segunda-feira, janeiro 27, 2025

A oscilação entre o antigo regime e a democracia desune o país e não deixa focar no futuro

 

Donald Trump tomou posse na segunda-feira, dia 20, e confirma-se que o mundo mudou. A ordem política e económica instituída na sequência da segunda guerra mundial vai dar lugar a uma outra ordem cujos contornos ainda não se vislumbram. A presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen já veio dizer que a economia mundial já começou a fracturar ao longo de novas linhas e que em relação ao comércio global é de se evitar uma corrida para o fundo.

Outros observadores referindo-se à perspectiva de Trump em controlar o Canal do Panamá, de comprar a Gronelândia e fazer do Canadá o 51º Estado da União falam de uma nova era imperialista de mudança de fronteiras e de aplicação da Doutrina Monroe, não excluindo o uso da força. Também há países a se prepararem para receber os deportados expulsos no seguimento da aplicação das políticas de controlo das fronteiras e do combate aos ilegais nos EUA.

A estas medidas vão somar-se outras com impacto global nas organizações internacionais como é o caso da saída dos EUA da OMS logo no primeiro dia do mandato. O mesmo deverá acontecer com outras organizações multilaterais devido a posicionamentos do governo Trump em relação à chamada ideologia do género, às políticas de diversidade, equidade e inclusão e à luta contra as alterações climáticas. Por aí vê-se que as transformações na política global devidas ao princípio agora adoptado de “América em primeiro lugar” não irão afectar só aliados (NATO, UE, Japão, Coreia do Sul) e potenciais rivais como a China e outros dos BRICS. Também o efeito desse reposicionamento será sentido nos países dependentes da cooperação multilateral, como é o caso de Cabo Verde.

São razões mais do que urgentes para a nação cabo-verdiana se focar na compreensão dos problemas que têm limitado o seu desenvolvimento designadamente na atracção do investimento externo e expansão do turismo, mas também na diversificação da sua economia e na capacitação do seu capital humano. Tudo isso num quadro de crescimento insuficiente que o FMI, no seu mais recente documento (17 de Janeiro de 2025) projecta para uma média de 4,8% do PIB até o fim da década. E sabe-se que a falta de perspectivas tem consequências complicadas. Causa insatisfação, leva à saída de quadros qualificados e à escassez de mão-de-obra em sectores-chave e diminui a confiança nas instituições e no futuro do país.

Infelizmente, parece que não é para aí que a atenção dos actores políticos está virada, mas sim para a conquista de poder. Nesse sentido quer-se o poder não para lidar com os problemas e realizar um projecto de desenvolvimento, mas para fundamentalmente, e em termos pessoais e de grupo, ter acessos especiais, dominar o Estado e estar em posição de criar clientelas. Por isso a política fica num nível baixo, crispado e fulanizado e alheio aos principais desafios do país. Quando sinalizados os problemas, são tratados numa perspectiva populista e crescentemente anti elites que explora sentimentos e emoções, transforma adversários em inimigos e vitimiza os mais vulneráveis. A polarização, que daí resulta, garante que as grandes questões não são discutidas, que se vai insistir em fazer o mais do mesmo e que quando se verificam alternâncias no governo não se verificam mudanças significativas na condução do país. Não estranha que a desesperança tende a instalar-se.

É só com essa motivação de conquista do poder pelo poder que se pode compreender a ofensiva político-ideológica que tem fixado a atenção de todo o país, do Estado e da sociedade no último ano e que está prometida para o novo ano. Em 2024, a ofensiva funcionou sob o chapéu do centenário de Amílcar Cabral e agora, em 2025, vai ser sob a capa dos 50 anos da independência nacional. Não deve haver dúvidas que alguém espera ganhar com essas investidas ideológicas, em boa medida comparticipadas pelo Estado, que incluem entrevistas, documentários, seminários, conferências, actos públicos, publicação de livros e até incursões de doutrinação nas escolas. Poderão iludir-se outras forças políticas, mas o mais natural é que seja ganhador o partido que reivindica Amílcar Cabral como seu fundador e que tem os seus antigos dirigentes como os únicos heróis da história do país.

Se há um ganhador, entende-se que há perdedores e um deles certamente que é o sentido da unidade da Nação e a ideia da república como comunidade autónoma de cidadãos livres e iguais. Vê-se isso na chamada Semana da República que, de facto, é uma semana da discórdia. A oscilação, de que fala Tocqueville, entre o antigo regime, consubstanciado no 20 de Janeiro, dia dos heróis nacionais, e a democracia e liberdade do 13 de Janeiro, só agrava a polarização ano após ano. Apesar disso, continua-se a realizá-la nos mesmos moldes. Provavelmente há quem queira vencer renitentes pelo cansaço ou então construir uma identidade na base da rejeição do outro para melhor ganhar os embates políticos.

Curiosamente, o primeiro-ministro nas cerimónias do 20 Janeiro veio contra toda a evidência dizer que “o sentimento de tolerância relativamente a posições e leituras diversas dos fenómenos históricos de Cabo Verde ajudam a “tranquilizar” o ambiente político-social”. De facto, não há leituras diferentes quando é o próprio Estado, as suas escolas e a sua comunicação social que impõem uma versão da história praticamente igual à perfilhada pelo regime de partido único. Sacrificados no processo são o pluralismo, a liberdade de expressão e de informação e o pensamento crítico. Todos eles princípios e valores fundamentais da Constituição de 1992 que estabeleceu a dignidade humana e a vontade soberana do povo como bases da república. Que tranquilidade pode trazer a sua supressão em troca de idolatrias impróprias das democracias.

Também não tem sentido homenagear, como fez o presidente da república na celebração do Acordo de Lisboa e do Governo de Transição, um processo político, e seus dirigentes, que se serviram da divisão, da coacção e da intimidação das pessoas para garantir que o direito dos cabo-verdianos à autodeterminação não seria exercido através de um referendo. E também para se assegurar que, com a independência, conseguida após eliminação de outras forças políticas, ter-se-ia um único partido a exercer o poder por tempo indeterminado. Certamente não é uma homenagem que gera a unidade da nação, particularmente porque não acompanhada de um pedido de desculpas pelos que foram presos, maltratados e forçados a sair da sua terra. Também não é um bom momento para falar de “extremismos e criação do caos e de polarização” como faz o PR quando procura valorizar o acto de maior radicalismo que é o de um partido se proclamar força política única e com legitimidade para fazer uso de todos os meios, e, se necessário, de toda a violência, para atingir os seus objectivos.

Pelo que se vêm assistindo é claro que não é pelo reforço da unidade nacional e pela construção do consenso em questões fundamentais que se batem as forças políticas neste momento crítico do mundo e também do país. Aliás, um sinal nesse sentido seria a disponibilidade em acatar as regras do jogo democrático. E não é isso que se verifica quando, por exemplo, se nota o protagonismo do PR em promover comemorações do Estado sem o respaldo jurídico-constitucional das leis da Assembleia Nacional ou do Governo. E a verdade é que sem respeitar o princípio da separação dos poderes, os pesos e contrapesos do sistema político é a própria democracia liberal e constitucional que fica em perigo. Apelos feitos nesse contexto para a unidade nacional e para se credibilizar a democracia não soam autênticos, caem em saco roto e acabam por minar a confiança de que tanto se precisa para focar nos problemas actuais do país e enfrentar os desafios emergentes no mundo actual. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1208 de 22 de Janeiro de 2025.

quinta-feira, janeiro 23, 2025

O papel dos partidos na crise de confiança na democracia

 

Por altura da celebração do 34º aniversário do 13 de Janeiro convém relembrar o que o cientista político Jorge Carlos Espada quis dizer ao afirmar que “a democracia é obra comum de partidos rivais, sob a autoridade comum de regras gerais e iguais para todos”. E também ter em atenção ao alerta de outro cientista político, Robert Dahl, de que “as perspectivas de uma democracia estável num país melhoram se os seus cidadãos e líderes apoiarem fortemente as ideias, os valores e as práticas democráticas”.

Assim é porque as comemorações do Dia da Liberdade e da Democracia serviram fundamentalmente para lamúrias dos partidos e órgãos de soberania sobre o actual estado da democracia sem que fossem acompanhadas de qualquer assunção de responsabilidades.

Os apelos proferidos para inverter a perda de confiança nas instituições perdem-se no ar porque são dirigidos fundamentalmente a quem os faz. E a realidade é que são os próprios actores políticos que, ao não cumprirem rigorosamente as regras e ao não se mostrarem defensores a todo o tempo das ideias, valores e práticas democráticas, fragilizam a democracia, alimentam a abstenção e minam a confiança dos cidadãos.

Mesmo a porem-se na posição de lamentar o estado da democracia, percebe-se que não há qualquer intenção de mudar a actuação política seguida até ao momento. Pelo contrário, usa-se a insatisfação das pessoas revelada em sondagens para evidenciar insuficiências da democracia e pôr em causa a capacidade do regime democrático em satisfazer as aspirações das pessoas em ter uma vida feliz e próspera.

Na verdade, se se nota perda de confiança nas instituições não é porque há descrença na democracia, mas provavelmente porque os actores políticos fogem às regras de funcionamento democrático, umas vezes omitindo-se no exercício das suas competências e outras vezes ultrapassando-as. Criam tensões desnecessárias no sistema nas duas circunstâncias e passa-se a impressão com essa postura que a democracia não é obra comum e que qualquer fragilidade pode ser sempre imputada ao adversário político.

Pelas mesmas razões sentem-se livres para perfilhar princípios e valores em conflito directo com os existentes na Constituição sem preocupação com a tribalização da política. O sectarismo tribal que daí resulta impede que as questões e os desafios presentes e futuros do país sejam discutidos construtivamente e, parafraseando Alexis de Tocqueville, cria-se um ambiente político caracterizado pela perpétua oscilação entre o Antigo Regime e a Democracia. De seguida, hipocritamente, lamenta-se que as pessoas estão desesperançadas e procuram emigrar.

De facto, a democracia enquanto possibilidade de expressão livre e plural da voz soberana do povo está de boa saúde no seu essencial como se viu no passado dia 1 de Dezembro nas eleições autárquicas. Não obstante alguns ruídos, tudo funcionou. Verificou-se alternância política em vários municípios e a posterior transferência de poder correu sem sobressaltos. A abstenção registada deve-se em grande medida à incapacidade dos partidos de mobilizar os cidadãos ou de lhes oferecer políticas alternativas à altura dos desafios dos seus municípios ou do país.

Realmente quem parece estar em falta nesta democracia são os partidos que evitam cumprir as regras do jogo democrático, não assumem a sua responsabilidade pela qualidade da democracia, virados como estão para a manutenção ou conquista do poder, e mostram-se incapazes de apresentar propostas credíveis na actual conjuntura particularmente desafiante do país e do mundo. Neste 13 de Janeiro os olhos de todos devem estar voltados para a situação real existente nos partidos.

O MpD, o partido no governo, levou quase um mês e meio depois da derrota nas autárquicas para tomar uma posição quanto à orientação a seguir nos cerca de 14 meses que restam da legislatura. Da reunião da Direcção Nacional veio a mensagem de possíveis ajustes no partido e no governo, de se ter optado pela não mobilização dos militantes e simpatizantes no âmbito de uma convenção extraordinária, e de total apoio, por ovação e aclamação, da recandidatura do actual líder.

Parece pouco importante para o partido no seu todo discutir como desvanecer a imagem de derrotado antecipado que, entrementes, por inacção, tem deixado cimentar. Não parece querer compreender as razões por que é penalizado nas eleições com a economia a crescer à volta dos 5% do PIB e projecção de crescimento no mesmo nível para os próximos anos. Não quer se esforçar por saber porque, em certos casos algum segmento do eleitorado prefere candidatos provadamente incompetentes e ignora os resultados positivos da governação.

Quanto ao PAICV, o partido que saiu vencedor nas eleições autárquicas, a impressão é que tudo se acelerou. Em menos de um mês o líder auto excluiu-se de futuras candidaturas. Em seu lugar projecta-se para a pole position na corrida para presidente do partido um newcomer, lançado pela vitória nas eleições para a Câmara da Praia (CMP), cuja notoriedade veio anteriormente de disputas com a sua própria maioria na CMP e com os outros órgãos municipais e também do discurso marcadamente populista e anti-elitista. Pelas suas características, parece configurar uma tentativa de captura do partido por outsiders, a exemplo do que se passou noutras paragens.

Também numa veia populista já se procura desqualificar a democracia e a actual dinâmica económica com base em percepções captadas por sondagens, que evidenciam falta de confiança e vontade de emigrar, particularmente entre os jovens. Põe-se foco nas desigualdades quando a questão é como aumentar a produtividade e a competitividade da economia para produzir riqueza e depois poder distribuir. Não se dá a devida atenção à criação de uma ordem económica, que use de forma eficiente os recursos existentes, em particular, os do capital humano, obrigando os jovens a ir procurá-la na Europa e na América. Nem se tem a preocupação de apresentar propostas novas de políticas para enfrentar os desafios à governação do país de forma a não se correr o risco de chegar ao fim do mandato com a economia a crescer como das outras vezes: a 0,7% em 1990 e 0,9% em 2015.

É evidente que são os partidos a falhar no papel que deles se espera no sistema democrático ao se centrarem na conquista e manutenção do poder em detrimento do dever de servir a colectividade nacional no debate de ideias e na implementação de políticas com competência, seguindo o interesse geral. A descredibilização da democracia vem daí, assim como o novo ânimo de forças sempre presentes que procuram explorar todas as oportunidades para exprimir o seu ressentimento anti-democrático contra a liberdade e o Estado de direito democrático, que fez dos cabo-verdianos cidadãos livres e iguais.

Para ultrapassar a actual situação é fundamental exigir aos partidos políticos que cumpram as regras do jogo democrático e que valorizem os princípios e valores da democracia. Também é fundamental que saibam criar sinergias com a sociedade de forma a aumentar a participação política dos cidadãos e a sintonizarem-se com os reais problemas do país evitando assim que se transformem numa clique dependente das benesses do poder. A celebração anual do 13 de Janeiro é uma oportunidade perfeita para se renovar sobre todos os actores políticos a pressão pelo cumprimento dos ideais da Liberdade e da Democracia, que tão profundamente ressoaram no coração do povo nesse dia mágico. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1207 de 15 de Janeiro de 2025.

quinta-feira, janeiro 09, 2025

Ano de 2025 vai exigir muita serenidade e responsabilidade

 O ano de 2024, que hora finda, mostrou-se rico em mudanças que poderão vir a revelar-se prenhes de consequências para os anos vindouros. Em particular, na economia e na geopolítica global, as alterações no quadro existente há várias décadas, caracterizado por uma ordem liberal nas relações comerciais e pela posição hegemónica dos Estados Unidos, vão continuar a aprofundar-se. A invasão da Ucrânia e o prolongamento do impasse na guerra tendem a incentivar outras tentativas de ganho territorial via agressão militar. As tensões comerciais entre a China e os EUA, no âmbito de uma competição estratégica, podem reconfigurar as cadeias de valor e de abastecimento, acelerando um processo de desglobalização.

Por outro lado, a opção verbalizada pelo próximo presidente dos EUA, Donald Trump, de prosseguir com políticas de protecionismo económico, via tarifas, de reformular a relação com os aliados sob ameaça de desengajamento e de não ser o “farol” do mundo na defesa dos direitos humanos e da democracia liberal, abre caminho para um mundo multipolar. A partir daí, ter-se-á de lidar com as dificuldades de conciliação de interesses entre os países emergentes como a Índia, o Brasil e a Rússia e os países mais desenvolvidos, além do enfraquecimento do multilateralismo no sistema económico global, com prejuízo directo para os países menos desenvolvidos, particularmente da África. Com as incertezas, às quais podem vir a juntar-se imprevistos vários, o ano de 2025 já se anuncia como um mar revolto que não vai tornar fácil atingir os objectivos preconizados pelos mais optimistas.

Em Cabo Verde, à semelhança do que aconteceu em várias outras democracias, houve eleições que, apesar de terem natureza autárquica, não deixaram de mostrar algum sentimento anti-incumbente. Em 2024, realizaram-se eleições em mais de 60 países e, na generalidade, os resultados não favoreceram quem governava. Uma outra tendência visível em vários casos foi a deriva iliberal, que sacrifica direitos fundamentais, e a deriva autocrática, que enfraquece as instituições, hostiliza a oposição e limita a possibilidade de alternativa política futura. Especialmente preocupante, em vários casos, foi o recurso a políticas identitárias e à mobilização de emoções com base no medo, no ressentimento e na xenofobia. A ascensão de forças políticas suportando-se no etnonacionalismo, na nostalgia da grandeza do passado e no combate às migrações revela o sucesso da política feita nessa base. Daí, igualmente, a tentação de imitação que se verifica não só nos partidos chamados de direita radical ou de extrema-direita como também noutros partidos ditos de esquerda, transvestidos de roupagem nacionalista e identitária.

O ambiente sócio-político nas democracias, marcado pela progressiva descredibilização das instituições, tem favorecido esse extremar de posições em todas as matérias, não deixando espaço para o diálogo, para o compromisso e mesmo para o exercício do bom senso na avaliação das situações. Em Cabo Verde, assistiu-se, em primeira mão, ao longo do ano de 2024, ao exacerbar da conflitualidade social com anúncios frequentes de greves em vários sectores, particularmente nos ligados ao Estado. Também foi notório o recrudescer da tensão política entre os órgãos de soberania, com os seus titulares a protagonizar, por acção ou omissão, os vários episódios, que acabaram por contribuir para uma acelerada perda de confiança nas instituições. Nem os órgãos do poder judicial ficaram incólumes neste processo, sendo às vezes alvos de ataques directos e outras vezes chamados pelos actores políticos a agir ou a se pronunciarem em situações que podiam configurar judicialização da política ou politização da justiça. Não estranha que a queda de confiança fosse tão pronunciada como se constatou nas sondagens da Afrosondagem.

Para a derrota do MpD nas eleições autárquicas, certamente que terá contribuído o ambiente de tensões sócio-políticas que atingiram o rubro nos meses que as antecederam. Essa derrota é também reveladora dos limites de uma acção governativa que faz da sua bandeira a construção do “maior Estado social de sempre”, quando o país não tem hoje os recursos para distribuir a todos, nem o nível de produtividade e de competitividade da economia que possa assegurar a sua sustentabilidade futura. É evidente que a insatisfação perante a realidade vivida não deixaria de se manifestar no primeiro pleito eleitoral a ser realizado, como veio a acontecer. Algum equívoco na leitura dos resultados poderá, entretanto, surgir se as eleições autárquicas forem tomadas como determinantes das eleições legislativas, em vez de servirem de matéria de reflexão sobre a democracia, sobre a qualidade das políticas governamentais e sua eficácia, e sobre a adequação e justeza das políticas municipais.

E o problema é precisamente esse e começa a desenhar-se. O governo, por omissão, falta de pronunciamento e ousadia, corre o risco de projectar uma imagem de derrotado por antecipação. O primeiro-ministro, na mensagem de Natal, prometeu o que configura ser “mais do mesmo” quando provavelmente não vai ser tomado como suficiente. Do lado do maior partido de oposição, poderá estar a manifestar-se a euforia que advém da possibilidade, se não certeza, da conquista do poder. Estando as eleições a uma distância de cerca de 14 meses, a questão que se coloca é o que, nesse intervalo, se vai assistir.

Irá prosseguir a perda de confiança nas instituições porque os actores políticos vão manter a mesma postura, agora exacerbada pela proximidade de uma eventual tomada de poder? Nas autarquias, com os seus órgãos renovados, a prioridade será a procura de soluções para os problemas do município e dos munícipes ou o foco vai ser colocado na instrumentalização do poder e dos recursos municipais para vencer as legislativas? Na administração pública a perspectiva de mudança na liderança do Estado não irá reduzir a eficácia do Estado, com mais conflitualidade laboral, movimentação do pessoal e menos produtividade? As comemorações dos 50 anos de independência, em 2025, vão servir para unir a nação na consciência de um destino comum enquanto comunidade de cidadãos livres e iguais, ou vão ser mais uma oportunidade, à semelhança do que aconteceu durante o ano de 2024, sob o patrocínio do presidente da república, para a exaltação de dirigentes partidários que submeteram os cabo-verdianos e o país a 15 anos de ditadura?

Parece que há consenso geral que a estabilidade política e governativa é um dos grandes activos de Cabo Verde. Um factor importante de estabilidade é o cumprimento efectivo dos mandatos. E um dos pressupostos para isso é não se viver em campanha eleitoral a todo o tempo: razão por que estão claramente definidos os períodos eleitorais. O governo deve ser o primeiro a respeitar isso e o mesmo se aplica à oposição e aos órgãos do poder político nas autarquias. Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de estar em permanente campanha eleitoral. Muito menos quando há a sensação de perda de confiança nas instituições democráticas e a percepção de que o país não está a responder às expectativas dos cidadãos.

O actual momento no mundo é particularmente complexo e complicado demais para o país se deixar distrair em lutas pelo poder fora do tempo eleitoral. Quando questões preocupantes e realidades novas deverão ser esperadas, é fundamental que haja condições para que sejam encaradas com serenidade e ousadia, beneficiando do contraditório num quadro plural. Para que o ano de 2025 traga esperança, há que exigir responsabilidade dos governantes e de todos os actores políticos para reforçar o espírito de solidariedade e de união, a fim de enfrentar os tempos incertos e, provavelmente, difíceis, que aí vêm. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1205 de 31 de Dezembro de 2024.

segunda-feira, dezembro 23, 2024

Ainda falta o pedido de desculpa

 A Afrosondagem publicou ontem dia 17 de Dezembro os resultados do estudo feito sobre a qualidade da democracia e a governação em Cabo Verde. As sondagens apresentadas revelam uma queda significativa na confiança nas instituições. Só as forças armadas ficam acima dos cinquenta por cento. A confiança no presidente da república caiu de 65%, em 2022, para 57 %, enquanto no caso do Primeiro-ministro passa de 57% para 31 %.

Também os tribunais ficam pelos 42%, enquanto o parlamento dos 48% que trazia de 2022 ainda desceu para 29%. Ainda a níveis mais baixos da confiança ficaram, como de costume, as câmaras municipais (30%)e os partidos políticos (29%). Para o panorama nacional ainda se destacou a polícia nacional como sendo para 26 % dos entrevistados a instituição mais corrupta.

Claramente que o quadro revelado está longe de ser o ideal e a tendência para piorar é evidente. Contudo, é preciso ter em consideração o facto de que actualmente nas democracias está a verificar-se o mesmo fenómeno de perda de confiança nas instituições chamado de recessão democrática. Ao nível nacional certamente que factores específicos contribuem para abrandar ou acelerar a tendência para a descredibilização das instituições. Nos municípios, compreende-se que devido à proximidade do poder local, o excessivo eleitoralismo facilmente cria desconfiança e divisão nas pessoas.

Quanto aos partidos políticos - cada vez mais tidos como máquinas de conquista do poder e como tal mais aptos a fazer falsas promessas, a tribalizar-se, sem uma vida interna rica e plural, e a servir um chefe - nota-se que falham no diálogo social e na captação dos anseios dos eleitores, tirando a voz a segmentos da população. No que concerne à polícia, a percentagem de pessoas que ainda a consideram a instituição mais corrupta mina a confiança que deve inspirar para fazer respeitar a autoridade do Estado e garantir a ordem e tranquilidade pública.

No topo da hierarquia do Estado, e em relação à assembleia nacional, a queda na confiança não cai fora do normal. Os parlamentos na generalidade das democracias não têm grande cotação pública devido, entre outras razões, à percepção de alguma ineficiência nos trabalhos parlamentares e ao partidarismo excessivo. Mas já é preocupante quando se trata do presidente da república, do primeiro-ministro e do governo porque indicia questões mais complicadas, designadamente a relação entre o PR e o Governo como parecem sugerir as sondagens apresentadas. Ou seja, para além do que são tensões normais entre órgãos de soberania, ou desgaste natural resultante do exercício do poder, eventualmente haverá outros factores a provocar a erosão da confiança pública.

Uma constatação feita nas democracias é a do papel exercido pelos partidos e pelos políticos na aceleração da descredibilização das instituições democráticas. Fazem-no com discursos demagógicos e populistas, contornando normas e procedimentos democráticos, ou adoptando comportamentos inéditos e desafiantes do sistema político que, por não serem imediatamente contrapostos, criam a imagem de impunidade. Os exemplos multiplicam-se por todo o lado. De facto, contribui-se para minar a confiança nas instituições pondo em causa as regras do jogo, ultrapassando ou omitindo no exercício das competências próprias e mobilizando forças ou algum sentimento anti-sistémico existente no país.

Em Cabo Verde é bem provável que parte da perda de confiança identificada nas sondagens tenha origem nessa espécie de guerrilha institucional que se instalou entre o PR e o Governo e a sua maioria parlamentar. A tensão no actual nível não devia existir considerando que o país tem um governo de maioria absoluta que não deixa muito espaço para iniciativas presidenciais potencialmente conflituantes como aconteceria se se tratasse de um governo minoritário. Mas a verdade é que se deixaram desenvolver as tensões para níveis anormais que obrigaram à auditoria do Tribunal de Contas e à investigação do Ministério Público e, na sua esteira, a fricção entre órgãos judiciais e a presidência da república. É evidente que tudo isso causa alguma perplexidade na sociedade e cria desconfiança quando questões como legalidade, transparência e responsabilização política não são tidas em devida conta. Pior ainda, quando se procura abrir outras frentes de confronto com agendas potencialmente fracturantes.

De facto, das iniciativas vindas da presidência da república não se devia esperar matéria que pusesse em causa a unidade da nação, a ordem constitucional e a unidade do Estado. A evidente união dos esforços do PR e da Fundação Amílcar Cabral e organizações afins que defendem o legado do regime de partido único na exaltação do que chamam de “memória histórica e colectiva” não é normal. Aliás, o PR teve que apressadamente vir num post no Facebook de segunda-feira, dia 16 de Dezembro, prestar “singela homenagem a todos os que terão sido presos injustamente, mesmo em períodos radicalmente revolucionários” para se distanciar do que lhes tinha acontecido nos dias 14, 15 e 16 de Dezembro, cinquenta anos atrás. Mas não pediu desculpas em nome do Estado de Cabo Verde.

Estava a referir-se aos que ele chamou de “70 opositores tidos como opositores da independência e membros da UPICV e da UDC nas ilhas de S.Vicente, Santo Antão, Fogo, Brava, Sal e Santiago” que foram encarcerados no campo do Tarrafal, reaberto para o fim, e a anteceder o Acordo de Lisboa que seria assinado no dia 19 de Dezembro de 1974. E o paradoxal é o PR estar a promover a comemoração desse acordo entre o governo português e o PAIGC, acordo esse que pressupunha essas prisões, no quadro da supressão de toda e qualquer força política, para que o PAIGC fosse partido único em Cabo Verde. Mais estranho é que tenha convidado o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, para testemunhar o acto fundante da ditadura que iria ser imposta aos cabo-verdianos nos quinze anos seguintes até o resgate da liberdade, no 13 de Janeiro de 1991.

É interessante relembrar a forma como o ministro português Almeida Santos, autor do Acordo de Lisboa, o interpretou em entrevista ao jornal Público de 11/4/2004: Assinamos o acordo e ficou descolonizado Cabo Verde. Fiz uma lei eleitoral. Houve uma grande participação da população. Eles ganharam por 92%. Elaboram uma Constituição. Acabou. Salvamos a face. A forma despachada como se referiu a isso talvez traduzia o momento do chamado PREC, Período Revolucionário em Curso, dominado pelos comunistas que, iniciado a 28 de Setembro de 1974, terminou com o levantamento de 25 de Novembro de 1975 que estabilizou a democracia liberal em Portugal. Curioso é que o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, depois de celebrar o fim do Verão Quente de 1975 em Portugal, agracie com a sua presença o golpe de força do PAIGC no Dezembro Quente de 1974 em Cabo Verde.

Os resultados da Afrosondagem vieram lembrar como em tão pouco tempo, dois anos, pôde verificar-se uma significativa erosão de confiança nas instituições. Saber as razões é fundamental para a combater, ciente do facto que são precisas instituições sólidas e inclusivas para se garantir Liberdade e criar condições para o desenvolvimento. Não é fácil, mas pelo menos dos actores políticos, dos partidos deve-se exigir que respeitam as regras do jogo democrático e salvaguardem a ordem constitucional. Da sociedade deve vir mais pressão para evitar que cinismo e hipocrisia dominem a vida política e que no fim, com o relativismo e o niilismo, se deixe para o povo só a consolação da idolatria. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1203 de 18 de Dezembro de 2024.

segunda-feira, dezembro 16, 2024

Evitar ser governado pelos piores

 

Os resultados das eleições autárquicas mudaram as expectativas dos actores políticas e da sociedade quanto ao futuro próximo e ao ciclo eleitoral já iniciado. Perante a magnitude da vitória do Paicv na Praia e o nas restantes autarquias (15 em 22) os cerca de 15 meses que separam as legislativas das autárquicas quase que colapsaram ligando imediatamente as duas eleições. Para as lideranças, para os militantes e para a base eleitoral dos dois maiores partidos é como se o futuro passasse a ser agora. Euforia de um lado e pessimismo de outro.

A reacção do líder no Paicv tendo em conta a dimensão da vitória na Praia foi cautelosa patrocinando a ideia de se escolher no congresso próximo o melhor candidato para o futuro primeiro-ministro nas legislativas e procurando não se impor-se como líder incontornável. O alinhamento pode não lhe ser favorável, mas diz privilegiar a unidade do partido em antecipação das eleições. Quanto ao MpD, o partido do governo e o derrotado nas eleições, a ausência de pronunciamento do líder do partido e primeiro-ministro causa alguma perplexidade.

De facto, não é compreensível o tempo tomado para reunir órgãos do partido e ter uma posição pública para o país e os militantes e simpatizantes. Deixa um vazio em termos de decisão e orientação para o futuro que contribui para, na mente e na atitude das pessoas, se juntar duas eleições, quando na realidade estão separadas por mais de um ano. E o país precisa funcionar normalmente e não se deixar adiar por se ver em estado de campanha eleitoral permanente meses a fio.

Na sociedade o mais normal é que depois da surpresa inicial, perante a inesperada mudança na correlação de forças, pelo menos em certos segmentos se acabe eventualmente por observar posicionamentos de conveniência à medida que a data das eleições se aproximar, criando alguma agitação social e política. Greves e reivindicações diversas poderão proliferar enquanto diferentes classes sociais e grupos corporativos procuram explorar fraquezas para impor novas condições ou garantir que promessas feitas sejam cumpridas antes do fim do ciclo político. Agrava-se a situação se não se estabelecer um ambiente político que permita o país funcionar sem polarização desnecessária e sem descredibilizar as instituições com suspeições avulsas de se estar a privilegiar uma ou outra força política.

Já o posicionamento do presidente da república logo a seguir à divulgação dos resultados autárquicos deixa entender que vai ser mais actuante nos próximos tempos. Considerando o que tem sido a relação entre os órgãos de soberania, o mais provável é que dessa interacção não resulte um ambiente de tranquilidade institucional. Um exemplo é a insistência do PR na questão dos órgãos externos por nomear com foco na legitimidade dos actuais titulares com mandato terminado.

Deixa transparecer outras motivações, designadamente o desacordo entre a presidência da república e o tribunal de contas quanto às conclusões do relatório de auditoria financeira aos serviços da Casa Civil, que retiram eficácia à sua intervenção. Também no discurso do início do ano judicial tinha apresentado os mesmos argumentos quando a lei é clara que dentro do princípio da continuidade do Estado quem exercer cargos públicos deve manter-se em funções até a tomada de posse do seu substituto. Deslegitimar cargos públicos não é a melhor via para garantir o regular funcionamento das instituições.

Nas democracias as eleições são absolutamente necessárias para renovar mandatos, escolher governantes e legitimar o exercício do poder. Para serem funcionais e cumprir com as promessas de liberdade, segurança e prosperidade não se pode estar permanentemente em estado de campanha eleitoral com toda a polarização que isso acarreta. Nem tão pouco se deve criar um ambiente de guerrilha institucional que alimenta o cinismo em relação à democracia e à política e desmobiliza as forças da solidariedade baseada no sentido de pertença a uma comunidade livre e igualitária. A crise actual das democracias provém em boa parte de não se conseguir inflectir a tendência para o individualismo, o narcisismo e o relativismo, que põe em causa o princípios e valores liberais, aumenta a descrença nas instituições e desincentiva a busca da verdade e do conhecimento, mas que expõe as pessoas à tentação de se reverem em demagogos, que potenciam o seu medo e ressentimento para ganhar eleições.

Não ajuda o facto que no mundo de hoje, cada vez mais, ganha eleições e poder quem traça uma linha directa para a vitória, sem olhar aos meios e sem respeitar as regras do jogo. Com o repetido sucesso de alguns, há um forte incentivo no sentido de todos os actores políticos fazerem o mesmo, o que a acontecer levaria ao fim da democracia. Impedir que se vá por esse caminho é fundamental e devia ser a responsabilidade primeira de governantes e lideranças partidárias. Infelizmente muitas vezes não é o caso e, pelo contrário, são os próprios que promovem essa deriva na luta pelo poder a todo o custo. Por isso é que é fundamental a sociedade insistir no cumprimento das regras e procedimentos democráticos e com essa pressão forçar os titulares dos cargos políticos e os partidos políticos a cumprirem com as suas competências e a se mostrarem responsáveis pelo equilíbrio no funcionamento da democracia, não obstante as suas imperfeições.

Razão pela qual também é preciso combater o cinismo político promovido por supostos independentes e críticos da democracia a partir dos média institucionais e também das redes sociais. O cinismo desarma os cidadãos face às derivas autocráticas e iliberais que quando se tornem reconhecíveis é demasiado tarde. Da mesma forma é preciso contrariar a tendência para a tribalização política que acompanha a liderança demagógica e populista. Ao capturar partidos tradicionais o líder reduz os militantes a seguidores do chefe e põe a conquista do poder como objectivo único, deixando o partido de servir efectivamente a sociedade com visão, conhecimento e competência executiva.

Aliás, uma das marcas da ascensão ao poder de demagogos e populistas é a incompetência que demonstram na condução dos assuntos do Estado, às vezes com consequências catastróficas para o país. Hoje fala-se da caquistocracia ou Kakistocracia, o sistema de governo pelos piores, menos qualificados e/ou mais sem escrúpulos, que se está a espalhar pelo mundo. Até a revista The Economist já propôs a expressão caquistocracia como palavra do ano 2024. E assim é porque infelizmente pelos resultados de algumas eleições recentes nota-se que na maior parte dos casos não é o partido mais capaz ou seguidor das regras democráticas que vence.

Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de cair nessa tentação. Para isso é fundamental que todos sejam plenos cidadãos e, em caso de militância num partido, serem engajados e participativos e não simples seguidores que prestam vassalagem ao chefe em troca de migalhas do poder. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1202 de 11 de Dezembro de 2024.

segunda-feira, dezembro 09, 2024

No rescaldo das eleições autárquicas novas lideranças partidarias poderão surgir

 

As nonas eleições autárquicas aconteceram no passado dia 1 de Dezembro e, como era esperado, aumentou o número de câmaras municipais (CM) lideradas pelo PAICV. O que não se contava é que tal desfecho se traduzisse numa vitória inequívoca desse partido, passando a dominar o espaço autárquico com quinze municípios, contra os sete sob o controlo do MpD. O aumento das CM do PAICV nestas eleições em parte reflecte a tendência para a retoma do equilíbrio autárquico perdido em 2016, quando o PAICV ficou com duas CM e o MpD com 18, que já em 2020, com a subida do score do PAICV para sete CM, tinha começado a manifestar-se.

Para a dimensão da vitória do PAICV terão contribuído, entre outros factores, o desgaste natural da governação na fase final do segundo mandato e a excessiva exposição do governo com o envolvimento intenso do primeiro-ministro e de outros membros do governo na campanha eleitoral. É de recordar que a vitória retumbante do MpD nas autárquicas de 2016 se deveu, em boa parte, ao empenhamento inusitado do primeiro-ministro, eleito poucos meses antes, o que acabou por esbater, nas populações, a diferença entre eleições locais e nacionais. A partir daí, estabeleceu-se um padrão de aproximação governamental aos municípios que, eventualmente, terá trazido benefícios políticos e eleitorais, mas que, posteriormente, prejudicou quando mudou a percepção das pessoas em relação às políticas do governo.

Um outro factor a ter em conta para compreender a nova realidade autárquica é a tendência em várias democracias do eleitorado em punir os incumbentes, votando na oposição. Depois de passada a crise pela Covid-19 e os efeitos da guerra da Ucrânia e a inflação em queda, as pessoas sob stress e descontentes com o ritmo de recuperação pós-crise apostam, em renovar os governos, mesmo que a alternativa não dê sinais inequívocos de não ser igual ou pior que o actual incumbente. A manter-se esse sentimento anti-incumbente é de esperar que venha a ter impacto sobre as eleições legislativas, a realizar-se em meados de 2026, e que cálculos políticos já estejam a ser feitos para, conforme o caso, se atenuar ou amplificar os seus efeitos.

Nesse sentido, a questão central é a das lideranças partidárias que vão ser os protagonistas na disputa eleitoral das legislativas. Do lado do MpD, com o novo quadro político marcado pela vitória do PAICV nas autárquicas coloca-se o problema de saber se o actual primeiro ministro mantém a promessa de se candidatar para um terceiro mandato ou se abre o caminho para uma renovação da liderança do MpD. De facto, Ulisses Correia e Silva não deverá sentir-se obrigado a manter o compromisso depois da derrota sofrida, que também é pessoal, considerando o nível do seu envolvimento na escolha das candidaturas e na campanha eleitoral. A acontecer, o partido terá de procurar uma outra liderança para os novos tempos.

Do lado do PAICV é expectável que, com a vitória nas eleições e o protagonismo reforçado de Francisco Carvalho, se queira avançar com um novo líder. Se assim for espera-se a resistência do actual presidente do partido que certamente vê como natural assumir para si os resultados positivos das eleições. De facto, a vitória eleitoral na Praia está a ser construída como feito pessoal do presidente da câmara, que já se projecta no país definindo metas e a preparar o futuro, o que, naturalmente, irá condicionar as relações de força no congresso do partido previsto para 2025. Problemático será se a mensagem populista de vitimização, antielitista e desafiadora das normas e das instituições for adoptada pelo partido, reproduzindo a prática bem sucedida de certas forças políticas em algumas democracias na Europa e na América.

Nas eleições autárquicas viu-se a tentação de ir por esse caminho. Porém no final, da generalidade dos participantes e dos observadores veio a confirmação de que o processo eleitoral tinha corrido bem e que a actuação da CNE foi competente e efectiva. Despertou particularmente a atenção a denúncia contra a participação do PCA do NOSI na campanha deixando entender que isso podia pôr em causa a neutralidade e a imparcialidade da instituição na divulgação dos resultados eleitorais provisórios. O facto de que, nos cerca de 14 anos a prestar esse serviço, nunca se questionou a filiação ou actividade partidária dos administradores do NOSI, por ser irrelevante, dá a sensação de que, a exemplo do que vem acontecendo noutras paragens, se procurou, em antecipação dos resultados eleitorais, pôr em causa a integridade do processo. Depois, se se ganha, não há reclamação, mas, se se perde, justifica-se imediatamente que houve fraude.

A verdade é que o processo eleitoral em Cabo Verde está consolidado e que apesar de denúncias pontuais de compra de votos ou de bilhetes de identidade, os resultados são aceites pelas forças políticas envolvidas e pela sociedade. Por isso é que, na sequências das eleições, não há distúrbios: os vitoriosos festejam e os vencidos concedem a derrota. Não deixa, porém, de ser importante que, em sede própria do parlamento, se revisite o código eleitoral para clarificar certas normas e, talvez, adequa-lo ao actual estado de maturidade dos eleitores e das instituições eleitorais.

Não se compreende por exemplo que não seja possível publicar sondagens durante o período eleitoral ou que seja proibida publicidade patrocinada nos órgãos de comunicação sociais e agora estendida às redes sociais. Talvez fizesse sentido nos primeiros anos para evitar influência excessiva no eleitor, quando se estava a iniciar-se, como cidadão pleno, a escolher os seus representantes e os governantes do país. Também parece excessivo, em nome da neutralidade das entidades públicas, querer coarctar os actos de governação, a ponto de quase os limitar aos de um governo de gestão, mas sem respaldo constitucional. Muito menos sentido fez o acto inédito de suspender deputados, em plena sessão plenária, por serem candidatos partidários nas eleições autárquicas.

Há que, de facto, haver alguma contenção, como previsto no código eleitoral, para assegurar a igualdade de oportunidade das candidaturas, mas sem desproporcionalmente limitar a liberdade de expressão e de informação e o direito de participação política dos cidadãos. A falta de clarificação nessas e noutras matérias poderá dar azo a que se usem as denúncias como arma eleitoral para se pôr em causa o processo eleitoral e, eventualmente, contestar as eleições e perturbar o processo normal de transferência de poder. Já se viu isso noutras paragens. Com mais actos eleitorais no horizonte, é fundamental que se procure salvaguardar o direito ao voto e a credibilidade das instituições de administração eleitoral para que momentos como os vividos no domingo último, de aceitação pacífica dos resultados das eleições, se repitam periodicamente, para a consolidação e prestígio da nossa democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1201 de 04 de Dezembro de 2024.

segunda-feira, dezembro 02, 2024

É crucial fazer o melhor uso do financiamento climático

 Terminou em Baku, no Azerbaijão, a conferência sobre mudança climática (COP25) com decisões sobre o financiamento de projectos para adaptações relacionadas com a transição energética e para mitigar os efeitos das alterações climáticas, embora sem satisfazer plenamente as expectativas. Pretendia-se chegar a um compromisso de financiamento de 1,3 milhões de milhões (trilion) de dólares até 2035, mas ficou-se apenas por 300 mil milhões (billions) de dólares, a serem disponibilizados pelos países mais desenvolvidos. Desde a conferência de Paris de 2015 e das suas grandes promessas, o mundo mudou muito e, com o regresso de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, o cenário pode ainda piorar, tornando mais difícil conseguir os consensos necessários para as cumprir.

Entretanto, o facto de que os extremos do clima têm, nos últimos anos, tornado incontornável a realidade das mudanças a nível global constitui um incentivo à inovação na mobilização de financiamento. Nesse sentido, procura-se com maior afinco encontrar fontes diversificadas, tanto de natureza pública como privada, e tenta-se explorar fundos bilaterais e multilaterais, assim como recursos alternativos de capital. As necessidades são crescentes, tanto nos países pobres, que, proporcionalmente, mais sofrem com as consequências das alterações climáticas, sejam elas derivadas de furacões, secas, cheias ou aumento do nível médio das águas do mar, como nos países de crescimento médio, que têm de acelerar a transição energética.

A instituição de uma taxa de carbono é uma das vias inovadoras que tem sido explorada, ainda que paulatinamente, tendo como alvo as indústrias poluentes, a indústria do plástico e as emissões de gases provenientes de barcos e aviões alimentados por combustíveis fósseis.

A par disso, já há algum tempo, têm sido consideradas as chamadas taxas de solidariedade como uma forma de preencher o défice deixado pela diminuição de fundos públicos, em particular dos países ricos. Crises recentes nesses países, ao forçarem o redireccionamento de recursos para responder a necessidades urgentes de defesa, melhorias nos serviços de saúde e investimento em infra-estruturas, limitaram a disponibilidade para outras causas. Em compensação, progressivamente, tem-se introduzido taxas de carbono para passageiros transportados por via aérea e marítima, explorando-se também a possibilidade de taxar fluxos financeiros, criptomoedas e grandes fortunas. A ideia, ao que parece, é chegar ao COP30, em Novembro de 2025, no Brasil, com um número considerável de países que adoptaram alternativas de financiamento suportadas pela taxa de carbono.

São 21 os países, segundo o jornal Financial Times de 20 de Novembro, que actualmente já avançaram com taxas de solidariedade, entre os quais Portugal e Suécia, que incidem sobre passageiros de linhas aéreas e marítimas. São evidentes as vantagens para o combate às mudanças climáticas resultantes da arrecadação de receitas, que, segundo estimativas desse jornal, em termos mundiais, poderão chegar a 164 mil milhões (billions) de dólares anuais. Cabo Verde, que, a partir da aprovação na semana passada da taxa de carbono, passou a integrar esse grupo de países, também poderá beneficiar dessas vantagens. Com uma taxa de 550 escudos (5 euros), prevê-se arrecadar mais de um milhão de contos, que, de acordo com o ministro das Finanças, em declarações no parlamento, serão utilizados exclusivamente para financiar acções de mitigação e adaptação aos efeitos das alterações climáticas.

Há, porém, quem aponte desvantagens, considerando que essas taxas constituem um custo extra que sobrecarrega os viajantes em geral, particularmente os de menores recursos. Pode também interferir no fluxo turístico. Nos países com um volume estável de passageiros, os efeitos serão mínimos; mas, noutros, onde o turismo ainda está por consolidar-se e tem maior peso na economia, não se pode descurar eventuais impactos negativos na competitividade do destino. Para que as vantagens sejam reais, é fundamental que as acções de mitigação e adaptação às alterações climáticas sejam bem definidas, estabelecendo prioridades, garantindo sustentabilidade e articulando pequenos projectos com uma estratégia nacional e uma visão de futuro.

De facto, é essencial focar na construção de um país mais resiliente face aos extremos climáticos e mais preparado para beneficiar da transição energética em termos de crescimento e competitividade. O grande esforço de mobilização de fundos que está a ser feito neste momento não deve ser encarado como mais um dos exercícios feitos no passado para promover o crescimento económico global. É sabido como esses esforços ficaram aquém do pretendido, resultando em desperdícios extraordinários de recursos e na persistência de grandes manchas de pobreza em várias regiões do globo.

Faz sentido que hoje se procure uma maior mobilização de recursos financeiros, mas impõe-se que esta seja acompanhada de outras medidas. Realmente é de não repetir práticas que não resultaram em instituições inclusivas. Nem de manter a mesma cultura de governação que, em muitos países, levou a fracos crescimentos e ao aumento da desigualdade. Deve-se também rever a governação multilateral, que frequentemente impõe regras sem dar a devida atenção aos resultados, às especificidades locais e aos seus anseios. O combate à vitimização, que enfraquece o esforço global, e à desresponsabilização, que impede a cooperação necessária, é essencial para ultrapassar o momento crítico que enfrentamos. Está em jogo o futuro global perante ameaças potencialmente existenciais. Não há muita margem para fracassos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1200 de 27 de Novembro de 2024.

segunda-feira, novembro 25, 2024

Desafios e perspectivas de governança local

 

Com as eleições autárquicas a serem realizadas no dia 1 de Dezembro, as câmaras municipais (CM) e as assembleia municipais (AM) vão ser renovadas. As novas configurações de forças políticas, partidos e grupos de cidadãos, que saírem do acto eleitoral poderão traduzir-se em maiorias absolutas ou relativas, deixando antever, logo à partida, as probabilidades de se ter, conforme o caso, quatro anos de mandato estável ou períodos de instabilidade e até de bloqueio. A crescente crispação partidária aliada à incapacidade de negociar ou manter acordos entre as forças políticas, recentemente demonstradas nos municípios de S. Vicente e da Praia, poderão já ser o sinal de crises mais frequentes a verificar-se na governação municipal.

Estabilidade municipal normalmente está garantida com uma maioria absoluta na câmara municipal. Tratando-se de uma maioria relativa, que resulta em CM partilhada, tudo acaba por depender da disponibilidade das forças políticas para negociar, tanto na CM para a aprovação das propostas, em particular do plano de actividades e do orçamento, a serem apresentados à AM, como no órgão deliberativo para dotar o município dos seus instrumentos fundamentais de gestão. A novidade neste ciclo autárquico que está a terminar foi a situação caricata criada na CM da Praia em que a maioria nesse órgão recebida das eleições foi perdida, mas o presidente, em confronto com a prática estabelecida e o estipulado nos Estatutos dos Municípios, reivindicou o direito de apresentar propostas de orçamento à AM, sem aprovação prévia no órgão colegial executivo.

A verdade é que esse diferendo não foi dirimido e a prática impôs-se com a repetida aprovação pela AM do orçamento e do plano de actividades sem que todos os procedimentos legais tivessem sido seguidos. Uma questão que se coloca é se isso não abre um precedente para situações futuras de conflitualidade, instabilidade e ineficácia dos órgãos municipais, com todas as consequências e custos que acarretam. Outra questão é se a AM ao aceitar debater e votar propostas sem prévia aprovação da CM não estará a cumprir a Constituição que faz o orgão colegial executivo responsável perante ela. Claro que aqui se põe o problema de saber se. efectivamente na Lei, foram criadas as condições e disponibilizados os meios para AM poder escrutinar os poderes das câmaras municipais e os actos do presidente da CM. Para os munícipes que vão votar na AM é fundamental que reconheçam utilidade no órgão que vão eleger, sob pena de se aumentar o descrédito nas instituições do poder local e incentivar o caciquismo autárquico.

A estabilidade futura das autarquias vai depender muito da capacidade negocial e compromissória das forças políticas nos órgãos municipais, em particular na AM. Já se viu pelo caso de S. Vicente que acordos podem ser conseguidos na câmara e depois bloqueados na assembleia. A possibilidade confirmada pelo Tribunal Constitucional de haver candidaturas só para um dos órgãos municipais pode constituir-se num convite a uma maior fragmentação da AM ou numa não correspondência na representação de forças políticas nos dois órgãos. Em qualquer dos casos obriga a um maior esforço negocial e disponibilidade para construir coligações ou firmar acordos pontuais.

Se não houver um sentido aguçado de que o poder do órgão não está em eternizar o bloqueio mas em dotar o município dos instrumentos de gestão tudo ficará mais difícil. A CM e a AM são eleitas directamente e nenhum dos órgãos pode derrubar o outro como acontece com o governo que perde a maioria num sistema parlamentar. Isso faz com que não devam se subordinar um ao outro e, pelo contrário, num sistema de pesos e contrapesos, se obriguem a respeitar e a fazer cumprir as regras do jogo democrático. Quando isso não acontece, como no caso da proposta de orçamento da Praia, cria-se um ambiente de incumprimento que diminui a eficácia na resolução dos problemas do município e dos munícipes. Aos titulares desses órgãos de poder político é esperada uma responsabilidade muito especial reforçada pela proximidade dos eleitores e pelo impacto directo da acção municipal na vida corrente das pessoas.

Aliás, a própria existência do poder local parte da convicção de que populações num determinado território têm interesses específicos que não se esgotam no interesse nacional e que importa dotá-las de poder próprio para os administrar. A democracia local pretendida, marcada pela proximidade, deve ser cultivada para, de um lado, evitar bloqueios e ineficácia e, de outro, para não ser desvirtuada pelo caciquismo. Nesse sentido, é fundamental existir uma preocupação com a viabilidade dos município, em particular na criação da autarquia e concomitantemente com a contribuição dos munícipes para a sustentabilidade dos mesmos.

Tributação e representação vão a par e passo na democracia, ou seja paga-se imposto porque se está representado no órgão que os cria e que controla como são gastos as receitas obtidas. De outra forma vão surgir figuras providenciais e, muitas vezes, aspirantes a caciques a tentar conseguir receitas em permanente guerra de recursos com o Estado central, enquanto tudo fazem para enredar os munícipes numa malha de dependência, condicionando o acesso aos recursos mobilizados. Também acaba-se por criar um eleitorado que, ao não se sentir como contribuinte, pouco interesse terá no controlo da qualidade das despesas feitas com o erário público.

Em Cabo Verde, provavelmente, há municípios a mais e a sustentabilidade de vários deles é demasiado precária. Dos municípios , num total de vinte e dois a partir dos 14 existentes em 1993, segundo um estudo datado de 2015, as receitas próprias representam, em média, 32% das receitas totais, variando entre os municípios de 3% a 58%. As transferências do Estado representam em média 45% das receitas totais e variam entre 97% a 19%. E o esforço para arrecadar receitas fiscais é bastante baixo. Daí que as condições para a democracia local não sejam as ideais. Compreende-se assim porque persistem muitas das insuficiências que ainda pesam na afirmação da democracia local, nomeadamente as fragilidades na responsabilização política e na prestação de contas, a tentação para o caciquismo, a transformação dos municípios em campo de batalha entre o governo e a oposição e o eleitoralismo permanente que induz dependência na população.

É evidente o desenvolvimento autárquico verificado em Cabo Verde desde das primeiras eleições em Dezembro de 1991 e os extraordinários ganhos que representou para as populações de todas que ilhas. No entanto, é preciso identificar e ultrapassar as fragilidades na governança local e focar mais na melhoria da qualidade de vida das pessoas e do ambiente circundante, com mais segurança, acesso à habitação e a espaços público e mais conectividade. Também será importante saber dosear o papel de promotor e facilitador de iniciativas diversas, sociais, culturais ou empresarias, e contribuir para fazer dos munícipes os verdadeiros protagonistas na arena pública.

As próximas eleições são as nonas a ter lugar e já convinha equacionar os problemas dos municípios noutra óptica, considerando os desafios que o país tem pela frente. Há que ter presente que Cabo Verde não se confunde com o somatório dos seus municípios, que a entidade concreta da ilha nas suas especificidades deve ser assumida e que, para prossecução do interesse nacional, ter-se-á que potenciar estrategicamente todas as valências existentes. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1199 de 20 de Novembro de 2024.

segunda-feira, novembro 18, 2024

O mundo mudou

Os resultados das eleições americanas de 5 de Novembro apontam para mudanças nas regras do jogo a vários níveis nas relações internacionais. A eleição de Donald Trump para a presidência com maioria folgada juntamente com o controlo do Senado e da Câmara dos Representantes pelos republicanos vai-lhe conceder poder suficiente para pôr em prática as promessas mais disruptivas das políticas feitas durante a campanha eleitoral. Sem grande perspectiva de ver esse poder controlado pelo Supremo Tribunal de Justiça, considerando a sua composição com uma maioria confortável nomeada pelo próprio Trump e a sua aversão aos checks and balances do sistema político, aumenta a probabilidade de que o impacto dessas políticas seja profundo e abrangente.

Outrossim, a rapidez com que nos últimos dias Trump designou altos dirigentes para supervisionar essas políticas juntamente com o perfil radical deles dá ideia do seu forte comprometimento em fazer com que tais mudanças aconteçam.

Para além das consequências eventualmente complicadas na América, decorrentes dessa reorientação na política, tudo leva a crer que haverá um choque mais profundo e doloroso no resto do mundo. Assim, com o aumento drástico das tarifas para os produtos importados o mais provável é que haja um reflexo negativo nas relações comerciais globais e impacto directo na capacidade de exportação, no emprego e no crescimento económico de vários países espalhados pelo mundo. E ao pôr em prática as drásticas políticas contra a imigração aumentam as tensões nas fronteiras, a mão de obra pode escassear em sectores importantes da economia e os lucros das redes de tráfico humano tendem a tornar-se maiores.

Qualquer sinal de desengajamento com o mundo, seja no enfraquecimento da confiança na relação com os aliados na Europa, na Asia e noutros continentes, ou com outros parceiros em várias áreas de governança global, acarretará sérias consequências. As tensões geopolíticas poderão aumentar e a capacidade de resposta global a situações de crise, designadamente em saúde pública, instabilidade financeira ou desastres naturais, certamente diminuirá. Serão menores ainda as possibilidades de concertação na abordagem de problemas como fluxos migratórios intercontinentais, mudança climática e transição energética. Problemático, no mesmo sentido, poderá vir a revelar-se o papel futuro das instituições multilaterais, designadamente ONU, FMI, Banco Mundial e OMC, num mundo multipolar e com o bloco de países liberais efectivamente enfraquecido por divisões internas e desconfianças mútuas.

A realidade é que para o mundo inteiro a vitória de Donald Trump é um verdadeiro game changer. Não só lidera uma maioria significativa nos Estados Unidos ,que já mostrou querer mudar radicalmente o que até então se tinha como consensual em matéria da democracia liberal e constitucional, como também, com o seu exemplo, constitui um enorme incentivo em outras democracias para que movimentos similares de direita radical ou da extrema direita procurem formar maiorias absolutas para governar. Por outro lado com a preferência para o populismo e para a demagogia e para práticas políticas iliberais, que sacrificam os direitos fundamentes e descredibilizam o pluralismo e a separação de poderes, acaba, na verdade, por legitimar as autocracias e torná-las numa alternativa atractiva.

Curiosamente parece não afectar a forma como certas esquerdas, activistas e radicais identitários contrapõem às tácticas ultranacionalistas baseadas no medo e em preconceitos e ressentimentos. Mantêm as narrativas de sempre e a mesma perspectiva simplista que divide a sociedade em opressor e oprimido. Parece não lhes interessar que a reacção cada vez maioritária da sociedade como demonstrada pelo Trump esteja a encaminhar-se por vias que acabam por limitar os direitos fundamentais e por minar a democracia. Fica-se com a impressão que o niilismo que caracteriza os extremos se sobrepõe a tudo, mesmo às causas que clamam defender.

Para os países em desenvolvimento o mandato de Donald Trump, constitui um problema sério e um desafio enorme. Um problema porque entre outras coisas a imposição de tarifas e de outras políticas proteccionistas constituem um travão para o crescimento económico, aumentando as desigualdades intra e inter-países e diminuindo as possibilidades de investimento em novas tecnologias e de integração em cadeias de valor globais. Um desafio porque deve levar a uma urgente reflexão e acção estratégica e concertada para potenciar os recursos do país, combater as ineficiências e a corrupção e mobilizar a vontade da nação para enfrentar situações complicadas que surjam, sejam elas de causas naturais por razões de mudanças climáticas, ou derivadas de redução do mercado de exportação ou de fluxo turístico, ou induzidas pelo ambiente de tensão próprio de um mundo multipolar em emergência.

Para Cabo Verde com as fragilidades de um país arquipélago, população reduzida e recursos limitados uma mudança nas regras do jogo constitui um problema mais grave e um desafio maior. O novo ciclo eleitoral aproxima-se e, considerando a actual tendência nas democracias vê-se que os resultados não estão a favorecer o partido incumbente, o que pode levar eventualmente a alguma instabilidade governativa. Além disso, os efeitos já perceptíveis de alterações climáticas seja no regime das chuvas ou nas temperaturas elevadas devem servir de alerta para a ocorrência de fenómenos extremos (chuvas intensas, ondas de calor, secas, ventos fortes) frente aos quais o país não está suficientemente preparado. A emigração, por sua vez, poderá enfrentar mais obstáculos à medida que cresce o sentimento anti-imigrante e que novas medidas de controlo do fluxo migratório são implementadas nos países de destino.

O desafio que uma nova realidade mundial pode representar devia ser assumido por todos e, com esse ponto de partida, trabalhar com sentido de urgência e responsabilidade para fazer das diferenças de opinião uma fonte de inspiração e enfrentar as dificuldades nascentes com criatividade e acção vigorosa e no tempo certo. Fundamental seria mobilizar um esforço colectivo para combater as ineficiências, potenciar o capital humano e investir no capital social que se revela na confiança interpessoal, no civismo e na existência de instituições credíveis. Infelizmente a tendência é para a constituição de tribos políticas em que os extremos tendem a monopolizar a atenção, anulando o diálogo.

Sem debate e sem possibilidade de compromissos, porém , o país pode não ficar preparado para enfrentar um mundo em mudança acelerada. Há que parar por um instante e tentar perceber que se está a viver um desses momentos na história em que,de repente, o mundo muda. E lembrar que Mikhail Gorbatchev em 1989, num desses tais momentos históricos, já avisava: Os que se atrasam são punidos pela vida. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1198 de 13 de Novembro de 2024.

sexta-feira, novembro 08, 2024

Kamala ou Trump, joga-se o futuro nas eleições americanas

 Meses de apreensão geral no mundo sobre o futuro presidente dos Estados Unidos de América chegaram finalmente ao fim com a realização das eleições de 5 de Novembro. Uma sombra tinha descido sobre a América desde que ficou claro que Donald Trump seria o candidato republicano, não obstante todas as transgressões imagináveis entre as quais o incitamento à insurreição e fraude eleitoral, desvio de documentos secretos, crimes fiscais e assédio sexual. Nessas circunstâncias, aparentemente, só o presidente Biden que o derrotara antes estaria na posição de o vencer pela segunda vez, afastando o espectro de uma América errática, no suporte a instituições de governança global e de luta contra as mudanças climáticas e outros desafios planetários, sem engajamento firme com os aliados e a flirtar com autocracias.

A realidade dos efeitos da idade avançada sobre Biden ficou impossível de ignorar na sequência do debate falhado com Trump em Junho, abrindo caminho para o lançamento da candidatura de Kamala Harris sem o tempo e sem o escrutínio que, normalmente, pela via das primárias são escolhidos os candidatos ao cargo de presidente. Apesar dos percalços, a nova candidata rapidamente conseguiu o apoio das várias alas do partido democrático e soube galvanizar o país com uma campanha que rivalizou com a de Trump reflectida nas sondagens que sistematicamente ao longo dos meses a puseram em termos de intenção de voto a par ou ligeiramente acima do adversário. E o extraordinário é como, no confronto com um projecto político (Trump) que põe em causa a democracia constitucional de quase 250 anos, o eleitorado parece dividido a meio.

Trata-se de um verdadeiro aviso para todas as democracias. Aliás, a dinâmica de uma certa direita radical na generalidade das democracias no mundo inteiro deixa aperceber que o fenómeno na base da emergência de Trump está presente ou latente em diferentes democracias só que ainda não suficiente amadurecido, mas a crescer paulatinamente, eleição a eleição. Na América pode-se observar o desgaste da democracia provocado por anos de posicionamentos iliberais vindos de diferentes quadrantes políticos e de contestações à ordem constitucional vigente. Chega-se à situação actual do partido republicano, que em certos aspectos já não aparenta ser um partido político, mas uma organização política que cegamente serve um chefe, de ter uma fracção expressiva dos seus dirigentes de décadas a incentivar publicamente a votação no candidato do outro partido.

Na Europa e em outros países, pode-se não ter chegado a esse nível de captura dos partidos por um outsider, mas ninguém pode garantir que, com o tempo e a entrada em cena da figura certa, o mesmo fenómeno Trump não apareça com todas as consequências. O motor para a sua expansão tem sido fundamentalmente o medo, os preconceitos, o ressentimento e a xenofobia. São os sentimentos que se procura suscitar na população e no eleitorado para exprimir os problemas reais das pessoas e da sociedade e as suas expectativas em relação ao futuro. Com maior ou menor grau de sucesso essas tácticas tem surtido efeito e a tendência é de progressivo alargamento eleitoral, contribuindo para isso não só as redes sociais, mas também as posições de certa esquerda focada em políticas identitárias, por si próprias iliberais.

A consequência óbvia disso é a tribalização da sociedade, o enfraquecimento da coesão social necessária para se manter a ordem constitucional e a oportunidade aberta ao surgimento de demagogos. Na América provavelmente deu-se um passo mais além porque se acrescentou mais uma componente que é a impunidade dos actores políticos envolvidos. Donald Trump ao longo de anos, primeiro como candidato, depois como presidente e outra vez como candidato não reconhecendo a derrota, nunca mostrou limites nos insultos proferidos, nas mentiras espalhadas, nas ameaças feitas e nos actos praticados contra pessoas e instituições. Até agora ficou impune apesar dos “impeachments”, dos processos judiciais, das denúncias nos média e de todos terem conhecimento do que ele fez. Ele próprio os confirma. Com isso tem provado que, como disse em Janeiro de 2016, podia atirar em alguém em plena 5ª avenida de Nova Iorque e não perderia nenhum voto.

De facto, não tem perdido votos apesar da incoerência das suas propostas políticas, da falta de idoneidade para exercer o cargo de presidente como testemunhado por grande número dos antigos colaboradores e da sua insensibilidade, revelando narcisismo extremo, chamando soldados mortos em combate de tolos e perdedores. Pelo contrário, os apoiantes têm aumentado e o seguidismo do líder parece sobrepor-se à discussão de políticas para o país. Para eles o objectivo de conquista do poder prevalece sobre tudo, na lógica de que os fins justificam os meios.

A de facto tirania da minoria que os republicanos têm exercido e que lhes permitiu fazer a captura do Supremo Tribunal de Justiça generalizou uma forma de política que não se deixa limitar pelas regras do jogo democrático. Chegou-se ao ponto de pôr em causa a ordem constitucional mesmo na relação entre o poder civil e os militares, como testemunham altas patentes das forças armadas. Com tudo isso, terão ultrapassado de uma certa forma os limites, o que terá levado uma parte importante dos republicanos influentes a se distanciarem do partido. Uma outra consequência é que gerou uma grande movimentação das mulheres a favor dos direitos reprodutivos que tinham ficado em perigo com as decisões dos tribunais, provocando uma onda de suporte a Kamala Harris. A grande questão é se será suficiente para travar o avanço do que personalidades e académicos como Robert Paxton estão a chamar de fascismo em outras roupagens que se está a querer impor à América.

Noutros países existem também perigos similares de surgimento de demagogos que com impunidade consigam descredibilizar as instituições, mentir descaradamente e construir realidades alternativas de base partidária bloqueadoras de qualquer tipo de diálogo na arena pública. Para isso, muitas vezes recorrem a partidos já existentes e, passando uma imagem de outsider, de anti-elites e de anti-partido, movem-se para capturar as organizações partidárias e transformá-las nos seus instrumentos pessoais de conquista do poder. Apesar dos ataques cirúrgicos dirigidos aos média e ao poder judicial na generalidade dos casos, não há sinal que venham gozar do mesmo grau de impunidade que tanto tem intoxicado os apoiantes de Trump. De qualquer forma, há que estar alerta para o fenómeno que até aqui em Cabo Verde já se faz sentir e que certamente vai afectar as eleições autárquicas em particular na Cidade da Praia com possibilidades de derrame sobre as eleições seguintes para a legislatura de 2026.

A possível vitória de Donald Trump ou de Kamala Harris significaria desfechos opostos com impactos profundos.

Uma vitória de Trump colocaria o mundo numa montanha-russa de imprevisibilidade, com consequências difíceis de conter, incentivando movimentos populistas e fascistas noutras democracias e potencialmente intensificando o desengajamento global dos Estados Unidos. Isso poderia aumentar a pressão migratória em direcção à Europa e à América e o exacerbar de sentimentos anti-imigrantes, trazendo o risco de um retrocesso civilizacional onde os ideais de liberdade e democracia cedessem espaço à autocracia como solução aparente num mundo de crises inesperadas, instituições multilaterais frágeis e segurança coletiva precária.

Já uma vitória de Kamala Harris seria vista como um travão à deriva anti-sistémica e um reforço dos valores democráticos, permitindo enfrentar ameaças existenciais como alterações climáticas e abordando tensões geopolíticas e guerras em curso com esperança de se encontrar soluções. Também significaria que, não obstante a forte tendência para a polarização de opinião pública e para uma tribalização da acção política, há esperança que o equilíbrio poderá ser retomado, os compromissos negociados e que o sentido do bem comum se sobreponha ao individualismo extremo, à atomização social e à guetização em identidades cada vez mais diminutas e desconfiadas dos outros. Que renasça a esperança e a solidariedade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1197 de 06 de Novembro de 2024.

segunda-feira, novembro 04, 2024

Para uma boa integração não se deixar apanhar nas armadilhas

 

A trágica morte em Lisboa de um cabo-verdiano, Odair Moniz, num encontro com a polícia foi o rastilho para uma sucessão de acontecimentos violentos incluindo carros partidos, autocarros incendiados e pessoas feridas. Tais acções foram apresentadas como protesto pela actuação policial completamente desproporcional nos bairros da cidade usando meios letais. Seguiram-se outras manifestações que culminaram numa concentração no sábado passado a exigir justiça e políticas públicas dirigidas para retirar bairros da cintura urbana de Lisboa da situação de marginalização em que se encontram.

Como já se tornou habitual nessas circunstâncias, os poderes públicos apelaram à calma e prometeram investigação célere e justiça pronta ao mesmo tempo que se moveram para restaurar a ordem pública. Outros apelos para tranquilidade e para serenamente esperar pela realização da justiça vieram das autoridades cabo-verdianas e de personalidades e organizações comunitárias locais. Já os extremistas, tanto da direita como da esquerda entraram no jogo de costume de uns com frases bombásticas e outros com manifestações exuberantes de indignação e revezando mutuamente nesses papéis procurar levar os ânimos ao rubro.

Nas democracias, em geral, está-se a verificar a polarização progressiva da sociedade com o discurso político a se tornar cada vez mais extremo e com o espaço para a abordagem das questões públicas e do interesse comum, de uma forma mais equilibrada e compromissória, a ficar mais estreito. As comunidades imigrantes são o alvo fácil numa manobra política em que, de um lado, se joga com o receio de perder trabalho para os imigrantes, com o medo da criminalidade que supostamente aumenta devido à imigração e também com uma induzida suspeita de diluição cultural e alteração demográfica devido às crescentes entradas no país. Cola-se ainda a esses temores o ressentimento em relação aos supostos subsídios e benefícios que os imigrantes poderão receber do sistema de segurança social e as vantagens no acesso a estudos e oportunidades devido aos programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI).

De um outro lado, e em geral a partir da extrema esquerda, a manobra em relação aos imigrantes, enquanto minorias sujeitas a várias formas de discriminação, é de os mobilizar num quadro de uma luta mais abrangente contra o sistema político e socio-económico existente. Para isso, o foco vai para questões identitárias e raciais e recorre-se à vitimização sistemática. A experiência eleitoral dos últimos anos nas diferentes democracias tem mostrado que nessa disputa o medo e o ressentimento agitados pela extrema-direita vem ganhando votos e em vários países ou já são governo, ou já estão quase à porta. Curiosamente, o discurso e as tácticas da esquerda mantém-se na mesma linha. Fica a impressão que para certos activistas e sectores de opinião é mais importante agigantar a ameaça da direita radical para demonstrar o falhanço da ordem socio-económica existente do que, com diálogo e compromissos vários, criar a convergência de vontades conducente a uma maior e melhor integração das minorias e dos imigrantes.

E é realmente a integração que se procura quando se toma a decisão de emigrar. O que se pretende realmente é ser parte de uma ordem socio-económica que abre a oportunidade de avanço em termos de rendimento, mas também profissional e até académica. Algo que ele chegou à conclusão que não tem no seu próprio país, ou por má governação ou má gestão económica que não atrai suficiente investimento, não limita efectivamente a informalidade e os custos de contexto e não traz crescimento robusto. Noutros casos, há uma razão extra para emigrar por não estar instituído um Estado de direito democrático e não haver garantias de liberdade e segurança e correr-se o risco de ser vítima de violência do Estado.

É evidente que a última coisa a desejar seria reproduzir no país de destino as condições que se deixou para trás, ou seja, não ter segurança, nem uma economia funcional. Num certo sentido é o que parece acontecer com os excessos na afirmação identitária e o apego a hábitos e formas de estar que minam as possibilidades de tirar mais vantagem do ambiente socio-económico existente, e que, pelo contrário, tendem a provocar conflitos e rejeição da maioria. A ousadia e o querer vencer na vida que animaram o desejo de emigrar são minados pela tentação de vitimização. Tentação essa alimentada por agendas políticas e outras que podem ser legitimas no quadro dinâmico e plural onde surgiram, mas não constituem a motivação central de quem emigra e procura uma ordem institucional inclusiva onde pode participar, sentir-se seguro e beneficiar da riqueza produzida.

Cabo Verde, há mais de um século que tem comunidades emigradas em diferentes continentes. São em geral comunidades bem integradas particularmente nos Estados Unidos e na Europa e para isso deverá ter contribuído um certo sentido de cabo-verdianidade que lhes permitiu sem conflito lidar com outras culturas preservando a sua. A experiência acumulada nessas comunidades deve servir de referência para evitar os excessos actuais da política identitária e das guerras culturais e também para impedir a instrumentalização dos problemas ainda existentes por agendas espúrias que pouco têm a ver com o objectivo de procurar uma vida melhor e ser bem-sucedido no país de emigração. O contínuo reforço da identidade cabo-verdiana, em particular nas novas gerações, poderá ajudar a contornar armadilhas tendo na base uma deficiente compreensão da experiência histórico-cultural de Cabo Verde, que não se consegue reduzir aos modelos aplicáveis noutros sítios, chegando em alguns casos ao ponto de hostilidade.

É um facto que as migrações estão a aumentar em todo o mundo, especialmente o fluxo migratório dirigido para a Europa e os Estados Unidos. Claramente que essa pressão sobre esses países se transformou numa questão política sensível para a qual se tem de encontrar soluções adequadas para poder manter o fluxo. Em Cabo Verde, a emigração ganhou um outro ritmo nos últimos tempos e é fundamental para as pessoas e para o país que tenha as melhores probabilidades de sucesso com boa integração. Quando acontece algo de trágico como é o caso de Odair Moniz a consternação é geral e muito sentida. Relembra a todos os riscos envolvidos na emigração e a importância de solidariamente e em diálogo se fazer representar e participar na procura de soluções para os problemas da comunidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1196 de 30 de Outubro de 2024.

segunda-feira, outubro 28, 2024

Humildade e ousadia, as qualidades de um estadista

 Com a constatação pelo Nobel da Economia Daron Acemoglu de que o “sucesso das sociedades depende da qualidade das instituições” ganha especial importância o respeito pelas normas e o cumprimento dos procedimentos democráticos como forma de as legitimar e de as manter credíveis. Há, de facto, um ethos e uma ética a ser exigidos para que efectivamente se considere estar a trabalhar para o bem comum e para a consecução do interesse público. Em particular dos actores políticos, espera-se que na sua actuação, tanto no processo de conquista do poder, como no cumprimento do mandato enquanto governo ou oposição procurem salvaguardar a ordem constitucional e a confiança dos cidadãos no sistema democrático como pressupostos básicos para um futuro de sucesso.

Infelizmente, vão no sentido contrário as actuais tendências de políticos a querer agir como celebridades, em demonstrações muitas vezes desabridas de narcisismo, e a fazer da política mais um espectáculo para suscitar emoções do que como processo para visionar, decidir e agir. Justifica-se essa opção como exigência dos tempos actuais. Diz-se que a atenção das pessoas é mínima, a atracção pelo que choca e entretém é maior e que se tende a confundir o quebrar das regras, dos costumes e da própria legalidade com demonstrações de autenticidade e de uma certa masculinidade. A verdade é que há quem ganhe eleições indo por esses caminhos e nota-se que cada vez mais partidos e personalidades deixam-se resvalar para esse tipo de mobilização política.

O problema é que tais práticas ao minar a confiança nas instituições limitam a própria eficácia das políticas a serem implementadas no âmbito do mandato recebido nas urnas. O mal-estar socio-económico que acaba por se instalar contribui para a polarização da sociedade que dificulta o diálogo e provoca a ascensão do discurso populista e demagógico. Cria-se com isso um círculo vicioso que pode levar à estagnação ou a crescimento económico insuficiente para erradicar a pobreza e atender as expectativas das pessoas. A directora do FMI, Kristalina Georgieva, num discurso nos encontros de 22 de Outubro das instituições de Bretton Woods chamou a atenção para a tendência expansionista dos orçamentos estatais de vários países motivada por esse tipo de discurso que aumenta a fatia do serviço da dívida no orçamento, retirando espaço fiscal para responder a crises futuras e para investir com vista a mais crescimento económico.

A grande dificuldade de hoje é encontrar partidos e personalidades com coragem e audácia para se recusarem a ir por esse caminho de reduzir a política a espectáculo e a culto pessoal do líder. E é assim porque nem sempre resulta para que quem opta por pôr o foco nas questões do país com visão, estratégia e reformas dirigidas para maior crescimento e emprego. Um exemplo é o que acontece nos Estados Unidos, onde depois dos anos de espectáculo e da personalização da política por Donald Trump, o presidente Biden optou pelo regresso a uma certa normalidade e por políticas inovadoras e ainda assim a sociedade continua altamente polarizada. O país devido às reformas poderá ter ultrapassado com sucesso a situação de policrise e ser considerado “a inveja do mundo”, segundo o último número da revista Economist (19 Out), mas o mal-estar continua e poderá pesar a favor de Trump nas eleições daqui a quinze dias. Não é por acaso que nem todos ousam fazer diferente.

Essa falta de ousadia, porém, não existiu sempre. Em Cabo Verde, nos anos noventa, os ventos da mudança deram ao país uma oportunidade para sair da estagnação económica e crescer com liberdade e segurança. A liderança do então primeiro-ministro dr. Carlos Veiga foi crucial para atingir os dois grandes objectivos de implantar a democracia e construir uma economia de mercado. Tinha recebido um mandato a 13 de Janeiro de 1991 com maioria qualificada de dois terços do eleitorado que foi renovado cinco anos depois nas legislativas com uma percentagem superior de votos. As dificuldades em prosseguir com as reformas políticas e económicas face às resistências na sociedade e tensões no interior do seu partido não o dissuadiram de as levar a bom termo. Perdeu a maioria qualificada do primeiro mandato e recuperou-a nas eleições seguintes.

Ao longo dos dez anos de governação o Dr. Carlos Veiga conseguiu através do diálogo permanente manter, num partido que ainda era um movimento político (apareceu em 1990), uma maioria suficiente para adoptar o país de uma Constituição democrática e liberal. De seguida, pôde seguir com a liberalização da economia e reforma do sistema financeiro e fiscal e ainda avançar com as privatizações num esforço de atracção de investimento directo estrangeiro e construção de uma economia de mercado. Sob a sua liderança o país encontrou solução inovadora para a pesada dívida interna herdada das empresas estatais num Trust Fund que associado ao Acordo Cambial com Portugal, e depois com a União Europeia, serviram de base para as décadas seguintes de inflação baixa e estabilidade monetária e cambial.

Pela descrição feita no Memorando de 14 de Julho de 2023 do Banco Mundial que “o modelo económico de Cabo Verde tem dado sinais de cansaço desde a crise financeira mundial de 2008” e que “a taxa de crescimento anual caiu de uma média de 10,1% na década de 1990 para 7,2% na década de 2000 e para 1,2% na década de 2010”, percebe-se como é que o país ainda parece estar a beneficiar das reformas do anos noventa, mas com efeitos decrescentes. O potencial do crescimento que segundo o BM era de 6% na década de noventa passou para 3,5% depois de 2010 devido à perda de produtividade que por sua vez é atribuída à rigidez estrutural resultante de falta de reformas.

Não obstante os evidentes ganhos das reformas, ou talvez devido às verdadeiras disrupções que puseram o país num outro patamar, Carlos Veiga acabou por ter que enfrentar mais uma cisão no seio do partido maioritário, mas não sem ainda finalizar uma revisão da Constituição em 1999 que ajudou a consolidar o regime democrático. Um ano depois, o seu partido perdia as eleições e uma das razões, segundo o doutor Onésimo Silveira no livro do José Vicente Lopes (2016) “é que o MpD trouxe não só uma ideia de modernidade, como da modernidade das instituições que o povo na sua maioria conservadora não teria aceitado numa situação normal”. Depois de anos de tensões por causa das reformas compreende-se a derrota eleitoral porque segundo ele “ninguém gosta de viver de sobressaltos”. No entrementes os efeitos das reformas dos anos noventa ainda vão se fazendo sentir.

Nas democracias é normal não ser recompensado nas urnas por fazer reformas profundas ou por outras ousadias. Caso clássico é o de Churchill que perdeu as eleições para o partido trabalhista em 1944 apesar de ter liderado o Reino Unido durante a II Guerra Mundial. A dimensão dos verdadeiros estadistas vê-se no facto de não terem deixado de fazer o que tem que ser feito por receio de derrota nas eleições. O papel do partido e dos seus dirigentes não deve se resumir à conquista e à manutenção do poder a todo o custo. Deve fundamentalmente ser o de servir as pessoas e o país com a humildade e o desprendimento de quem detém um mandato popular e de estar ciente da realidade complexa dos problemas para cuja resolução se exige a participação de todos e se assume que ninguém é indispensável.

Por ocasião dos 75 anos do Dr. Carlos Veiga, celebrados no dia 21 de Outubro, o Expresso das Ilhas presta-lhe uma merecida homenagem pela sua liderança na construção da Liberdade e democracia em Cabo Verde e pelo exemplo de estadista sereno e dialogante, e forjador de vontades que tornou possível construir o quadro jurídico e institucional que conduziu o país à modernidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1195 de 23 de Outubro de 2024.

segunda-feira, outubro 21, 2024

Sucesso das sociedades depende da qualidade das instituições

 

O prémio Nobel da Economia foi ganho este ano por um trio de economistas Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson que se distinguiram pela ideia de que “o sucesso de uma sociedade não é determinado pelos seus recursos naturais, mas sim principalmente pela qualidade das suas instituições”. O livro “Porque falham as Nações” de Acemoglu e Robinson publicado em 2012 difundiu pelo mundo inteiro a importância de um país ter instituições inclusivas em vez de instituições extractivas para criar riqueza, travar a luta contra a desigualdade e garantir um ambiente propício à inovação, essencial para uma prosperidade continuada. Bem claro também ficou no livro a centralidade da democracia na criação e sustentabilidade dessas instituições.

O prémio a esses autores veio em boa hora. Nota-se actualmente nas democracias uma tendência para se normalizar os ataques às instituições num quadro de crescente polarização política. O extremismo de posições tem levado a uma espécie de tribalização da sociedade que interfere com o reconhecimento e aceitação das instituições, diminuindo a sua eficácia e deixando-as expostas a ataques. Isto está a acontecer nas democracias mais maduras e nas mais recentes. Se nos países mais prósperos uma economia mais sólida e uma sociedade civil mais consolidada emprestam resiliência às instituições face a esses ataques, já nos países mais frágeis é mais complicado. A persistência em certos sectores de instituições extractivas do tipo rentista conjuntamente com esquemas de reprodução da dependência das pessoas face ao Estado alimenta a corrupção e promove a má governação abrindo o caminho a populismos demagógicos que vão enfraquecer ainda mais as instituições.

Em Cabo Verde, os efeitos do desgaste das instituições já se fazem sentir. As crises sucessivas culminando na pandemia da Covid-19 quebraram o ímpeto de algum crescimento que se vinha verificando nos últimos anos da década passada. A recuperação pós-pandémica mostrou as vulnerabilidades do país, designadamente a sua dependência do turismo e também os seus limites quando as projecções de crescimento económico para os próximos anos continuam aquém dos 7%. Tudo isso acaba por ter impacto nas expectativas quanto ao futuro, não obstante a promessa do VPM e Ministro de Finanças em duplicar o potencial de crescimento da economia dos actuais 5% para dois dígitos, e por fomentar ainda mais a polarização social e política, reflectindo-se nas instituições.

Não é de estranhar que nestas circunstâncias o papel do Estado se agigante para colmatar insuficiências de investimento e emprego em vários sectores e para estender a protecção social aos mais vulneráveis. O Orçamento de Estado (OE) para 2025 já ascende a 98 mil milhões de escudos, quase one billion dollars, e prevê, nas palavras do VPM, o maior Estado social de sempre. A crescente proeminência do Estado torna ainda mais renhida e feroz a luta pelo seu controlo. A proximidade de um novo ciclo de eleições imprime a essa luta uma outra urgência que acaba por resultar na tentação de atacar a integridade de certas instituições para atingir o governo e o partido que o sustenta. É o que se passa actualmente e de forma mais pronunciada com os ataques ao Tribunal de Contas.

Já não bastam os ataques populistas dirigidos às instituições, agora nota-se que são os próprios actores políticos e titulares de cargos públicos que procuram diminuir e até deslegitimar os órgãos públicos. Não se faz suficiente uso dos mecanismos institucionais de fiscalização como são nomeadamente as comissões especializadas e as audições no parlamento e prefere-se ficar pelo espectáculo das denúncias públicas, ora procurando judicializar a política, ora politizando a justiça. Se envolver as câmaras municipais nas lutas político-partidárias pelo controlo da máquina pública era uma prática estabelecida, a novidade é o conflito aberto entre órgãos de soberania com acusações de deslealdade institucional, colagem do maior partido da oposição ao presidente da república e tentativas de deslegitimação dos actos dos tribunais.

Num país com as fragilidades de Cabo Verde não é de deixar arrastar por muito tempo o desgaste das instituições. Como diz Acemoglu a “boa governação é crucial para construir confiança entre os cidadãos e o Estado e para criar um ambiente favorável ao desenvolvimento económico”. Acrescenta ainda que incentivos para conseguir uma educação, para poupar, para pagar impostos, para investir e inovar dependem muito da confiança que se tem nas instituições. Daí o combate à corrupção, a preocupação com a gestão transparente e escrupulosa dos recursos públicos, o foco na qualidade das despesas públicas, o dimensionamento adequado das estruturas estatais e a sobriedade e o rigor, evitando exibicionismo e extravagância, que devem caracterizar a postura dos governantes.

Também essencial para essa confiança dos cidadãos e contribuintes é que os mecanismos de (checks and balances) pesos e contrapesos institucionais funcionem em pleno. Quando se tem orçamento do estado a crescer 14% de um ano para outro e que está a ser financiado em mais de 60% pelos impostos é de maior importância que se vejam todos os sinais que a fiscalização política do parlamento está a ser efectiva com menos preocupação com os holofotes no plenário e mais trabalho nas comissões especializadas. Da mesma forma, faz todo o sentido que uma instituição como o Conselho das Finanças Públicas (CFP), através de uma apreciação autónoma e independente acerca da coerência, execução e sustentabilidade da política orçamental, exerça a sua “competência de avaliar os cenários macroeconómicos adotados pelo Governo e a consistência das previsões orçamentais com estes cenários”.

Tudo se complica quando, o CFP, no seu parecer sobre o OE 2025, deixa saber que, apesar dos esforços, não foram realizadas reuniões técnicas entre o CFP e o MFFE (ministério das finanças e fomento empresarial) visando esclarecer as dúvidas relativamente às metodologias e pressupostos utilizados na elaboração das previsões apresentadas. De facto, particularmente em momentos difíceis não se pode deixar dúvidas quanto ao grau de colaboração institucional existente e ao rigor no cumprimento dos procedimentos. É preciso dar confiança aos cidadãos que as instituições do país em nenhum nível são extractivas, ou seja, nas palavras de Acemoglu, projetadas para extrair rendas e riquezas de um subconjunto da sociedade para beneficiar outro subconjunto. Impõe-se que que se ponha um travão ao desgaste das instituições e se faça um esforço para as reforçar para serem os baluartes da democracia e do desenvolvimento do país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1194 de 16 de Outubro de 2024.

segunda-feira, outubro 14, 2024

Mostrar serenidade e razoabilidade na condução dos assuntos públicos

 

O ambiente político em Cabo Verde não é o melhor. As razões serão provavelmente a proximidade das eleições autárquicas, as crescentes tensões entre órgãos de soberania e as reivindicações das classes profissionais ligadas ao Estado. Hoje são os professores, amanhã poderão ser os profissionais de saúde e depois de amanhã não se sabe de que sectores da administração pública virão os protestos. No processo político eleitoral e também de agitação sindical assim criado nota-se cada vez mais o extremar de posições, a falta de disponibilidade para o compromisso e o enfraquecimento do engajamento esperado de políticos, de titulares de cargos públicos e das classes profissionais com o interesse colectivo. A ênfase é colocada em protagonismos pessoais, no discurso emocional e em ganhos rápidos na política e na carreira em detrimento da lealdade à ordem constitucional, da ética e da procura do bem público.

O resultado é que cada vez mais reina menos razoabilidade e serenidade no tratamento das coisas públicas. Acontecimentos recentes apontam para o pior. Ilustrativos disso são os casos de inspecção e de auditoria que identificam irregularidades e ilegalidades nos serviços da presidência da república. Publicados os relatórios, de imediato foi lançada a suspeição de práticas similares em toda administração do Estado. Seguiram-se ataques político-partidários dirigidos em especial ao Tribunal de Contas, questionando a sua competência e legitimidade.

Até da presidência da república, a propósito de um pedido de nulidade do relatório da auditoria do TdC, se argumentou que o mandato de cinco anos dos juízes não pode ser estendido até à tomada de posse do novo titular. Provavelmente o mesmo deveria aplicar-se ao Tribunal Constitucional que tem mandato de nove anos a terminar a 15 do corrente mês. Interessante que um recurso similar foi dirigido ao tribunal constitucional em Portugal a pedir a nulidade de uma decisão por um dos juízes ter tido seu mandato terminado um ano antes. O recurso foi recusado em Julho de 2023 pelo colectivo dos juízes com uma única voz discordante.

Também revelador é o súbito e estridente questionamento do sistema de saúde na sequência dos casos de dengue e de outros chocantes que vieram a público na semana passada de gestantes que perderam a vida devido a eventuais falhas ou negligência dos serviços.

Percebe-se que, com a diminuição de confiança das pessoas nas instituições, fica fácil fazer um discurso político que acentue os receios das pessoas, aprofunde a desconfiança e espevite os ressentimentos. Em todas as democracias, neste momento, há quem faça esse papel. Não se espera é que seja feito pelos principais actores políticos e pelos titulares de cargos públicos, considerando a responsabilidade que lhes é exigida de garantir a estabilidade e a credibilidade do sistema político. Em Cabo Verde, também o abaixamento do nível do discurso político acaba por extremar posições, por tornar extremamente difícil negociar e firmar acordos, e inevitavelmente, por impossibilitar qualquer discussão do futuro que vá além das disputas para obter ganhos rápidos.

Paradigmático é o que se passa com os professores e as suas lutas sindicais com o governo. Vêm do ano lectivo anterior, com os inevitáveis prejuízos sobre o processo educativo e sobre os alunos, e persistem no novo ano sem perspectiva de chegar a acordo. Rondas sucessivas de negociações não resultaram em acordos e muito dificilmente poderiam ressoltar com a conversa entre as partes feita na comunicação social pontuada por ameaças de paralisação de aulas e sempre tentada a cavalgar agendas políticas, particularmente, quando eleições se aproximam. Ao parecer aceitar o pedido dos sindicatos e vetar o Plano de Carreiras, Funções e Remunerações, o PR introduziu-se nas negociações entre o governo e os sindicatos, alterando as regras do jogo e eventualmente tornando um desfecho mais árduo. O diálogo ficou mais difícil e na prática sequestrado por agendas político-partidárias como se vai ter oportunidade de presenciar no parlamento a partir de hoje. Entretanto, os problemas dos professores e o objectivo central de se ter uma educação de qualidade ficarão efectivamente adiados.

Paradoxalmente, nota-se que o facto de não terem conseguido os resultados desejados ou prometidos com o extremar de posições e protagonismos deslocados e intempestivos não parece dissuadir os sindicatos de continuar com essa postura. Agrava-se a situação, mas insiste-se em fazer o mesmo. Algo similar contribui para fazer crescer a extrema-direita nas democracias contemporâneas sem que os supostos opositores revejam as suas posições, aparentemente esquecidos que os extremos se reforçam mutuamente. Evidentemente que o grande sacrificado é o centro que se define pela liberdade, pelo compromisso e pelo pluralismo que viabiliza a busca pela verdade e torna possível um futuro comum construído na base de soluções democraticamente encontradas.

Se a dinâmica dos extremos partidários e dos populismos demagógicos constituem um enorme perigo para as democracias, não é menor o perigo que pode resultar de um conflito aberto entre os órgãos de soberania. Tensões entre órgãos de soberania são normais e salutares na medida em que contribuem para o equilíbrio do sistema político. Dificuldades surgem quando não se respeita o princípio da separação dos poderes e tornam-se mais graves se se instalar o sentimento de impunidade. O caso do Donald Trump nos Estados Unidos é paradigmático a esse respeito. Escapou de dois processos de destituição (impeachment), sendo o segundo na sequência de um acto considerado de insurreição para impedir a transferência de poder para o presidente eleito. Com sentido de impunidade, atropelou normas estabelecidas, impôs-se ao Congresso e mudou a composição do Supremo Tribunal a favor dos conservadores. O resultado é que a democracia e o Estado de direito na América estão hoje em perigo, particularmente, se ele for (re)eleito em Novembro próximo.

Em Cabo Verde não há fiscalização política do presidente nem processo de destituição. Em caso de falhas graves, o sistema parece contar com o alto grau de adesão do PR aos princípios e valores da Constituição e à ética republicana para encontrar a melhor saída. O pior que pode acontecer é de, na ausência de amarras políticas legais e éticas, se instalar um sentimento de impunidade que ameace tornar o sistema caótico. Como se vê da experiência de outros países, não é um espectáculo bonito.

Um papel fundamental é esperado do governo e dos governantes em manter a confiança necessária das pessoas e da sociedade nas instituições para que o jogo de equilíbrio dos poderes garanta a estabilidade do todo. Hoje percebe-se que as incertezas em relação ao futuro, por um lado, incentivam à emigração e, por outro, tendem a lançar as pessoas numa corrida para se acomodarem junto ao Estado. A imagem de rigor, de sobriedade na gestão dos recursos públicos é essencial para se manter o contrato social que faz as pessoas se sentirem incluídas e parte da colectividade nacional. A erosão que se vem verificando na confiança é um sério aviso quanto à actual qualidade e eficácia das políticas públicas. Há que mudar a atitude e mostrar serenidade e razoabilidade na condução dos assuntos públicos para que todos os sobressaltos do caminho sejam ultrapassados e os desafios enfrentados com sucesso. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1193 de 9 de Outubro de 2024.