terça-feira, abril 30, 2024

50 anos após 25 de Abril: Responsabilidades por assumir

 

Amanhã dia 25 de Abril completam-se cinquenta anos sobre o golpe militar em Portugal que pôs fim à ditadura salazarista que vigorou durante 48 anos. Na sua origem estaria a constatação de que a defesa do último império colonial se tinha tornado insustentável com a guerra a pesar na economia, com a pressão internacional e com tensões nas forças armadas.

Ao golpe seguiu-se um movimento popular que tanto em Portugal como nas colónias rapidamente se converteu numa revolução com a bandeira dos três Ds: Descolonização, Democracia e Desenvolvimento. Internacionalmente o golpe de 25 de Abril ficou conhecido por ter sido o primeiro de muitos outros processos de mudança que nas duas décadas seguintes, em todos os continentes, iriam elevar o número das democracias no mundo ao seu apogeu. Para Samuel P. Huntington, a Revolução dos Cravos de 25 de Abril foi o percursor da terceira vaga da democracia.

No cumprimento do primeiro D, descolonização, foi adoptada em Julho de 1974 a lei constitucional de 7/74 em que Portugal reconhecia, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o direito dos povos à autodeterminação com todas as suas consequências incluindo a aceitação da independência das colónias. O problema com que rapidamente os sucessivos governos portugueses se depararam nos meses seguintes foi o de garantir a ordem institucional necessária para se proceder conforme a lei. As liberdades que vieram com o 25 de Abril, designadamente de expressão, reunião e manifestação, de imprensa e de formação de associações e partidos originaram uma dinâmica social e política espontânea e sem paralelo em todos os territórios sob administração portuguesa.

Claramente em vantagem se posicionaram os grupos que se reivindicavam de ligações aos movimentos de libertação. Sabendo ao que vinham e focados no objectivo último de conquista do poder, rapidamente conseguiram atrair multidões e organizar militantes. Tentativas da sociedade em produzir propostas alternativas goravam-se quase à nascença ou eram tidas como inimigas a eliminar. Por outro lado, a identificação ideológica de esquerda dos grupos ligados aos movimentos de libertação deu-lhes acesso especial a sectores esquerdistas nas forças armadas portuguesas presentes nas colónias. O resultado é que o direito à autodeterminação dos povos não foi realmente exercido e o poder foi entregue aos movimentos de libertação. Na prática, os auto-proclamados libertadores dispensaram o consentimento dos povos e tal qual conquistadores apossaram-se do poder recebido das mãos do Movimentos das Forças Armadas (MFA).

O que se seguiu confirmou a intenção primeira da conquista do poder. Em todos os novos países independentes instalaram-se regimes ditatoriais de partido único. Onde não havia movimentos rivais procederam à intimidação brutal da população e das elites anteriores chegando a casos como o fuzilamento de centenas de pessoas na Guiné-Bissau. Nos casos onde existiam movimentos de libertação rivais, desencadearam-se guerras civis que duraram décadas e que resultaram em muitos milhares de mortos. Como se pode também constatar, não se concretizaram os outros Ds do 25 de Abril. Não tiveram democracia, nem conseguiram desenvolver-se.

A incapacidade dos governos portugueses em cumprir com a sua própria lei e garantir o direito à autodeterminação dos povos viu-se mesmo no caso de Cabo Verde onde não se tinha verificado luta armada. Também aqui como disse o então ministro da Coordenação Territorial, Almeida Santos, em entrevista ao jornal Público de 11 de Abril de 2004, as forças armadas queriam entregar o poder ao PAIGC. Para contornar o problema Almeida Santos em conversa com dirigentes do PAIGC propôs que aceitassem uma consulta popular nos seguintes termos: Vocês ganham a consulta popular por 90 por cento e nós salvamos a face. E assim aconteceu, disse ele: ganharam por 92% e salvamos a face.

É evidente que a consulta popular não foi nem livre, nem plural porque precedida de prisão de todos os adversários políticos, do controlo da comunicação social com a tomada das rádios privadas e do apoio explícito das forças armadas portuguesas. Para além disso, toda a acção política do PAIGC tinha como base a ideia que era o único representante do povo e que a independência só podia acontecer sob a sua direcção. Nesse sentido não podia deixar de ter uma componente intimidatória para os recalcitrantes e condicionante dos indecisos.

Feita a descolonização com a preocupação primeira de “salvar a face”, Portugal prosseguiu com os seus objectivos de implementar a democracia e construir o desenvolvimento. Realizaram-se eleições para a Assembleia Constituinte em 1975 e adoptou-se uma nova Constituição em 1976 com muita luta política, mas de qualquer forma num ambiente livre e plural. Ajudou também no processo a intervenção militar no dia 25 de Novembro de 1975 que contrariou derivas complicadas e assegurou que uma democracia representativa e liberal tivesse a possibilidade de se instalar. Não tiveram a mesma sorte as ex-colónias deixadas à mercê de conquistadores trasvestidos de libertadores que viriam a controlar o poder nas décadas seguintes, impedindo a democracia e adiando o desenvolvimento. Em Cabo Verde as liberdades de Abril só se tornaram realidade quinze anos depois com o 13 de Janeiro de 1991 e com a Constituição de 1992.

As comemorações do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril deviam ser acompanhadas da assunção da responsabilidade pelos enormes sacrifícios e sofrimentos causados por uma descolonização tardia conduzida por um país esgotado e com as suas forças armadas quase em debandada. Na falta disso, devia-se, pelo menos, poupar aos povos que se viram a braços com regimes ditatoriais o espectáculo de ver autoridades e instituições portuguesas a validar as narrativas histórico-políticas que os legitimaram e a honrar personalidades que os incarnaram como paladinos da liberdade.

Narrativas não são factos e a história com toda a sua complexidade não pode ser reduzida à versão dos que ditatorialmente impediram outras visões, percepções e opiniões. A Revolução dos Cravos fez-se para que não continuasse a ser assim depois da noite salazarista e para que a liberdade, a autonomia e a dignidade de todos fossem recuperadas.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1169 de 24 de Abril de 2024

sexta-feira, abril 19, 2024

Concertar nas prioridades para evitar instabilidades

 Na cerimónia do Dia da Cidade do Mindelo, no passado 14 de April, a presidente da assembleia municipal chamou a atenção para instabilidade do sector da indústria conserveira na ilha de S.Vicente mostrando preocupação com a protecção dos postos de trabalho existentes. Uma instabilidade que em grande medida provém do facto de, depois de mais uma década após a instalação das fábricas, o país ainda não ter adquirido suficiente capacidade de captura de peixe para as alimentar de matéria-prima. Por causa disso as exportações de conservas dependem de derrogações sucessivas no pagamento de direitos que as tornam competitivas no mercado da União Europeia. Também do volume de vendas dependem os postos de trabalho e a vontade das empresas em continuar a produzir lucrativamente no país.

O problema, aparentemente, é que não se absorveu que a prioridade do país era criar capacidade de captura de peixe e não renovar a derrogação de direitos como parecia sugerir a auto-satisfação dos governantes nos anúncios anuais da dádiva. Na falta de políticas dirigidas e aplicadas tempestivamente no sector, como estaria implícito no quadro da cooperação de “aid for trade”, não se podia esperar um outro impacto em termos de emprego, rendimento e exportações que não fosse de instabilidade. A não clarificação das prioridades e a falta de acção estratégica e planificada, mesmo quando identificadas, têm dessas consequências que deixam no ar a ideia que no país está-se sempre a recomeçar.

De facto, é a impressão com que se fica, sempre que se escutam os debates sobre os diferentes sectores da economia, designadamente sobre a agricultura, a pesca, os transportes, o turismo e a energia e também sobre as reformas a fazer na administração pública, no sector empresarial do Estado e no ensino. Nesse sentido, invoca-se a necessidade de mobilização de água, mas não se acrescenta mais valor com novos produtos, organização e expansão de mercados. Movimentam-se recursos na pesca, mas não se consegue dar o salto para a pesca industrial. Os transportes aéreos e marítimos em termos de custo e serviço ficam aquém do que seria necessário para unificar e potenciar o mercado interno.

Nos debates sobre o turismo a tentação de dispersão para nichos, ainda por se revelarem viáveis, tira o foco do produto que tem possibilidade de expansão rápida e impacto transversal na economia. Evita-se também discutir o excessivo roubo de energia devido em grande parte para não se enfrentar os problemas subjacentes e que têm a ver com falta de civismo, cultura de marginalidade e falhas na afirmação da autoridade do Estado. Com essa omissão não se reconhece suficientemente a importância central de se baixar o preço da electricidade e da água para os consumidores, para as empresas e a competitividade da economia nacional.

Tratando-se de grandes reformas, ainda se está por debater o papel do Estado num país arquipelágico com uma pequena população distribuída por nove ilhas. Um obstáculo é a herança de uma administração centralizada controladora de uma economia estatizada nos primeiros quinze anos pós-independência que não foi ultrapassada. Algo que se mantém porque, entre outras razões, a gestão da ajuda externa conjunta com as organizações multilaterais contribui para reproduzir o peso e a influência do Estado sobre o sector privado e a sociedade no seu todo. Na prática, o Estado ainda se coloca no topo da proverbial cadeia alimentar e não se pode falar totalmente de um sector privado autónomo e uma sociedade não marcada pela dependência estatal. A classe média que os teóricos da democracia veem como fundamental numa democracia consolidada ainda está por se afirmar.

Por isso que as tentativas de reforma da administração do Estado têm ficado aquém do desejável numa perspectiva de melhorar a competitividade do país com a diminuição dos custos de contexto. No sector empresarial estatal as reformas parecem mais seguir a agenda de parceiros internacionais do que a ajudar a suprir falhas de mercado e a apoiar o desenvolvimento do sector privado nacional. A reforma do ensino, no quadro de desenvolvimento do capital humano, ainda está por ter o mais forte comprometimento do Estado e o engajamento de toda a sociedade para ser vista com a maior aposta do país. A herança do igualitarismo, da massificação sem preocupação com a qualidade e da desconfiança em relação ao conhecimento dificultam a emergência da cultura de excelência e de meritocracia que o país precisa.

Quando se trata então de políticas inovadoras não se clarifica o que se pretende, insistindo com expressões grandiosas e chavões como economia azul, economia verde, transição digital e transição energética. A insistência nos meios (linhas de crédito, infraestruturas e formação para empreendedorismo) acaba por obscurecer os objectivos ficando os resultados dos projectos por serem avaliados numa perspectiva de custos e benefícios e de externalidades positivas criadas.

Com uma outra visão menos condicionada pelos projectos que ditam políticas em vez do inverso, talvez Cabo Verde pelas suas características arquipelágicas e carestias diversas e condição remota pudesse se apresentar como um grande laboratório para os problemas que tarde ou cedo quase todo o mundo vai ter designadamente em matéria de alterações climáticas, escassez de água, armazenagem de energia, acesso de pequenas comunidades a serviços públicos e a telemedicina. Talvez por aí se pudesse encontrar soluções inovadores e comercializáveis e não se limitar muitas vezes a ser um cemitério de projectos que apresentados como promissores não sobrevivem ao término do seu financiamento.

A realidade actual é que são perceptíveis “instabilidades” em vários sectores e não só na indústria conserveira. Nos transportes é claramente visível. Socialmente sente-se nos níveis de criminalidade, no excesso de suicídios, na percepção de insegurança que causa angústia e leva à depressão. Já se sente a contaminação noutros sectores como a educação em que as reivindicações dos professores enquanto justas poderão não ter solução total imediata, mas, entretanto, mexem com a eficácia das escolas e afectam os alunos. De outros grupos profissionais poderão vir reivindicações também justas.

A saída desta situação provavelmente terá que passar por se chegar a algum consenso em relação às prioridades-chave do país e num espírito de solidariedade compreender que a democracia não é só de direitos, mas também, como alguém disse, de uma cidadania comprometida com deveres para comunidade e seus valores

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1168 de 17 de Abril de 2024.

segunda-feira, abril 15, 2024

Cultura democrática é essencial para a estabilidade

 A propósito da organização de uma conferência sobre “Liberdade, Democracia e Boa Governança: Um olhar a Partir de Cabo Verde” não se perdeu a oportunidade de mais uma vez os partidos se digladiarem em público com acusações de aproveitamento por parte do governo. Os pretextos no caso poderão ter sido a sua realização e pertinência, os custos envolvidos e ainda a escolha dos convidados e oradores. Haverá alguma verdade nisso, mas na prática a troca de galhardetes não deixa de ser mais um exemplo de como predomina no país a política de soma zero.

Desconfiança quanto às reais intenções aparece sempre que se procure projectar para fora a imagem do país potenciando algo positivo como é no caso a sua posição nos rankings internacionais da democracia. Mas devia ser óbvio que quando o país ganha com marketing bem feito junto de parceiros e da comunidade internacional algum reflexo disso vai recair sobre o governo da república independentemente de quem no momento o representa. E não há como ser diferente. Aliás, também a oposição contribui para a boa imagem do país, como demostrou o líder do PAICV nestes dias da conferência na ilha do Sal, ao corroborar a ideia de “que nós temos uma democracia que em termos de regra cumpre, temos eleições regulares, mandatos regulares, com cidadãos e partidos a participarem nas eleições", e também ao apontar, e sem quaisquer entraves, falhas na governação.

Uma boa imagem não significa que não se notam imperfeições na democracia, que não são visíveis alguns sintomas da crise similares aos encontrados actualmente em todos os países democráticos ou que não faltam posicionamentos anti-sistema que alargando fracturas podem pôr em perigo o próprio regime democrático. Como é dito repetidas vezes o maior activo de Cabo Verde é a sua estabilidade governativa. Para a conservar deviam convergir todas as forças políticas e a sociedade de forma a que em momento algum seja posta em causa, em particular nos de alternância política.

Por outro lado, Cabo Verde é um país com uma economia pouco diversificada e muito dependente de um sector do turismo extremamente sensível a flutuações na percepção de estabilidade e segurança. O apoio dos parceiros, ainda de grande importância no actual estádio do seu desenvolvimento, também depende da confiança que governos estáveis, duráveis e democráticos podem proporcionar. A aprofundarem-se os sinais de crise, com correspondente descredibilização das instituições, não se pode tomar como certo que o padrão de estabilidade conservado até agora irá manter-se num futuro próximo. A dificuldade em criar governos estáveis em países como Espanha e recentemente Portugal pode estar a assinalar problemas similares em Cabo Verde, talvez já nas próximas legislativas.

Aliás, é o que pode acontecer se continuarem as tensões políticas do mesmo teor dos vividos no país e que provocam a erosão e a descredibilização das instituições. Uma outra contribuição pode vir das tendências anti-sistema que põem em causa a competência dos órgãos de soberania, o princípio da separação dos poderes e procuram subordinar o Estado a narrativas iliberais. Num cenário desses corre-se o risco de que a exemplo das democracias mencionadas nenhum partido consiga obter nas urnas uma maioria absoluta. E Cabo Verde ainda não foi posta à prova perante a perspectiva de um governo minoritário.

De facto, os anos de estabilidade vividos em democracia foram anos de maioria absoluta de um só partido num sistema praticamente bipartidário. No início da actual legislatura, em 2021, viram-se os sinais do que poderá vir a verificar-se no futuro. Devido a fracturas aparentes na maioria parlamentar, que teriam vindo a público nas eleições do presidente e da mesa da Assembleia Nacional, viveram-se momentos de incerteza em particular na aprovação da moção de confiança ao governo e posteriormente na aprovação do Orçamento do Estado. As soluções que começaram a desenhar-se com a UCID para viabilizar o governo não tiveram desenvolvimento posterior, mas deixaram desconfiança e ressentimento na relação com o partido governamental. A abertura à intervenção do PR na questão orçamental revelou fragilidades do governo contribuindo provavelmente para posteriores momentos de tensão entre os dois órgãos de soberania.

No sistema político cabo-verdiano a inexistência de uma maioria absoluta nas eleições legislativas pode levar a situações complicadas do mesmo tipo. A Constituição exige a aprovação uma moção de confiança para se ter governo e isso só é possível com maioria absoluta. Em vários outros países simplesmente se exige que não seja aprovada uma moção de rejeição ao governo. Com isso, abre-se caminho para um governo minoritário que pode manter-se até que contra ele não se erga uma maioria negativa. Já em Cabo Verde a exigência logo à partida de uma maioria implica que se tenha uma cultura de negociação e compromissos entre os partidos, algo que actualmente é quase inexistente e tende a tornar-se mais rara. É só ver a dificuldade já de vários anos em conseguir entendimento para eleger os órgãos externos da Assembleia Nacional.

A dificuldade que se pode vir a ter no futuro já é discernível no que se vive nos municípios da Praia e de S. Vicente. Sem maioria absoluta, no caso da Praia por opção do próprio presidente da câmara municipal e no caso de S. Vicente devido aos resultados das eleições, a impossibilidade de se chegar a acordo entre as partes leva no primeiro caso à aprovação do Orçamento sem seguir os procedimentos legais e, no segundo caso, a bloqueios e funcionamento com orçamento de anos anteriores. Em todos os outros municípios, e na maioria dos casos ao longo das três décadas de poder local, a maioria absoluta até agora garantiu estabilidade. Se a regra passar a ser maioria relativa não haverá garantia que o ambiente de estabilidade que se vive na generalidade dos municípios irá continuar.

Os sinais que se vêem no país e os que vêm de fora não fazem acreditar que o ambiente político, a natureza das disputas políticas e própria postura dos actores políticos e também dos cidadãos em relação à política vão mudar. Pelo contrário, nota-se que a descredibilização das instituições tende a aumentar e que a política se torna cada mais performativa e menos de substância. O que faz escola é a exibição do narcisismo, é algum desdém pelos factos e pela verdade e é o apego a narrativas fracturantes da sociedade.

Mesmo as eleições, como as últimas verificadas em Portugal, não conseguem inverter o processo. Pelo contrário, mostram a dinâmica de ascensão de blocos antagónicos que se retroalimentam e não se vê suficiente vontade para romper com o círculo vicioso. A impressão que fica é que se deixou enfraquecer demasiado os consensos sobre os princípios e valores democráticos e o respeito pelo primado da lei que mantêm coesa a comunidade e permitem traçar propósitos comuns.

Para Cabo Verde a imagem de estabilidade é essencial. Mantê-la, passa por inverter a actual erosão da cultura cívica, por um maior comprometimento com os procedimentos democráticos e por renovação dos laços de solidariedade. A grande prova será o novo ciclo eleitoral, seja pelos desafios que poderá vir a colocar, seja pelos que o país poderá se deparar neste mundo de mudanças geopolíticas, alterações climáticas e transformações tecnológicas. É fundamental que se reúna o consenso necessário para a vencer.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1167 de 10 de Abril de 2024.

segunda-feira, abril 08, 2024

Representatividade e responsabilização devem caminhar lado a lado

 

A preparação para as eleições autárquicas no último trimestre do corrente ano já começou. O MpD, o partido no governo e maioritário nas autarquias, anunciou os seus candidatos a presidente das câmaras municipais há mais de três semanas, mas dos outros partidos ainda não foram revelados nomes para a corrida eleitoral. De entre os efeitos no público do anúncio do MpD destacou-se o facto de não ter para as 22 câmaras municipais uma candidata mulher. Não foi proposta a recandidatura da actual presidente da câmara de Santa Catarina e não foram apresentadas outras candidatas noutros municípios. A colisão directa com o espírito da lei da paridade, que essa decisão partidária acabou por configurar, criou a possibilidade de outros partidos se mostrarem diferentes e não hipócritas propondo candidaturas no feminino.

O cargo de presidente da câmara afirma-se cada vez mais central nos municípios – por lei é órgão executivo singular – e, por isso, não se pode pretender que se está a cumprir com a paridade compensando a todo o momento a ausência de candidatas para o lugar com candidaturas femininas para segundo da lista da câmara ou mesmo primeiro da lista para a assembleia municipal. Os partidos, enquanto organizações democráticas e representativas da comunidade política e promotores de princípios e valores como igualdade de oportunidades para todos, têm como uma das suas principais funções preparar e seleccionar candidatos aos órgãos do poder político para ganhar e governar com competência. Nesse sentido, a selecção não pode ser vista como um processo opaco e sujeito a jogadas, nem tão simplista como sondagens para avaliar a notoriedade dos pré-candidatos. Deve ser antes tida como resultado da ponderação exaustiva em órgãos próprios ou de métodos transparentes e competitivos como são as primárias partidárias. Quando não é assim, contribui para aprofundar ainda mais a chamada crise de representatividade que é uma das manifestações da crise da democracia que hoje assola o mundo.

Representatividade e responsabilização caminham lado a lado. Se a representatividade não é reconhecida porque diluída ou imposta, não há a quem exigir contas. Também se é concentrada num indivíduo sem contrabalanço de outros órgãos a tendência é para o caciquismo e relações de dependência que não deixam espaço para uma real responsabilização. Nos municípios cabo-verdianos, apesar da Constituição estabelecer que a câmara municipal é responsável perante a assembleia municipal, a verdade é que todo o poder tende a concentrar-se no presidente da câmara. Daí que que os partidos na preparação das autárquicas ponham o foco na escolha dos candidatos a presidente da câmara e coloquem em segundo plano os candidatos para a câmara e assembleia, afectando negativamente a qualidade da representação dos munícipes nos seus órgãos de poder político.

É evidente que assim a democracia local fica comprometida. Cria-se uma espécie de círculo vicioso em que a fragilidade dos órgãos colegiais tende a aumentar com a concentração do poder no presidente da câmara e com a diminuição em simultâneo da sua capacidade de controlo institucional e imagem junto dos munícipes. A experiência de mais de trinta anos de poder local deixa entender que na generalidade das situações também a influência dos partidos tende a diminuir à medida que o presidente da câmara vai ao longo do mandato construindo a sua base de apoio. Base essa que com sucessivos mandatos tende a consolidar e que a partir de certo momento permite inverter a relação com o partido deixando de ser o escolhido do partido para se impor como candidato nos seus termos. Verdade seja dita que também aquele que não construir base própria dificilmente consegue ir além de um mandato. Há sempre rivais à espreita nas estruturas do partido.

As crises persistentes nos municípios de S.Vicente e da Praia são exemplos de como desvios no exercício do poder democrático ao nível municipal acabam por degenerar em bloqueios, caciquismos e em ilegalidades flagrantes. Revelador da ausência de mecanismos sócio-políticos de responsabilização é a própria impotência das direcções dos partidos em lidar com essas situações. Não as conseguem resolver ou ultrapassar e, pelo contrário, sentem-se forçadas a seguir a posição do presidente da câmara. Preocupante também é a tendência para transportar para a Assembleia Nacional as lutas políticas municipais. Além de se desperdiçar tempo precioso do parlamento, ainda se contribui para aumentar o tempo que os média, em particular a rádio e a televisão públicas, dedicam às câmaras municipais nas disputas políticas nacionais.

De facto, a impressão que se tem é que cada vez mais a arena política principal do país move-se para os municípios. O excessivo eleitoralismo que sempre caracterizou a política municipal facilita esse tipo de jogo político onde também se vêem como protagonistas o governo e os deputados nacionais. Com convites selectivos e agendas convenientes nem sequer se deixa de fora o presidente da república. No processo o que acaba por prevalecer é a lógica de campanha permanente com disputa feroz de recursos e o discurso do abandono e do ressentimento. Em termos de políticas, a tendência é para não se ver o país no seu todo, nem mesmo das suas nove ilhas, mas cada vez mais na perspectiva dos seus 22 municípios. O problema é que com perda de escala e mais rigidez no tratamento dos constrangimentos ao desenvolvimento aumenta-se a ineficiência na utilização dos escassos recursos e diminui-se a eficácia das políticas. Paradoxalmente também a autonomia municipal é de alguma forma sacrificada.

A ideia do município parte do princípio da existência de interesses específicos das comunidades no país que não se esgotam no interesse nacional. A eleição dos seus órgãos de poder político devia garantir de forma democrática a prossecução desses interesses específicos. O facto de só estar sujeito à tutela de legalidade e não ter tutela de mérito devia ser suficiente para manter à distância os órgãos de soberania e seus titulares. Se a percepção da autonomia não se confirma será por razões de fragilização das suas instituições devido ao funcionamento deficiente dos mecanismos de responsabilização, à fraca participação da comunidade, à pouca expressão de uma comunicação social local e à cultura eleitoralista em que “vale tudo”. Na verdade, há pouca discussão das políticas locais, mas muita disputa de recursos e protagonismo com o governo. E para os políticos locais criar uma base de suporte à autonomia não parece tão importante como concentrar recursos para influenciar e agir.

Pode-se estar ainda longe do poder local como cantinho de experimentação democrática, mas na oportunidade oferecida por cada ciclo eleitoral devia-se fazer um esforço para se realizar o objectivo de participação política efectiva. Para isso, há que ter preocupação com a representatividade e a responsabilização política e garantir a autonomia municipal. Os partidos têm o dever de apresentar candidatos qualificados – respeitando a diversidade – capazes de apresentar propostas de políticas e propiciar debate para a consecução dos interesses municipais. Quando, como é caso actual, em que há candidatos que são membros do governo deviam deixar o cargo logo que anunciados publicamente em nome da autonomia municipal e da própria eficácia governativa.

Também da sociedade sempre poderia vir uma iniciativa de candidatos promovida por “grupo de cidadãos” que, sem cair na tentação de imitar os partidos, ajudasse a criar uma democracia local sem caciquismo e clientelismo. Talvez assim se construísse um poder local mais próximo de cumprir com os seus desígnios constitucionais de levar a democracia a todos os cantos do país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1166 de 3 de Abril de 2024.

sexta-feira, março 22, 2024

Equívocos para continuar a controlar o passado e o futuro

 O governo apresentou na segunda-feira, dia 18 de Março, o programa de comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e da libertação dos presos do Campo do Tarrafal. Não se conhece se o acto foi precedido da publicação de uma resolução do governo. Sabe-se, porém, por uma nota da presidência da república de 23 de Fevereiro último que o PR decidiu promover pelos 50 anos do 1º de Maio de 1974 um quadro de celebrações de Estado para “honrar o sacrifício dos que foram prisioneiros no Tarrafal”. Já meses atrás, em Janeiro, a Fundação Amílcar Cabral tinha integrado no seu programa para 2024 do centenário do seu patrono “comemorações conjuntas do 25 de Abril e da libertação dos presos políticos” e Pedro Pires tinha considerado “fundamental a intervenção do Estado de Cabo Verde e importante a intervenção da Presidência da República” nas celebrações. É precisamente o que está a acontecer.

O problema é que o processo decisório no Estado democrático parece estar invertido. Uma entidade privada lidera e o governo condescende. O parlamento não aprova comemorações oficiais, mas o governo contorna a posição da sua maioria parlamentar. O presidente da república vai numa outra direcção querendo elaborar um substancial programa comemorativo “em articulação com outros órgãos de soberania, câmara municipal do Tarrafal e outros parceiros”. Pode-se até ficar com a impressão que se voltou aos tempos do velho PAIGC/CV força, luz e guia da sociedade e do Estado.

E não é para menos se se considerar que finalmente já foi autorizada a celebração oficial do 25 de Abril em Cabo Verde. Até agora a data foi praticamente ignorada porque conflituava com a ideia expressa por Pedro Pires recentemente à Voz da América que a independência do arquipélago foi feita pelo PAIGC e pelos seus militantes e não por qualquer outro interveniente. O 25 de Abril não seria um movimento autónomo, mas sim produto da derrota infligida na Guiné e, como tal, de importância secundária. Muda-se de ideia porque, depois da visita do presidente do parlamento português Santos Silva à Fundação Amílcar Cabral e da sua declaração que a luta pela liberdade era a mesma daqueles que lutaram contra a ditadura e daqueles que lutaram contra o colonialismo, há acordo para associar as datas do 25 de Abril e do centenário de Cabral.

Ou seja, como diria George Orwell, continua-se a querer controlar o passado para poder controlar o presente e o futuro. Nesse sentido, é preciso perpetuar os equívocos. O 25 de Abril de 1974 é referenciado pelos cientistas políticos como o início da Terceira Vaga da democracia e, de facto, em Cabo Verde com a Revolução dos Cravos veio a libertação dos presos políticos no 1º de Maio, a liberdade de expressão e de imprensa, a liberdade de reunião e de manifestação e a liberdade de criação de partidos políticos. O equívoco está em celebrar o Grande Dia dizendo que a luta era a mesma de todos pela liberdade, quando realmente as liberdades de Abril praticamente desapareceram em Cabo Verde, em Dezembro de 1974, e com a independência nacional se instalou uma outra ditadura.

Um outro equívoco com a celebração da libertação dos presos da ditadura no campo do Tarrafal no dia 1º de Maio é de se fazer de esquecido que afinal o estabelecimento prisional foi mais uma vez reaberto, em Dezembro de 1974, para receber presos políticos cabo-verdianos entre eles militantes dos partidos considerados adversários/inimigos do PAIGC. Já não o número de 20 cabo-verdianos presos pelo regime salazarista, mas sim, segundo José Pedro Castanheira, 70. Na verdade o slogan “Tarrafal Nunca Mais” se em Portugal não mais se traduziu em polícia política e em presos políticos, já em Cabo Verde, por mais 15 anos, dezenas de pessoas em várias ocasiões (1977, 1979, 1980, 1981 e 1987) foram presas, sofreram sevícias, torturas e mortes em outros “tarrafais” nas instalações militares. Até agora, apesar de o parlamento, em junho de 2019, lhes ter reconhecido o agravo e estipulado pensão financeira pelos maus tratos e torturas, não há ainda de facto reconhecimento pleno do Estado de Cabo Verde, dos partidos políticos e da sociedade pelo atropelo grave aos seus direitos e à sua dignidade. Não faz sentido celebrar a libertação dos presos políticos da ditadura salazarista sem que haja pedido de desculpa pública do Estado por todas as atrocidades do regime de partido único.

Cabo Verde teve que esperar 15 anos para voltar a exercer as liberdades que depois do 25 de Abril por escassos meses, entre Maio e Dezembro de 1974, pôde desfrutar. Só em 1992 iria dotar-se de uma Constituição que consagraria a democracia liberal, garantindo a liberdade e a plena cidadania a todos os cabo-verdianos. Não se pode, pois, dizer retrospectivamente que a luta contra a ditadura salazarista era a mesma luta que os autoproclamados libertadores desencadearam nas colónias. Como se veio a constatar rapidamente, na sequência do 25 de Abril e do desmoronamento do império colonial, o objectivo de todos era substituir uma ditadura por outra. O projecto de poder do partido ou movimento era indissociável ou até podia sobrepor-se ao projecto de libertação. Para isso recorria-se a todos os meios inimagináveis para eliminar eventuais adversários ou rivais. Daí os presos políticos, as torturas, os fuzilamentos e as guerras civis que duraram décadas.

Insistir no equívoco só ajuda a perpetuar as narrativas que os chamados libertadores ainda se servem para controlar o passado e com esse poder controlar o presente e o futuro. Se alguma dúvida houvesse dos enormes estragos provocados, a situação real de corrupção, de pobreza e de desesperança que leva muitos a procurar emigrar para a Europa é bastante elucidativa. Como alguém disse já é tempo da África se libertar dos seus libertadores. Seria uma boa ajuda nesse sentido se certos sectores da vida pública e académica portuguesa não procurassem acomodar as vaidades e as narrativas de quem durante décadas não trouxe liberdade e não promoveu prosperidade aos seus povos e países. Muito menos que lhes emprestassem com honrarias renovada credibilidade e até suporte científico para os seus desvarios revolucionários. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1164 de 20 de Março de 2024.

quinta-feira, março 14, 2024

Salvaguardar a autonomia do BCV

A iniciativa do INPS de organizar leilões para depósitos na perspectiva de conseguir maior rentabilização das poupanças da instituição continua a provocar polémica. No passado dia 1 de Março o BCV, depois de, em Dezembro, ter recomendado aos bancos que se abstivessem de participar nos leilões veio dar-lhes razão na reclamação então apresentada. No comunicado, o BCV deixou claro que o processo de leilões violou o princípio de transparência e que seria passível de anulação pelas entidades competentes. O insólito aconteceu quando, numa conferência de imprensa, no dia 8 Março, com a presença dos dois ministros de tutela, o ministro das Finanças veio contrapor ao BCV afirmando que o INPS andou muito bem em avançar com os leilões e que são para continuar.

Na segunda-feira, o presidente da república em entrevista à TCV relembrou ao governo a autonomia do BCV e a sua função de entidade reguladora independente do sistema financeiro. Razão por que, segundo ele, o governo “não pode realizar reunião entre o Banco Central, o INPS e o próprio governo para articular posições” como se propôs fazer o ministro das Finanças nas suas declarações da sexta feira passada. De facto, a lei orgânica do BCV, de 2002, é clara em afirmar  que a autonomia do Banco Central deve ser respeitada, não podendo nenhum órgão ou pessoa influenciar o governador ou qualquer membro do conselho de administração no desempenho das suas funções.

 A lei traduz a opção por uma maior autonomia e independência do Banco Central que foi consagrada na revisão constitucional de 1999 na sequência da assinatura do Acordo Cambial que criou o peg fixo com o euro. O respeito pelos seus pressupostos trouxe ao país anos de inflação baixa e uma imagem de país com estabilidade cambial e do sistema financeiro. Não se pode com ligeireza ou voluntarismos fragilizar a arquitectura institucional que tem suportado essa estabilidade.

De acordo com o ministro das Finanças na TCV a iniciativa dos leilões é uma questão nova para o INPS, para o BCV e para o próprio Governo e que nem o BCV tem ou tinha regulamentos nessa matéria. A pergunta que se põe é: sendo os leilões de depósitos uma inovação, por que se avançou com o processo sem primeiro o regulamentar e sem aparentemente o acordo explícito da tutela dos dois ministros. Leilões de produtos financeiros não são propriamente desconhecidos no país. Acontecem regularmente com as emissões de obrigações e bilhetes do tesouro.

A diferença é que são regulados respectivamente pelos decretos-leis 59/2009 e 60/2009 de 14 de Dezembro que remetem para o Banco Central /Auditoria Geral do Mercado de Valores Mobiliários, aspectos operacionais de realização de leilão, de liquidação financeira e de consulta. Também é sempre ouvido previamente o BCV/AGMVM quando são estabelecidas as condições de emissão e outras questões técnicas ligadas aos leilões dos títulos do tesouro.  Na Bolsa de Valores os títulos são oficiosamente cotados e colocados por leilão. 

Por aí pode-se constatar que há processos e procedimentos em matéria de leilões já consolidados no país e com enquadramento institucional adequado que dificilmente permitem dizer que se está perante uma situação completamente nova. De facto, novidade parecem ser os leilões de depósitos de fundos sociais. Aparentemente não se registam muitos exemplos no mundo lá fora.

O caso mais referido é do Banco da Rússia onde, por razões de gestão de excesso de liquidez estrutural e também de imposição legal de aplicação de contribuições para fundos de pensões, se realizam leilões periódicos de depósitos. São realizados na Bolsa de Moscovo, o Banco da Rússia estabelece as regras para garantir transparência, protecção dos fundos de pensões e promover a competição entre os bancos e certifica-se que há conformidade com as directivas do ministério das finanças. Ou seja, há todo um enquadramento institucional prévio para se colher os benefícios do processo e para assegurar a estabilidade e a confiabilidade do sistema.

Também em Cabo Verde devia-se começar por dar esse enquadramento legal a todo o processo a exemplo do que foi feito com os leilões dos Títulos do Tesouro.  É evidente o interesse geral em rentabilizar os fundos do INPS, mas há que fazê-lo sem deixar quaisquer dúvidas quanto à transparência do processo e salvaguardando a integridade do sistema financeiro. Por outro lado, há que assacar responsabilidades e conter os eventuais estragos institucionais e reputacionais por um imbróglio que se arrasta há três meses, uma parte em surdina e mais recentemente às claras como deixam entender os sucessivos comunicados vindos a público.

Já são claros os sinais do confronto político que se anunciam e o posicionamento do governo na conferência de imprensa da sexta-feira não serviu para apaziguar a situação. Depois da chamada de atenção do presidente da república para a necessidade de se garantir o normal funcionamento das instituições, devia-se procurar pôr o processo de rentabilização dos depósitos do INPS no caminho certo e com a supervisão adequada.

 Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1163 de 13 de Março de 2024.

 

segunda-feira, março 11, 2024

De mãos dadas para enfrentar os desafios da modernidade

Março, Mês da Mulher, é sempre o tempo ideal para um olhar sobre a grande caminhada para garantir direitos e oportunidades em pé de igualdade com os homens. Extraordinários avanços já foram feitos, em particular nas democracias, enquanto atrasos se mantêm em muitos países e autênticas regressões se verificam noutros. O acesso generalizado à educação nos diferentes níveis e a empregos em todos os domínios tem traduzido muito desse progresso.

É evidente a contribuição dada para a produção de riqueza global, para a diminuição extraordinária da pobreza e para um sentimento de realização contagiante que acabou por elevar para um outro patamar a vida de milhões de meninas e mulheres em todo o mundo. Afinal, trata-se da metade da humanidade e o seu bem-estar e felicidade significa ganho para todos.

Infelizmente, toda essa caminhada ainda não é feita sem que seja pontuada por muito sofrimento, violência, discriminação activa e tentativas de exclusão. Mesmo nas sociedades mais democráticas nota-se uma reacção agressiva de certos sectores da sociedade face aos grandes avanços conseguidos pelas mulheres. Em alguns países como o Irão e o Afeganistão essa reacção aos ganhos da modernidade toma formas extremas e é uma das fontes de alimentação da revolução que inequivocamente tem como uma das suas finalidades a subjugação da mulher. Em todo o mundo verifica-se o recrudescer da tensão entre homem e mulher, um fenómeno que provavelmente não está alheio a reconfiguração das lutas emancipatórias das minorias em lutas identitárias, pondo em confronto opressor e oprimido, e também o extremar de posições devido ao efeito polarizante das redes sociais.

As guerras culturais que hoje marcam uma boa parte da agenda política são marcadas pelo que são as expectativas dos diferentes grupos sociais quanto ao papel do homem e da mulher na sociedade. Não é à toa que já se nota um posicionamento diferenciado dos dois sexos na tradicional divisão de política nas democracias entre a esquerda e a direita com as mulheres a pender para esquerda e o homem a situar-se à direita. Numa matéria particularmente divisiva como o chamado direito ao aborto, em que estão em causa os direitos da mulher sobre o seu próprio corpo e de ter ou não filhos, os tribalismos de esquerda e de direita funcionam plenamente.

Há dois anos atrás a maioria conservadora dos juízes no supremo tribunal dos Estados Unidos conseguiu revogá-lo causando grandes perturbações sociais e políticas com impacto nas eleições estaduais e federais. Na segunda-feira, dia 4 de Março, esse direito foi introduzido na Constituição na França através de uma emenda constitucional aprovado pelo parlamento. É a primeira vez que isso acontece na história das constituições democráticas.

Em várias situações de conflito aberto ou mesmo de guerra é visível a centralidade da questão do papel da mulher na sociedade e da sua dominação pelo homem. Muitas das paixões, da crueldade e do ressentimento que alimentam esses processos hoje a acontecer em vários pontos da África, do Médio Oriente e de outros continentes justificam-se pelo desejo de subjugação das mulheres. Em resultado, são votadas à exclusão e impedidas de conseguirem uma educação, são violadas e mortas para desmoralizar as hostes inimigas e até usadas como escudos humanos para conduzir furtivamente operações militares. No ataque a Israel a 7 de Outubro e na invasão de Gaza e ainda nos relatos de atrocidades verificadas em teatros de guerra como Etiópia, Ucrânia e no Congo tem-se uma ideia do pesado fardo de dor e sofrimento que recai sobre as mulheres nos conflitos armados em particular quanto se assumem como existenciais.

Também ao nível micro de pequenas cidades, das vilas e das famílias as notícias demasiados frequentes de violência doméstica que acaba por desembocar no assassinato da mulher e algumas vezes acompanhado do suicídio do homem deixam entrever que há questões complexas no processo emancipatório e que precisam ser enfrentadas para se poder chegar à almejada igualdade de direitos e oportunidades. Em Cabo Verde, nos últimos dias, o homicídio da passada segunda feira, em Porto Novo, a tentativa de assassinato e suicídio no Fogo são os mais recentes casos de acontecimentos similares que vêm se repetindo no país e têm lançado os números de homicídios e de suicídios para níveis preocupantes.

Há que compreender que se está a viver um período particularmente difícil no mundo inteiro com crises de vária natureza, designadamente climática e migratória, com novas tensões geopolíticas e com a possibilidade de reconfiguração de espaços e relações económicos. Em simultâneo, está-se perante um momento único na história da humanidade em termos de participação das mulheres na vida política, económica e social e cultural que, ao dar suporte à autonomia pessoal e estimular a competição em todos os domínios, abre a possibilidade da criação de tensões com relações e papéis sociais anteriormente existentes para o homem e para a mulher no espaço familiar, na empresa, na política, etc. Tudo isso concorre para criar alguma ansiedade em relação ao futuro e mesmo insegurança quando as pessoas, principalmente os homens, veem os seus empregos tradicionais destruídos, sentem-se impreparados para os novos empregos e ressentem a perda do estatuto social.

Mas, porque avançar é preciso e sem deixar ninguém para trás, o grande desafio que se impõe a todos é como fazê-lo sem cair em tensões paralisantes, na violência do género e em tentações de fazer recuar a história como prometem os diferentes fundamentalismos religiosos e alguns líderes de clara inclinação autocrática. Para isso é fundamental que a atenção não fique só por continuar a incentivar o avanço extraordinário que as mulheres têm feito. É preciso que incida sobre a necessidade de preparar os homens e especialmente os jovens rapazes para o mundo de competição de hoje, mas também de colaboração e solidariedade com as meninas num quadro de igualdade de direitos e de oportunidades.

A humanidade não pode sobreviver e muito menos prosperar com as suas duas metades de costas viradas. O 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, é também o dia para se lembrar que a caminhada deve ser feita de mãos dadas, não obstante todos os percalços que inevitavelmente acabam por aparecer. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1162 de 6 de Março de 2024.

 

segunda-feira, março 04, 2024

Os tempos não estão para activismos fracturantes

 Assiste-se actualmente em Cabo Verde ao renascer da tendência para o pensamento único sob a capa de slogans como “cumprir Cabral”, “cultura é resistência” e agora “oficialização Já! do crioulo”. Este último slogan saiu do fórum sobre a língua cabo-verdiana realizado no quadro das actividades realizadas no sábado passado a propósito do dia internacional da língua materna. O activismo que dá corpo a essa tendência autorreferencia-se pela aderência à ideologia da luta de libertação, pelo pan-africanismo e pela negação da especificidade da cabo-verdianidade. Até se faz reconhecer nas suas actividades através de uma espécie de “dress code” supostamente de resistência em que prefere o uso de indumentária típica de países do continente africano ou então a que distinguia os dirigentes do regime anterior.

Daí não viria nenhum mal ao mundo se fosse somente mais uma corrente de pensamento numa sociedade democrática e plural. O problema é que tem o patrocínio claro das instituições do Estado incluindo o suporte de órgãos de soberania, do sistema educativo do país, da universidade pública e da comunicação social do Estado. Com a percepção desse apoio institucional não estranha que ambicione e procure a ser único e que demonstre ostensivamente a sua intolerância em relação a ideias, narrativas ou factos que contrariam os fundamentos da sua ideologia. No caso da oficialização do crioulo a ajuda estatal tem outras utilidades, como bem comentou um dos mentores da sua promoção: “Ten ê ke ser ufisializódepadnher pa fazê tude u ke mestê fazê” (tem que se oficializar já para pôr dinheiro para fazer tudo o que é preciso fazer).

A citada expressão em crioulo recorre ao alfabeto fonológico ALUPEC como, aliás, toda a comunicação do Fórum da Língua Materna. Isso acontece porque com o apoio do Estado foi o alfabeto que se impôs em detrimento do alfabeto etimológico que escritores, poetas, compositores e outros cabo-verdianos usaram por mais de um século. Pondo de lado obra consolidada e intimamente ligada às bases fundantes da cabo-verdianidade na música e na literatura e o facto do crioulo ter base lexical portuguesa em mais de 90% adoptou-se um alfabeto fonológico não por razões práticas ou culturais, mas sim por razões fundamentalmente ideológicas. Na linha do pensamento único tinha-se que impor a realidade alternativa conjecturada em tempos revolucionários da origem africana dos cabo-verdianos. A escrita na base do alfabeto etimológico revelando as origens da sua língua materna não podia denunciar o contrário.

Curiosamente nas ilhas chamadas ABC, nas Caraíbas, onde também se fala um crioulo de base lexical em boa parte de origem portuguesa uma delas, Aruba, adoptou o alfabeto etimológico para o papiamento e a outra, Curação seguiu o alfabeto fonológico no seu papiamentu. Seria interessante estudar o impacto prático da adopção dos dois alfabetos com as suas vantagens e desvantagens tendo, porém, em conta que, diferentemente de Cabo Verde com língua oficial portuguesa, o papiamento tem muito pouco do holandês, que é a língua oficial nas duas ilhas. Sem falar que não há programas de reafricanização dos espíritos do tipo existente em Cabo Verde que enviesam qualquer abordagem da realidade cabo-verdiana suportada no facto de que a consciência nacional emergiu em Cabo Verde muito antes da independência e não como resultado de lutas anticoloniais.

Talvez por causa disso não se nota nessas duas ilhas o tipo de activismo frenético que se vê em Cabo Verde. O papiamento é uma das línguas oficiais nas duas ilhas desde há mais de dez anos, mas não é língua da administração pública e apesar de ser ensinada nas escolas não é a língua de ensino. Ao holandês é reservado esse papel. Não é uma situação muito diferente do que se passa em Cabo Verde. Aqui as normas constitucionais pertinentes estão na constituição no artigo 9º sob epígrafe línguas oficiais, mas ainda não há paridade com o português. O presidente da república exprime-se oficialmente também em crioulo, o debate parlamentar muitas vezes acontece em crioulo e nos tribunais pode-se depor também em crioulo. Com esse nível de assunção pela sociedade e pelo Estado não se pode dizer com seriedade que a língua cabo-verdiana é discriminada ou secundarizada.

Por razões práticas que têm a ver designadamente com o facto de não se ter uma escrita estandardizada, suporte documental e outros recursos disponíveis em crioulo é que ainda não foi adoptado pela administração pública e pelo sistema de ensino. Precipitar o processo com voluntarismos do tipo “oficialização Já” que só servem de alimento para guerras culturais não terá qualquer efeito positivo por falta de meios de suporte para a sua materialização efectiva. Não deixará, porém, de ser disruptivo, com consequências potencialmente graves. Saber isso e insistir na mesma linha só se compreende se o objectivo é alimentar a polarização social e política mesmo quando o discurso vai no sentido contrário.

Cabo Verde chegou à independência com todos os cabo-verdianos a falar crioulo sem distinção com base no estrato social, no nível de educação ou na ilha de origem. Aparentemente dentro do império português o crioulo era consensual como língua de comunicação de todos os cabo-verdianos enquanto o português era a língua da administração do estado e a língua de ensino. Também parece que não havia conflito significativo no uso das duas línguas. A literatura fundante da cabo-verdianidade era expressa quase toda ela na língua portuguesa. O crioulo, por seu lado, desenvolvia-se na sua expressividade e plasticidade como nova língua na concepção de John McWorther, linguista da Universidade de Columbia e autor de vários livros sobre os crioulos, servindo-se do português mas sem perder a sua identidade. O Dr. Baltasar Lopes notou o facto no seu livro O Dialecto Crioulo de Cabo Verde ao escutar estudantes do liceu a discutir filosofia, física e matemática em criolo nos intervalos das aulas.

A forma como o consenso foi rompido e em consequência fracturas tão grandes foram abertas na sociedade cabo-verdiana é algo que devia merecer a reflexão de todos. Hoje é evidente que Cabo Verde, não obstante os enormes investimentos no sistema educativo do país ao longo de décadas, está longe de ter os níveis de competência linguística que o desenvolvimento no mundo globalizado exige e que podiam constituir vantagem na realização da vocação do país como prestador de serviços. Para isso terá contribuído certamente o desperdício de energia em guerras culturais quando o foco deveria ser outro: educar toda a criança e todo o jovem para ser mais proficiente no uso das línguas que permitem o acesso ao conhecimento, à tecnologia e ao estreitar das relações com outros povos, dando conteúdo à ideia de Cabo Verde como Terra da Morabeza.

Infelizmente os tempos não se mostram mais favoráveis para se arrepiar caminho. Agendas politicas ideológicas potenciadas por comemorações de datas de referência vão exacerbar os conflitos e as fracturas sociais e políticas. A sobreposição com o ciclo eleitoral poderá levar a intolerância ainda mais longe. O envolvimento ambíguo do Estado e dos seus titulares já está a criar tensões institucionais e os sinais apontam para dificuldades acrescidas à frente. O que se observa noutras democracias de deterioração da vida pública e de perda do sentido de Estado parece estar a ganhar terreno no país. Cabo Verde não se pode dar-se a esse “luxo”. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1161 de 28 de Fevereiro de 2024.

sexta-feira, fevereiro 23, 2024

Debater abertamente para ter agenda própria

 Todos queixam-se que em Cabo Verde não se debate o suficiente, que o debate quando acontece é repetitivo ou de fraca qualidade e que não poucas vezes é pontuado por acusações mútuas e tacticismos que acabam por o inviabilizar. Curioso é que neste ambiente de debates difíceis ou inefectivos, decisões cruciais para o futuro são tomadas, investimentos custosos são realizados e riscos são assumidos, sem que se tenha clara consciência do que se passa, para além do espectáculo mediático-político criado para os apresentar. É como se o país estivesse mergulhado permanentemente em bagatelas políticas e questiúnculas com implicações eleitorais de curto prazo, enquanto, por outras vias nem sempre devidamente escrutinadas, se vão implantando determinantes do que eventualmente no futuro poderá ser expectável, seja em termos de oportunidade como de rendimentos.

Na última semana, o governo lançou iniciativas de peso no domínio do turismo com a “Marca Cabo Verde” e no domínio da energia com a “Central de Armazenamento de Energias Renováveis” na ilha de Santiago. O Governo anunciou também a continuação das privatizações com a selecção de parceiro estratégico para a CV Handling e a venda de 10% das acções a emigrantes e a trabalhadores da empresa. Até o fim desta semana estará em conversações com a Millennium Challenge Corporation (MCC) com vista ao financiamento de projectos para a integração de Cabo Verde na região da África Ocidental. Não há, porém, notícia que houve preocupação em debater os desafios nestes sectores-chave para o futuro que, com os desenvolvimentos mundiais recentes (pandemia, guerras e inflação), tornaram-se ainda mais imprevisíveis convidando a uma reavaliação das abordagens, à possível alteração de objectivos e a novas alianças.

De facto, assim como não se tem apercebido de que houve qualquer esforço especial para se debater e avaliar a relação do país com a CEDEAO, face à clara degradação das relações entre os países da comunidade nos últimos tempos, também em relação a outros domínios-chave para o país não se tem sentido essa urgência. Mesmo quando as falhas são notórias, como no domínio dos transportes aéreos, em que não se tem tido o sucesso previsto com parceiros estratégicos escolhidos e se acumulam dívidas, ou fica-se com serviço mais precário e muito aquém das expectativas criadas, não há realmente um debate das razões de fundo. Todos acabam por se limitar às denúncias e acusações mútuas e, quando propostas são apresentadas para se ultrapassar a situação, de quase todos os quadrantes vem o “mais do mesmo”.

Vê-se, por exemplo, que há convergência quase total para se usar a TACV para ligar o país à diáspora e também para se ter serviço público de transporte marítimo entre as ilhas, mas não há assunção dos custos envolvidos nem do facto que dificilmente se vai conseguir satisfação geral com o nível do serviço prestado. Ou seja, a questão vai continuar a ser matéria de arremesso político ao mesmo tempo que o problema dos transportes é sempre adiado e com o acumular dos custos torna-se progressivamente intratável. A impressão é que os reais constrangimentos do país (problema de escala, fraca conectividade, estrutura produtiva limitada e insuficiências do capital humano) não são reconhecidos. Aparentemente prefere-se lidar com o irreal traduzido na proclamação que Cabo Verde é uma Nação Global.

A mesma atitude nota-se na forma como são apresentadas as novas iniciativas. Com a nova “Marca Cabo Verde” quer-se “transformar cada ilha num destino turístico que seja autêntico, genuíno e diferenciador”, como disse o Primeiro-ministro. Isso seria o ideal, mas o facto é que a grande procura turística que já tem o impacto directo de 25% no PIB é fundamentalmente de sol e praia. Uma procura que ainda não chegou a um milhão de turistas, como desde de há mais de dez anos se vem apontando como meta a atingir, por razões que em boa medida têm a ver a com falta de foco e engajamento das autoridades e de uma estratégia acompanhada de investimentos tempestivos para potenciar a atractividade das ilhas turísticas. Os recursos públicos são finitos e devem ser dirigidos para atrair essa procura externa e criar a possibilidade das outras ilhas beneficiarem da exportação “cá dentro” de bens e serviços para além do potencial turístico específico que poderão desenvolver. De facto, é de se ponderar se o que mais serve o país é a dispersão de recursos à procura desse ideal, ou se é ganhando escala num sector capaz de grande efeito de arrastamento na economia, que já é de 40%, como assinala o Banco Mundial, mas que pode ser muito maior.

No sector energético o governo optou por uma “Central de Armazenamento de Energias Renováveis” na ilha de Santiago com base num sistema de bombagem para elevação de água e posterior reconversão em energia eléctrica através de turbinas após descarga. Os estudos vêm de 2011, 2014 e 2017 e focam-se numa solução hídrica num país de baixa pluviometria e praticamente árido. A questão que se coloca é se com o grande investimento de 66 milhões de euros para uma potência de 20 megawatts não haveria outras opções menos complexas, com menos riscos e mais flexível e adequada para a produção desconcentrada de electricidade. Do início dos estudos em 2011 para cá houve inovações tecnológicas importantes na produção de baterias e tudo leva a crer que, além de que com o tempo vão ficando mais baratas, são ideais para equilibrar as redes eléctricas públicas quando injectadas com a electricidade intermitente de parques solares e eólicos.

Quanto à privatização da CV Handling, sem ainda se materializar os sinais claros de aumento substancial e sustentado do tráfego aéreo para o arquipélago, na sequência da concessão dos aeroportos à Vinci, o seu anúncio pode sugerir que se está simplesmente a seguir uma agenda de privatizações mais ligada a compromissos com o Banco Mundial do que às necessidades da economia ou oportunidades reais do país. O problema é que da última vez que se deu a entender que se estava a cumprir agendas foi em fins de Fevereiro de 2019 com assinatura da venda de 51% da TACV à Loftleidir da Icelandair. Em Junho do mesmo ano o Banco Mundial premiou o país com 40 milhões de dólares de ajuda orçamental que tinha retido durante anos até à privatização da TACV. Depois viu-se o que aconteceu e a culpa não é só da pandemia.

É verdade que o país tem que ser ousado, imaginativo e correr algum risco para ultrapassar os enormes constrangimentos ao seu desenvolvimento. Tem também que mostrar que aprende com os seus erros e ser capaz de demonstrar que dentro do possível segue a sua própria agenda e não a dos outros. No processo é sempre responsabilidade maior do governo confrontar o país com as opções possíveis e elucidá-lo quanto aos constrangimentos. Se o país tem um “Business Plan” certamente não passa por pretender ser bom aluno, mas, sim, por o colocar no caminho para o desenvolvimento sustentável com boas práticas, transparência, visão e sentido estratégico. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1160 de 21 de Fevereiro de 2024.

sexta-feira, fevereiro 16, 2024

Incertezas aumentam neste ano de 2024

 

Já na segunda metade do mês de Fevereiro torna-se cada vez mais evidente que o ano de 2024 vai ser um ano de mudanças ainda mais profundas do que se esperava. Crise da democracia, tensões geopolíticas e perturbações no comércio internacional a par do problema crescente das migrações e das alterações climáticas conjugam-se para criar um quadro global volátil. As guerras existentes poderão ser ampliadas e outras poderão emergir das enormes tensões já existentes. O facto de se calcular que quatro mil milhões de pessoas vão às urnas em todos os continentes durante este ano e que se torna difícil prever os resultados e os governos que vão dali surgir empresta um ar de imprevisibilidade ainda maior aos acontecimentos.

Aqui na vizinhança das ilhas de Cabo Verde a inesperada crise no Senegal na sequência do que que observadores e a imprensa internacional têm chamado de “golpe constitucional” veio juntar-se à situação criada há pouco tempo pelos golpes de Estado no Mali, em Burkina Faso e no Níger. Já antes a Guiné-Conacri tinha sofrido um golpe militar e a GuinéBissau vive de crise em crise nas disputas de protagonismo entre o presidente da república, o governo, o parlamento e os partidos políticas. A própria CEDEAO está em perigo com a saída dos países do Sahel sob regime militar dessa organização regional, anunciada na semana passada.

Prevêem-se consequências graves para o comércio na região, em particular se vier a concretizar a possibilidade das exportações desses países serem canalizadas para os portos marroquinos como lhes foi oferecido por Marrocos. Isso, sem falar de desarticulação no combate aos ataques jihadistas que poderá eventualmente ser criada e que torna todos os países da região mais vulneráveis. Num quadro destes de destabilização, o adiamento no Senegal das eleições presidenciais, sem data marcada para as realizar, não podia ser mais preocupante.

Entretanto, no resto do mundo o desmantelar de uma certa ordem herdada do fim da Guerra Fria não pára. A guerra na Ucrânia desencadeada pela invasão russa que daqui a dez dias vai completar dois anos não dá sinal de terminar. Pelo contrário, tende a agravar-se devido às fragilidades da resistência ucraniana e alguma imprevisibilidade no apoio que poderá continuar a receber dos países ocidentais. Depois das recentes declarações de Donald Trump, um possível candidato ganhador das eleições americanas de Novembro deste ano, a retirar garantias de suporte americano mesmo aos países da NATO em caso de ataque russo, o conflito na Europa até pode vir a alargar e a abranger outros países.

No Médio Oriente, algo similar corre o risco de acontecer com o conflito na Faixa de Gaza a transformar-se numa guerra regional tendo como base um confronto entre os Estados Unidos e o Irão. Ainda os preços dos combustíveis fósseis não foram significativamente afectados pela guerra entre Israel e o Hamas, mas, em caso de um conflito mais generalizado, o mais normal é que disparassem, esvaziando em boa medida os ganhos já conseguidos na luta contra a inflação. A disrupção das rotas de navegação devido aos ataques dos Houthis no Mar Vermelho e no Canal de Suez por onde passa cerca de 30% das mercadorias em contentores correspondentes a 12% do comércio internacional já está a pressionar os preços dos produtos ao obrigar os barcos a contornar a África, com os correspondentes custos. Um conflito generalizado, provavelmente inevitável se não for encontrado um caminho para se chegar à solução dos dois Estados, Israel e Palestina, terá consequências mais desastrosas.

Em Cabo Verde pelo discurso produzido, pelo debate político conduzido e pela acção governativa global não se nota urgência, nem perspectiva estratégica perante uma realidade mundial, regional e local em clara e profunda mudança. A tendência geral é para se seguir com a gestão corrente, alinhar com as agendas multilaterais que justificam doações e créditos concessionais e focar na conquista e preservação do poder político. Por isso, é que se discute o mais do mesmo, nos mesmos termos de sempre acompanhados de acusações mútuas que se repetem ano após ano e em todas as sessões do parlamento. Percebe-se perfeitamente isso ouvindo troca de galhardetes entre a “situação” e a “oposição” a todos os níveis das estruturas do Estado.

Entretanto, os problemas de sempre agravam-se e tornam-se cada vez mais de difícil solução. Isso passa-se em particular nos transportes, na segurança, na habitação, mas também na educação e na saúde. A economia arrasta- -se com taxas de crescimento que estão aquém do que os próprios governantes reconhecem como necessário para colocar o país numa outra plataforma de desenvolvimento. Há desafios a vencer para conseguir ganhos de produtividade e competitividade – que passam por ter um Estado mais eficiente, por potenciar os efeitos do motor da economia que é o turismo e por um investimento mais estratégico no capital humano - mas não se vê o país e a sociedade a se moverem como um todo nesse sentido.

Infelizmente, a política do espectáculo acaba por ofuscar o que devia ser uma postura mais reflectida, mais orientada para o serviço público e com sentido de urgência e oportunidade. Mesmo o que se tem como vantagem, como por exemplo a condição de nação una, corre o risco de se desperdiçar, criando fracturas, em vez de acarinhar a diversidade. Também a democracia funcional se deixa fragilizar não reforçando os seus princípios e valores de referência e não valorizando a cultura de cumprimento das regras e competências constitucionais pelos actores políticos, a começar pelos titulares dos órgãos de soberania. A gravidade da epidemia da covid-19 parece não ter sido suficiente para se inflectir uma postura que claramente não é a mais benéfica para o país.

Ainda hoje Cabo Verde não se recuperou dos anos perdidos e a perspectiva de não tão cedo vir a ganhar dinâmica necessária para um crescimento sustentável deverá estar a motivar muitos a emigrar. Com o mundo neste ano de 2024 a mover-se num sentido de mais incertezas esse sentimento ficará mais forte, com todas as consequências principalmente para os que, por uma razão ou outra, não conseguirem.

A atitude a ser esperada do governo e de toda a classe política é a de compreender que embora haja quem queira tomar o mundo como estático “entretanto ele se move” como diria Galileu Galilei. E quando se está perante rápidas mudanças no mundo real a melhor forma de manter fiel ao princípio de servir é mudar a nossa própria posição. Como bem disse Lenine para se poder mover para a frente há que evitar dogmatismo cego e oportunismo cínico.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1159 de 14 de Fevereiro de 2024.

segunda-feira, fevereiro 12, 2024

Intolerância polariza e divide

 

De há alguns meses para cá que se vem notando que o espectro da intolerância está outra vez a ressurgir no país. Mostrou-se claramente em Outubro quando o parlamento não aprovou a resolução que visava declarar a celebração oficial do centenário de Amílcar Cabral. Nas últimas semanas a celeuma é à volta do mais recente livro de Manuel Brito-Semedo Cabo Verde, Ilhas Crioulas. A afirmação da cabo-verdianidade como uma realidade de séculos parece colidir com as opções pan-africanistas de alguns. A mesma reacção tiveram quando a maioria parlamentar não viu coincidência entre o pensamento e a acção personificados por Cabral e os princípios e valores que são as referências básicas da II República.

Não é à toa que Amílcar Cabral, o fundador e líder do PAIGC, era o ícone da chamada democracia nacional revolucionária com um único partido, sem garantia dos direitos fundamentais, sem Estado de Direito, sem separação de poderes, sem tribunais independentes e sem poder local. O mínimo de coerência exigiria que o cabralismo não fosse comemorado por instituições de uma democracia liberal e constitucional que se rege por princípios absolutamente opostos. Isso não impede naturalmente que seja celebrado livre e abertamente por quem ainda se revê no seu pensamento. A tolerância intrínseca do sistema democrático mesmo às ideias que se lhe opõem directa ou indirectamente não encontra, aparentemente, a mesma reciprocidade da outra parte.

Compreende-se que seja assim porque o pensamento político que é implicitamente único não convive naturalmente com o pluralismo, com o princípio da vontade da maioria e com o primado da lei. Nesse sentido, tentou-se primeiro que o presidente da república declarasse oficialmente 2024 como o ano do centenário quando a competência para isso é do governo ou do parlamento. A seguir procurou-se esvaziar a decisão parlamentar com posicionamentos de outros foruns como um encontro de presidentes da república, o actual e os antigos, e depois com uma reunião do conselho da república. A par de investidas intolerantes nas redes sociais, promoveu-se uma petição a ser enviada ao parlamento para supostamente reverter a posição expressa pela maioria.

Também já se nota a actuação algo desarticulada do Estado na matéria com órgãos de soberania cada um por si, e mesmo entre os titulares de um mesmo órgão (governo e parlamento) separadamente, a tomar a sua posição própria quanto à comemoração oficial do centenário. Outrossim, fazem-se apelos às câmaras municipais para avançarem com a sua própria iniciativa e procura-se suporte em empresas, escolas e universidades públicas para esvaziar a posição estatal. Em tudo isto a pergunta que urge fazer é onde fica a unidade do Estado e o princípio democrático de que o país é governado pelo partido que ganhou as eleições e assegura a maioria parlamentar.

Do governo em particular que dirige a administração pública e conduz a política interna e externa e também do presidente da república que é o garante da unidade da Nação e do Estado devia-se esperar uma outra postura para que imagens confrangedoras de dirigentes e convidados como as vistas na cerimónia do fecho da chamada “Marxa Cabral” não se repetissem. O “sentido de Estado” que se exige especialmente dos titulares de órgãos soberania e dos órgãos públicos não pode dar a aparência de se subordinar perante o que configura a intolerância de uns em aceitar que a república criada pela Constituição de 1992 não se revê na sua ideologia datada. De facto, ninguém disputa a condição actual de Cabo Verde como Estado independente. O repúdio geral é para a ditadura que sob a bandeira do cabralismo foi imposta ao país durante quinze anos. Juntar hoje a independência e o regime ditatorial só faz reviver as fracturas do passado, as mesmas que já se vê chegar ao próprio Estado quando ele mais precisa estar unido nos seus propósitos para enfrentar os desafios actuais.

Algo similar e também divisivo acontece quando em nome do pan-africanismo se procura negar a especificidade cabo-verdiana. No continente, agentes políticos animados de ideologias pan-africanistas pretenderam forjar consciência da nação nos territórios das colónias, criadas pelo imperialismo europeu, na conferência de Berlim de 1885, a partir de uma África idealizada em cultura, costumes e ritos e na luta contra o colonialismo. Os resultados conhecem-se. Em Cabo Verde pretendeu-se fazer o mesmo através da política de reafricanização dos espíritos quando, com o 25 de Abril de 1974, Portugal se retirou do seu império colonial de forma pouco ordeira.

A diferença é que há mais de um século já a consciência da nação tinha emergido em Cabo Verde “a partir de dentro” com o contributo de todas as ilhas na sua diversidade, nenhuma considerando-se mais cabo-verdiana que as outras. O choque entre a pretensão e a realidade era inevitável. Também, sendo a reafricanização dos espíritos uma política do Estado tinha que ser acompanhada da intolerância para quem já tinha a sua consciência de cabo-verdiano e nunca precisou de reclamar a condição complementar nem de europeu, nem de africano, como bem precisou Baltasar Lopes da Silva em várias ocasiões.

Na sequência do lançamento do livro de Brito-Semedo o sentimento intolerante e divisivo veio outra vez à tona. Mais uma vez o pan-africanismo e o cabralismo apareceram como dois irmãos siameses vindos de fora e unidos em colisão frontal contra uma entidade com percurso distinto que não começou como colónia no continente depois de 1885, mas sim a partir das ilhas povoadas desde de 1462. Quem parece reconhecer a diferença é o próprio Amílcar Cabral que, segundo Julião Soares Sousa, autor guineense da sua biografia política, “no seu projecto de regressar à Africa não tencionava ir para nenhuma colónia portuguesa em particular. Qualquer servia, excepção feita a Cabo Verde” (pag. 33).

Mais uma razão para se afirmar a especificidade cabo-verdiana e evitar armadilhas ideológicas enfraquecedoras da identidade nacional e criadoras de divisões. São percalços que podem levar à regressão no percurso de Cabo Verde como nação una, no ponto que muitos, em particular em África, aspiram atingir.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1158 de 7 de Fevereiro de 2024.

sexta-feira, janeiro 26, 2024

Omissões pagam-se caro

 

Na quinta-feira passada, dia 18 de Janeiro, a secretária geral da UNTC-CS e membro do conselho directivo do INPS, em entrevista à rádio pública, defendeu que o INPS tinha toda a legitimidade para promover o leilão dos depósitos. Segundo a Inforpress, acusou os bancos de viver às custas dos contribuintes sequestrando fundos públicos. Também teria dito que o BCV esteve muito mal alegando que os fundos não deviam ser transferidos dos bancos para o INPS tornando-se cúmplice do referido sequestro. Seguiram-se comunicados do BCN, do BCV e finalmente do INPS a explicar as respectivas posições sobre o imbróglio. Do governo que tem a tutela do INPS ainda não se ouviu nada não obstante a delicadeza da situação e os cuidados a ter com o sistema financeiro em matéria que o próprio Banco Central classifica de risco sistémico.

A questão que opõe o INPS aos bancos já tinha sido aflorada em dois números anteriores do jornal a Nação com base, supõe-se, em fugas de informação ou acesso privilegiado a fontes sem que as partes envolvidas se sentissem na necessidade de qualquer explicação pública dos acontecimentos. Não deixa de ser uma postura típica no país de, perante coisas importantes a acontecer, faz-se por ignorá-las ou então procura-se varrer para debaixo do tapete. A intervenção da dirigente sindicalista teve o condão de forçar os envolvidos a dar esclarecimentos. A partir daí que se ficou a saber que o BCV, desde 12 de Dezembro, tomou conhecimento da reclamação dos bancos e agiu para acautelar eventuais riscos sistémicos “recomendando aos bancos que se abstivessem de participar nos leilões até que “medidas de mitigação de risco e métricas adicionais de monitorização da liquidez” fossem equacionadas pelo Banco Central.

Da leitura dos comunicados emitidos percebe-se o mal-estar que foi instalado no sector e que tem perdurado por mais de um mês. Aliás, as saídas na imprensa já eram sinal disso culminando nas acusações dirigidas aos bancos comerciais e ao BCV. Quanto a eventuais efeitos no público e nos operadores económicos, o BCN fez questão, através do seu comunicado, de assegurar que os depósitos do INPS estão integralmente disponíveis e que não há condicionantes à sua movimentação. Da parte do BCV a suspensão imediata dos leilões dos depósitos do INPS traduziu a preocupação do BCV com os impactos negativos que uma eventual materialização do risco de liquidez poderia ter em instituições que, embora sem grande importância ou dimensão sistémica, desempenham um papel importante no financiamento das famílias e das empresas.

Desde a crise financeira de 2007-2008 que garantir que a estabilidade financeira, a par da estabilidade dos preços, passou a estar no centro da atenção dos bancos centrais em todo o mundo. Intervenções no mercado são despoletadas para manter liquidez no sistema financeiro e dar combate à inflação sempre que algo anómalo se manifeste. Há quase um ano atrás, por causa de retiradas súbitas de depósitos do banco Silicon Valley (SVB) nos Estados Unidos, rapidamente o banco central em coordenação com a Secretária do Tesouro, Janet Yellen, e outras instituições de regulação se movimentou para garantir liquidez com vista a evitar a corrida aos depósitos e o efeito de contágio nos outros bancos.

O SVB não era considerado um banco sistémico no sentido que a sua falência poderia causar disrupções graves no sistema. Mas há algum tempo que se apercebeu que as crises nascem onde menos se espera. Daí justificar-se ficar sempre alerta. O BCV no seu comunicado diz que já no Relatório de Estabilidade Financeira de 2022 tinha alertado que a “dependência de financiamento de depositantes institucionais [pode] aumentar o risco sistémico e de contágio para todo o sistema bancário nacional. Estranha é que, não obstante todos esses alertas, inovações no sentido de leiloar depósitos do INPS e conseguir taxas de retorno mais altas não tenham aparentemente recebido o devido escrutínio prévio para se ter uma ideia das implicações no sistema.

Os bancos queixam-se que não tiveram conhecimento do regulamento do leilão e dos critérios de selecção e o INPS contrapõe que já constavam da carta-convite e que as dúvidas foram esclarecidas durante a abertura das propostas. O BCV diz que só tomou conhecimento da matéria com a reclamação dos bancos que aconteceu após o primeiro leilão. Quanto ao governo, em particular o ministro das Finanças que, segundo os Estatutos do INPS, alínea e) do nº 2 do art. 3º, exerce a tutela conjunta com o ministro da Família e Segurança Social em matéria de “definição das regras de gestão financeira e investimentos dos fundos próprios do INPS”, não se sabe quando é que teve conhecimento da questão. Até agora não deu qualquer sinal sobre o assunto apesar de tudo o que continua a vir a público na comunicação social.

Infelizmente não é esta a única matéria sensível e urgente que, por exigir acção coordenada de vários intervenientes, precisa de uma atenção mais cuidada do governo. O problema é a tentação generalizada, que também se nota noutras paragens, de fazer da governação uma mistura de marketing político, espectáculo e actos performativos dirigidos para a mobilização de emoções. Não resta muito tempo ou disponibilidade para uma entrega a questões mais complexas e de ganhos a médio e longe prazo que são essenciais para construir um futuro sólido e com menos sobressaltos. E omissões em questões estruturantes acabam por acontecer.

É só ver como nesta questão essencial de “melhor servir e de garantir com maior segurança a rentabilização dos recursos da protecção social obrigatória” como se propõe fazer o INPS no seu comunicado não se avançou com a criação do organismo autónomo de gestão dos investimentos do INPS assim como estipula o artigo 42º dos seus estatutos publicados em Agosto de 2014. É o que existe em todos os países que procuram capitalizar de melhor forma a poupança social. Cria-se capacidade própria e autónoma para gerir uma actividade que exige níveis elevados de especialização técnica, de controlo de riscos e de eficiência e que também inspira credibilidade.

Segundo o decreto-lei nº 40/2014 devia ter sido criada no prazo de quatro meses após a publicação no BO, ou seja, até Dezembro de 2014. Seguramente por conveniências várias os sucessivos governos têm sido relutantes em seguir pelo caminho que a lei os impõe. A responsabilidade de conseguir uma melhor rentabilização dos recursos do INPS e de, ao mesmo tempo acautelar para eventuais riscos sistémicos que os seus enormes depósitos poderão provocar, cria, porém, uma nova urgência. É para se cumprir a lei. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1156 de 24 de Janeiro de 2024.

sexta-feira, janeiro 19, 2024

Semana da República: a reconciliação que não foi

 

O presidente da república tem chamado a atenção para as ameaças à democracia em várias intervenções nos últimos dias, designadamente na sessão solene do 13 de Janeiro, o Dia da Liberdade e da Democracia e nas celebrações do 15 de Janeiro, Dia das Forças Armadas. Em ambos discursos do PR fica-se com forte impressão que considera que é na natureza da disputa entre os partidos políticos que reside o essencial da ameaça ao regime democrático. Uma disputa pelo poder que, segundo ele, “passa a ser uma disputa sem quartel, visando a liquidação do adversário, com acusações, calúnias, insultos, assassinato de carácter, muitas vezes sem possibilidade de defesa, afectando as instituições da República”. Daí que considera “a importância de se reinventar os partidos políticos” e, num outro registo, que face às ameaças à democracia é “fundamental, de mãos dadas, trabalhar para manter o prestígio e a dignidade das Forças Armadas”.

Apesar do PR terminar o discurso do dia 13 de Janeiro com vivas aos partidos políticos, é de se perguntar se não se está a reforçar o sentimento anti-partido com a sugestão de que o problema das democracias modernas (crise de representatividade, a nova realidade das redes sociais e desencanto e ressentimento por razões de exclusão) deve-se essencialmente à acção dos partidos. É que esse sentimento já existe em Cabo Verde devido às décadas de salazarismo, que era um regime anti-partido, seguido de quinze anos de regime de partido único, que era contra o multipartidarismo e devia-se ter algum cuidado em não o alimentar. Sabe-se perfeitamente que ter um sistema partidário funcional é fundamental para as democracias. Ameaças não vêm das disputas entre os partidos num ambiente de liberdade e pluralismo. O mais normal é que resultem do protagonismo de forças com narrativas anti-sistema, de movimentações para coarctar os direitos fundamentais e pôr em causa a independência dos tribunais e de nacionalismos identitários que em roupagens renovadas “tribalizam” a sociedade e impedem o exercício pleno da cidadania.

Mais grave vem se revelando o protagonismo de líderes e partidos que chegados ao poder via processos eleitorais democráticos imediatamente procuram reconfigurar a relação com outros poderes e instituições. Ampliam as suas competências em detrimento de outros órgãos de soberania com custos para o equilíbrio de poderes e criando tensões e instabilidade governativa. Já aconteceu em vários países. Na Polónia o novo governo do primeiro-ministro Tusk está a desenvolver um esforço enorme para reverter os estragos causados por esse tipo de ameaças à democracia. Nos Estados Unidos a preocupação é com a possibilidade, nas eleições de 2024, do regresso a uma presidência musculada e autoritária liderada por Donald Trump.

Em Cabo Verde o confronto que já se desenha entre o presidente da república de um lado, e o governo e a sua maioria parlamentar do outro, não augura nada de bom para os próximos tempos. Corre-se o risco de vê-lo arrastar durante todo o novo ciclo eleitoral que começa este ano e vai até 2026. E a tentação será forte para as forças políticas diversas tomarem partido no confronto, na perspectiva de conseguir vantagens na corrida para as eleições autárquicas e legislativas. A acontecer, como já se notam sinais claros de colagem às posições do presidente da república nas disputas de protagonismo com o governo, não há muita dúvida que os tempos próximos poderão ser de muitos sobressaltos. Aliás, a iniciativa presidencial da Semana da República já dá sinais de como se irá proceder daqui para a frente.

A Semana da República, que já vai na 13ª edição, foi uma iniciativa do presidente Jorge Carlos Fonseca com o objectivo, entre outros, de conseguir uma espécie de reconciliação com as duas datas nacionais: o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia e o dia 20 de Janeiro, Dia dos Heróis Nacionais. A iniciativa não teve o sucesso desejado, as tensões continuaram e a data que simboliza a actual II República nunca teve o brilho que deveria merecer. Durante o seu primeiro mandato e com um governo e uma maioria parlamentar do PAICV nunca se conseguiu sequer aprovar a realização solene de comemoração no parlamento do Dia da Liberdade e da Democracia a exemplo da comemoração do 25 de Abril em Portugal ou do Dia da Constituição, em Espanha. Em contrapartida, acabou-se por instituir em cerimónia de Estado a colocação de flores na estátua de Amílcar Cabral, na Várzea, sem aparentemente qualquer formalidade legal de suporte.

Com uma nova maioria parlamentar do MpD, a partir de 2016 adoptou-se a sessão solene nas comemorações do 13 de Janeiro, mas a rivalidade entre as duas datas só se agravou com a reivindicação cada vez mais estridente da superioridade do 20 de Janeiro. Para uns, é simbólica, dá uma legitimidade histórica incontornável e inultrapassável. Daí, a crescente idolatria de Cabral e a colisão permanente com as instituições democráticas, cuja legitimidade provém do voto popular livre e plural expresso de acordo com a Constituição de 1992. A eleição do novo presidente da república, José Maria Neves, em 2021, veio dar um outro vigor à disputa. A Semana da República de 2024 vai ter o seu ponto alto com a Marcha Cabral sob o alto patrocínio do Presidente da República.

Claramente que neste quadro as disputas entre os partidos tendem a tomar expressões e tonalidades extremas porque os sistemas de referência, no fundo, opõem-se diametralmente. Os efeitos nas instituições ficam cada vez mais visíveis. Começa-se a questionar a legitimidade das decisões do parlamento com base no princípio do voto maioritário e procura-se minimizar o seu papel com pretensas recomendações do conselho da república que, de facto, é simplesmente o órgão de consulta do PR para matérias bem definidas na Constituição. Questões delicadas de politica externa e de defesa nacional cuja articulação entre o presidente da república e o governo, nos moldes definidos na Constituição e na lei, se espera que seja feita com a devida ponderação e discrição, tendem a tornar-se oportunidades para protagonismos que em nada beneficiam a imagem externa do país e afectam instituições sensíveis do país.

Também os problemas com que se depara a administração pública, particularmente no campo salarial das classes profissionais e que pela sua complexidade e responsabilidade cruzada dos sucessivos governos pela actual situação, requeriam especial atenção e cuidado no seu tratamento preparam-se para ser armas de arremesso em vésperas de pleitos eleitorais. Parece não importar o impacto orçamental das soluções propostas. Tudo parece ser legítimo para conquistar o poder, mas só o é realmente numa perspectiva de soma zero que é perpetuada pelo confronto aberto entre dois sistemas, duas legitimidades e duas narrativas do país e da sua história.

Infelizmente, não se avança para uma perspectiva de soma positiva, de win-win, em que o foco estaria no crescimento económico, no aumento da produtividade e da competitividade do país para melhor inclusão e mais justa redistribuição de rendimento. Para isso, ter-se-ia de cooperar, manter o consenso em questões fundamentais e de não cair em cultos de personalidade e armadilhas identitárias que retiram autonomia e iniciativa às pessoas e o espírito de responsabilidade que se deve ter com o presente e o futuro pessoal e familiar e também de Cabo Verde. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1155 de 17 de Janeiro de 2024.

segunda-feira, janeiro 15, 2024

Estabilidade não compagina com voluntarismos

O ano de 2024 anuncia-se complicado. Não deveria precisar de mais problemas, mas foi o que precisamente veio à tona na última semana do ano passado, a partir da presidência da república. Foi revelado ao público que a primeira-dama auferia salário, algo que acontece pela primeira vez na história do Cabo Verde democrático sem qualquer base legal.

Pelas explicações do chefe da Casa Civil publicadas num post da sua página pessoal do Facebook ficou-se a saber da intenção de dotar o país de um estatuto de primeira-dama que prevê salário por exercício de funções incluído num ante-projecto da lei orgânica da presidência. A complicação surgiu do facto de, sem ainda ter lei orgânica aprovada que é matéria absolutamente reservada da Assembleia Nacional, os salários da primeira-dama passaram a ser pagos a partir de Janeiro de 2023, em cumprimento da directiva nº 01/CCC/2023 assinada pelo chefe da Casa Civil.

A reacção geral das pessoas não se fez esperar tanto pela falta de respaldo legal como pelo montante que ultrapassou o auferido por titulares de órgãos de soberania, incluindo o presidente da república. A forma como em comunicados sucessivos a presidência da república respondeu às indagações do público e às questões dos jornalistas não foi convincente como dificilmente poderia ser por não existir suporte legal para os actos praticados. As posteriores declarações do PR não contribuíram para clarificar a situação ao ficar por solicitar ao Tribunal de contas e à Inspecção Geral das Finanças o seu pronunciamento sobre a matéria e por decisões pouco avisadas de suspender o uso de transporte e segurança pessoal à primeira-dama.

No imbróglio ainda foi introduzida a exoneração do conselheiro jurídico que pelo “timing” do acto sugeriu que se estaria a apontar um culpado ou a procurar um bode expiatório. Deixou-se o “equívoco” arrastar-se demais o que levou o presidente da república, num gesto inédito, a pedir desculpas publicamente à pessoa visada através de um post nas redes sociais. Finalmente, acabou por aparecer o chefe da Casa Civil também via Facebook a afirmar que o Estatuto de primeira-dama, embora “não sistematizado e lacunoso”, existe. Prossegue, exigindo celeridade ao governo porque, segundo ele, só “há dois caminhos possíveis: decide o Legislador (Parlamento e Governo) por fixar em diploma único, sistematizado, todo o Estatuto ou, reconhecendo o que já existe, opta pela regulação do que falta”. Fica a sugestão que todo o imbróglio actual é devido à procrastinação do legislador e em particular do governo.

Colocando a questão dessa forma, já se entra no terreno familiar da vida política no país em que tudo o que acontece resulta do conflito entre o governo e a oposição. As declarações de dirigentes do PAICV vão nesse sentido e, pelo posicionamento das hostes partidárias do lado da oposição e da maioria na embrulhada, vê-se como toda a oportunidade é boa para uns se atirarem aos outros. Não há preocupação em salvaguardar que se exerça o poder de acordo com a Constituição e a lei, que os órgãos de soberania cumpram com as suas competências próprias e que recursos públicos sejam gastos dentro da legalidade.

No caso em particular nem se quer ponderar o facto de a lei orgânica só prever um gabinete de apoio ao cônjuge do PR. O mesmo acontece em Portugal e nos Estados Unidos, onde a posição é reconhecida há mais de duzentos anos, mas é claro para todos que “a primeira-dama não é um cargo eleito; não exerce funções oficiais e não recebe salário. No entanto, ela participa em muitas cerimónias oficiais e funções do Estado”. A actual first lady, a doutora Jill Biden, é professora e trabalha. Insistir num voluntarismo em relação à matéria, fazendo vista curta ao facto de não existir base constitucional e legal e não corresponder à experiência de outras democracias com sistemas de governo tanto parlamentares como presidenciais, só pode resultar em mais descredibilização das instituições e, no contexto actual pre-eleitoral, em mais um factor de tensão entre os órgãos de soberania.

Aliás, a conferência de imprensa do paicv a atacar o Tribunal de Contas sob a capa de questionar o parecer desse tribunal sobre as contas de 2021, com afirmações do tipo governo comete ilegalidades na barba cara do tribunal de contas e nada acontece; manda fazer auditorias e acusa pessoas, é um sinal como se vai alargando para outras esferas institucionais a possibilidade de se ser apanhado na onda de polarização e de crispação política do país. Nesse sentido, por um lado, faz-se por se mostrar colado à presidência da república mesmo sabendo que esta deve ser suprapartidária e, por outro, deixa-se entender que há subserviência ao governo da parte do tribunal de contas quando devia existir independência do poder político. Já se vinha fazendo algo similar por causa das contendas do presidente da câmara da Praia com esse tribunal. A impressão que fica é que facilmente se sacrifica lealdade ao sistema constitucional e às instituições democráticas a troco de pequenos ganhos tácticos no jogo político do momento.

Com um certo tipo de “voluntarismo”, que vai ao encontro de alguma cultura revolucionária ainda existente que não se deixa constranger pelas leis, mas deixa-se levar por outros princípios entre os quais o princípio de que os fins justificam os meios, incorre-se no risco de aumentar as tensões institucionais, de prejudicar tudo e todos com falta de previsibilidade e de minar a confiança no sistema democrático. A estabilidade é uma das marcas da democracia cabo-verdiana e deve-se em boa parte ao sistema de governo parlamentar adoptado na Constituição de 1992. Inovações no sistema político tanto no sentido de mais protagonismo presidencial ou de omissões e demonstrações de fraqueza do governo tendem a perturbar o equilíbrio entre os órgãos de soberania e a criar a instabilidade que adia a resolução dos problemas. Experiências tanto em democracias mais amadurecidas como Portugal como em outras mais frágeis como São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau provam isso.

Em Cabo Verde, o Presidente da República é o árbitro e moderador do sistema, não tem iniciativa em matéria de revisão constitucional e não se pode recusar a promulgar as leis de revisão. Os governos são de maioria absoluta e só governam plenamente depois de aprovada uma moção de confiança. Nestas circunstâncias não fica muito espaço para o tipo de intervencionismo do PR que governos minoritários muitas vezes propiciam. Querer forçar nesse sentido cria tensões desnecessárias e só prejudica o sistema porque fragiliza o seu papel de árbitro e moderador. O pior acontece se na proximidade de actos eleitorais partidários se verificar tentativas de colagem e de fazer do presidente da república o chefe da oposição.

Diz-se que normalmente em sistemas de governo semelhantes ao de Cabo Verde tal pode até acontecer, mas em geral só no segundo mandato do PR. Curiosamente parece que está a acontecer agora. Se assim for não é uma boa notícia para Cabo Verde neste ano em que a nível global há muitas incertezas e o país necessita recuperar do impacto de crises sucessivas na economia, nas empresas, no emprego e no rendimento das pessoas. O que menos se precisa é de instabilidade e de “casos e casinhos” que minam a confiança das pessoas e descredibilizam a partir de dentro as instituições. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1154 de 10 de Janeiro de 2024.