As eleições do domingo passado, dia 19 de Novembro, na Argentina, parecem ter confirmado uma tendência geral para o extremar de posições nas democracias e para apostas dos cidadãos em lideranças que não primam particularmente pela competência e ponderação no tratamento das grandes questões dos seus países. O candidato eleito Javier Milei, armado simbolicamente de uma moto-serra, propôs durante a campanha eleitoral, entre outras coisas, cortar impostos e despesas, fechar o banco central e avançar com a dolarização da economia, liberalizar o porte de armas e proibir o aborto. Não era um programa que na situação económica dramática que a Argentina tem vivido ao longo de décadas deixaria qualquer pessoa optimista quanto ao futuro. O facto é que não impediu que tivesse ganho com 56% dos votos. A maioria, talvez cansada de soluções passadas que falharam, resolveu ir contra corrente e concordar com a declaração atribuída a um político de que encontrou o país à beira do abismo e o que se tem de fazer é dar um passo em frente.
Essa atitude não é exclusiva da Argentina. Aliás, de outros países onde também num determinado momento se teriam dados passos em direcção ao abismo vieram imediatamente votos de solidariedade designadamente de Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, e de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos. A influência política deles continua a ser significativa e, no caso do Trump, em muita boa posição para se candidatar outra vez em 2024. Por aí, vê-se que sentimentos de frustrações, ressentimento e a falta de confiança das pessoas nas instituições do país continuam a desempenhar um papel importante no apoio a soluções que, no caso dos Estados Unidos, prometem pôr em causa a própria democracia e liberdade. Mas, outros factores contribuem para a situação de desnorte, designadamente, a falta de ponderação da classe política perante situações políticas, económicas e sociais complexas, a opção pela política espectáculo e a tendência narcisística crescente no comportamento dos líderes.
Não favorece a credibilidade da democracia a forma como, por exemplo, recentemente em Portugal se interrompeu uma legislatura e um governo com maioria absoluta se vê demitido e o parlamento dissolvido. Ou, em Espanha, se contempla jogada partidária que, para conseguir maioria para governar, assume compromissos considerados inconstitucionais.
Uma das razões para o drama que se vive hoje em Israel são as divisões criadas na sociedade e no país pelo governo na sua luta contra o poder judicial. Abriram o caminho para o país ser apanhado de surpresa por ataque atroz do Hamas à sua população civil. Sendo a única democracia na região, ela é ainda mais enfraquecida com a persistência no erro que permite ao primeiro-ministro continuar a não assumir as suas responsabilidades no que aconteceu a 7 de Outubro. E que, pelo contrário, insiste em manter um governo com extremistas e incapaz de pôr fim à violência na Cisjordânia e de encontrar uma solução para Gaza que não leve à morte de milhares de inocentes.
Com isso, as democracias em todo o mundo, em particular na Europa e nos Estados Unidos, também são enfraquecidas à vista de todos, em particular na busca de uma solução de paz duradoira para a região do Médio Oriente, e as forças extremas da esquerda e da direita saem reforçadas tanto nesses países como no resto do mundo. A tentação para se dar passos em frente em direcção ao abismo nuns casos significa soluções economicamente desastrosas, noutros casos trata-se de derivas autoritárias e noutros ainda de quase colapso de governação ou mesmo de Estados falhados. A possibilidade de vir a existir maiorias eleitorais a apontar nesse sentido é real como já foi constatado no Brasil e nos Estados Unidos e agora acontece na Argentina e, segundo sondagens, poderá verificar-se nas eleições presidenciais americanas de 2024.
Ainda bem que a possibilidade de reverter situações quase dadas por perdidas também foi confirmada. A restauração da importância de carácter, decência e civilidade na actuação política é fundamental para, a par com a credibilização das instituições, se renovar o ambiente de tolerância mas também de cumprimento estrito das regras do jogo democrático. Não é, porém tarefa fácil, especialmente agora que as redes sociais dominam o espaço público, que a política tende a ser cada vez mais performativa e se afirma a atracção pelas celebridades e a apetência pelo culto de personalidade.
Por causa das crises múltiplas e, em particular, da crise existencial criada pela pandemia da Covid-19, os actores políticos deveriam ter posto uma ênfase maior na necessidade de solidariedade, na renovação do contrato social no sentido de diminuição das desigualdades e em mais confiança interpessoal e nas instituições. Infelizmente esses momentos mais difíceis têm sido desperdiçados deixando vulnerabilidades que poderão diminuir a capacidade colectiva de enfrentar ameaças, responder a desafios e lidar com incertezas várias. Em Cabo Verde também se nota esse desperdiço quando devia ser das últimas coisa a acontecer considerando a escassez de recursos naturais, a dimensão territorial e populacional e a fraca conectividade.
O não engajamento da sociedade em enfrentar solidariamente os efeitos das crises múltiplas tem aí a sua raiz. No ambiente político de campanha permanente que se vive no país a acção do governo é tida como propaganda para obter ganhos eleitorais. Já, a actuação da oposição tende a orientar-se exclusivamente para diminuir ou mesmo negar o impacto das medidas de política. Não fica muito espaço para compromissos e acordos com vista a reformas de fundo. Aproximando-se o período eleitoral, como acontece agora, a situação piora, diminui a paz social com agitação sindical e ameaças de greve e torna-se difícil agir para responder aos desafios da actualidade na sua complexidade.
As classes profissionais e os trabalhadores do sector público aproveitam para pressionar com as suas reivindicações salariais e de carreira, cientes do apoio da oposição e do momento único para extrair concessões ao governo. Isso também porque, em tempo certo e de forma coerente, abrangente e compreensiva não se tratou de fazer os ajustes justificados, ficando sectores como o da polícia resolvido e os de professores, pessoal de saúde e de outras classes diferidos no tempo. A recomendação dada pelo FMI e pelo BCV em 2022 para se conter aumentos de salários geradores de pressões sobre preços e combater a inflação não beneficiou da clareza e coerência necessárias para conter os ímpetos das pessoas perante o evidente aumento do custo de vida que enfrentam. Quando saiu a notícia do aumento no BCV a porta das reivindicações escancarou-se e as exigências salariais dificilmente vão parar.
No processo, talvez as maiores perdas sejam o sentido de razoabilidade e a capacidade de ponderação que os tempos de hoje exigem. Só se espera é que ainda haja senso suficiente para se dar o passo atrás e encontrar as vias para aumentar os níveis de solidariedade e confiança que o país tanto precisa.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1147 de 22 de Novembro de 2023.