Expresso das ilhas, edição 657 de 2 de Julho de 2014
Editorial
O problema da
falta de autoridade do Estado veio mais uma vez à tona durante a discussão da
proposta de lei do governo de agravamento da moldura penal para os crimes de
furto e roubo de energia eléctrica. A lei actual estabelece coimas que podem ir
até quatro mil contos, multas que podem chegar a três mil contos e penas de
prisão até um máximo de seis meses. Aparentemente toda esta penalização da
eventual má conduta dos cidadãos não é suficiente para impedir perdas de
energia entre 20 e 30 por cento. O governo agora quer agravar as penas de
prisão para três anos, mas da discussão no plenário da Assembleia Nacional não
ficou claro porque com a lei anterior não se conseguiu travar os roubos de energia.
Também ninguém apresentou qualquer evidência demonstrando que com simples
aumento das penas o problema será resolvido.
O mito
de que respostas duras e violentas ao crime é o caminho a ser seguido para se
ter paz e tranquilidade persiste em certos sectores da sociedade, apesar de
não ser corroborado pelos factos nem em Cabo Verde, nem em outros países. Há
quem insista em não perceber que o sacrifício de direitos individuais em nome
de mais segurança pode abrir caminho para arbitrariedades e abusos de poder.
Não vêem que excessos cometidos em nome da manutenção da ordem podem revelar-se
contraproducentes e incentivar os cidadãos a actos de revolta, a procurar fazer
justiça com as suas próprias mãos, a desconfiar e a não colaborar com as
autoridades na luta contra o crime. Não tiram as devidas ilações do facto de
serem democracias e Estados de Direito os países que hoje gozam dos níveis
mais baixos do crime em todo o mundo. São os países que nos últimos séculos
souberam progressivamente substituir punições cruéis e prisões degradantes por
penas que fazem justiça, mas não aviltam e podem colocar o julgado no caminho
da recuperação social.
Autoritarismo
não gera autoridade. O exercício da autoridade só é efectivo quando se mostra
legítimo. Quem o exerce tem mandato popular, toma como limites
inultrapassáveis os direitos fundamentais dos indivíduos, respeita
estritamente as leis democraticamente criadas e acata em situações de conflito
as decisões de tribunais independentes. Não é a democracia que traz crise da
autoridade, mas sim as suas deficiências. Se houver gente, como diz o
primeiro-ministro e presidente do PAICV, a “prometer bolsa, emprego e cargo”
para ganhar votos o mandato é visto com desconfiança. Se quem governa dá-se mal
com os outros poderes que o contrabalançam, não reconhece a oposição como
também defensora dos interesses nacionais, tende a passar a outros as
responsabilidades pelas insuficiências da governação e não vê na actuação de
instituições legitimadas, directa ou indirectamente, como partes de um todo
integral que afirma a autoridade do Estado, o resultado só pode ser um
progressivo caos.
Nessas
circunstâncias, não se estranha que depois de repetidas medidas de reforma, de
realização de um número impressionante de seminários, workshops e fóruns, da
introdução de tecnologias mais avançadas e “smarts” ainda todos se queixam da
administração pública cabo-verdiana. Até o primeiro ministro que a dirige há
mais de treze anos diz que “o grande problema da AP cabo-verdiana tem sido o
atendimento, a prestação de serviços” e que “não é admissível” tanta morosidade
nas respostas que chegam a demorar seis meses”. De facto, a falta de autoridade
seja política seja administrativa gera ineficiências. Muitas falhas detectadas
em postos vitais para o país nomeadamente nos portos, transportes marítimos e
aéreos, sistemas de energia e água devem-se ao facto de não se ter agido de
forma compreensiva, tempestiva e decidida para as ultrapassar. Depois de mais
dois anos de atraso na vinda do navio Liberdadi vai-se ficar agora meses à
espera da rampa da ENAPOR no Porto Novo para que o barco funcione em pleno.
A
inexistência de um ambiente institucional e social capaz de dar expressão a
manifestações da autoridade politica, administrativa, social, religiosa e
familiar, faz com que indivíduos, famílias e comunidade no seu dia-a-dia se
sintam desgarrados e sem aa cultura cívica de valores que os ajude a resolver
os seus problemas pacificamente e de forma a não se submeterem à lei do mais
forte. A situação piora se o ambiente económico for dominado pela presença
forte de um Estado que pela sua postura assistencialista não favorece o tipo de
cooperação entre as pessoas, as comunidades e as empresas que estruturas
produtivas normalmente criam. Pelo contrário, fomenta a competição desenfreada
pelos parcos recursos, aumenta a crispação social e cria um sentido profundo de
injustiça em todos. Ninguém aceita que está a receber o que merece. O caminho
fica aberto para designadamente se fazer justiça com as próprias mãos, para
roubar energia, para burlar os outros e não assumir quaisquer responsabilidades
ao nível da família seja como como pais ou como filhos.
Mudar
a situação e recuperar a autoridade deve vir lado a lado com um maior respeito
pela vontade das pessoas em ter uma vida digna, sem dependência e num ambiente
de liberdade, paz e justiça. Também fundamental é não se permitir que a
maioria se torne autoritária e diminua o papel de outras instituições em manter
os equilíbrios fundamentais para a confiança de todos na democracia e no Estado
de Direito. Muito menos permitir que faça uso dos recursos público que são de
todos para, em devaneios ideológicos inadmissíveis, glorificar a ditadura do
partido único, como a actual maioria governamental pretende fazer no decurso
das festividades do 5 de Julho em São Vicente.
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