O governo apresentou na segunda-feira, dia 18 de Março, o programa de comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e da libertação dos presos do Campo do Tarrafal. Não se conhece se o acto foi precedido da publicação de uma resolução do governo. Sabe-se, porém, por uma nota da presidência da república de 23 de Fevereiro último que o PR decidiu promover pelos 50 anos do 1º de Maio de 1974 um quadro de celebrações de Estado para “honrar o sacrifício dos que foram prisioneiros no Tarrafal”. Já meses atrás, em Janeiro, a Fundação Amílcar Cabral tinha integrado no seu programa para 2024 do centenário do seu patrono “comemorações conjuntas do 25 de Abril e da libertação dos presos políticos” e Pedro Pires tinha considerado “fundamental a intervenção do Estado de Cabo Verde e importante a intervenção da Presidência da República” nas celebrações. É precisamente o que está a acontecer.
O problema é que o processo decisório no Estado democrático parece estar invertido. Uma entidade privada lidera e o governo condescende. O parlamento não aprova comemorações oficiais, mas o governo contorna a posição da sua maioria parlamentar. O presidente da república vai numa outra direcção querendo elaborar um substancial programa comemorativo “em articulação com outros órgãos de soberania, câmara municipal do Tarrafal e outros parceiros”. Pode-se até ficar com a impressão que se voltou aos tempos do velho PAIGC/CV força, luz e guia da sociedade e do Estado.
E não é para menos se se considerar que finalmente já foi autorizada a celebração oficial do 25 de Abril em Cabo Verde. Até agora a data foi praticamente ignorada porque conflituava com a ideia expressa por Pedro Pires recentemente à Voz da América que a independência do arquipélago foi feita pelo PAIGC e pelos seus militantes e não por qualquer outro interveniente. O 25 de Abril não seria um movimento autónomo, mas sim produto da derrota infligida na Guiné e, como tal, de importância secundária. Muda-se de ideia porque, depois da visita do presidente do parlamento português Santos Silva à Fundação Amílcar Cabral e da sua declaração que a luta pela liberdade era a mesma daqueles que lutaram contra a ditadura e daqueles que lutaram contra o colonialismo, há acordo para associar as datas do 25 de Abril e do centenário de Cabral.
Ou seja, como diria George Orwell, continua-se a querer controlar o passado para poder controlar o presente e o futuro. Nesse sentido, é preciso perpetuar os equívocos. O 25 de Abril de 1974 é referenciado pelos cientistas políticos como o início da Terceira Vaga da democracia e, de facto, em Cabo Verde com a Revolução dos Cravos veio a libertação dos presos políticos no 1º de Maio, a liberdade de expressão e de imprensa, a liberdade de reunião e de manifestação e a liberdade de criação de partidos políticos. O equívoco está em celebrar o Grande Dia dizendo que a luta era a mesma de todos pela liberdade, quando realmente as liberdades de Abril praticamente desapareceram em Cabo Verde, em Dezembro de 1974, e com a independência nacional se instalou uma outra ditadura.
Um outro equívoco com a celebração da libertação dos presos da ditadura no campo do Tarrafal no dia 1º de Maio é de se fazer de esquecido que afinal o estabelecimento prisional foi mais uma vez reaberto, em Dezembro de 1974, para receber presos políticos cabo-verdianos entre eles militantes dos partidos considerados adversários/inimigos do PAIGC. Já não o número de 20 cabo-verdianos presos pelo regime salazarista, mas sim, segundo José Pedro Castanheira, 70. Na verdade o slogan “Tarrafal Nunca Mais” se em Portugal não mais se traduziu em polícia política e em presos políticos, já em Cabo Verde, por mais 15 anos, dezenas de pessoas em várias ocasiões (1977, 1979, 1980, 1981 e 1987) foram presas, sofreram sevícias, torturas e mortes em outros “tarrafais” nas instalações militares. Até agora, apesar de o parlamento, em junho de 2019, lhes ter reconhecido o agravo e estipulado pensão financeira pelos maus tratos e torturas, não há ainda de facto reconhecimento pleno do Estado de Cabo Verde, dos partidos políticos e da sociedade pelo atropelo grave aos seus direitos e à sua dignidade. Não faz sentido celebrar a libertação dos presos políticos da ditadura salazarista sem que haja pedido de desculpa pública do Estado por todas as atrocidades do regime de partido único.
Cabo Verde teve que esperar 15 anos para voltar a exercer as liberdades que depois do 25 de Abril por escassos meses, entre Maio e Dezembro de 1974, pôde desfrutar. Só em 1992 iria dotar-se de uma Constituição que consagraria a democracia liberal, garantindo a liberdade e a plena cidadania a todos os cabo-verdianos. Não se pode, pois, dizer retrospectivamente que a luta contra a ditadura salazarista era a mesma luta que os autoproclamados libertadores desencadearam nas colónias. Como se veio a constatar rapidamente, na sequência do 25 de Abril e do desmoronamento do império colonial, o objectivo de todos era substituir uma ditadura por outra. O projecto de poder do partido ou movimento era indissociável ou até podia sobrepor-se ao projecto de libertação. Para isso recorria-se a todos os meios inimagináveis para eliminar eventuais adversários ou rivais. Daí os presos políticos, as torturas, os fuzilamentos e as guerras civis que duraram décadas.
Insistir no equívoco só ajuda a perpetuar as narrativas que os chamados libertadores ainda se servem para controlar o passado e com esse poder controlar o presente e o futuro. Se alguma dúvida houvesse dos enormes estragos provocados, a situação real de corrupção, de pobreza e de desesperança que leva muitos a procurar emigrar para a Europa é bastante elucidativa. Como alguém disse já é tempo da África se libertar dos seus libertadores. Seria uma boa ajuda nesse sentido se certos sectores da vida pública e académica portuguesa não procurassem acomodar as vaidades e as narrativas de quem durante décadas não trouxe liberdade e não promoveu prosperidade aos seus povos e países. Muito menos que lhes emprestassem com honrarias renovada credibilidade e até suporte científico para os seus desvarios revolucionários.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1164 de 20 de Março de 2024.