sexta-feira, outubro 23, 2015

Governar com boa-fé



Faz impressão observar semana após semana a movimentação pelas ilhas do primeiro-ministro José Maria Neves, acompanhado de dois, três ou mais ministros a mostrar obras, a inaugurar obras e a prometer obras. Santo Antão foi a escolhida na semana passada. Coincidência conveniente, a ilha foi também palco de uma sessão da abertura do novo ano político do partido no governo. Considerando a intensidade dos eventos programados, imagine-se os gastos em tempo, meios e recursos do Estado para criar o ambiente de euforia e de festa. Pena que depois dessas passagens fulgurantes ficam as simples constatações dos agricultores quando lamentam:“Com toda a água que está a ser mobilizada em Santo Antão, com toda esta produção agrícola, o que é que vamos fazer com os produtos, se não temos mercado”. É que a ilha, depois de milhões de contos gastos, continua a perder população, a aumentar os níveis de pobreza e a ser incapaz de criar uma base sólida de crescimento.  
Governos enamoram-se das obras mesmo quando não dão os resultados pretendidos ou não produzem o prometido efeito de arrastamento na economia. É difícil resistir aos seus encantos. A obra parece sonho realizado, é sólida e não poucas vezes grandiosa. Só que  frequentemente fica aquém do que com entusiamo se disse do seu potencial no dia da inauguração. Despois de seiscentos milhões de contos de investimento em obras e infraestruturas nos últimos quinze anos, Cabo Verde não tem muito a mostrar quanto ao crescimento económico, diversificação da economia e criação de emprego. Nos últimos anos a economia nacional tem ficado por níveis de crescimento médios abaixo dos 2 % e não há muitas razões para acreditar que será muito melhor no futuro, tendo em conta o seu nível de endividamento público e a falta de competitividade externa da sua economia. Para conter o défice orçamental e travar o crescimento da dívida pública vem-se reduzindo drasticamente os investimentos públicos.
Com o investimento público a cair e o investimento privado inibido, entre outras razões, pela percepção de riscos macrofinanceiros, dificilmente a economia poderá trilhar o caminho rumo à prosperidade que o PM insiste em prometer para 2030. O problema é que, mesmo com os resultados tão longe das expectativas criadas, o discurso político não muda, a actuação do governo continua a seguir o seu caminho imperturbável e as promessas para o futuro assemelham-se demasiado com as que já tinham sido feitas no passado. É como se ninguém tivesse aprendido nada com as experiências anteriores ou retirado qualquer ilação da metodologia seguida em fazer as opções, na definição de prioridades e no encadeamento de medidas e políticas que aumentariam a probabilidade de sucesso e de satisfação das expectativas criadas.
A história comparada de várias economias mostra que não há uma fórmula certa e única para se criar a riqueza das nações. De entre os vários factores que concorrem para o sucesso na consecução desse objectivo destacam-se a qualidade das instituições e das infraestruturas. Mas enquanto governar para criar o ambiente institucional adequado não é tarefa muito glamorosa e está sempre sujeita à resistência de interesses escondidos, já governar com olhos postos em obras  pode constituir uma tentação fatal. A diferença de percursos, por exemplo, de Portugal e Irlanda antes e depois da crise é revelador das consequências da governação num e noutro sentido. Menos dotada de infraestruturas mas com instituições de maior nível, a Irlanda soube crescer depressa antes da crise e rapidamente reiniciou a retoma depois dela. Portugal com infraestruturas de última geração não viveu a dinâmica que se aproximasse da do Tigre Celta mesmo no tempo das vacas gordas e ainda está por recuperar da crise. Em Cabo Verde a aposta no betão, além de não ter produzido um efeito de arrastamento na economia que se traduzisse em crescimento económico, deixou de rastos o sector privado nacional, em particular o sector da construção civil. A atenção nas obras não deixou que se tomassem as medidas certas e tempestivas para melhorar o ambiente de negócios e a competitividade de Cabo Verde.
Continuar a prometer obras e infraestruturas da mesma forma como se fez no passado recente tem agora um problema adicional. Cabo Verde provavelmente já ultrapassou o limite da dívida e não pode endividar-se mais. As promessas de mais obras dispendiosas nestas condições não são totalmente honestas. Insistir nessa forma de fazer política além de criar mais frustração leva as pessoas a se conformarem com o que tomam como declínio inevitável da sua cidade ou da sua ilha. Já se sente isto em vários pontos do país. É uma realidade que gera muito ressentimento, abre caminho para políticas de vitimização e não deixa que as pessoas vejam a causa real dos seus problemas e se prontifiquem para agir em consequência. 
A próxima campanha eleitoral que vai ter como pano de fundo um contexto nacional e internacional difícil devia ser aproveitada para se resgatar a prática da governação honesta. Propaganda e actos de ilusionismo não devem ser a principal interface da relação dos governantes com os cidadãos e com a sociedade em geral.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 21 de Outubro de 2015

domingo, outubro 18, 2015

Humberto Cardoso: “É imperativo que o PAICV perca as eleições”

A ida do PAICV para a oposição talvez seja uma chance de o país se modernizar e abandonar definitivamente o lastro dos anos de independência. A análise é de Humberto Cardoso, para quem Cabo Verde está numa encruzilhada e o futuro do país depende muito do desfecho das próximas eleições. Por isso, diz o Deputado, é imperativo que o PAICV perca as eleições e o MpD tenha a possibilidade de colocar outra vez Cabo Verde no caminho do crescimento económico e do desenvolvimento sustentado capaz de debelar o desemprego e a pobreza e trazer esperança renovada para todos. A relação da sociedade cabo-verdiana com os partidos políticos, crise de representação, o fenómeno Mac# 114 e o significado das eleições de 2016 são outros tópicos desta entrevista.


                                                                                                                            André Amaral

Expresso das Ilhas – Como perspectiva  o novo ano político?
Humberto Cardoso – O ano político que se inicia promete ser um ano político especial. Vai ser um ano de todas as eleições: legislativas, autárquicas e presidenciais. A possibilidade de alternância em todos os órgãos de poder político vai mobilizar a atenção e muita energia de toda a sociedade. As legislativas, em particular porque decidem quem governa, serão bastante disputadas. A situação de Cabo Verde preocupa toda a gente. Todos querem saber como vamos sair da situação de quase estagnação económica, do muito desemprego existente e da crescente desigualdade social. Sem falar da pesada dívida pública que diminui consideravelmente a possibilidade de o Estado imprimir algum dinamismo através do investimento público.  Os partidos políticos, com toda a sua máquina de campanha, vão estar bastante activos com os seus projectos de governo a construir vontade política favorável e a mobilizar votos. Teremos ocasiões de alguma tensão e às vezes de maior crispação política do que o habitual, mas isso é próprio das democracias. Os   momentos eleitorais são acompanhados de uma forte polarização da sociedade. Depois volta-se ao normal da legislatura em que nos  próximos cinco anos de mandato há um governo e uma oposição democrática.

Como vê a relação da sociedade cabo-verdiana com os partidos políticos particularmente à luz dos acontecimentos do primeiro semestre deste ano em que muita coisa foi dita contra os políticos?
O MpD e o PAICV tiveram origem em momentos marcantes da história de Cabo Verde. Por causa disso têm raízes profundas, bases alargadas e mobilizam paixões. O que fundamentalmente os opõe são as suas diferentes narrativas que têm da história de Cabo Verde. Para o PAICV, o valor supremo é a independência. Os governos apresentam-se como paternalistas e sentem-se legitimados pelo que da ajuda internacional captam e distribuem privilegiando quem os seguiu, o que nos primeiros quinze anos pomposamente chamaram reconstrução nacional ou construção do Estado e nos últimos quinze anos chamam agenda de transformação. Curioso como no fim desses ciclos de quinze anos deixam o país numa, de facto, estagnação económica. Para o MpD, pelo contrário,  a independência só faz sentido com a liberdade e a democracia. De outro modo só existe opressão, sonhos não realizados e prosperidade não conseguida. Os anos 90 foram de crescimento rápido porque soltamos a economia das grilhetas do estatismo retrógrado, valorizamos a iniciativa privada e restauramos confiança na actividade económica com a afirmação do direito de propriedade, o estabelecimento do Estado de direito e a independência dos tribunais entre outras medidas. O quadro institucional, produto das reformas económicas, deixado pelo MpD após a saída do poder em 2001 ainda permitiu que alguma bonança vinda do boom internacional, que terminou em 2008, bafejasse Cabo Verde durante três anos. Depois foi a recessão de 2009 e o crescimento anémico, não obstante os investimentos feitos com dinheiro conseguido de empréstimos que hoje colocam a dívida pública acima de 114% do PIB nacional. Como se pode ver claramente, são duas narrativas dificilmente reconciliáveis. Sendo eles os dois grandes partidos, e não havendo consenso sobre aspectos de fundo, surgem inevitavelmente crispações que acabam por afectar todo o ambiente político. Por exemplo, uma das narrativas requer que o povo seja eternamente grato e se conforme com o que vai tendo. Não assume os maus resultados e procura fazer todos responsáveis pelo que vai mal. Outra narrativa diz que a prosperidade sustentável é aquela que deriva da dinâmica pessoal, empresarial e nacional e não de ajudas ou dívida. E que a responsabilidade pela condução das políticas do Estado é obviamente do governo que tem a obrigação de prestar contas e responder pelas suas políticas. Uma das causas das dificuldades da sociedade na relação com os partidos políticos tem a ver com a sistemática fuga à responsabilidade por quem de direito. A culpa tende morrer solteira. Na confusão que daí resulta, as pessoas não vêem eficácia por exemplo na acção dos deputados em obrigar o governo a cumprir e acabam por perder respeito pelo Parlamento e a ver só interesses mesquinhos nos políticos. O sentimento geral passa então a ser de desamparo e de medo. Frustração e medo em relação a quem manda e ansiedade face ao futuro incerto. No dia-a-dia evitam falar do governo e preferem falar dos “políticos”. Quando instados falam dos deputados que não têm poder executivo e dificilmente os pode dificultar a vida.

Pode-se falar então de crise de representação?
De facto há um sentimento de que não estão a ser representados. Mas, como disse antes, isso tem muito a ver com o facto de o governo fugir às responsabilidades e quando forçados pela oposição a explicar-se, cria-se uma dessas cenas no Parlamento que depois deixa toda a gente maldisposta. A aparente impotência do Parlamento confunde as pessoas. Põem a culpa nos deputados porque é mais difícil ver que na maior parte das vezes é o eixo do governo e a sua maioria parlamentar que criam problemas no funcionamento da Assembleia Nacional. É só ver quem ganha com um Parlamento paralisado e descredibilizado para adivinhar quem tem interesse em usar tácticas que o possam deixar mal. Ou alimentar estereótipos contra deputados como é o caso do Primeiro-ministro que esteve a insinuar que não se trabalha no Parlamento. Por isso, a crise de representação de que se pode falar em Cabo Verde não é a mesma que, por exemplo, se observa nas democracias europeias. Aí o cansaço tem mais a ver com a crescente incapacidade dos órgãos nacionais de soberania em fazerem-se ouvir no quadro da União Europeia contrapondo aos interesses de um ou mais países poderosos ou então ao poder do mercado, em particular, do mercado financeiro. No caso de Cabo Verde a questão de fundo é que o governo do PAICV acha que não tem que assumir responsabilidades e prestar contas a ninguém. Quando forçado não se abstém de fragilizar as instituições para atingir os seus fins.

Como explica então o fenómeno MAC#114 e as muitas discussões sobre o Parlamento, o papel dos deputados e os círculos uninominais?
A questão dos Estatutos dos Titulares de Cargos Políticos tocou num nervo sensível. Mexer nos salários de políticos encontra sempre resistências. Não há, de facto, nenhum momento óptimo para fazer isso. Podia ter sido em 2006 mas foi chumbado pelo MpD. Neste ano o Estatuto foi discutido no âmbito de um pacote de medidas que exigiam maiorias qualificadas de dois terços. Foi um processo político longo. A questão salarial só apareceu nas vésperas da discussão e trazida pelo Primeiro-ministro. Os líderes parlamentares aceitaram introduzir mais um artigo sobre o estatuto remuneratório durante a discussão do projecto de lei. O governo não disse uma palavra ao longo de todo o debate. As manifestações que se seguiram após a aprovação tinham à sua frente “destacados militantes e dirigentes” do PAICV segundo o próprio Primeiro-ministro em declarações à radio nacional. Tudo indica que a recém-eleita presidente do PAICV Janira Almada quis afirmar-se, cavalgando uma onda de populismo dirigida fundamentalmente contra o Parlamento. É interessante notar que na sequência da entrevista do PM a dizer que o governo concordava com o ajustamento salarial não houve mais manifestações. Para alguns observadores provavelmente entusiasmados com o Podemos e o Syriza grego já estavam a pensar em novos partidos. Basicamente tudo isso foi esquecido logo a seguir ao 1º de Maio. A UNTCS junto com o MAC#114 tentou organizar manifestações contra o desemprego e foi um fiasco completo. A mensagem foi passada. Pode-se até fazer manifestações contra o Parlamento mas não contra o governo. A agitação populista teve os seus propósitos e seus instigadores. Enfraqueceu-se o Parlamento dando alento a todos que aproveitam todas as oportunidades para se queixarem das insuficiências da democracia representativa que sintomaticamente chamam de democracia “burguesa”. Na esteira disso a questão da representação no Parlamento ganhou um outro fervor e muito foram os fóruns onde se discutiram círculos uninominais, perfil dos deputados nas listas plurinominais, a introdução de primárias e até o uso de sondagens para selecção de candidatos. Enquanto a atenção crítica de todos fixava-se no Parlamento o PM e os ministros envolviam-se numa onde de inaugurações e outros eventos em todas as ilhas num frenesim que só pode compreender-se de uma campanha eleitoral antes de tempo. A toda essa actividade ainda veio juntar-se as comemorações do 40º aniversário que se prolongaram meses seguidos com deslocações ministeriais às comunidades emigradas num tom que só se compreende se for campanha eleitoral.

Quer dizer que a campanha há muito que começou? E com isso a velha questão do uso dos meios do Estado?
Veja, a campanha para as eleições de 2016 começou bem cedo com as eleições internas no PAICV. Eleições em que os candidatos eram duas ministras e o líder parlamentar. A tentação de utilização das respectivas posições no aparelho do Estado para chegar aos militantes era quase inevitável. Ganhou a ministra Janira Almada mas o líder parlamentar Felisberto Vieira denunciou situações em que se usou bolsas básicas, verguinhas, bolsas de estudo e outras benesses para a compra de votos. Noutras situações designadamente nas eleições presidências de 2012 que dividiram as hostes do PAICV denúncias do género tinham sido feitas e que na época corroboram as também feitas pelo partido na oposição. A derrota de Felisberto Vieira, que tinha contraposto essas práticas aos valores de Amilcar Cabral, sugere que cada vez mais estão a ser assimiladas pelo partido no governo. As recentes denúncias à volta do Fundo do Ambiente e de como são utilizados bens públicos para financiar organizações dirigidos por activistas locais do partido, confirmam precisamente isso. Não podia ser de outro modo. A propaganda comanda o essencial da relação do governo com a população. Toda a relação do Estado com os cidadãos é susceptível de ser transformada numa acção de propaganda. Focam-se as lentes da televisão vezes sem conta sobre um idoso que recebe um cartão de pensionista, ou uma criança que recebe materiais escolares, uma família que ocupa uma habitação social ou uma mãe que recebe uma cesta básica mas sempre na presença ministros e sem nenhum problema de consciência ou respeito pela dignidade das pessoas. Estranho que para este estado de coisas não haja indignação geral. Até parece que todos acham que é natural que assim se faça para condicionar politicamente as pessoas e ganhar votos. Se assim é, quer dizer que o fenómeno é mais profundo do que deixam antever as denúncias feitas. Talvez mais ao encontro ao que a sondagem do Afrobarómetro indicou. 

Disse atrás que a campanha já começou. Desde quando?
Repare que desde da eleição da Dra. Janira Almada como líder do partido no governo que se vive uma situação peculiar em Cabo Verde. O líder de partido José Maria Neves que tinha sido, entre aspas, eleito em 2011 para o cargo de Primeiro-ministro foi substituído no partido mas continua como PM. Actualmente goza de manifestações avulsas de confiança da actual líder do partido e pelo líder da maioria parlamentar. Não se sabe se governa pelo programa de governo aprovado no parlamento em 2011 ou se segue a plataforma que elegeu a nova líder do partido que sustenta o seu governo. Indefinições nesta matéria acumulam-se. Por um lado, há tensões diversas e lutas por protagonismo entre elementos do sistema partido, governo e maioria parlamentar e por outro aparecem sintomas estranhos do género: o Primeiro-ministro já se permitir distanciar dos resultados da sua governação criticando por exemplo a partidarização da administração pública que dirigiu durante quinze anos. Há dias envolveu-se numa polémica nas redes sociais porque clamava pela desestatização das mentes quando se sabe o quanto o Estado tem feito sob a sua batuta para manter todos com rédea curta centralizando, controlando tudo, aprofundando a dependência das pessoas através do assistencialismo e incessantemente passando a sua narrativa de semideus na sua gestão de impossibilidades. Agora até se põe na posição suprapartidária de recomendar aos outros órgãos de soberania contenção neste período pré-eleitoral. Contenção do PM é que não se vê. Em campanha todos os dias no país e em largas estadias no estrangeiro a apresentar livro e até em cerimónias de supostas condecorações que quanto se sabe é uma competência do presidente da república. Quanto a governar até parece que temos um governo de gestão. A ministra das Finanças quase ausente durante meses seguidos absorvida pela sua candidatura ao BAD parece que nem agora regressou completamente. Nem os dados do segundo trimestre do INE a indicar crescimento do PIB em 0,1 % parece fazer saltar o governo para acção. É como se o que realmente interessa é ganhar as eleições em 2016, conseguir mais cinco anos de mandato, depois se verá. Por isso o que importa fazer agora é campanha sem parar e manter o país sob um manto de ilusões. Quando acordar provavelmente será tarde demais.

O que pode significar estas eleições para Cabo Verde?
Cabo Verde na minha opinião está numa encruzilhada. A política económica do governo falhou claramente. Levou praticamente à estagnação da economia com crescimento do PIB de 0,1 % no segundo trimestre deste ano e deixou uma pesada dívida pública de mais 114% do PIB. A competitividade externa do país é fraca ficando no 114º entre 140 países. Dificilmente poderá atrair investimento directo estrangeiro, criar uma capacidade exportadora e tornar-se base atractiva para a prestação de serviços nesta região. Mesmo investimentos públicos para estimular a economia são agora mais difíceis com ascensão a país de rendimento médio e com o peso excessivo da dívida. No plano externo, as dificuldades do principal parceiro, a União Europeia, mantêm-se com a instabilidade do euro e podem agravar-se com as migrações massivas e a agressividade russa na Ucrânia e agora na Síria. No contexto internacional as coisas não vão  bem. O FMI na semana passada fez uma revisão em baixa das previsões do crescimento da economia global. Por mais estas razões claramente que não se pode continuar a pensar na ajuda internacional para manter o país.  A verdade é que da forma como a comunicação do governo é feita todos os dias dificilmente as pessoas não vão deixar de pensar que nós sendo pequenos qualquer coisa vinda dos mais ricos vai-nos ajudar. Ou então que essa preocupação com a dívida pública é conversa de campanha porque no futuro haverá sempre quem nos perdoe grande parte do que devemos. Ou ainda que o que se vê acontecer em países como a Grécia e Portugal, Espanha e Irlanda que foram forçados a grandes ajustamentos nunca se verificará aqui.  Mantem-se o país no ilusionismo quando o mundo é cada vez menos generoso e menos complacente com os que se perdem em fantasias. Fala-se por exemplo em agenda de transformação e resultados não se vêem para além do que se comprou literalmente com dinheiro emprestado. A capacidade endógena de criar riqueza a partir desses investimentos tem sido demasiado diminuta. O Banco Central no seu relatório anual chegou a constatar que mesmo que a União Europeia ganhasse mais dinâmica não era certo que Cabo Verde conseguiria ir a reboque no ritmo certo. As reformas feitas não põem o país na posição de aproveitar completamente as oportunidades criadas pela dinâmica dos outros. Não há indicador de maior fracasso do que esse. Sair deste caminho e destas políticas que ameaçam encurralar o país é o que se tem que fazer nessas eleições. Por isso é imperativo que o PAICV perca as eleições e o MpD tenha a possibilidade de colocar outra vez Cabo Verde no caminho do crescimento económico e do desenvolvimento sustentado capaz de debelar o desemprego e a pobreza e trazer esperança renovada para todos.

O significam estas eleições para o MpD e o PAICV?
Para o MpD ganhar as eleições significará antes de mais dar ao país uma alternativa a todas estas políticas que já provaram não dar os resultados desejados em vários sectores como por exemplo na economia, no emprego, na actividade empresarial, na segurança e no ensino de qualidade que o país precisa. São 15 anos do PAICV que analisados a fundo se vê que para além da cosmética e das exigências do mundo de hoje mantiveram os mesmos instintos de controlo, de centralização e de privatização do Estado para uso partidário que tiveram no passado. Da mesma forma que, mesmo fazendo conversa contrária, é evidente a mesma hostilidade em relação ao sector privado nacional, à iniciativa individual e a qualquer tentativa de afirmação de uma sociedade civil autónoma. O conformismo e frustração que se sente no dia-a-dia resultam desses anos em que promessas foram muitas, obras são apresentadas como solução para os problemas e muita esperança é posta em mandar os filhos para escola e para universidade e depois muito pouco, demasiado pouco acontece. Para o PAICV ir para a oposição talvez seja uma oportunidade de se modernizar e abandonar definitivamente o lastro dos anos de independência que não o deixa estar completamente em paz com a democracia  e a economia de mercado e ser de facto um player completo e leal no Cabo Verde moderno que se começou a construir nos anos 90. Se não houver alternância nas eleições de 2016 o perigo de o PAICV se tornar um partido hegemónico não é de desprezar. Olhando para casos de outros países africanos em que os partidos que se reclamam de terem sido os libertadores mantêm uma posição hegemónica no sistema político. As consequências poderão ser terríveis para o país. Por isso é imperativo mudar para que se tome um outro rumo e o sistema político tenha o equilíbrio que é fundamental para que todas as virtudes da democracia e do pluralismo se manifestem na realização do bem comum de todos os cabo-verdianos. Para o MpD perder as eleições seria um golpe duro mas acredito que o partido tem capacidade de resiliência suficiente para efectivamente assumir o lugar que lhe couber e evitar que o sistema político se desequilibre. Os seus valores de referência são os que universalmente são aceites, mesmo pelos que os renegam na prática. A orientação sócio-económica do seu projecto de país está em linha com o que em todos os continentes tem garantido prosperidade sustentada. Não há pois que temer pelo futuro. Tem de se ir à luta convicto do extraordinário papel já feito nos anos 90 para trazer Cabo Verde para a modernidade de um país livre, democrático e capaz de andar a passos largos e de ainda 15 anos depois contribuir decisivamente para o colocar nos caminho da prosperidade para todos.

sexta-feira, outubro 16, 2015

Boa governação não rima com ilusionismo



O Primeiro Ministro José Maria Neves na segunda-feira passada declarou total confiança no ministro do Ambiente, Habitação e Ordenamento do Território, Antero Veiga. O PM ausente do país há mais de duas semanas em digressão pela Ilha da Madeira, Portugal e várias cidades dos Estados Unidos para, entre outras actividades, fazer o lançamento do seu livro, homenagear personalidades nas comunidades cabo-verdianas e discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas não tinha ainda assumido uma posição sobre o caso do Fundo do Ambiente. Aliás, pelo longo tempo que se levou para esclarecer a opinião pública depreende-se que nem o próprio ministro tinha os dados todos para isso. Não quis pronunciar-se nem antes nem depois das revelações apesar de solicitado pelos jornalistas e só veio a convocar uma conferência de imprensa 19 dias depois da manchete do jornal A Nação. Nas declarações à imprensa presente, o ministro acabou por confessar que o Fundo de Ambiente nunca tinha apresentado contas ao Tribunal de Contas e que ainda estavam a ser auditadas as contas de 2012, 2013 e 2014. Se se juntar a isso as intervenções designadamente de beneficiários do Fundo do Ambiente ligados ao partido no governo e as omissões governamentais em dotar o Fundo de órgãos próprios de decisão e de os fazer funcionar dificilmente se compreende a razão do Sr. PM em proclamar total confiança no Ministro Antero Veiga. Será que é para o colocar acima de qualquer crítica?
O PM, nas suas declarações de apoio ao Ministro, diz não concordar com a prática de não prestação de contas de recursos que ele próprio relembra que são dos cabo-verdianos e cabo-verdianas. Enfraquece a sua posição a partir do momento em que assevera que todos os fundos públicos devem prestar contas para logo a seguir afirmar categoricamente que no seu governo tem sido sempre assim, quando se sabe, da própria experiência do Fundo do Ambiente, que há uma prática contrária. Continua a enfraquecer a sua posição ao procurar desvalorizar as críticas, referindo-se ao ambiente de pré-campanha que diz já existir no país. Primeiro, porque o governo não deve assumir perante críticas públicas uma atitude sobranceira de quem não tem contas a apresentar a ninguém. Segundo, não pode escudar-se em pretenso tempo de campanha ou pré-campanha para desvalorizar revelações, críticas ou denúncias. Podia-se dizer que fazer isso é realmente um acto de campanha. E se a recusa em prestar contas é já estar em campanha pré-eleitoral, o que o público poderá pensar das viagens incessantes que os membros do governo fazem pelas ilhas protagonizando eventos múltiplos e aparecendo sistematicamente em situações que qualquer pessoa poderia classificar de campanha eleitoral pura e dura.
Aliás, é interessante que na sua alocução o PM faça um apelo que talvez fizesse mais sentido vindo do presidente da república. Pede serenidade aos partidos políticos, às câmaras municipais e a todos os órgãos de soberania neste período que já considera de pré-campanha eleitoral. Parece paradoxal que um chefe de um governo suportado por um partido político dirija a outros actores políticos tal pedido, mas não é. Está-se, de facto, perante um acto de ilusionismo puro: um chefe de governo partidário que já não é líder partidário e assume postura suprapartidária de quem não está em lides partidárias. Com que propósito, pergunta-se. Obviamente só pode ser por razões partidárias: a curto prazo, para deflectir críticas da sua governação, desarmar a oposição e ficar solto para demonstrar ao país em inúmeros momentos os exemplos da sua “gestão de impossibilidades”. A médio prazo, para deixar tudo em aberto. Entretanto vai estendendo o seu manto “mágico” de protecção aos ministros partidários que de alguma forma tropeçarem nos resultados omissos ou menos bons da governação e ficam sujeitos às críticas das pessoas e da oposição.
Accountability (responsabilização e prestação de contas) está no centro da própria ideia da democracia. Conseguiu-se em Cabo verde desviar um bocado desse princípio básico com ganhos claros para quem realmente governa e gere os recursos colectivos e com alguma estupefacção e desorientação para os cidadãos. Estes quando questionam falhas designadamente na economia, na sociedade, na segurança ou no emprego e procuram quem responsabilizar, recebem invariavelmente a resposta: a responsabilidade é de todos, mas o governo já fez a sua parte e está bem-feita. Se os resultados não são os melhores, do tipo crescimento raso, desemprego excessivo, insegurança e delinquência juvenil, os responsáveis só podem ser outros.
Todas as imbricações do Fundo do Ambiente apontam para o que não se devia fazer na gestão dos recursos público: não seguir os procedimentos previstos para a sua disponibilização; alimentar suspeitas de canalização para organizações de alguma proximidade política; cair na tentação de usar fundos no embate político com as câmaras municipais e no condicionamento eleitoral dos cidadãos; e negligenciar na apresentação de contas às autoridades de fiscalização competentes. Proliferam fundos públicos no país. É da maior importância que a sua utilização seja judiciosa. A via principal para que assim seja é manter claras as linhas de decisão e de responsabilização. Evita-se desta forma que sejam capturados por interesses particulares e não sirvam os objectivos de fraternidade, de solidariedade e de igualdade de oportunidades com que foram criados. Assim como também que se constituam em instrumentos de ambição política de quem não olha a meios para realizar os seus fins.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 14 de Outubro de 2015

sexta-feira, outubro 09, 2015

Nós e a “estagnação secular”

O FMI na sua reunião anual em Lima, Peru, na semana passada fez a revisão em baixa da previsão do crescimento da economia mundial para 2015 e 2016. Vários factores contribuem para isso, entre os quais a quebra no crescimento dos países emergentes em particular a China e o Brasil mas também a Rússia. Lawrence Summers um respeitado economista americano escrevendo no jornal Financial Times alertou mais uma vez pelo que ele chama de estagnação secular que poderá caracterizar a economia global nos próximos anos. Uma situação que, como ele diz, não é muito diferente do que há cerca de 25 anos acontece no Japão e que é caracterizada por crescimento baixo num ambiente de baixa inflação e taxa de juros próximo do 0%. A fraca dinâmica dos BRICS nos últimos tempos piorou a situação e aumentou as probabilidades do toda a economia mundial ser forçada a uma travagem brusca com impacto directo na luta pelo emprego e contra a pobreza.
Essa possível evolução da economia não é uma boa notícia para Cabo Verde. Não torna os parceiros mais generosos na dispensa da ajuda internacional, seja por que vias for. Afecta negativamente a procura para bens e serviços cabo-verdianos e tende a diminuir o fluxo de capitais que eventualmente o país poderia atrair. Se juntarmos a isso o nível de competitividade do país que teima em não progredir (passou no último ano do 114º lugar em 144 países para 112º em 140 em 2015 mantendo o mesmo GCI de 3.7) é evidente que há motivo para preocupação.
Cabo Verde precisa crescer mais para diminuir o desemprego e a pobreza. As reformas feitas e os custosos investimentos já realizados não conseguiram fazer a economia crescer em média nos últimos três anos acima de 0,9%. O Governo responsabiliza a crise internacional. Já o BCV considera que faltam condições endógenas mesmo para aproveitar completamente uma dinâmica económica mais vigorosa da União Europeia, o maior parceiro de Cabo Verde. Mantendo-se a situação de crescimento sistematicamente abaixo das previsões que têm sido feitas pelo governo mais difícil se torna sustentar a já pesada divida pública.
Um sinal de que algo não poderá estar a correr bem é o facto de ainda o conselho de administração do FMI não ter aprovado o relatório da consulta feita em Março no âmbito do artigo quadro. Previsto para o mês de Maio, até hoje não se realizou. Cabo Verde é dos pouco países que exige que o FMI peça explicitamente autorização para publicar dados sobre o país. Segundo dados do FMI houve uma situação em que só passados 120 dias é que as autoridades cabo-verdianas autorizaram. Essa falta de transparência não inspira confiança.
Actualmente nota-se que mesmo aqui no país a publicação de dados já não segue um calendário certo. O BCV publicou o relatório de política monetária só em Junho, muito mais tarde do que era habitual. O mesmo já tinha acontecido em Novembro. Outros relatórios designadamente os dos indicadores económicos que regularmente apareciam, tardam em ser publicados. Fica-se com a impressão de que há alguma relutância na publicação de informações sobre o país e isso só traz desconforto para quem investe ou desenvolve actividade económica em Cabo Verde porque tem dificuldades em avaliar os riscos existentes.
É pena que o esforço que o governo despende para manter o ilusionismo congratulando-se com a diferença de dois lugares no relatório da competitividade, quando o Global Competitiveness Index (GCI) é o mesmo, 3.7 para 2014 e para 2015, não é o mesmo que põe em medidas com impacto marcante em tornar realmente competitiva a economia cabo-verdiana. Por exemplo, os quatro primeiros factores problemáticos para o ambiente de negócios são, de acordo com o último relatório, o acesso ao financiamento, a carga fiscal, a ineficiência da burocracia do Estado e a complexidade da legislação fiscal. Em 2014 o factor complexidade das leis fiscais estava no sétimo lugar. Passou agora para o quarto lugar das dificuldades. Quer dizer que três dos principais obstáculos em melhorar o ambiente de negócios resultam da acção directa do governo e da sua administração. É claro também que quem desta forma age não mostra vontade suficiente para resolver a situação. Não se compreende é que mesmo assim se regozije com ganhos ilusórios.

A realidade da situação económica mundial não é a melhor. Cumulativamente até 2020, segundo Larry Summmers, está-se a prever em baixa o crescimento dos Estados Unidos  de 6%, de 3% para Europa, 14% para a China e 10% para os países emergentes. Ou seja, bons tempos não vêm ai. Seria bom que o governo despertasse para os reais problemas do país e se disponibilizasse para tomar as medidas adequadas em vez de ficar só pela retórica de campanha pré-eleitoral. 

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de Outubro de 2015

sexta-feira, outubro 02, 2015

A longa saga do Tribunal Constitucional



Finalmente elegeu-se o presidente do Tribunal Constitucional. Infelizmente aconteceu mais de quatro meses depois da tomada de posse, a 14 de Maio, dos juízes eleitos pela Assembleia Nacional. A demora acabou por alimentar especulações quanto a eventuais compromissos feitos no processo que culminou com a eleição dos juízes pela Assembleia Nacional. As sucessivas fugas de informação com o posicionamento dos juízes ora como candidatos, ora como não candidatos e ainda o inesperado voto branco na eleição do presidente do TC deixam a impressão que pressões e jogadas políticas podem não ter terminado com a eleição dos juízes. Não é um bom começo, mas espera-se que os juízes saibam ultrapassar os percalços iniciais com espírito de missão e a consciência do papel único de estarem a edificar uma instituição tão fundamental para a república.
Percalços no processo da instalação do Tribunal Constitucional surgiram desde da sua criação na revisão constitucional de Novembro de 1999. Não é por acaso que se levou 15 anos para o instalar. A lei que estabelece a competência, organização e funcionamento do TC só foi aprovada em Janeiro de 2005. As tentativas anteriores de uma lei orgânica para o TC foram goradas. Ao longo dos primeiros dez anos vozes diversas vindas designadamente da presidência da república, do governo e de sectores do PAICV puseram em causa o modelo do Tribunal Constitucional, mas nunca ninguém apresentou uma proposta de revisão para se voltar ao que existia na Constituição de 1992. Preferiu-se manter o modelo e não agir de forma coerente para o cumprir. Entretanto, o presidente da república continuava a nomear um juiz para o Supremo Tribunal de Justiça e a Assembleia Nacional a eleger juízes nos anos de renovação do mandato do STJ em 2003 e 2009 de acordo com o figurino constitucional anterior. Os magistrados viam a sua carreira limitada essencialmente aos tribunais da primeira instância.
O incumprimento deliberado não deixava de afectar negativamente as instituições democráticas. Ficava a pairar no ar a ideia que se houvesse vontade firme de algum sector da sociedade podia-se não cumprir integralmente o que estava estabelecido na Constituição. Uma noção extremamente grave particularmente numa democracia jovem em vias de consolidação das suas instituições e que ainda se ressente nas atitudes e formas de acção dos efeitos de uma cultura política de natureza voluntarista, revolucionária e que não olha a meios para atingir os fins.
Na base da alteração constitucional que retirava ao Supremo Tribunal de Justiça as competências em matéria de justiça constitucional e as passava para o TC estava a convicção de que o STJ deveria ser constituído apenas por magistrados de carreira. As funções do TC implicavam a nomeação de alguns juízes - dois no caso de ser ter um colectivo de cinco juízes e três em sete - por órgãos de poder político, o presidente da república e a assembleia nacional. A separação dos dois tribunais além de abrir espaço para a evolução da carreira dos juízes contribuía também para uma maior independência dos tribunais judicias. Naturalmente que houve quem se opusesse à essa opção. A existência de um Tribunal Constitucional não é pacífica em todos os países. Em Cabo Verde, o argumento mais esgrimido tem sido o da escassez relativa de recursos humanos e materiais. A realidade não demonstra, porém, que haja poupanças significativas. Pelo contrário, tem riscos e custos escondidos que acabam por se manifestar na produtividade, motivação e efectividade do poder judicial como parte importante dos checks and balance do sistema político.
Na revisão da Constituição, em 2010, não houve qualquer tentativa de alteração do figurino no que respeita ao TC. Pelo contrário, deu-se maior autonomia e independência ao sector da Justiça e foram criados os tribunais de relação. Tudo porém ficou dependente da instalação do TC. Os novos juízes conselheiros nomeados na sequência de concursos públicos deveriam poder ocupar os seus lugares no STJ assim como os juízes desembargadores nos tribunais de relação. O novo arranjo deveria ser feito num prazo de três anos, mas vozes contrárias continuaram a fazer-se ouvir aqui e além e acções atempadas não aconteceram. Em consequência, está-se no quinto ano e só agora com a instalação definitiva do TC, o STJ vai poder reorganizar-se e todo o sistema poderá mover-se para se conformar a Justiça com o figurino constitucional estabelecido. Espera-se que a reorganização aconteça da forma mais harmoniosa e traga mais produtividade, celeridade e independência à administração da justiça nesta terra.
A autêntica saga que tem sido o processo de instalação do Tribunal Constitucional deveria servir de alerta para a persistência de resquícios de uma certa cultura política que não reconhece que democracia não significa apenas governo da maioria. É o sistema do governo limitado. O Estado tem que se submeter à Constituição e à Lei, respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos e a independência dos tribunais e desenvolver a sua actividade tendo em devida consideração a autonomia do poder local e o princípio da descentralização democrática. O que se perdeu em não ter uma justiça moderna, célere e efectiva tem similaridades com o que se vai perdendo em eficiência e eficácia na crispação política, falta de transparência e em capital de confiança devido às más práticas de contornar e esvaziar instituições e de as substituir por entidades paralelas. Há que mudar de atitude e de comportamentos.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 30 de Setembro de 2015

sexta-feira, setembro 25, 2015

Dia da Constituição



A Constituição democrática de Cabo Verde entrou em vigor no dia 25 de Setembro de 1992. Dezassete anos já tinham decorrido desde o dia da independência a 5 de Julho de 1975, quinze anos dos quais sob o regime de partido único. Com a Constituição de 1992, Cabo Verde consagrou-se como Estado de direito democrático tendo como fundamento o respeito absoluto pela dignidade humana. Os cabo-verdianos passaram a ser cidadãos de corpo inteiro na sua própria terra, livres para se exprimirem, livres para escolherem quem os pode governar e livres para escolherem como podem ser felizes e prosperar. É estranho que um dia com tanta consequência não seja celebrado devidamente.
Vários países do mundo registam com solenidade o dia de adopção da Constituição, nalguns casos até como feriado nacional. A Espanha tem o seu dia da Constituição referente a 6 de Dezembro de 1978 que marca o fim do franquismo e Portugal tem o 25 de Abril que acumula o simbolismo da revolução contra a ditadura, das primeiras eleições livres e plurais e da entrada em vigor da Constituição de 1976. Outras democracias da chamada Terceira Vaga, em particular os que se libertaram de regimes totalitários e autoritários na sequência da queda do Muro de Berlim comemoram o dia em que se juntaram a outras nações na consagração dos valores da liberdade, da democracia e do primado da lei. Em Cabo Verde em anos anteriores já houve pontualmente iniciativas designadamente da Presidência da República, da Assembleia Nacional, de partidos políticos e de universidades a marcar a data, mas nada está institucionalizado.
O Parlamento que devia assumir-se como ponto focal da celebração da Constituição, recusa-se sistematicamente a esse papel. Não o faz no dia 13 de Janeiro, Dia Nacional da Liberdade e da Democracia e muito menos se disponibiliza para isso nos aniversários da entrada em vigor da Carta Magna do país. Em Espanha, por exemplo, nos dias anteriores ao feriado da Constituição, entre outras actividades, as escolas dedicam tempo especial a introduzir as novas gerações no estudo da Lei Fundamental do país. Em Cabo Verde, pelo contrário, nos feriados privilegiam-se referências à luta de libertação na Guiné-Bissau com base quase exclusivamente em elementos da historiografia oficial do PAIGC/PAICV. Nas comemorações dos 40 anos de independência, que se vêm arrastando meses a fio, o grosso das actividades tem sido dedicado à homenagem dos “libertadores” e dos protagonistas do regime de partido único que eufemisticamente se passou a chamar de “construtores do Estado”. Perante o paradoxo evidente de o Estado constitucional privilegiar nos seus actos públicos a homenagem a figuras de um regime nas antípodas da democracia é de se perguntar qual é, de facto, o nível de comprometimento das instituições estatais com os princípios e valores da Constituição de Cabo Verde.
O Estado que hoje se tem em Cabo Verde foi construído seguindo elementos referenciais que estão na Constituição de 1992, designadamente os de separação de poderes, da legitimação do poder pelo voto livre e plural, do respeito e garantia dos direitos fundamentais, da independência dos tribunais e da autonomia do poder local. Deverá continuar a evoluir e a consolidar-se seguindo esses princípios fundacionais. A realização das expectativas dos cidadãos de ter um Estado cada vez menos partidarizado, mais respeitador dos direitos fundamentais e da legalidade e com uma cultura de serviço público voltada para a eficiência e eficácia na relação com os utentes vai depender da atitude de todos os partidos e dos cidadãos no que respeita ao contracto social consubstanciado na Constituição da República. Essencial para isso será garantir a aceitação por todos das regras do jogo democrático, evitar ambiguidade ou ambivalência em relação aos seus princípios e valores e assegurar-se que a narrativa que a justifica é a do abraçar da liberdade e dos valores civilizacionais como a igualdade perante a lei, igualdade de oportunidades e o pluralismo enquanto motor da dinâmica social, económica e política. Seguir um outro caminho leva a ineficiências graves, crispação política e alguma incapacidade de gerar alternativas de políticas e de governação. 
Nas democracias, os rituais à volta do processo de eleições, de transferências de poder, de responsabilização política e de confirmação da independência do poder judicial são essenciais para manter alto o nível de confiança no sistema. Nessas democracias os partidos chamados do “arco da governação” mostram-se especialmente comprometidos com o regime constitucional. Podem ser ferozes opositores entre si, mas tacitamente revelam-se unidos na defesa das regras do jogo democrático. Feriados nacionais e outros momentos carregados de simbolismo nacional são usados para confirmar essa defesa intransigente de regime democrático. Em Cabo Verde não deveria ser assim?
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 23 de Setembro de 2015

sexta-feira, setembro 18, 2015

Cuidar da qualidade da democracia



Dados do Afrobarómetro publicitados na semana passada trazem informações no mínimo intrigantes. A percentagem de cabo-verdianos que consideram que as eleições de 2011 reflectem a escolha dos cabo-verdianos (54%) é a mesma que acredita que houve suborno no processo eleitoral. A percepção de que houve aumento de corrupção de 2011 para 2014 é acompanhada da ideia de que não há denúncias porque as pessoas têm medo das consequências (56%) e que os órgãos de comunicação social não são eficazes em revelar erros do governo e actos de corrupção.
A impressão que sobressai da sondagem é que está-se perante uma sociedade em que a funcionalidade das instituições e o exercício das liberdades foi de alguma forma comprometida. É o que basicamente deixa a entender a maioria dos sondados quando diz que há medo, que a liberdade de imprensa é limitada ou autolimitada e que o processo eleitoral sofre pressões. A dependência cada vez maior dos indivíduos em relação ao Estado seria a principal causa deste minguar da democracia. Dependência essa que acelerou nos últimos anos, à medida que, por um lado, o peso do Estado aumentou e predominam os investimentos públicos e, por outro, a economia não cresce o suficiente, o desemprego mantém-se alto e o sector privado nacional vive tempos difíceis.
Sabe-se que em situações similares de precariedade e de riscos diversos no futuro próximo a tendência das pessoas é agarrar no “certo e garantido” que vem do Estado. Ao enveredar por essa via de assegurar favores e acessos especiais contêm-se enquanto cidadãos atentos e críticos. Já uma outra motivação tem quem gere os recursos públicos. Aí a tentação é de usar as múltiplas oportunidades criadas pelas fragilidades do momento para a compra de lealdades e condicionamento de comportamentos particularmente em tempos eleitorais. A institucionalização de facto destas práticas de encontro de dadores e beneficiários pela via da repetição na televisão e em outros órgãos dá-lhes um ar de normalidade. Mas ninguém ignora o aproveitamento político  subjacente. Em momentos eleitorais, nacionais, locais e intrapartidários ouvem-se denúncias desse aproveitamento de recursos do Estado para ganhos eleitorais. Logo depois, porém, desaparecem numa espécie de buraco negro onde a percepção de que tais práticas fazem parte do “nosso normal” desculpa os que acusaram, iliba os alegados prevaricadores e isenta o Ministério Público e outras entidades fiscalizadoras do trabalho e da preocupação em verificar a veracidade das afirmações feitas publicamente.
Algum sentimento de que o “actual normal” não deve ser o normal desejado pode estar traduzido em parte nessa percepção do aumento da corrupção em certas entidades detentoras do poder concreto que afecta as pessoas no dia-a-dia. Da mesma forma a sensação de quase impotência perante o que se passa à volta poderá estar a manifestar-se na constatação de que os mídia não estão a ser eficazes em controlar os erros do governo e os actos de corrupção. Curiosamente, um sentimento similar surgiu há algum tempo atras, sendo ventilado em relação aos deputados e ao próprio Parlamento. A frustração com a aparente falta de efectividade do Parlamento levou então a uma espécie de crise de representação que trouxe à tona discussões várias à volta do parlamentarismo, dos sistemas eleitorais e do papel dos partidos políticos.
Algo que alguns podiam chamar de dissonância cognitiva poderá estar a verificar-se. Por um lado, as pessoas e a sociedade sentem-se apanhadas na teia da realidade criada pelo discurso oficial que basicamente anuncia “manhãs que cantam” com clusters diversos e água nas barragens. Por outro, no quotidiano vive-se num ambiente de letargia económica, de falta de perspectiva de emprego e de algum receio sobre o que a dívida pesada que o país acumulou poderá representar no futuro próximo. E todos estão a ver neste mundo de dificuldades crescentes as consequências de não se encontrar soluções para os problemas de endividamento do Estado. Perante tudo isto, não há o debate necessário que seria capaz de revelar a real situação do país e ajudar na ponderação das opções. Nem também a fiscalização adequada dos actos do governo como se pode extrair dos dados trazidos a público por este e outros jornais que dão conta de transferências de recursos públicos a associações diversas num processo que prima pela falta de transparência.
Na celebração de mais um Dia Internacional da Democracia (15 de Setembro) os dados trazidos pelo Afrobarómetro alertam para uma perda da qualidade da nossa democracia. Não é de estranhar, considerando que a democracia dificilmente pode dar frutos quando o peso do Estado se faz sentir cada vez mais a todos os níveis: económico, social e cultural. Democracia, sem uma sociedade civil por definição autónoma em relação ao Estado, não consegue consolidar-se. Faltará sempre pressão para se respeitarem as liberdades, para o Estado e seus agentes se sujeitarem à Lei e para se dar prioridade à criação das condições para que todos se realizarem e serem felizes e no processo contribuírem para a prosperidade geral. Problema grave surge quando actos que visam reproduzir a dependência e manter as pessoas sob controlo passam a ser a forma normal e o objectivo principal de fazer política. Aí, além da liberdade e da democracia, está-se a arriscar o futuro. Esta é armadilha que se tem evitar a todo o custo.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 16 de Setembro de 2015

sexta-feira, setembro 11, 2015

Mau sinal



As revelações vindas a público sobre as aplicações feitas do Fundo do Ambiente vieram confirmar o pior que se pode esperar da gestão de recursos públicos. Notou-se imediatamente a disparidade regional na distribuição dos fundos (Santiago 82 %, outras ilhas 18%), viu-se o potencial eleitoralismo e partidarização na selecção de projectos e parceiros(quase vinte mil contos para a Associação dos Amigos para o Desenvolvimento de Brasil-ASA) e ficou claro que outras razões que não a protecção do ambiente determinou a alocação dos fundos disponíveis (mais de dois mil contos para campas de combatentes).
A publicação neste número do jornal (pag.16 e 17) do quadro da distribuição de recursos do Fundo do Ambiente em 2013 e 2014 permitirá ao leitor tirar as devidas ilações quanto à motivação, razoabilidade e pertinência das escolhas feitas. O facto de o Fundo do Ambiente não ter todos os órgãos previstos no seu estatuto a funcionar já é deplorável. Piora quando, para supostamente colmatar as falhas institucionais, o Ministro chama a si as competências do Fundo porque, segundo ele, em declarações à imprensa “o Fundo não pode ficar parado porque as comissões não funcionam e que a lei lhe dá prorrogativas de movimentar o Fundo”. Movimentar significa na prática decidir qual é o projecto aprovado, quem é o parceiro e quanto cada um pode receber. É evidente que olhando para o quadro publicado das escolhas feitas dificilmente se pode dizer que o interesse público foi devidamente salvaguardado.
A gestão dos recursos públicos numa perspectiva partidária e eleitoralista vem sendo denunciada por vários actores políticos. Os partidos na oposição acusam a nível nacional o partido no governo de utilização eleitoralista dos dinheiros e meios do Estado e a nível local apontam o dedo ao partido maioritário nas câmaras municipais pela mesma razão. É um facto que o próprio Primeiro-Ministro reconhece que a administração pública directa, indirecta e local está partidarizada. Sendo assim, não estranha que haja uma percepção geral de que muitas das taxas e fundos criados nos últimos anos não são propriamente utilizados na persecução dos objectivos inicialmente preconizados. 
O que espanta é que não haja uma indignação geral contra isso. Talvez porque essas práticas são tomadas como normais e como parte integrante do que é fazer política, ser influente e ganhar votos. Em consequência, denúncias de situações gravosas de compra de votos em eleições nacionais autárquicas e intrapartidárias não resultam na penalização dos visados. Pelo contrário, insiste-se em acreditar que todos assim fazem e que são os mais espertos ou os mais efectivos que ganham. A partir daí é só um passo para o desenvolvimento de uma cultura política marcada pelo cinismo e pelo conformismo.
Em Cabo Verde, de há muito que se instituiu que governar é controlar. Durante algum tempo tudo se fez para que houvesse pensamento único e dependência total do Estado. Mudaram-se os tempos, e não sendo já possível advogar o alinhamento de todos pelo mesmo diapasão político, alimenta-se o desencanto com o pluralismo e o multipartidarismo. Entretanto não se deixa as pessoas despersuadirem da centralidade do Estado para o seu bem-estar, prosperidade e carreira e também dos meios, acessos e facilidades que pode disponibilizar a quem “merecer”. 
O quadro da distribuição de fundos pelas associações e outras ONGs é elucidativo do esforço em manter controlado as populações. É evidente que tal ambiente não evidencia o valor da autonomia, da iniciativa e da criatividade, enquanto ingredientes essenciais para se construir a riqueza das nações. Nem tão pouco deixa desenvolver as instituições inclusivas indispensáveis para que o esforço individual ou colectivo das pessoas sirva para colocar o país num caminho ascendente de crescimento económico e de criação de emprego. A opção que realmente se faz é pelo conformismo, pela dependência do Estado e até por pretensa neutralidade política.
Os dados do Afrobarómetro que vão ser divulgados hoje, quarta-feira, dão conta que a população já se apercebe dos níveis cada vez mais elevados da corrupção. É um mau sinal. Significa que as disputas e rivalidades no acesso aos favores do Estado aumentaram à medida que se tornou evidente que os enormes investimentos públicos não estão a produzir crescimento elevado e a criar emprego de qualidade. Uma inversão desta tendência só pode acontecer quando activamente se combater o centralismo e se evitar que as pessoas fiquem menos dependentes do Estado. Também quando a cultura administrativa dominante for substituída por uma cultura empresarial de procura de resultados que ponha enfase na produção e na qualidade da prestação de serviço.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 9 de Setembro de 2015

sexta-feira, agosto 28, 2015

Quando a história não une e divide


Tudo leva a crer que as comemorações dos 40 anos de independência de Cabo Verde vão continuar por mais alguns meses. Por resolução do governo publicado no BO de 19 de Agosto decidiu-se cativar mais 10 mil contos das verbas dos ministérios e outros serviços para cobrir despesas das comemorações no país e na diáspora. No texto desta resolução prevê­-se ainda a possibilidade de mobilizar fundos nas empresas públicas e na cooperação internacional para os mesmos fins.
As razões para se dar continuidade meses a fio às comemorações do dia da independência que é o 5 de Julho não são claras. À partida pode-se ver que dificilmente servem para renovar a unidade da nação como deve ser o seu propósito fundamental. O governo tem protagonismo excessivo na organização e financiamento das festividades e nas acções desenvolvidas tende-se a realçar o papel histórico do Paicv que é também o partido no governo. O facto de o país se encontrar em período pré-eleitoral não aju­da em nada. Pelo contrário, a percepção de que actos públicos do Estado podem ser aproveitados para se conseguir vantagem político-partidária deixa as suas marcas. A desconfiança dos cidadãos nestas matérias vê­-se confirmada quando, por exemplo, órgãos de comunicação social dão conta de que a ministra da Juventude e Emprego e também presidente do Paicv em visita ministerial a São Tomé e Príncipe aproveitou a oportu­nidade para pedir votos à comunidade cabo-verdiana para o seu partido nas próximas eleições; e ainda não começou a campanha.
Complicado nessas comemorações quase intermináveis é o facto de se ficar essencialmente pela exaltação de uma independência desconectada da liberdade individual e do pluralismo em flagrante contradição com os princípios e valores da Constituição de Cabo Verde e fora da tradição ci­vilizacional inaugurada com a declaração de independência dos Estados Unidos trezentos anos atrás. Uma consequência directa disso é deixar fora de qualquer reconhecimento as vítimas da independência sem liber­dade e os que ousaram resistir ao poder tirânico que se instalou nas ilhas durante os primeiros quinze anos. A reportagem desta semana sobre o 31 de Agosto de 1981 (pags.14-17) procura neste ano do quadragésimo ani­versário da independência preencher essa lacuna e relembrar o quanto custou a falta de liberdade.
A fixação em proclamados actos heróicos de alguns convenientemente seleccionados não permite que o país contemple o seu passado com o de­vido distanciamento e com a melhor compreensão dos factos. Muito me­nos o prepara para enfrentar os desafios do presente e do futuro próximo. Partidariza-se tudo e todas as razões são boas para se polarizar de forma antagónica a sociedade. Nos últimos dias até a chuva tem servido de arma de arremesso. Aparentemente uns seriam a favor da sua chegada e outros estariam a rezar e a usar provavelmente artimanhas pouco católicas para que ela não bafejasse as ilhas. O ridículo parece não ter limites. Com tais narrativas a circular, dificilmente se vai conseguir produzir o debate que o país precisa fazer para encontrar vias para sair da situação em que se encontra de crescimento raso e desemprego nos dois dígitos.
A decisão do governo em fazer do dia 12 de Setembro o dia do asso­ciativismo juvenil (BO 14 de Agosto) revela bem o apego oficial a uma historiografia própria do regime de partido único. Dá-se ao associativis­mo juvenil a mesma data de referência da Juventude Africana Amílcar Cabral (JAAC), a organização de massa dos jovens durante o regime de partido único. Sente-se nesta decisão do governo que não há uma preo­cupação em estabelecer uma relação do Estado com os jovens que seja completamente distinta, tanto em substância como na aparência, da re­lação que outrora existiu entre o partido, as organizações de massa e o Estado. Denúncias repetidas de manipulação política dos jovens feitas por estudiosos de movimentos juvenis particularmente em períodos elei­torais são reveladoras a esse respeito. Nisso mais uma vez Cabo Verde diferencia-se de experiências de países como Portugal, Itália e Alemanha que conheceram a indoutrinação política dos jovens num momento da sua história e que posteriormente desenvolveram sensibilidade especial perante qualquer tentativa de se voltar ao mesmo. Aqui a rejeição da po­litização dos jovens não existe apesar de vários artigos da Constituição se mostrarem contra a intromissão isolada e excessiva do Estado nos assun­tos da juventude.
Num outro registo, os últimos acontecimentos na Guiné-Bissau ilus­tram bem como supostas aderências à história levam à instabilidade e são obstáculo ao desenvolvimento. A demissão do governo com maioria parlamentar pelo presidente da república faz lembrar o quão ajustado foi a decisão em 1992 de dotar Cabo Verde de uma nova Constituição em vez de aceitar a proposta do PAICV em manter a Constituição de 1980 sal­picada de algumas normas permitindo eleições pluripartidárias. O semi­presidencialismo no texto constitucional de 1980 e revista em 1990 não vingou e Cabo Verde ganhou um regime parlamentar que possibilitou governos que duram uma legislatura enquanto a Guiné fazia o caminho inverso.
     Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 26 de Agosto de 2015