significativamente, quem parece que não ficou exposto no negócio é o grupo Icelandair. No seu relatório de contas deixa claro que a sua exposição ao associado TACV/CVA é zero e que nas transacções com a empresa as receitas geradas pela Cabo Verde Airlines ascenderam a 37,2 milhões de dólares e as despesas a 1,1 milhões de dólares.

Privatizações de empresas estatais acontecem por várias razões. São essenciais, por exemplo, quando se faz a transição de uma economia estatizada para uma economia do mercado como aconteceu nos anos noventa do século passado em Cabo Verde e nos vários países que deixaram o bloco soviético para se juntarem à economia mundial. Privatiza-se também para se liberalizar ainda mais a economia e potenciar a iniciativa privada como aconteceu na América e na Europa na sequência das políticas de Reagan e de Margaret Thatcher. Noutras situações, opta-se por privatizar empresas para diminuir o risco fiscal e conseguir receitas extraordinárias. No caso da TACV, era óbvio que devia ser privatizado por ser um risco sério para as finanças do Estado. Nos fins de 2015 e início de 2016 viu-se que também se tinha tornado num risco político para qualquer governo particularmente em tempo eleitoral. Desencadeou-se o processo sob a batuta do Banco Mundial que para o efeito fez questão de reter a ajuda orçamental (40 milhões de dólares) até que o processo ficasse completo. O grande problema é que mesmo com a privatização os riscos não foram eliminados e com a Covid-19 estão a ganhar proporções assustadoras.

A opção feita de privatização centrou-se na construção de hub na ilha do Sal que iria movimentar passageiros entre os vários continentes. Para além do impacto geral na economia que se esperava dessas operações ainda se queria incentivar o turismo no país através da promoção de Cabo Verde como um stopover na travessia da Atlântico. Para isso, ter como parceiro estratégico uma das empresas que constituem o grupo Icelandair mostrava-se promissor considerando a experiência e o sucesso do grupo em construir um hub no Atlântico Norte com stopover na Islândia. Seria uma jogada de risco mas que permitiria potenciar vários activos da TACV em algo que, se bem-sucedido, poderia constituir-se num grande ganho para o país.

Pelo relatório de contas do quarto trimestre de 2019 do grupo Icelandair ficou claro porém que sem um forte financiamento das operações do hub, o negócio correria sérios riscos. Aparentemente, a parceria estratégica não incluía uma componente financeira como normalmente se vê nos casos de privatização de companhias aéreas. Estranhamente, parece que o parceiro estaria a contar com o Estado para comparticipar do esforço financeiro quando, ao mesmo tempo, o governo com a venda das restantes acções até Dezembro de 2019, queria cumprir com o Banco Mundial e ver-se livre do risco associado. A meio do impasse criado, veio a pandemia e tudo parou. Não se realizaram mais voos mas continuaram os custos com os trabalhadores e supõe-se também com o leasing dos três aviões que, entretanto, foram estacionados na Flórida.

A questão que se coloca é se o plano de negócios do hubjá não existe, desapareceu”, como disse o Vice-Primeiro Ministro (VPM), por que é que os accionistas até agora não chegaram a acordo em como agir para conter e controlar os prejuízos e tomar uma decisão em relação ao futuro. Está-se a pagar o leasing dos aviões nos mesmos termos de antes? Será possível rentabilizar a empresa regressando ao plano de negócios anterior dos voos étnicos e de conexão com Lisboa, como foi sugerido pelo VPM, quando já se descontinuaram as operações domésticas e a regional? Vai-se continuar com um accionista que mais parece ser fornecedor de serviços de leasing de aviões do que o parceiro estratégico que aposta no negócio de criação de um hub no Atlântico? Vai-se deixar protelar uma situação que tudo leva a crer só irá piorar no estado actual da pandemia com custos impressionantes para o país porque mais uma vez a TACV está-se a revelar um risco político e os accionistas sabem disso? Há que pôr fim ao impasse que se vem arrastando ao longo de largos meses desde Março. Como bem disse alguém “Quando estiver no fundo do poço, a primeira coisa a fazer para sair dele é parar de cavar”.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 990 de 18 de Novembro de 2020.

segunda-feira, novembro 16, 2020

Confiança no processo democrático

 

A vitória de Joe Biden nas eleições americanas provocou um suspiro de alívio em quase todo o mundo. A perspectiva de finalmente deixar para trás a presidência desastrosa de Donald Trump permite que se encare o mundo com menos incertezas e que se espere da actuação dos Estados Unidos da América, no plano internacional, um efeito congregador de esforços de todos os países na resolução dos problemas globais.

Emergências planetárias como a pandemia da Covid-19 e as alterações climáticas que requerem intervenção coerente e sistemática de todos os países tinham-se tornado difícil ou impossível de se conseguir depois da actual administração americana se ter desertado do Acordo de Paris sobre o clima e adoptado uma gestão caótica da luta contra o coronavírus.

Também a democracia sofreu em todo o mundo assinalando-se em vários países o aparecimento de líderes populistas e a adopção de políticas iliberais que em vários graus levaram ao enfraquecimento das instituições e a uma deriva autocrática. Uma outra consequência foi o enfraquecimento do multilateralismo que entre vários efeitos prejudiciais sobre a ordem internacional nos domínios de segurança, saúde e comércio prejudicou a solidariedade entre as nações e incentivou fenómenos de desagregação supranacionais como o Brexit na Europa. Não admira que ao longo de toda a semana passada a contagem dos resultados da votação tivesse sido seguida com ansiedade em todo o mundo e houvesse uma explosão de alegria depois da confirmação da vitória de Joe Biden. Como várias vezes já se disse, meio a brincar, todos deviam poder votar nas eleições americanas considerando o impacto que têm no mundo.

Da América, não poucas vezes são visíveis as tendências em termos de fenómenos políticos, sociais e culturais que depois acabam de uma forma ou outra por ser adoptados localmente. Vários são os comentadores que, por exemplo, tomam a derrota de Donald Trump como o prenúncio do enfraquecimento de autocratas e seus imitadores que se têm proliferado nos últimos tempos por todo o mundo. Outros porém vêem na grande votação que mesmo assim ele recebeu os sinais de que os sentimentos, medos e ressentimentos que o projectaram não desapareceram. Pelo contrário, aumentou o número dos que nele votaram e de forma abrangente incluindo minorias e estratos sociais que supostamente seriam os alvos dos seus ataques designadamente os latinos, os afro-americanos, as mulheres e as pessoas LGBT.

Esperava-se nessa eleição uma “onda azul”, fruto da incompetência, insensibilidade e promoção do discurso do ódio constatadas por todos nos últimos quatro anos, que sob a liderança do partido democrata resultasse numa vitória retumbante sobre Trump e o trumpismo. O facto de não ter acontecido como esperado dá indícios que a dinâmica das políticas identitárias continua bastante viva mas que preocupações com a economia, a segurança, a boa governação e a imagem das instituições acabaram por sobrepor-se, ainda que por uma margem pequena. O grande desafio da democracia americana será saber como sair da política tribal de “nós” contra “eles”, que leva a bloqueios políticos e ao exacerbar dos radicalismos nos dois lados, para uma política de compromissos, que deixa espaço para acomodar posições das partes, possibilidade de consensos em questões fundamentais e estratégicas.

As democracias em todo o mundo estão em crise precisamente porque há uma percepção forte nas pessoas e na sociedade que o processo político não está a dar respostas às questões essenciais. Apontam-se falhas como a corrupção persistente, a falta de alternativa real de governação (aparentemente todos fazem o mesmo) e a deficiência de representação política (interesses outros são privilegiados). Todos as vêem mas não há acção concertada para as ultrapassar. Entretanto, a desigualdade social aumenta, diminuem as oportunidades de mobilidade social e bolsas de pobreza consolidam-se. Com a desesperança instalada o território fica fértil para os extremos em matéria de imigração, de convicção religiosa, de raça e de género se digladiarem, provocando ondas crescentes de xenofobia, racismo, discursos de ódio e terrorismo religioso. As instituições e os políticos descredibilizam-se e gera-se uma situação em que muitos em novas e antigas democracias se deixam tentar por discursos de autocratas e práticas iliberais de atropelo de direitos fundamentais. A pandemia da Covid-19 veio, porém, lembrar a importância da governação que prima pela competência, pela honestidade e pela adesão à verdade factual e científica. Da América já há um sinal nesse sentido e também um aviso.

O voto expressivo no trumpismo deixa transparecer que há ainda muito por fazer para evitar que a situação crítica vivida pelas pessoas ganhe contornos existenciais e a partir daí se deixem envolver em lutas identitárias e se predispõem a aceitar práticas de governação contrárias à democracia e à liberdade. Com a vitória do Joe Biden foi dado a oportunidade para se reparar os males que têm acompanhado o processo acelerado de globalização, a liberalização dos capitais, a mudança para o digital e o recrudescer das migrações internacionais. É o momento para se restaurar a política e a confiança que é possível encontrar soluções para os graves problemas com que todos se deparam. Nas democracias em geral o sentimento é que foi quebrado o contrato social vigente ao deixar-se que a riqueza concentrasse nuns poucos, que o Estado se mostrasse impotente perante interesses particularmente do sector financeiro e ao mesmo tempo incapaz de conter o declínio da classe média e de quebrar as bolsas de pobreza que todos os dias se alargam. Há que inverter a situação e reconstruir um contrato social que dê esperança e confiança às pessoas. O futuro da liberdade e da democracia depende disso.

Em Cabo Verde a pandemia da Covid-19 veio pôr a nu mais uma vez e de forma dramática as profundas vulnerabilidades do país. Ao crescimento económico que já tinha atingido os 5,7% em 2019, depois de anos de estagnação na primeira metade da década, vai suceder uma contracção na ordem dos 8%. Já os anos de seca de 2016-2019, pelo impacto que tiveram na população rural, tinham dado conta da precariedade de existência em vários pontos do território nacional. Ficou claro que os enormes investimentos feitos nos anos anteriores e que elevaram a dívida pública a 126% do PIB não traziam os benefícios prometidos. Com a pandemia a dívida em Dezembro, segundo o BCV, vai atingir os 150% do PIB.

A questão que se coloca é como no quadro democrático e mantendo os equilíbrios na sociedade e a paz social se vai lidar com os problemas difíceis de perda de emprego e perda de rendimento devido à covid-19 e a quebra na actividade turística. O ciclo eleitoral já se iniciou com as eleições autárquicas de Outubro mas pelo teor das promessas feitas pelas diferentes forças políticas não é evidente que estivessem a tomar em devida consideração a situação real do país. Para as legislativas deverá haver uma outra atitude. O ilusionismo na política em Cabo Verde é uma prática que vem de longe mas que já tarda em pôr um fim. Perde-se tempo e delapida-se a confiança das pessoas e da sociedade quando mais se precisa. Como as eleições americanas eloquentemente demonstram é fundamental manter a confiança no processo democrático para evitar lutas “tribais” e descredibilização das instituições. Garantido isso, as soluções para todos os desafios poderão ser encontrados. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 989 de 11 de Novembro de 2020.

segunda-feira, novembro 09, 2020

No rescaldo das eleições autárquicas

 

Larry Diamond o cientista político americano de renome mundial nos estudos da democracia escreveu na semana passada no jornal New York Times que regimes democráticos suportam-se em três pilares: a liberdade, o primado da lei e eleições livres, plurais e justas.

Disse isso a propósito das eleições americanas de 3 de Novembro de 2020 cujo desfecho ele próprio espera que venha pôr um fim à uma deriva iliberal que tem procurado abalar, senão deitar abaixo esses pilares. No seu texto constata que a liberdade e, em particular, a liberdade de expressão e de imprensa não têm sido limitadas apesar do feroz ataque à comunicação social vindo de vários quadrantes e que o império da lei tem não foi posto totalmente em causa apesar do funcionamento deficiente e inconsequente de instituições e entidades importantes da república. Caso diferente porém tem acontecido com o direito ao voto e a organização das eleições.

Múltiplas interferências no processo eleitoral foram feitas para impedir as pessoas de votar. Acções judiciais têm sido introduzidas para bloquear a aceitação de boletins de votos. Alimenta-se permanentemente a desconfiança sobre os resultados finais das eleições levantando o fantasma da fraude. O actual presidente Donald Trump até chega ao ponto de deixar pairar no ar dúvidas se aceitará uma derrota eleitoral e fazer a transferência de poder, o ritual fundamental das democracias em que se reconfirma que os mandatos são efectivamente limitados e que a possibilidade de alternância é sempre garantida. O espectáculo deprimente que tem sido a corrida eleitoral americana com todas as tentativas de manipulação das eleições abalou a imagem da democracia americana e veio demonstrar que nenhuma democracia, mesmo a mais antiga, não está a salvo de convulsões que podem pôr em risco a sua existência se os princípios de honestidade, integridade, decência e adesão à verdade e aos factos são escamoteados. Em tempos de crise, como a provocada pela da covid-19 que para além de ser sanitária também é económica e social, a ausência desses princípios na classe política e na própria sociedade são ainda mais gravosas. Traduzem-se em mortes e sofrimentos desnecessários e quebras na prosperidade que levarão anos a recuperar como se pode hoje constatar na América de Trump.

Cabo Verde, já imerso no seu sétimo ciclo eleitoral e a cerca de dois meses de celebrar a sua transição para o regime democrático, deve poder avaliar do estado dos pilares da democracia de que fala Larry Diamond. Começando pelo pilar das eleições livres e justas, a realização recente das eleições autárquicas a 25 de Outubro permite observar que o nível de organização do processo eleitoral tem melhorado consideravelmente não se registando as disputas eleitorais acrimoniosas verificadas no passado. Incidentes continuam a acontecer ou porque se teima nalguns sítios em fazer a chamada boca de urna ou persiste a desconfiança de que há tentativas de compra de bilhetes de identidade e de se usar outras manobras para impedir as pessoas de votar ou coagi-las a dar o seu voto num determinado sentido. Acusações mútuas são trocadas entre as forças políticas com maior veemência por parte dos vencidos, mas na generalidade dos casos sem a apresentação de provas convincentes para além do “diz que diz” e em muitos casos como justificativa para resultados abaixo das expectativas.

Recursos judiciais levados a cabo durante o processo eleitoral serviram para clarificar certas matérias designadamente no que respeita à liberdade de propaganda política que tirando a obrigatoriedade do acesso igual das forças políticas concorrentes a recursos públicos disponibilizados não deve ser limitada em nome do princípio de igualdade como se pretendeu. Também importante foi a decisão do Tribunal Constitucional em considerar inconstitucional a norma do Código Eleitoral que exigia aos subscritores de listas de grupos de cidadãos que mostrassem prova de não estarem vinculados a partidos políticos. Era uma restrição de direitos políticos que não se justificava e que vai na linha de impedimentos cuja natureza os devia fazer depender mais da responsabilidade individual ou dos partidos do que de uma acção coerciva do Estado que pode pecar pela desproporcionalidade e infringir no essencial dos direitos fundamentais.

A questão que se pode colocar, em certos aspectos similar ao que nos Estados Unidos chamam de princípio de Purcell, é se os tribunais podem mudar as regras do jogo, ou seja, as normas do Código Eleitoral nas vésperas de um pleito eleitoral enquanto o parlamento dez meses antes não o pode fazer. De qualquer forma os sucessivos posicionamentos do TC no sentido de libertar a lei eleitoral de restrições excessivas estão a contribuir para tornar mais pleno o direito de votar e contrariar uma cultura partidária que já vinha fazendo escola, de compra de votos e de bilhetes de identidade e também de exploração de qualquer discrepância nos cadernos para impedir as pessoas de votar. O caminho no sentido de eliminar desconfianças no sistema eleitoral é fundamental para a saúde da democracia como o exemplo actual dos Estados Unidos faz relembrar.

Também importante para a integridade do sistema político é manter a confiança na justiça e no Estado de Direito de democrático, um outro dos três pilares referidos. Confiança ganha-se e renova-se sempre que a justiça é realizada com qualidade e com todas as garantias, mas em tempo útil. Como em qualquer outro sector da vida nacional seja ele educação, saúde, habitação ou infraestruturas a disponibilização de meios materiais e humanos no nível desejável a todo o tempo não é possível, pois os recursos são escassos. A constatação de deficiências não deve, porém, constituir-se em justificação suficiente para a morosidade da justiça. E é assim porque há uma expectativa quanto à realização da justiça que não pode ser defraudada sob pena de descrédito. Quer-se um nível de produtividade aceitável na resolução de casos e que o público tenha a percepção que infractores estão a ser julgados e que prescrições, falhas no processo e não cumprimento das garantias de defesa não serviram de fundamento para não se acusar e julgar. Espera-se por isso um esforço maior da magistratura e toda a estrutura judicial para garantir que a confiança no sistema não seja beliscada. Diferentemente da educação e da saúde em que objectivos não cumpridos são sujeitos à penalização política e a possibilidade de mudança de políticas, uma justiça em queda de confiança abala todo o regime democrático. Os outros dois pilares do regime – liberdade e eleições livres – só conseguem manter-se se o sistema judicial independente do poder político for suficientemente eficaz. Para isso é fundamental o engajamento de todos, não só dos magistrados como da classe política e de toda a sociedade.

Quanto ao pilar da liberdade, a acção do Estado nestes tempos de covid-19 pode vir a revelar-se uma ameaça. Como já foi constatado em várias paragens, governos e outras instituições do Estado são tentados em tornar permanentes poderes e competências assumidas na luta contra a pandemia e que inclui restrições diversas, aumento da dependência dos indivíduos em relação ao Estado e maior controlo da actividade económica. Para atingir esses fins alguns não hesitam em contornar a lei, comprimir direitos fundamentais e forçar algum alinhamento do sistema judicial. Há mesmo quem em nome da crise queira interferir com eleições e prolongar mandatos. Na justificação por esse acréscimo de poder do Estado recorre-se à necessidade de acção coerciva do Estado porque as pessoas não cumprem com as regras de distanciamento social, uso de máscaras e higienização das mãos e meio circundante. De facto, como a transmissão do vírus é fundamentalmente via aerossóis expelidos nos actos normais de respirar e falar, um papel essencial para quebrar eventuais cadeias de contágio cabe a cada pessoa. Todos devem assumir, cumprindo as regras referidas, como uma espécie de disjuntor que corta a corrente. É um exercício de responsabilidade individual que para além dos ganhos imediatos no combate à epidemia ajuda a salvaguardar a liberdade, porque retira ao Estado razões para manter restrições diversas, situações de confinamento e estados de emergência que, quando perduram no tempo, acabam por inevitavelmente enfraquecer as democracias. O que se passa nos Estado Unidos veio demonstrar que todas as democracias são vulneráveis. É de suma importância que se salvaguarde a integridade dos três pilares que as suportam. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 988 de 4 de Novembro de 2020.

segunda-feira, novembro 02, 2020

Eleições em tempos de crise

 

Com a realização das eleições autárquicas no domingo passado deu-se o pontapé de saída para o ciclo eleitoral 2020-21 que inclui ainda eleições legislativas e presidenciais separadas umas das outras em média por períodos de seis meses. É um ciclo especial porque a proximidade das eleições aumenta extraordinariamente a possibilidade de contágio, ou seja, de os resultados de uma eleição afectar a outra.

Aconteceu há cinco anos atrás: a maioria esmagadora das câmaras municipais foram ganhas pelo partido vencedor das legislativas e ao maior partido da oposição coube apenas duas em 22 câmaras. Agora, porém, a sequência das eleições, primeiro autárquicas e depois legislativas e por fim presidenciais, é inversa. A expectativa geral é como o efeito de contágio ir-se-á manifestar.

Os resultados eleitorais já conhecidos dão conta de que algum reequilíbrio no controlo das câmaras já se verificou com o MpD com catorze e o PAICV com oito ultrapassando a situação algo anómala que saiu das eleições anteriores. Por outro lado, viu-se que tendo os dois grandes partidos lançados na campanha das autárquicas de forma que mais parecia um ensaio para as legislativas o mais natural é que, dependendo dos resultados, quisessem condicionar leituras políticas da sua prestação e melhorar a imagem. Câmaras ganhas ou perdidas em número e em valor simbólico iriam juntar-se a outros elementos e factores para aparecerem como os favoritos nos embates seguintes. Ninguém aparentemente esperava que houvesse um resultado com o potencial de mudar as regras do jogo, ou seja, de ser um “game changer”. A inesperada vitória do PAICV na capital do país terá sido um sinal de que eventualmente o país poderá estar aberto à alternância na governação. Aconteceu algo similar nas eleições autárquicas de 2004 em que a então oposição conquistou um número significativo de câmaras emblemáticas mas depois a mudança não se concretizou. No caso actual com a proximidade das legislativas o mais provável é que ninguém queira correr riscos e todos se precipitem já na campanha eleitoral relegando tudo para segundo plano.

O grande problema é que o país e o mundo enfrentam no momento uma pandemia que, para além de ser um grave problema de saúde pública, já se transformou numa crise económica e social afectando todos os aspectos da vida das pessoas com particular impacto na educação e formação de crianças e jovens. Em tal contexto é evidente que a perspectiva de uma focalização da atenção do governo e das forças políticas numa pré-campanha meses antes das legislativas não é reconfortante para ninguém, nem é recomendável. O pior que pode acontecer é assistir-se à repetição do que se viu antes e durante as últimas eleições em que governantes e dirigentes políticos concentraram-se em lutas locais para controlo dos órgãos municipais enquanto prioridades nacionais como a luta contra a Covid-19, a retoma da actividade económica nas ilhas turísticas e o processo educativo não recebiam a atenção desejada.

Realizar eleições democráticas em tempos de crise não é tarefa fácil. O facto das eleições de domingo passado se terem desenrolado sem problemas de maior é um sinal forte do nível institucional já conseguido no domínio eleitoral e também do elevado civismo da população que mesmo em situação de fortes constrangimentos se prestou a ir ordeiramente às urnas. O engajamento das pessoas e os muitos recursos utilizados constituem razão mais do que suficiente para que a democracia não signifique apenar ir periodicamente votar. Nesse sentido, projectos políticos apresentados e promessas feitas aos eleitores devem ser exequíveis e enquadraram-se no âmbito das atribuições e competência dos órgãos que vão ser eleitos. De outra forma não passam de compromissos tomados no vazio que desacreditam os políticos e a política e permitem aos eleitos exercerem o poder sem a responsabilidade e a necessidade de prestação de contas, essencial ao funcionamento democrático.

O poder local também é beliscado quando em campanha promessas são feitas que só podem ser realizados no quadro das opções do governo e recorrendo aos recursos do Estado. O municipalismo que tem na sua base o princípio de que os interesses locais não se esgotam no interesse nacional e que a prossecução desses interesses deve ser feita autonomamente por órgãos próprios fica prejudicado quando em processo eleitoral se proclamam alinhamentos partidários com o governo e se recorre massivamente a presença de membros do governo mesmo que nominalmente na sua condição de dirigente partidário. Apesar de se dizer que não existe nenhum impedimento na lei, não deixa de haver dever de reserva que limita a participação de figuras do governo e do Estado para não ferir o sentido de autonomia que constitucionalmente está na base do poder local. Não é por acaso que os municípios estão apenas sujeitos à tutela da legalidade, excluindo qualquer tipo de tutela de mérito.

O diluir de fronteiras entre as competências locais e as nacionais que se constata na prática leva a que muitos munícipes vejam na actuação dos eleitos excessivas preocupações com políticas e rivalidades partidárias de carácter nacional em detrimento de uma focalização na resolução dos problemas locais. O cansaço e o descrédito de muitos em relação a esta situação poderá estar na base do fenómeno de aparecimento da maioria das candidaturas de grupos de cidadãos nestas eleições autárquicas. O facto, porém, de não conseguiram apanhar percentagens significativas do eleitorado para além dos casos da Ribeira Grande de Santo Antão, Sal, Santa Catarina e Tarrafal de Santiago, mostra como para a generalidade dos eleitores é ainda fundamental o papel dos partidos para consolidar vontades que depois determinam resultados eleitorais. Aliás, a surpresa da vitória do PAICV na Praia sugere o que acontece quando um partido em tempo certo consegue ultrapassar as fracturas no seu eleitorado para o levar a votar enquanto o adversário de alguma forma deixa a sua base de suporte desmobilizar-se.

Agir no quadro das competências dos diferentes órgãos de poder político tanto a nível central como local e respeitar as regras do jogo democrático são essenciais para que a democracia não se resuma ao exercício periódico do voto. Evita-se assim a descredibilização das instituições e da classe política e eleva-se o nível de eficácia do regime de forma a poder ultrapassar as múltiplas crises desencadeadas pela Covid-19 sem que sejam sacrificados no processo os ganhos já conseguidos de liberdade e democracia. As prioridades do país em conter o coronavírus, reativar o turismo e normalizar o ensino escolar não devem ser secundarizadas a favor de campanhas eleitorais antecipadas. Os resultados das autárquicas na Praia até podem configurar um game changer mas é importante ter sempre em mente que as eleições vão-se verificar no seu tempo próprio e que até lá a governação do país deverá prosseguir tranquilamente com a participação de todas as forças políticas. Neste momento crucial é fundamental que se salve o país destas crises e que se cuide da democracia, essencial para a liberdade, paz e justiça. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 987 de 28 de Outubro de 2020.

segunda-feira, agosto 31, 2020

Consequências

 

A semana passada foi marcada pela revelação na imprensa internacional de uma alegada missão oficial à Venezuela seguida de comunicado do governo a desmentir o facto e a demitir das suas funções numa empresa pública o suposto emissário.

O visado respondeu com uma nota à imprensa onde deixou claro que foi contratado pela defesa de Alex Saab, a figura central do caso de extradição ainda à espera de uma resposta do Supremo Tribunal de Justiça. Confirmou que esteve nas redondezas da Venezuela mais precisamente nas ilhas de São Vicente e Granadinas, mas tratava-se dos seus próprios negócios e não fazia parte de qualquer delegação do Estado de Cabo Verde. Seguiram-se outros comunicados entre o governo e a oposição com as costumeiras acusações que na ânsia de ganhos político-partidários a curto prazo mais ofuscam do que iluminam os problemas. Entrementes plantaram-se dúvidas quanto à seriedade e honestidade do governo, acusado de querer à socapa negociar com o regime de Caracas, precisamente quando arranca o ciclo eleitoral com as eleições autárquicas.

Numa carta aberta, datada de 10 de Agosto, Alex Saab, depois de descrever o seu percurso como empresário e a situação de detenção em que se encontra actualmente, fez saber ao primeiro-ministro de Cabo Verde que “não tem dúvidas que a sua inacção terá consequências jurídicas e políticas”. Após o aviso veio a oferta de “ajudar Cabo Verde mais do que os Estados Unidos em 100 anos”. Pelos desenvolvimentos da semana passada apercebe-se que provavelmente já se estão a verificar as consequências da inacção. A imagem do governo foi beliscada. Para muitos a narrativa do envio de uma missão oficial à Venezuela é verosímil. Contribui para a credibilizar o perfil dos alegados emissários e a circunstância de terem ocupado altos cargos públicos, de serem activos nos círculos do poder e manterem relações próximas com decisores relevantes. O facto de virem confirmar que fizeram a viagem para a América do Sul emprestou plausibilidade ao que foi relatado na imprensa internacional não obstante as discordâncias quanto às partes do trajecto e aos motivos da viagem. O que faz dessa narrativa quase uma impossibilidade é o governo não ter nada com que negociar. Estando o processo de extradição em curso ela “só pode ser decretada por decisão judicial” (nº 6 do artigo 38º da CRCV).

Infelizmente o governo não foi desde o início claro e directo a explicar que Cabo Verde por ser uma democracia e um Estado de direito e também um pequeno país arquipelágico tem deveres de cooperação com os outros países na luta contra o terrorismo, contra todos os tipos de tráfico e formas de lavagem de dinheiro. As fragilidades do país fazem dessa cooperação uma via essencial para garantir a segurança, liberdade e prosperidade. É evidente que riscos existem em particular quando do outro lado estão entidades estatais e não estatais poderosas habituadas a imporem-se pela força e que recorrem à chantagem e a ameaças para atingir os seus objectivos. Ocorrendo uma dessas situações, o importante é reconhecê-la, denunciá-la e alertar o país para o perigo que daí pode advir. O pior que se pode fazer é deixar-se dividir pela acção exterior e tornar o confronto político-partidário num prolongamento ou apêndice dessa luta que, na sua essência, põe em causa os fundamentos de uma vida em liberdade com paz e justiça.

Porque a defesa dos interesses de Cabo Verde deve nortear o seu posicionamento quando cumpre o dever de colaboração, a cooperação com outros países tem que incluir uma componente de capacitação efectiva do país. Ser útil não pode simplesmente significar que o país se torna num espaço avançado de intercessão e confronto de infractores cujos produtos traficados têm um outro destino e outro mercado, arcando com os custos correspondentes: risco de ter elementos extremamente perigosos em prisões inadequadas, processo judicial longo e complexo e ameaças de retaliação vindas de organizações criminosas transnacionais poderosas. Não parece que se ganha muito em ser referência internacional na captura de grandes quantidades de droga simplesmente porque quem fez a investigação e tem todas as informações sobre o percurso passou convenientemente a informação para a polícia local fazer a apreensão. É só ver a fragilidade da capacidade nacional em controlar as costas das ilhas, em reagir a emergências e desencadear operações de busca e salvamento local para se concluir que toda a colaboração que o país tem dado no combate ao narcotráfico não tem sido devidamente compensada ou por falta de disponibilidade dos “parceiros” ou por inépcia dos sucessivos governos. Já é tempo de se alterar as coisas tanto no sentido de se acautelar situações de risco excessivo para o país como para garantir que se consiga ganhos reais dessa cooperação.

Cabo Verde já iniciou um novo ciclo eleitoral com as primeiras eleições marcadas para daqui a dois meses. O facto de se estar a viver um momento sensível com forças poderosas estrangeiras pendentes de uma decisão judicial abre a possibilidade de interferências no processo eleitoral com base em motivações das mais diversas. O enlamear deliberado da imagem do governo que se verificou na semana passada onde se juntaram recursos consideráveis para garantir plausibilidade de uma narrativa negativa pode não ser uma acção isolada e que outros exemplos de punição ou de retaliação por supostos agravos poderão estar na forja. Nestes dias como se pode constatar do London Daily Post de 20 de Agosto sob o título “Luxemburg invests in Cape Verde – newest narco-state” pôs-se a circular a ideia de que Luxemburgo deveria perguntar se vale a pena gastar os seus euros com Cabo Verde. Pode ser coincidência, mas não deixa de ser preocupante que na mesma semana em que se procura denegrir a imagem do país também se ponha em causa a cooperação generosa de Luxemburgo.

Uma realidade com que hoje em dia qualquer democracia pode deparar-se é a possibilidade de interferência de outros países nos processos eleitorais. Com a ajuda das novas ferramentas da internet e recorrendo às redes sociais e às fake news, aparentemente nenhuma democracia está livre de tentativas de manipulação, nem as mais antigas e consolidadas muito menos as recentes e altamente polarizadas. As eleições nos Estados Unidos, em 2016, e posteriormente em outros países europeus não deixam quaisquer dúvidas a esse respeito. De facto, ninguém ignora que hoje técnicas de condicionamento de eleições, mobilização de votantes e de criação e destruição de candidatos fazem parte do arsenal que um Estado ou mesmo outras entidades podem usar para conseguir desfecho favorável para candidatos preferidos e punir proponentes de certas políticas.

Para quem vai a eleições dentro de pouco tempo, todo o cuidado é pouco. Dos partidos políticos e também dos candidatos é de se exigir um maior esforço na salvaguarda dos princípios que permitem a qualquer cidadão exercer livremente o seu voto. Deve-se deixar claro que a opção pela liberdade e democracia não é negociável e que é de rejeitar qualquer tipo de interferência. Mais do que nunca há que evitar o extremar de posições e focalizar-se no debate construtivo que conduz à realização do interesse geral.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 978 de 26 de Agosto de 2020.

segunda-feira, agosto 24, 2020

Deixar de repetir os mesmo erros

 

Aproximam-se as eleições e para a má sorte de todos a questão da TACV ameaça tornar-se outra vez um foco importante de discórdia entre os partidos remetendo outras matérias para um plano secundário. O problema é que sempre se quis confundir a transportadora aérea com a política de transportes no país e não se vê qualquer solução para os problemas de deslocação das pessoas entre as ilhas e para o estrangeiro que não passam por salvar de uma forma ou de outra a “companhia de bandeira”.

Outra vez e desta feita em plena pandemia de covid-19, que praticamente deitou abaixo a indústria da aviação em todo o mundo para só vir a recuperar em 2024-5 segundo alguns peritos do sector, ouve-se de todos os quadrantes incluindo o governo que há que salvar a TACV.

A aparente unanimidade no objectivo não se traduz porém numa convergência de posições para o realizar. Pelo contrário, a tentação é de se entrar num jogo de passar culpas ao outro procurando dividendos político-eleitorais mesmo a custo de enfraquecer a mão de quem no momento negocia. Depois fala-se em chantagem, mas não se assume que de uma forma ou outra todos contribuem para que aconteça designadamente com falta de transparência, críticas desabridas e importância eleitoral excessiva atribuída ao desfecho do processo.

Não espanta que terminado o ciclo eleitoral, ganhando quem melhor pôde capitalizar as deficiências tornadas evidentes para todos, se volte à situação anterior com uma empresa sugadora de recursos públicos, ineficiente nos serviços prestados e incapaz de realizar os objectivos estratégicos preconizados seja de hub ou plataforma aérea e mesmo de elo seguro de ligação com a diáspora. Tem sido sempre assim. Quando se está em campanha como que se perde de vista a complexidade do sector da aviação civil e só ficam as acusações mútuas.

Num ápice parece que são esquecidos todos os planos de negócios adoptados ao longo dos anos que não resultaram e os diferentes conselhos de administração que não conseguiram imprimir uma outra orientação ou reestruturar a empresa para ser mais competitiva e ganhar mercados e as tentativas de privatização que falharam. Apesar dos prejuízos acumulados ano após ano continua-se a alimentar o sonho da companhia de bandeira sem completamente se assumir que o espaço de manobra se torna mais estreito à medida que a dívida pública aumenta com o assumir dos prejuízos acumulados das empresas públicas. Depois a realidade cai em cima na forma de missões do FMI e do Banco Mundial com as suas fixações nos dados do défice orçamental e da dívida pública e como esses números se desviam do quadro macroeconómico desejável.

Aconteceu em 2016, mas já se tinha verificado em outros momentos como, por exemplo, na primeira década deste século em que se fez um contrato de gestão para reestruturar a TACV e privatizá-la mas o plano falhou completamente. As instituições de Bretton Woods predispõem-se a ajudar, mas acabam por impor condições que deixam os governos com as mãos praticamente atadas e levam a situações como as vividas actualmente. Logo no início do mandato deste governo suspenderam a ajuda orçamental até que o processo de privatização da TACV ficasse completa. Quando em Maio de 2017 o governo cedeu o mercado doméstico da aviação à Binter fizeram saber que ainda não era suficiente e que a ajuda continuaria suspensa até à total privatização da transportadora aérea nacional, o que viria a verificar-se em Março de 2019.

A 6 de Junho com pompa e circunstância o governo assinou com o Banco Mundial o acordo de ajuda orçamental de 40 milhões de dólares e a TACV transformada em CVA lançou-se na criação de um hub aéreo a partir da ilha do Sal com um parceiro “estratégico” islandês detentor de 51% das acções e o Estado de Cabo Verde com os restantes 49%. Segundo o que foi acordado, o processo de privatização porém não deveria parar e teria que ser terminada em princípio até Dezembro de 2019. Foram vendidas parte das acções aos trabalhadores e a emigrantes num total de 10% ficando o Estado com 39% que deveria ceder a privados nacionais por razões que se desconhecem. Se era para liberar o Estado da responsabilidade futura de financiamento da empresa não parece que tenha sido esse o entendimento do parceiro islandês considerando que os créditos conseguidos junto à banca sempre contaram com aval do Estado correspondente à cota completa de 49%, ou seja, incluindo a parte já comprada pelos trabalhadores e emigrantes.

A parceria estratégica com a Loftleidir não parece que tenha tido uma componente financeira no sentido de facilitar o acesso ao crédito em bons termos que fosse capaz de suportar o desenvolvimento de novas rotas e a criação de novos mercados atraídos pela possibilidade de um “stopover” na ilha do Sal. E isso era imprescindível como confirma a própria Icelandair nos relatórios de contas de 2019 e no relatório trimestral de Março de 2020. Depois de constatar que os resultados operacionais do último trimestre de 2019 e do primeiro trimestre de 2020 ficaram abaixo das expectativas, o grupo islandês deixou claro que para evitar desenvolvimentos negativos no futuro tinha que se conseguir financiamento de longo prazo. Só que, segundo uma nota do Conselho da Administração da CVA, a responsabilidade para o financiamento e desenvolvimento imediato e futuro da companhia aérea dependia de uma mensagem clara dos principais accionistas, incluindo, portanto, o Estado de Cabo Verde.

Da parte da Icelandair a preocupação com o futuro da CVA expressa nos relatórios referidos tinha a ver com um eventual impacto negativo sobre a Loftleider caso não se confirmasse o leasing de 4-5 aviões que estava previsto para 2020. No resto, o grupo não se vê exposto a qualquer risco na TACV. Imagine-se quem ficou a assumir os custos associados ao risco do negócio que depois de dois trimestres seguidos de resultados abaixo das expectativas foi-se abaixo com a covid-19 a partir de Março devido às restrições globais nas viagens aéreas e ao fecho generalizado das fronteiras. Pode-se dizer que se sabia à partida que o negócio da instalação de um hub no Atlântico Médio na perspectiva de repetir o sucesso mais a Norte do hub islandês era de alto risco. Talvez, tirando de lado a total liquidação da empresa, não houvesse outra saída considerando as expectativas do país, a sensibilidade política da questão TACV e a pressão das organizações financeiras internacionais e dos parceiros para se eliminar o risco orçamental representado pela companhia.

O facto é que se acabou por ficar com um parceiro que devia ser estratégico no desenvolvimento de um negócio potenciador de vantagens múltiplas para o país designadamente no turismo e em serviços prestados ao exterior, mas que aparentemente tinha como principal objectivo assegurar o leasing dos seus aviões em condições privilegiadas. Situações do género aconteceram várias vezes no passado e resultaram muitas vezes da situação de fraqueza com que partem para as negociações, do sentimento de dependência que se tornou quase uma segunda natureza e da propensão para ceder à pressão dos parceiros e poder continuar a beneficiar da ajuda externa.

Estes tempos de pandemia devem fazer lembrar a importância de se construir resiliência para enfrentar choques de toda a espécie. E é evidente que essa construção é incompatível com atitudes e comportamentos de dependência que, como nestes e outros casos, só deixam custos que o país e todos os cabo-verdianos vão ter que arcar no futuro. Razão suficiente para não deixar que a questão séria dos transportes aéreos do país seja consumida pelo problema da TACV e que o país pague com juros ainda mais altos pelo que tem a fazer para sair do imbróglio actual. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 977 de 19 de Agosto de 2020.

segunda-feira, agosto 17, 2020

Autoridade e confiança andam juntos

 O governo através da resolução n.º 113/2020 renovou o estado de calamidade nas ilhas do Sal e de Santiago agravando drasticamente as medidas dirigidas para impedir ajuntamentos de pessoas.

O nível de contágio nas duas ilhas tem-se mostrado preocupante e procura-se com abordagens mais resolutas das autoridades de fiscalização impor o uso de máscaras e obrigar ao distanciamento social tanto em espaços públicos abertos ou fechados como também a nível privado com a proibição de convívios alargados de amigos e familiares. A situação da covid-19 no país não é boa. Está-se já a passar o limiar dos 3000 casos confirmados quando há menos de dois meses e meio, no fim do estado de emergência a 29 de Maio, o total de infecções se situava em 409. O número de novos casos continua a ser dos mais altos em África e o país continua na lista negra dos países que não podem voar para Europa nem receber passageiros da União Europeia.

As autoridades insistem em dizer que o pico da epidemia foi atingido em Julho e que agora a tendência é para redução, mas é a impressão generalizada que a situação não está controlada. Aliás, as últimas medidas visando fundamentalmente coagir as pessoas não transmitem essa sensação de controlo. Pelo contrário, deixam passar a ideia de que a persuasão se alguma vez funcionou deixou de o fazer e já não se consegue apoio suficiente das pessoas e particularmente dos jovens para quebrar as cadeias de contágio. Se, como como diz a economista Anne Krueger, éa adesãodo público a medidas preventivas que determinará a que ritmo o vírus será vencido e se ela não está a verificar-se ao nível desejável há que reconsiderar os métodos seguidos. De facto, não há como evitar uma reflexão descomplexada sobre a estratégia seguida até agora na luta contra a pandemia, sobre as opções em matéria de comunicação e o nível de competência como foram implementadas as medidas e orientações dadas.

Infelizmente não é essa atitude que se constata e o teor da última resolução do governo a renovar o estado de calamidade é elucidativo a esse respeito. Implicitamente deixa claro que a culpa na falta de controlo da covid-19 em Cabo Verde está nas pessoas e, em conformidade, as medidas nela constantes visam essencialmente reprimir comportamentos desviantes. Repete-se o que se faz nos pronunciamentos públicos em que invariavelmente procura-se culpabilizar as pessoas pelos surtos e ilibar a actuação das autoridades de qualquer responsabilidade. Quando, como se viu na semana passada, que não era possível escapar a alguma responsabilidade oficial pela deterioração da situação imediatamente começaram as acusações intestinas entre serviços que pela sua gravidade receberam reparo público do presidente da república. Porém, a falta de coordenação e de troca de informações entre serviços vitais para a luta contra a pandemia que todos esperavam que estivessem a agir em perfeita sintonia implementando uma estratégia comum, não deixou ninguém tranquilo. E a produção da resolução com medidas controversas quanto à sua oportunidade, proporcionalidade e eficácia e ainda constitucionalmente duvidosas, porque restritivas de liberdades, só veio reforçar essa intranquilidade.

Interroga-se se mais uma vez se está-se a esconder os problemas procurando passar uma imagem de firmeza, mas na prática deixando escapar um cheirinho de insegurança disfarçado de arrogância. Ouve-se o director nacional de saúde dizer, citado pela Inforpress, “nós é que fazemos o diagnóstico, nós é que tratamos os dados e somos nós que publicamos os dados” e pergunta-se se é o mesmo assertivo “nós” que responde pela situação actual de várias dezenas de casos diários criando constrangimentos na vida económica e social e mantendo o país isolado de espaços vitais para a sua economia e sobrevivência. A verdade é que corre-se um risco grande em confrontar o coronavírus com muita assertividade particularmente aquela que esconde fragilidades na coordenação, no tratamento de dados e no uso dos meios disponíveis.

Por ser um vírus novo e portanto desconhecido, mas muito eficiente em causar contágio a velocidade e escala pouco usual, não poucas vezes está-se perante situações complicadas como foi na Boa Vista que levou ao contágio de meia centena de pessoas num hotel em Abril passado, ou à importação do vírus em Santiago em Maio ou ao súbito irromper do surto da covid-19 no mês de Junho na ilha do Sal. Todas elas situações que para serem enfrentadas com algum sucesso exigem que haja humildade, espírito de entreajuda e disposição para aprender e inovar na busca de soluções. Na semana passada viu-se um novo contágio em S.Vicente e nesta segunda-feira foi anunciado um surto na Cadeia de São Martinho. Não deixa de ser preocupante que fazem lembrar falta de coordenação, ineficiências operacionais e simples falhas de comunicação que já deviam ter sido superadas há algum tempo. Isso porém só poderia acontecer se da responsabilização por erros anteriores cometidos tivesse surgido boas práticas, lealdade institucional e maior comprometimento com a verdade. As desavenças recentes não dão muitas esperanças nesse sentido.

Muitos perguntam pelas razões por que as pessoas e em particular os jovens vêm mostrando fraca adesão às orientações das autoridades sobre como lidar com a epidemia da covid-19. Claramente que é demonstração de falta de confiança para a qual terão contribuído vários factores entre os quais a arrogância burocrática e política, a ambiguidade na actuação pública que não assume situações complicadas e a quase indisfarçável vontade das autoridades em declarar que o vírus tinha sido vencido para poder arrebatar a glória da vitória. Quando, como deveria ser previsível, o coronavírus se mostrou difícil de esmagar e rapidamente cresceu depois do período de confinamento devido em parte a alguma precipitação no levantamento de algumas restrições ficou difícil depois de descompressão levar a população a retrair-se como fizera nos dois meses de estado de emergência. Neste aspecto o facto de o governo se ter lançado em força em actos públicos de visitas, anúncios e inaugurações logo que se retomaram os voos internos, como se a velha normalidade das campanhas tivesse voltado, certamente que não ajudou as pessoas e em especial os jovens a ouvir os apelos para uma vida de restrições e de distanciamento entre as pessoas.

Infelizmente esta situação de falta de confiança manifesta-se no momento em que se apela para que os governantes consigam granjear mais confiança da população como condição sine quo non para se pensar em vencer a covid-19. Os períodos de emergência foram tempo dado para se preparar o sistema de saúde para enfrentar o vírus inesperado, para granjear a confiança da população para enfrentar os tempos difíceis que vão subsistir ainda por alguns anos e para preparar a economia e a sociedade para a nova realidade que certamente emergirá do mundo pós-covid-19. Pela pouca adesão da população e pela necessidade de recorrer a meios robustos de coação vê-se que se desperdiçou muito desse capital de confiança, o que é mau particularmente neste momento em que se está num período pré-eleitoral, por natureza mais polarizante, durante o qual restaurar a confiança é mais difícil de se conseguir. Legitimamente também poder-se-ia perguntar se em outros sectores também não se aproveitou o tempo dado e em consequência também neles o país ficou aquém do desejável.

A realidade incontornável é que o país precisa retomar a sua actividade económica mas ela só é possível se os nossos dados da covid-19 forem os que dão tranquilidade aos nossos parceiros, dos quais cerca de 80% em matéria de troca comercial, investimento e fluxo turístico encontram-se na União Europeia. Para atingir esses objetivos deve ser chamado à responsabilidade “quem de direito”: Sem desculpas, bodes expiatórios e fuga à prestação de contas.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 976 de 12 de Agosto de 2020.

segunda-feira, agosto 10, 2020

Oportunidade para o reforço da cidadania

O governo já marcou as eleições autárquicas para o dia 25 de Outubro. Com essa decisão foi dado o pontapé de saída para o novo ciclo eleitoral que após o embate nos municípios terá continuidade nas eleições legislativas provavelmente em Março/Abril seguido das presidenciais seis meses depois entre Setembro e Outubro.Quase sem tempo para respirar depois do debate sobre o estado da Nação os partidos vão ter que se preparar para apresentar candidatos, plataformas eleitorais e dar um outro vigor à pré-campanha autárquica que na perspectiva de muitos há muito que foi iniciada. As eleições vão acontecer em meio de uma pandemia, até há bem pouco tempo inimaginável, que para além dos efeitos potencialmente graves na saúde das pessoas traz consigo muitas incertezas quanto ao futuro e quebra real e imediata de rendimentos para a generalidade da população. Não estranha que outra vez em pleito eleitoral surjam as velhas ansiedades, agora reforçadas num ambiente de crise sanitária e económica e social, quanto à questão da representação parlamentar e de participação política. Com os olhos postos nas eleições, os cidadãos interrogam-se se realmente os partidos os representam ou se são aglomerados de interesses que servem a si próprios em vez de os servir.

O sentimento dos cabo-verdianos quanto aos partidos e quanto à democracia não é muito diferente do que se vê por aí. Há vários anos que em todo o mundo se tornou notória a crise das democracias manifestando-se no aumento da abstenção, na fuga do eleitorado para os extremos e na emergência de populismos da esquerda e da direita. Depois da crise financeira de 2008 o fenómeno agudizou-se à medida que as populações perdiam confiança nas suas elites, a desigualdade social aumentava e governos de partidos tradicionais mostravam-se incapazes de conter a deterioração das condições de trabalho e a perda de rendimentos. Em vários países a gota-de-água que fez extremar a acção política foram as migrações em particular as vindas da África subsaariana e da Síria. Na vaga de populismo que se agigantou elegeram-se líderes como Trump e Bolsonaro, conseguiu-se finalmente fazer o Reino Unido sair da União Europa e autocratas como Viktor Orban afirmaram-se no coração da Europa.

A covid-19 veio porém temperar os entusiasmos dos que se reviam na retórica anti-partido e anti-sistema, apostavam na descredibilização das instituições e das elites e propunham soluções simples para realidades complexas dos seus países. De facto, quando tudo parecia concorrer para que o fenómeno do populismo fosse mais longe, apareceu o coronavírus e viu-se logo que para o combater com alguma eficácia ter-se-ia de socorrer de conhecimentos científicos e de adoptar uma gestão competente da pandemia pelo Estado. Só assim é que se podia pretender diminuir o número de mortes, aliviar sofrimento e garantir meios de subsistência aos mais vulneráveis. E a verdade é que os líderes populistas revelaram-se incompetentes e demasiado presos na própria retórica para fornecerem liderança efectiva às populações. Descredibilizaram-se e deixaram muitos que punham fé em soluções populistas completamente desorientados.

Nem por isso porém desapareceram as manifestações de insatisfação com a actuação dos partidos, as críticas dirigidas à classe política e o vazio que enquanto cidadãos muitos sentem pelo facto de não se reverem nas opções dos partidos do chamado arco do poder. Só que agora as pessoas são atraídas para outras formas de participação e acabam por ficar reféns de soluções muitas vezes piores porque vincadamente de natureza identitária e promotora de vitimização e de ressentimentos. Em Cabo Verde, por exemplo, muita hostilidade é dirigida ao chamado bipartidarismo do MpD e do PAICV que até hoje não foi rompido pela UCID e nem no passado foi por partidos como o PCD, PRD, PTS, PSD e PP, engendrados num momento ou outro destes trinta anos de regime democrático. Há quem clame por uma espécie de terceira via que pusesse fim ao duopólio dos partidos que se têm alternado no poder. Na falta ou impossibilidade dessa outra força política o desejo é que pelo menos surgisse um partido de protesto tipo Bloco de Esquerda, em Portugal. Também por aí não se teve muita sorte.

A proximidade de eleições sempre renova esses sentimentos mistos de insatisfação com o funcionamento do sistema democrático e de hostilidade aos partidos. A pandemia com as suas incertezas piorou a situação ao revelar as vulnerabilidades do país e das suas gentes que não obstante a alternância dos dois partidos na governação não foram suficientemente minimizadas. Teve-se agora a oportunidade de ver com clareza que a prática do ilusionismo na política conjuntamente com a cultura de varrer os problemas para debaixo do tapete e a dificuldade ou indisponibilidade em combater hábitos, comportamentos e atitudes de dependência tornam de todo quase impossível realizar as reformas necessárias para mudar o país. Para sair do círculo vicioso não ajuda muito a proposta de se ver um dos partidos como “esquerda progressista” e o outro como “neoliberal”. A persistência das vulnerabilidades décadas após décadas sugere que se vá além dos rótulos ideológicos na procura das raízes dos problemas do país e que tudo se faça para governar com verdade, sem falsas ilusões e sem expectativas excessivas ou descabidas.

As eleições autárquicas, por natureza mais circunscritas, e o facto de a lei eleitoral permitir a apresentação de candidaturas por grupos independentes abrem caminho para iniciativas que poderiam atenuar os efeitos do bipartidarismo nos municípios. A exploração dessa possibilidade, que existe desde das primeiras eleições de Dezembro de 1991, não se tem revelado porém a mais frutífera. Não se conseguiu provocar suficientemente mossa no bipartidarismo e demasiadas vezes iniciativas do gênero constituíram formas encapotadas dos partidos se candidatarem ou de dar suporte a brigas entre facções do mesmo partido. Outras vezes serviram para dar corpo a disputas identitárias e divisivas com a falsa ideia de que munícipe é quem nasceu e não quem reside no concelho. O resultado é que de participação cidadã tiveram pouco e facilmente deixaram-se levar pelos maus hábitos partidários de que eram críticos.

Seria bom que desta vez houvesse iniciativas de grupos de cidadãos com um outro espírito. Grupos que exercessem a sua actividade cívica com base na verdade e na disponibilidade para servir e que se deixassem guiar por algum realismo e pragmatismo. Talvez os efeitos sobre os partidos do arco do poder fossem de induzir maior contenção na actuação política e um maior espírito compromissório na resolução dos problemas do país e em lidar com as outras forças políticas. Nesse sentido, deve-se preferir vias criativas que melhorem o funcionamento do sistema político ancorado na liberdade e no pluralismo e não deixar que a frustração leve a populismos que já se sabe não resolvem problemas, particularmente os complexos com que a covid-19 neste momento brindou toda a gente. Reformas, não revolução, precisam-se. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 975 de 5 de Agosto de 2020.

segunda-feira, agosto 03, 2020

Pandemia desafia a Nação

O estado da Nação vai estar em discussão na Assembleia Nacional esta sexta-feira, dia 31 de Julho. O debate anual é sempre um momento muito especial na vida nacional na medida em que marca o fim do ano político e põe o governo em jeito de balanço da sua governação face aos deputados de todos os partidos.

Este ano vai ser ainda mais especial considerando o momento que se vive da pandemia da covid-19 e as consequências económicas e sociais que se vêm acumulando desde da quebra brusca no ritmo de crescimento da economia e do aumento rápido do desemprego. Ninguém consegue perspectivar quão profunda será a crise e o tempo que durará. Não há data certa para se ter disponível vacinas que cheguem a toda a gente e nem se sabe como a retoma económica irá processar-se no novo quadro das relações comerciais e também políticas entre as nações no pós covid-19. Até lá incertezas várias, muita ansiedade pelo caminho e alguma angústia poderão condicionar o comportamento das pessoas. Assim será se da parte de quem governa e de toda a classe política não vier um esforço para criar confiança, incentivar o espírito de cooperação e reforçar a ideia de um destino comum compartilhado por todos, sem a qual a vitória sobre o coronavírus não será possível.

O debate da próxima sexta-feira poderá ser crucial para se alcançar um nível de concórdia indispensável com vista a enfrentar as dificuldades futuras. De antemão sabe-se que inevitavelmente vão surgir à medida que a crise se agravar e as medidas do Estado para amortecer a quebra da economia perderem eficácia e quando as pessoas começarem a sentir sentirem a perda de rendimentos derivado do desemprego e da fraca actividade económica. Confrontá-las com alguma medida de sucesso vai requerer uma frente comum que, para ser construída, exigirá que se faça uma reflexão nacional sobre tendências divisivas e sobre os porquês da persistência de vulnerabilidade e precariedade das populações após tantos anos de injecção de recursos no país. Também dever-se-á debruçar sobre as razões por que se torna tão difícil construir um ambiente onde as pessoas sintam que o mérito e o esforço pessoal, enquanto critérios para o sucesso, prevalecem sobre a cor partidária, o acesso a redes de influência e a tolerância para com jogadas obscuras que resultam em fortunas súbitas. Se motivação suficiente não existisse para isso, a previsão do VPM e Ministro das Finanças de que 150.000 postos de trabalho poderão estar em perigo se medidas robustas do governo não forem tomadas deveria ser o sinal esperado para pôr todos em alerta máxima e procurar fazer diferente e não se repetir as insuficiências tornadas tão óbvias em poucos meses pela pandemia.

No dia comemorativo dos 102 anos de Nelson Mandela, António Guterres na sua qualidade de secretário-geral da ONU fez um apelo para um Novo Contrato Social e acordo global para combater as desigualdades. Segundo Guterres, a pandemia veio fazer uma radiografia da realidade deixando a descoberto “sistemas de saúde inadequados, lacunas na protecção social, desigualdades estruturais, degradação ambiental e crise climática”. Acrescentou ainda que o mundo enfrenta o risco iminente de “haver fome de proporções históricas” e de “cem milhões de pessoas serem empurradas para a pobreza extrema”. Acabou por aconselhar que governos, sociedade civil, empresas e comunidades se juntassem na discussão do que poderá ser esse novo contrato social e o acordo global. A dinâmica da pandemia e as respostas contra os seus efeitos têm demonstrado que para se ter sucesso no combate à doença e no controlo da transmissão do vírus um novo engajamento com a população deverá existir em que competência e honestidade na comunicação surjam como cruciais para se conseguir confiança das populações e assegurar que seguirão com naturalidade as instruções e orientações das autoridades.

Com as fragilidades de Cabo Verde já conhecidas e recentemente relembradas pelos três anos de seca e tornadas mais do que óbvias pela covid-19, o mais natural é que houvesse um esforço vindo de todos os quadrantes para se fortalecer o que une a nação. Tendo como base o consenso criado no processo, o pluralismo de ideias devia permitir encontrar as melhores propostas, pressionar no sentido da gestão competente dos recursos e serviços públicos e impedir aproveitamentos indevidos de recursos públicos. Infelizmente não é esse o sentimento prevalecente nos actores políticos e sociais. Reina a polarização social, uma competição desenfreada pelos recursos sem preocupação com a racionalidade e a razoabilidade e cresce todos os dias um espírito de rivalidade entre as ilhas que torna difícil pensar o país como um todo, agravando os custos da insularidade e limitando os ganhos para o país que poderiam advir da exploração flexível e estratégica do potencial e dos recursos de cada ilha. Com a pandemia da covid-19 em vez do recuo nas divisões, nas rivalidades e na corrida aos recursos verificou-se o recrudescer das suas manifestações com os protagonistas a justificarem como legítimas as suas pretensões.

É aparentemente ignorado o facto inescapável de que o futuro próximo será de muito menos recursos disponíveis, porque já há quebra na economia nacional, o resto do mundo vive uma recessão só vista nos anos 30 do século passado e que a expectativa para os países mais desenvolvidos de regresso aos níveis do ano 2019 é de três a quatro anos. Só assim é que se explica que o discurso político – desde que se convencionou que depois do período de confinamento já se podia regressar às tricas políticas – siga por linhas de fractura que levam a seleccionar entre uns e outros quem tem estatuto especial e quem deve ser merecedor de discriminação positiva. Só assim se explica também que o discurso se centre em propor corte nos impostos, já de por si em queda livre por causa do estado da economia, sem preocupação com a boa gestão das despesas quando interferem com interesses corporativos e outros. Confrontado com os inevitáveis défices orçamentais e o aumento da dívida pública e a necessidade de os financiar a tentação é de se entreter com fórmulas que mais parecem “wishful thinking” do tipo de propor aos credores de Cabo Verde que transformem o crédito em investimento.

O óbvio devia ser que se promovesse um maior rigor na utilização dos recursos públicos, que as forças políticas demonstrassem maior contenção nas reivindicações e houvesse um maior esforço de adequação das expectativas das pessoas às possibilidades reais do país. O problema é que já se está em cima do ciclo eleitoral e o eleitoralismo nos discursos e nas promessas tende a sobrepor-se a quaisquer outras considerações. Entre ir num ou noutro sentido nos embates políticos há que se ter em devida atenção que os eleitores, face à crise pandémica, querem competência na condução dos assuntos do Estado e confiança em quem governa e não serem seduzidos por promessas ilusórias. De Angela Merkel diz-se, por exemplo, que o respeito por ela enquanto estadista deriva do facto de se dirigir a todos com honestidade, franqueza e realismo e que sob a sua liderança ninguém cria falsas expectativas nem engendra ilusões. Essa é uma referência que bem podia ajudar a elevar a qualidade do debate parlamentar da próxima sexta-feira, neste ano da pandemia da covid-19, e a ganhar um tom mais construtivo. A Nação agradeceria.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 974 de 29 de Julho de 2020.

segunda-feira, julho 27, 2020

Ir além do espectáculo

As perspectivas para Cabo Verde no futuro próximo não são boas. Do que se vem ouvindo do VPM e Ministro de Finanças em múltiplas declarações públicas e do que várias vezes tem sido realçado ao longo da semana nos webinars organizados no quadro do chamado exercício “Cabo Verde Ambição 2030” não ficam muitas dúvidas quanto às consequências negativas da pandemia da covid-19 sobre o país.
O impacto esperado mas já sentido em vários sectores virá directamente via redução brusca da actividade económica nacional em virtude das medidas de distanciamento social e de confinamento e da decisão em fechar as fronteiras indirectamente a partir da redução das exportações de bens e serviços, dos fluxos turísticos, das actividades de aviação e globalmente da contraccão no comércio internacional.
Prevê-se que o PIB diminua este ano entre os 6,8 e os 8,5%. Espera-se uma quebra brusca nas receitas dos impostos e nas receitas geradas pelo turismo que passam de 43 milhões de contos para 15 milhões. Supõe-se que irão desaparecer 20 mil empregos e que a dívida pública poderá já no próximo ano elevar-se para valores quase insustentáveis de mais de 150% do PIB. Entretanto, com a quase paralisação da economia aumentou o desemprego, diminuíram os rendimentos e milhares de pessoas viram-se forçadas a regressar às suas ilhas de origem para se ampararem junto das famílias neste momento de dificuldades. A reacção do Estado e do governo direccionada tanto para assegurar algum rendimento às pessoas e às famílias como para garantir a sobrevivência de alguma capacidade empresarial no país conseguiu em parte amortecer o choque, mas não é sustentável a prazo. A ajuda externa não é infinita e há limite no uso que se pode fazer dos recursos do INPS.
A esta simples verdade deve-se acrescentar que a saída do imbróglio só pode ser equacionada a partir da retoma da actividade económica. Agir nesse sentido não pode depender da disponibilização de uma vacina, que, na melhor das hipóteses, só acontecerá no próximo ano. Nem tão pouco deve-se esperar que a confiança entre as pessoas, actualmente afectada por constrangimentos e restrições diversas impostos pela pandemia, por si só se restaure ao nível anterior. Há que ser proactivo e contribuir com medidas estratégicas e encadeadas para que isso aconteça e esperar que na sequência se verifique a almejada circulação de pessoas, bens e capitais, crucial para a criação da riqueza das nações. Para isso uma outra atitude ter-se-á que exigir do Estado, da sociedade, das pessoas e das empresas.
Para começar, dever-se-á abandonar o ilusionismo que acompanha a prática política em Cabo Verde. A realidade pura e dura do país deverá ser encarada sem lirismos e sentimentalismos e com mais honestidade para que os passos que terão que ser dados para diminuir a vulnerabilidade e a precariedade sejam seguros e sustentáveis. A tentação de virar para dentro e construir soluções para o futuro a partir dos parcos recursos do país e do seu mercado exíguo e fragmentado deve ser posta de lado definitivamente agora que a acção do coronavírus veio demonstrar que a insistência nessa atitude perpetua vulnerabilidades e condena muitos a uma precariedade facilmente exposta por qualquer choque externo. Os hábitos adquiridos em conjugação com a adopção do modelo de desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa devem ser identificados e combatidos de forma a se romper com o modelo e construir o futuro numa outra base. No mesmo sentido deve-se fazer melhor uso dos fluxos externos para que, com ganhos de eficiência e eficácia na utilização dos meios disponibilizados, finalmente se poder libertar da dependência da generosidade dos outros.
O VPM e ministro das Finanças, Olavo Correia, na entrevista de domingo à televisão pública foi muito claro a dizer que, para o país avançar, a atitude das pessoas e das instituições tem que mudar. Na sua opinião não deverá haver xenofobia em relação ao investimento e aos investidores externos. Chamou a atenção para a impossibilidade de economias de escala num país com uma pequena população e mercado fragmentado. Propôs fazer de Cabo Verde um país-plataforma para poder posicionar-se como um exportador de bens e serviços e estar em condições de suportar um crescimento robusto da economia e criação de empregos de qualidade no horizonte de 2030. Ficou-se porém por saber, talvez porque não questionado nesse aspecto, o quão distante ainda o país e as suas gentes estão de ter as competências necessárias para isso e o que nos últimos quatro anos foi feito para se preencher essa disparidade entre o real e o ideal. Também seria de maior importância que se soubesse qual o grau de dificuldade de mudar realmente a atitude das pessoas e das instituições e o que se teria que fazer para a materializar.
Claramente que não é fácil. Mudar a atitude, trocar o chip e fazer diferente têm sido slogans dos sucessivos governos sem que nada de essencial se tenha verificado. Nem com a pandemia se consegue descortinar mudanças significativas na atitude das autoridades, das instituições e das pessoas. Mesmo face à covid-19 nota-se que ainda se toma governar por fazer política espectáculo a partir de anúncios, visitas, inaugurações e seminários. Também viu-se os costumeiros sinais de autismo nas instituições na gestão da resposta à pandemia omitindo-se nalguns casos e adiando para demasiado tempo decisões sobre testes, criação de equipas de rastreio epidemiológico e instalação de mais laboratórios apesar de repetidos apelos. Na população há sinais que parecem configurar uma espécie de dissonância cognitiva que nem a realidade de um vírus altamente contagioso consegue romper, como se viu da peça emitida pela televisão com jovens na praia de Santa Maria na Ilha do Sal . A partir do diálogo surreal com o repórter compreende-se por que se mostra tão difícil quebrar as cadeias de contágio. Com a maior desfaçatez negam a existência da doença ou negligenciam os seus sintomas sem consideração alguma para o facto que para haver retoma da economia na ilha tem que se acabar primeiro com a transmissão comunitária da doença.
Infelizmente o desencontro entre o discurso, a narrativa e a realidade não é apanágio só de alguns. A prática do ilusionismo na política por demasiado tempo deixou marcas que para serem ultrapassadas vão exigir doses maciças de realismo, uma maior aderência aos factos e um renovado amor pela ciência. Neste momento de crise sanitária, mas que já se percebe que será económica, social e até humana seria de importância fundamental que a honestidade e a verdade se sobrepusessem a qualquer tentação de se continuar a iludir a realidade dos problemas que o país tem a enfrentar. Cabo Verde tem que poder retomar o turismo e as exportações fazendo os ajustes necessários e planeando para o futuro no sentido de maior resiliência desses sectores. Se como diz o VPM o plano de negócios da CVA já não é aplicável há que encontrar uma solução e não permitir que a companhia aérea continue a ser um sugador sem fim de recursos públicos.
Nada porém será feito se não se controlar a epidemia no país e baixar os casos de transmissão para os níveis exigidos pela Europa. A economia cabo-verdiana funciona fundamentalmente com a União Europeia e falha-se gravemente quando não há conformidade com as normas estabelecidas. Sem ilusionismos, dissonâncias cognitivas e outras fugas da realidade deve-se encarar as dificuldades do país e proceder à mudança de atitude que todos parecem reconhecer como essencial para se ter o envolvimento de toda a sociedade no esforço de desenvolvimento do país. Há que se demonstrar a todo o tempo que governar não é mandar, mas sim pensar estrategicamente, servir e responsabilizar-se pelos resultados obtidos.
Humberto Cardoso

segunda-feira, julho 20, 2020

Confiança, o ingrediente crítico

Inicia-se hoje, dia 15 de Julho, uma segunda fase de desconfinamento com a abertura total da circulação aérea e marítima entre as ilhas de Cabo Verde. As restrições tinham sido impostas primeiro pelo estado de calamidade declarado para a Boa Vista a 26 de Março e depois pelo estado de emergência com efeito sobre todo o território nacional a partir de 30 de Março.
A primeira fase de desconfinamento aconteceu a 29 de Maio e, a par com a retomada da circulação entre algumas ilhas e de alguma euforia das pessoas por se verem menos condicionadas nos contactos sociais, notou-se em pouco tempo um aumento do número de casos confirmados de covid-19. A partir de 15 de Junho focos de contágio surgiram na ilha do Sal e em S.Vicente e foram confirmados casos em S.Nicolau e em Santo Antão. Segundo o director nacional da Saúde em conferência de imprensa nesta segunda pode-se distinguir dois momentos na epidemia da covid-19 em Cabo Verde. O primeiro que abrange o estado de emergência em que os casos semanais oscilavam entre os 60 e 84 e um outro com o fim do confinamento em que o número de casos fica no intervalo 126 e 180 com um pico na semana de 22-28 de Junho de 341 casos.
É provável que na sequência da liberação da circulação inter-ilhas e o fim de outras restrições designadamente no acesso às praias se vá entrar numa terceira fase de desconfinamento com consequências imprevisíveis considerando que em Santiago, a ilha mais populosa, ainda a epidemia está activa e no Sal, onde muitos esperam sair da ilha, continua galopante a transmissão comunitária. Não será muito fácil evitar um recrudescer de casos de covid-19 no país e o alastramento para as ilhas até agora poupadas. Tendo em conta os custos que tudo isso pode acarretar para a situação sanitária do país é de se perguntar como se comparam com os benefícios esperados da retoma de circulação inter-ilhas praticamente nos mesmos moldes que existiam anteriormente. Entretanto o país continua sem ligações com o exterior tendo ficado fora da lista de países autorizados a voar para a União Europeia. Um constrangimento que poderá prolongar-se se o país não se mostrar capaz de diminuir para números aceitáveis os casos diários de contágio ou ver-se confrontado com o agravamento da situação sanitária nas ilhas.
Dias atrás o director geral da OMS em várias intervenções públicas foi muito claro a dizer que no futuro próximo não há regresso ao velho normal e que se o básico do controlo da infecção que passa por testar, rastrear, isolar e fazer quarentena não for conseguido a pandemia só vai ficar pior. Também apontou como constrangimentos sérios a politização da pandemia e o envio de mensagens contraditórias que acabam por se tornar em factor de divisão e contribuem para minar a confiança das pessoas nas autoridades sanitárias. A verdade é que por todo o mundo, em maior ou menor grau, dificilmente os actores políticos resistem à tentação de tirar benefícios político-partidários da luta contra a pandemia. Todos a partir do seu ponto de vista e posicionamento no sistema tendem a mostrar o quão importante é o seu contributo para o sucesso na contenção da pandemia. O problema não é a política em si, que em democracia tem que se fazer para conseguir resultados que sirvam o interesse geral, mas as tácticas utilizadas que acabam por criar divisão, confusão nas orientações dadas para se evitar o contágio e alimentam expectativas irrealistas quanto à forma como resolver a crise sanitária. Prejudica-se enormemente aquilo que o Dr. Tedros Ghebreyesus considera o ingrediente crítico de qualquer resposta à pandemia: confiança.
Em Cabo Verde parte das dificuldades com que se depara na contenção da pandemia tem a ver com a colaboração da população. As autoridades queixam-se de que as orientações quanto ao distanciamento social e uso das máscaras não estão a ser seguidas com suficiente rigor. Também consideram que muitos, em particular os jovens, mostram-se displicentes nessas matérias e continuam a organizar festas, idas às praias e a fazer outros ajuntamentos sem preocupação com a transmissão do coronavírus, convictos de que ou não serão afectados pela doença ou então que os sintomas serão ligeiros. O problema talvez advenha de ainda em grande medida não se ter conseguido transmitir às pessoas a real gravidade da covid-19. E isso normalmente acontece como diz o director geral da OMS quando não se comunica claramente com os cidadãos e que não se desenvolve uma estratégia compreensiva focalizada na supressão de transmissões. O que está a acontecer em particular na ilha de Santiago e na ilha do Sal de facto não é tranquilizador nem transmite confiança. Pergunta-se se o que aparentemente resultou na contenção de casos na Boa Vista e em S.Vicente não tem aplicação nas outras ilhas.
Com a proximidade das eleições, a questão de confiança, crucial para a luta contra o coronavírus, tende a ficar mais difícil. A sociedade polariza-se e simplesmente não se consegue o engajamento total da população indispensável para o combate vitorioso contra a pandemia. Tudo fica ainda mais complicado se achas são deitadas na fogueira como aconteceu na última reunião plenária da Assembleia Nacional. Foram levadas para debate e votação matérias potencialmente fracturantes sem suficiente concertação das partes e ignorando que se tratava de legislação que exige dois terços dos votos dos deputados. A descredibilização das instituições e dos seus titulares que daí resulta certamente que não contribui para se manter a frente unida contra a pandemia nem transmite uma imagem de autoridade a quem deve liderar no combate ao vírus. Pior ainda quando, como aconteceu, as divisões não ficaram pelas traduzidas nos posicionamentos de cada partido e saltaram para a rua e pelas redes sociais em acusações e agressões verbais contra membros do mesmo partido. Daí foi um passo para se dar o salto e fomentar o confronto aberto entre naturais de diferentes ilhas.
No mundo inteiro enfrenta-se neste momento a pandemia provocada pelo coronavírus. É reconhecido por todos a necessidade de uma acção conjunta para debelar os efeitos da doença. Os países que menos sucesso têm tido nessa luta são os onde é maior a polarização política e mais dividida a população quanto ao distanciamento social. Cabo Verde não está bem colocado entre os países com maior sucesso no combate ao vírus. Precisa de mais unidade, melhor liderança e mais sabedoria em lidar com a crise sanitária. Devia tomar como exemplo o Ruanda que realmente viveu divisões profundas no seu seio, mas depois conseguiu unir-se para dar combate ao vírus e integrar a lista exclusiva de países com voos para a União Europeia. Infelizmente nem com a ameaça de uma pandemia consegue-se ter foco para, parafraseando Mario Cuomo, ex-governador de Nova Iorque, deixar cair a “poesia” da campanha eleitoral para se dedicar à “prosa” da governação.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 972 de 15 de Julho de 2020.

segunda-feira, julho 13, 2020

Fuga em frente

Cabo Verde celebrou no passado dia 5 de Julho o quadragésimo quinto aniversário da sua independência em circunstâncias únicas. As comemorações aconteceram num momento de pico da epidemia da Covid-19 e numa semana em que os números de casos confirmados no país aproximam-se dos mil e quinhentos, na ilha do Sal e em Santa Cruz o contágio dá sinais de acelerar e só nas ilhas do Fogo e da Brava ainda não se registam casos.
A pandemia constitui um choque global deixando a nu os problemas da pobreza, desigualdade e discriminação. Nenhum país é poupado. Não sendo excepção, seria de esperar que Cabo Verde usasse a data de 5 de Julho, que devia ser de unidade nacional, para assumir o quanto se tem ficado aquém de outros países insulares similares em matéria das metas de crescimento, do emprego, da educação e da saúde. Podia-se aproveitar para uma demonstração de unidade e firmeza para realmente se mudar de rumo na condução do país de modo a que deixe de ser tão vulnerável e dependente da generosidade externa.
Infelizmente tirando a disposição das personalidades e convidados nas cerimónias, cumprindo com as regras de distanciamento social, ficou-se pelo habitual ritual dos discursos a reconhecer mais uma vez que valeu a pena a independência nacional e a demonstrações de gratidão pelos que, como foi dito no acto da proclamação da independência, “se bateram na Guiné e estavam prontos e decididos para o combate armado em Cabo Verde”. O Presidente da República ainda reconheceu que Cabo Verde podia estar melhor, mas não elaborou muito para além dessa constatação. O facto de Cabo Verde ter um rendimento per capita três vezes menor que as Maurícias ou quatro vezes menor que das Seychelles, economia menos diversificada, níveis de educação e de saúde inferiores a esses países que têm praticamente os mesmos anos como países independentes não parece ser motivo suficiente para uma reflexão séria e honesta sobre a trajectória do país nos últimos 45 anos.
Nem a ameaça da pandemia sobre as populações vulneráveis, agravando a precariedade geral das pessoas, mostra-se suficiente forte para impedir que se continue a meter a cabeça na areia e a proclamar que Cabo Verde é um caso de sucesso e que bateu todos os prognósticos que o tinham como inviável. A ajuda externa e o hábito de se recorrer à generosidade internacional sempre que há secas, inundações, erupções vulcânicas epidemias ou alterações climáticas parece que tem o efeito de perpetuar o gosto pelo ilusionismo em que tudo é possível sem custo e sem um esforço colectivo para diminuir a dependência e lançar verdadeiramente as bases de um desenvolvimento sustentável. Nem a perspectiva de ver a dívida pública subir para níveis insustentáveis no mundo pós covid-19, com Cabo Verde e Angola a competirem pelos lugares cimeiros entre os países africanos mais devedores, consegue que se caia na realidade de um país dependente e frágil.
Há quem alimenta ainda a esperança que um dos choques externos venha a ter um efeito transformativo e finalmente ponha o país e os seus governantes numa outra relação com a realidade. O coronavírus parecia talhado para esse fim considerando as consequências graves sobre a saúde, o rendimento actual e as perspectivas de futuro que está a ter ao nível planetário. Paradoxalmente em muitos países não se verifica esse impacto transformativo. Talvez porque nalguns os governantes ciosos de demonstrar que venceram a luta contra o vírus apressaram-se a desconfinar. Noutros, os governantes desvalorizaram a situação e tardaram a reagir. Noutros ainda, a ineficácia da actuação centralizada do Estado dificultou a identificação dos problemas, impediu a coordenação e actuação atempada e não potenciou os recursos humanos e materiais existentes. Em todos esses casos as consequências notam-se imediatamente na resistência das pessoas em seguir as orientações das autoridades e em aceitar as recomendações feitas. Casos confirmados tendem a aumentar particularmente nos locais onde só um elevado nível de colaboração poderia substituir a falta geral de condições para se fazer distanciamento social e manter padrões aceitáveis de higiene.
No caso de Cabo Verde vê-se que se perdeu o potencial efeito transformativo da pandemia do coronavírus quando se persiste na mistificação do passado sem querer saber das origens das fragilidades do país e da sua perpetuação até ao presente e ainda se força uma descolagem da realidade com o convite à discussão da agenda “Cabo Verde Ambição de 2030”. Ou seja, lança-se uma névoa sobre o passado e faz-se uma fuga para o futuro. Nessas circunstâncias é evidente que lidar com o presente fica extremamente difícil. Exemplo disso é o ir e voltar atrás nas decisões sobre a circulação aérea e marítima na ânsia de propiciar o regresso da “normalidade” anterior correndo o risco de facilitar a transmissão do vírus para as ilhas mais desprotegidas, como aliás aconteceu. No mesmo sentido é a precipitação sobre o futuro da CVA e da TACV com pronunciamentos oficiais de garantia que vai continuar mesmo quando já não parece possível seguir o modelo de negócios do hub do Sal e se quer voltar aos voos étnicos e também com decisões em manter o leasing de três aviões praticamente inactivos durante a pandemia. Surpreendente ainda é o anúncio que se vai generalizar o ensino à distância e que para isso vão alocar verbas no orçamento rectificativo de 311 mil contos para “hardware” e sistemas de comunicação incluindo a compra anunciada pelo primeiro-ministro de 10 mil televisores e tablets. E como seria de esperar, para o “software”, ou seja, a criação de conteúdos e preparação dos professores fica-se por uma pequena verba de 21 mil contos.
Espanta a rapidez com que se fez a avaliação da experiência no ensino à distância nestes meses de covid-19 a ponto de se estar a investir nesta escala para a generalizar. É de se perguntar por que nunca se tinha pensado nisso apesar de as tecnologias da televisão de há muitas décadas terem sido generalizadas pelo mundo fora. Também é de se perguntar em que pé fica a luta pela qualidade e excelência. Será que mais uma vez vão ser sacrificadas em nome de um ensino massificado, do básico ao universitário, que, como todos hoje reconhecem, não serve o país. Muito menos poderá constituir a base para a economia do conhecimento que a agenda Cabo Verde Ambição 2030 supostamente propõe. A fuga em frente que se está a protagonizar configura ser mais uma reedição do jogo que se vem repetindo ao longo dos 45 anos de independência no qual a ênfase é colocada nos meios disponibilizados por parceiros internacionais ou mobilizados através da dívida pública em detrimento dos resultados na vida das pessoas e do retorno adequado dos investimentos feitos.
Fazer deste assalto do coronavírus um momento transformativo para o país deveria ser a oportunidade que supostamente todas as crises facultam. Infelizmente tudo indica que não vai acontecer e que vão continuar a reproduzir-se as vulnerabilidades e precariedade que a pandemia veio revelar com acuidade. E assim é porque como uma vez disse George Santayana “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. 
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 971 de 8 de Julho de 2020.

segunda-feira, julho 06, 2020

Risco moral

Sempre que se desencadeiam crises sejam elas financeiras, económico-financeiras ou de outra natureza – como é actualmente a pandemia provocada pelo coronavírus – e que medidas são tomadas para mitigar os seus efeitos, vem à tona a questão do “risco moral”. Interroga-se se os que de uma forma ou outra contribuíram para a crise não estão a ser os maiores beneficiários das medidas tomadas na sua contenção.
Aparentemente beneficiam das novas facilidades como infusão directa de dinheiro no sector privado, linhas de crédito com juros bonificados e garantias estatais para além de outras facilidades de liquidez proporcionadas pelos bancos centrais, sem que tenham assumido qualquer responsabilidade pelos prejuízos causados. O grosso do custo entretanto fica com quem perdeu o negócio ou o emprego, viu as suas poupanças desaparecerem e o seu futuro ficar difícil com as incertezas criadas. Também ninguém desconhece que em última instância, quando os efeitos da crise e o impacto da sua mitigação vão somar à dívida pública, são os contribuintes a assumir o fardo deixado pela incúria governativa e pelas falhas da regulação.
A questão do risco moral foi nos últimos 25 anos introduzida com a crise financeira asiática de 1997, retomada com a crise dos “hedge funds” em 1998 e denunciada veemente na sequência da crise de 2008 que começou por ser financeira para logo se revelar como crise económica, crise da dívida soberana e crise social. A indignação geral, quando se constatou a forma como muitos banqueiros e investidores saíram da crise mais ricos com os seus bónus e dividendos enquanto a generalidade das pessoas lutava contra o desemprego e a perda de rendimentos, serviu para lançar descrédito sobre as democracias.
O resultado foi a crise de representação que se seguiu, a descredibilização das instituições, a investida contra as elites e o progressivo desencanto com a globalização. Não espanta pois que nos últimos anos por todo o mundo tenha aumentado o fascínio pelas soluções populistas e pelos seus líderes mesmo quando se revelam autocráticos e incompetentes. A mover as pessoas estaria a percepção que uma elite cada vez mais rica beneficiava de um ambiente de progressiva globalização e de mais desregulação e que, quando algo corria mal, a carga e o infortúnio recaiam sobre a maioria, aumentando ainda mais a precariedade e as incertezas.
A resposta à crise provocada pela covid-19 foi ainda mais drástica do que nas crises anteriores. A urgência em quebrar cadeias de transmissão levou à quase total paralisação da economia e ao desemprego súbito de milhões de pessoas. As medidas de política tomadas por vários países, designadamente os três trilhões de dólares nos Estados Unidos, os 750 mais 800 bilhões de euros nos países da União Europeia e um trilhão de dólares no Japão juntos com estímulos de muitos bilhões feitos pela China e outros países não vão impedir que a economia mundial entre numa grande recessão económica só comparável à grande depressão dos anos trinta do século XX. Mesmo não havendo no caso uma elite que inequivocamente estivesse na origem da crise ou a tivesse facilitado, não se deixará de colocar a questão de quem irá beneficiar mais dos enormes estímulos feitos e se as medidas tomadas vão no sentido de criar as condições para uma retoma mais rápida ganhando todos ou se desproporcionalmente vão favorecer os «suspeitos do costume».
Há quem como a economista Mariana Mazzucato num artigo recente no Project Syndicate queira reduzir o risco moral associado às medidas anticrise e insista que sejam condicionadas. Sugere que se obrigue o Estado e o sector privado a agir e a investir de forma estratégica para conseguir um crescimento que atinja o maior número de pessoas. O objectivo é, recuperando rendimentos e diminuindo desigualdades sociais, se restaure o pacto social que mantém as democracias vivas, viáveis e dinâmicas e se ponha um travão às derivas populistas e autocráticas.
Nos países em desenvolvimento o problema de diminuição do risco moral coloca-se talvez com maior urgência. As dificuldades encontradas por esses países na busca de um desenvolvimento sustentável indicia as ineficiências já existentes na utilização de recursos próprios e dos recursos conseguidos via doações, empréstimos concessionados no âmbito da ajuda externa bilateral e multilateral. Ineficiências essas que se traduzem na apropriação por alguns de parte significativa dos fundos disponibilizados levando a desigualdades sociais gritantes, a par com a persistente vulnerabilidade e precariedade das populações que deles deviam beneficiar. As consequências desse estado de coisas tornam-se particularmente evidentes sempre que acontece algum choque externo sob a forma de secas ou inundações, baixa no preço internacional do principal produto de exportação ou súbita quebra na pujança económica dos principais parceiros. A pobreza aumenta, a dívida pública dispara e a pressão para se conseguir mais ajuda externa ganha um outro ânimo. Infelizmente ineficiências várias tendem a manter-se e os ciclos são repetidos ficando a população cada vez mais vulnerável enquanto as desigualdades aumentam e se aprofunda a polarização social.
Em Cabo Verde os três anos de seca consecutivos de 2017-2019 vieram comprovar o elevado grau de vulnerabilidade das populações rurais designadamente em Santiago, Santo Antão e Fogo. De pouco terá servido o programa do Banco Mundial que desde 2005 investiu na luta contra pobreza mais de 110 milhões de dólares ou as centenas de milhões de dólares investidos nos campos de Cabo Verde na mobilização de água, na construção de barragens, em sistemas de irrigação e nas múltiplas acções de formação e apoio directo ou indirecto às pessoas. Alguns terão tido ganhos, mas não as populações visadas. A questão que se coloca é se desta vez vai ser diferente.
A pandemia pôs o turismo que representa 25% do PIB em suspensão pelo menos por alguns meses. A necessidade de confinamento deixou milhares de pessoas que antes viviam da actividade informal numa situação de precariedade única. Os que que até Setembro vão beneficiar do novo regime de layoff simplificado com o salário reduzido a 70% vão ter que lidar com a incerteza sobre a continuidade futura da actividade em que actualmente labutam. O país não tem uma posição nas cadeias de valor internacional que lhe permita reactivar exportações de bens e serviços logo que findo os constrangimentos nos transportes se verificar a retoma da procura internacional. Quer isso dizer que não é certo que no pós covid-19 o país esteja em melhor posição de diminuir o défice orçamental, baixar a dívida pública e retomar os equilíbrios macroeconómicos indispensáveis ao desenvolvimento sustentável.
O facto de vir a receber grande volume de ajuda externa – o orçamento rectificativo prevê, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros, um montante de 144 milhões de euros que, ao que tudo indica, vai ser canalizado para garantir algum rendimento à população e liquidez à economia – não significa, como não significou antes, que investimentos adequados serão dirigidos estrategicamente para garantir expansão económica rápida no futuro. A tentação é como das outras vezes de se deixar incorrer em risco moral tomando como garantido que haverá sempre ajuda externa e repetir a forma de fazer as coisas que invariavelmente tem beneficiado uma minoria, deixando largas franjas da população numa situação de precaridade. A gravidade desta pandemia e o impacto único que está a ter o mundo é um forte aviso que não há muito espaço para esse tipo de comportamento e que de há muito passou o tempo para uma mudança de rumo e de atitude. Tomar uma resolução firme nesse sentido seria a melhor forma de celebrar os 45 anos de independência nacional que se completam no próximo dia 5 de Julho.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 970 de 1 de Julho de 2020.