segunda-feira, agosto 29, 2022

Conter as derivas

 Na semana passada o ex-candidato presidencial Casimiro de Pina em declarações à imprensa contestou a deliberação da Comissão Nacional de Eleições que lhe recusou o pagamento da subvenção eleitoral a ser feito pelo Estado.

A CNE baseou- -se no artigo 390 da lei eleitoral que determina que só têm direito a apoio público os candidatos que tiverem pelo menos 10% dos votos e ele só tinha conseguido 3.346 votos correspondente a 1.8% dos votos válidos. Acontece que, em 2018, em resposta a uma acção colocada pelo candidato Joaquim Monteiro a posição do Tribunal Constitucional, enquanto tribunal de recurso eleitoral, foi de revogar a deliberação da CNE por considerar inconstitucional o preceito que condiciona o acesso a subvenção à obtenção de mais de 10% dos votos. O caso repetiu- se agora porque a norma constante do artigo 390º se manteve inalterável no código eleitoral. 

No acórdão de 11 de Abril de 2018 o TC não chegou a declarar a inconstitucionalidade da norma. Não lhe cabia essa função enquanto tribunal de recurso eleitoral. Depois da decisão, a iniciativa para qualquer solução mais definitiva do assunto só podia ser do legislador que com um voto qualificado de mais de dois terços dos deputados presentes podia alterar a lei eleitoral. Uma outra via podia ter sido uma iniciativa do Procurador-geral da República com vista à fiscalização abstracta da constitucionalidade que levasse à declaração da inconstitucionalidade da norma. 

Ninguém agiu e algo que pode configurar um sério obstáculo a candidaturas não apoiadas por estruturas políticas com uma base financeira mais sólida numas eleições que se quer supra partidárias ficou sem o tratamento devido. Omissões similares, além do desgaste provocado às pessoas que repetidamente são forçadas a recorrer do mesmo para verem os seus direitos protegidos também acabam por afectar as instituições. Deixam transparecer uma certa indiferença perante a necessidade de eficiência e eficácia no funcionamento do sistema político que é essencial para o reforço da confiança na democracia. 

Não espanta que após vários exemplos de situações, que podem configurar descaso, prioridades trocadas ou até o entendimento da política como bloqueio, as instituições se descredibilizem, queixas da morosidade de justiça aumentem e o sentimento difuso de insegurança a vários níveis se instale. Permite-se, por exemplo, que se deixe arrastar para além do tempo estabelecido o mandato de titulares de órgãos eleitos como a alta autoridade para a comunicação social, a comissão nacional de protecção de dados, o conselho superior de magistratura e o conselho do ministério público. Aconteceu mais uma vez. A última sessão legislativa terminou em Julho último sem que as partes no parlamento tenham chegado a acordo para a eleição desses órgãos. Como resultado, continuaram numa espécie de limbo com membros desmotivados, legitimidade algo limitada e alguma fragilidade no planeamento e na resposta às novas realidades de uma sociedade cada vez mais complexa e desafiante. 

E a verdade é que não funcionando em pleno as diferentes partes do sistema, seja porque falta de colegialidade e unidade no exercício das suas competências, seja porque não há assunção plena das responsabilidades intrínsecas aos cargos, é a efectividade e accountability do todo que fica posta em causa. Os cidadãos acabam por sentir isso e, perante o progressivo descrédito das instituições, exacerbado não poucas vezes pelo protagonismo excessivo de governantes e de outras figuras na esfera pública, por práticas eleitoralistas e crispação entre os partidos políticos , se deixam atrair por movimentos inorgânicos de contestação, como ficou evidente nas manifestações recentes em vários pontos do país. O problema é o que vem depois, ao não acontecerem as mudanças pretendidas. A tendência é instalar-se a frustração e o ressentimento acompanhado de perda de confiança no presente e futuro do país. 

Em situações normais tais derivas é o que de pior pode acontecer porque minam as energias do país, enfraquecem o sentido do bem comum e deixam as pessoas expostas a apelos populistas de todo o tipo que já de outras realidades se sabe que não levam a nada, senão à autocracia e ao desespero. Na actual situação, com a gravidade conhecida devido à sobreposição de várias crises em que as incertezas são muitas, deveria haver um esforço excepcional de carácter nacional para conter tais derivas. Infelizmente, não é o que se vê. Os apelos feitos ao governo a partir de vários quadrantes para efectivamente se estruturar para liderar nestes tempos excepcionais aparentemente caem em saco roto. 

Pelo que se assiste pela televisão e principalmente nas redes sociais com a sucessão de visitas de governantes às ilhas e concelhos, participação em eventos repetidos e movimentações de vária ordem nem sempre pelas melhores razões, não é claro que fique muito tempo para reflexão estratégica, actuação concertada e devidamente ponderada. Aliás, não se nota unidade e colegialidade na acção do governo. Mesmo quando se quer caminhar na direcção certa, a tentação de fazer navegação à vista e empurrar com a barriga leva a falhas custosas como as que se verificam nos transportes aéreos e marítimos e já dão sinais em outros sectores. Num ambiente desses fica difícil fazer o apelo à solidariedade tão necessário para se reunir as energias e conter os efeitos das crises que afectam o país. 

É por isso imperativo que haja uma inflexão da actual situação. O sistema político tem que funcionar e inspirar confiança. A todos os partidos políticos e titulares de órgãos de soberania deve-se exigir responsabilidade constitucional. A sociedade civil e os cidadãos devem ter bem presente que os seus direitos e a sua autonomia dependem do sistema democrático liberal que existe no país. A atitude deve ser de garantir o funcionamento pleno do sistema político, obrigar os eleitos e os detentores de cargos públicos a exercer em plenitude as suas competências e exigir responsabilidade pelo exercício do poder. Como se pode ver do que acontece noutros países, fazer diferente e descredibilizar as instituições, deixar-se apanhar pelas paixões e apelos às emoções dos populistas é um caminho que o país, com as fragilidades e vulnerabilidades de Cabo Verde, nunca devia arriscar-se. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1082 de 24 de Agosto de 2022.

segunda-feira, agosto 22, 2022

Diplomacia para os novos tempos

 

Cabo Verde, através da resolução nº 80/2022 de 10 de Agosto, criou um Dia da Diplomacia referenciada à data de 16 de Setembro da aceitação do país na Organização das Nações Unidas. Com a escolha feita do dia para celebrar a diplomacia cabo-verdiana e o trabalho realizado pelos seus profissionais destacados no país em missões estrangeiras provavelmente se quis destacar a importância do multilateralismo nas relações internacionais e a pertença a uma comunidade de valores suportada na Declaração Universal dos Direitos Humanos adoptada em 1948 pela ONU. Também se quis afirmar a adesão forte e engajada a princípios e valores, cujo substrato bebe numa longa tradição de luta pela liberdade e de respeito pelas minorias que vem da Magna Carta, do Bill of Rights inglês, da declaração universal dos direitos do homem da revolução francesa e da declaração da independência dos Estados Unidos da América. 

O momento para a criação do Dia da Diplomacia é a vários títulos especial. Antes de mais o mundo está numa encruzilhada em que há previsões de desglobalização, de um mundo multipolar e de alinhamento económico políticos para resiliência com reforço global de segurança e das cadeias de abastecimento e um redireccionamento do investimento para os países que comungam dos mesmos valores. As ofensivas diplomáticas a que se vem assistindo por todo o mundo e em particular em direcção à África vão no sentido de atrair países para os campos político-económicos já em emersão. Nesse sentido é que se compreende a digressão do Ministro dos Negócios Estrangeiros russo por vários países africanos assim como as visitas do presidente francês e do chanceler alemão e ultimamente do secretário de estado americano, da embaixadora americana na ONU e de delegações de congressistas e senadores à Africa. 

Cabo Verde também tem sido alvo dessas visitas porque entre outras razões é referenciado, quando comparado com outros países africanos, pela qualidade da sua democracia, pelo nível de governança visto na gestão da pandemia e da vacinação e pela resposta que tem dado na mitigação dos efeitos sociais das crises sucessivas que têm assolado o país e o mundo. Durante a visita da embaixadora americana na ONU deu-se a conhecer o incentivo e o apoio americano a uma eventual candidatura de Cabo Verde a membro da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Nas circunstâncias actuais o convite provavelmente estaria a confirmar o reconhecimento da pertença de Cabo Verde à comunidade de valores que passa pelo nome de Ocidente e que defende uma ordem mundial com regras, vê os direitos humanos como valores universais e se opõe à ofensiva das autocracias suportada por um nacionalismo que ameaça a liberdade e a autodeterminação de povos vizinhos. 

A oportunidade da adopção do Dia da Diplomacia devia ser aproveitada para uma reflexão aprofundada sobre o que tem sido as linhas gerais da diplomacia cabo-verdiana e como foi condicionada pelo contexto histórico marcado pela Guerra Fria e pelo ideal do pan-africanismo. Também para se saber como a acção diplomática de Cabo Verde se deixou moldar para atrair ajuda externa e como, considerando as várias tentativas de avançar com uma diplomacia económica, ela tem ficado aquém do desejável no apoio aos esforços de atracção de investimentos, no desenvolvimento de mercados e na cooperação tecnológica e científica. A encruzilhada em que o mundo se encontra actualmente perante o provável fim de uma ordem mundial e a emergência de outras realidades político- -económicas, marcada pelo “decoupling” da economia chinesa e uma espécie de ostracismo da Rússia, requer uma outra abordagem talvez mais subtil que não se compagina com as posições de não alinhamento de outrora e as fantasias da cooperação Sul-Sul que resultaram em muito pouco. 

Da máxima que em matéria de relações externas os países não têm sentimento e só procuram os seus interesses pode-se extrair que para se ter uma diplomacia consistente e efectiva é fundamental que o país tenha conhecimento de si próprio, da sua história e da sua cultura e tenha controlo da narrativa que perpassa a sua acção e o seu relacionamento com o mundo. De outro modo, é a ambiguidade e ineficácia nas relações como por exemplo tem acontecido com a relação com a Guiné-Bissau. 

A adopção por Cabo Verde de figuras, símbolos e narrativas da história moderna guineense tem levado durante décadas a tensões, mal-entendidos e até a hostilidades abertas a começar pelo fracasso do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde, passando por momentos de relações frias ou quase inexistentes entre os dois países como aconteceu nos anos oitenta. Ainda hoje não se pode dizer que na interacção sócio-económica e cultural se conseguiu o que seria previsível, considerando o historial comum no quadro do império português. Aparentemente há demasiados óbices para uma relação normal e não se consegue potenciar proximidades de relacionamento que eventualmente existam. 

O outro lado do imbróglio é a própria insegurança identitária que gera em Cabo Verde e que acaba por afectar a relação com os países vizinhos no continente africano. Procura-se durante décadas uma integração económica que até para os países continentais se está longe de atingir enquanto que as relações económicas ligadas à importação, exportação, investimentos, fluxos turísticos e ajuda externa são essencialmente com o espaço europeu onde sempre se situaram. Recentemente isso foi outra vez comprovado com as ofertas de milhares de empregos vindas do sector turístico de Algarve. Uma relação com sucesso com os países africanos terá que ser em outros moldes como por exemplo as Maurícias fizeram. 

Depois de terem perdido o acesso especial que os seus fundos de investimento tinham ao mercado indiano, as Maurícias voltaram- se com sucesso para a África tornando-se num hub de investimento. As ilhas em geral, pela sua própria natureza e sem possibilidades de economia de escala em vários sectores, têm que saber prestar serviço para países continentais e um deles é o de minimizar riscos nas transacções. Teimar em seguir as vias de sempre como parece ser a intenção na criação do ministério de integração regional só desvia a atenção de onde relações económicas diversificadas já foram desenvolvidas e há potencial para se aprofundar mais com visão, qualificação de mão- -de-obra, diversificação da oferta e serviço de qualidade. 

Para isso, porém, é fundamental um sentido de unidade, a assunção de uma narrativa que explica o país ao mundo e ambição de vencer. Também essencial é nunca se deixar apanhar pela vitimização e pelo ressentimento. Essa deve ser a postura a adoptar pela diplomacia do país e também pelas pessoas e pela sociedade civil. Ambiguidades identitárias devem ser ultrapassadas porque como disse Elisabeth Moreno, ex-ministra da França de ascendência cabo-verdiana, em entrevista à TCV, a força de Cabo Verde é manter-se unido e que é “estupidez” insistir com a caracterização de cabo-verdianos em “badios e sampadjudos” porque o povo é um só e as exigências de um mundo de hoje de “terrível competição” são imensas. Vários sinais de líderes dos países do Ocidente apontam para uma nova ordem internacional organizada sobre uma comunidade de valores e privilegiando resiliência sobre eficiência. Investimentos em cadeias de valor e de abastecimento serão feitos tendo em conta a segurança e a confiança que países parceiros poderão proporcionar na base do chamado friend-shoring. A diplomacia de um pequeno país para funcionar neste novo contexto onde já não servem as experiências dos países não-alinhados entre dois blocos militares e ideológicos terá que ser subtil, mas inevitavelmente engajada. 

A assinalar o que será esse novo contexto vê-se no conceito estratégico da NATO segundo o qual parceiros são os que compartilham os mesmos valores e interesses na defesa da ordem da internacional baseada em regras e que com esses a abordagem será orientada por interesses, flexível, focada e capaz de se adaptar às realidades geopolíticas em mudança. Ser bem-sucedido neste processo exigirá reflexão séria sobre o futuro da diplomacia do país. Que a data criada sirva de estímulo para isso.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1081 de 17 de Agosto de 2022.

segunda-feira, agosto 15, 2022

Não se deixar apanhar pelo torvelinho das redes sociais

 

Cada vez mais os sentimentos de indignação e as manifestações de ressentimento que fazem vibrar as redes sociais e tornam certas matérias virais são absorvidos e amplificados pelos média tradicionais em particular a rádio e a televisão, acabando por condicionar todo o discurso na esfera pública.

Intervenções no parlamento marcadas pela excessiva polarização, a pouca preocupação com a contextualização das matérias e juízos sobre a motivação dos deputados dão conta dessa influência. Também grandemente afectadas são as reacções dos outros órgãos de soberania apanhados no torvelinho das paixões destiladas nas redes sociais e obrigados a comentar e a posicionar-se quase instantaneamente e muitas vezes sem a devida ponderação sobre questões que no momento prendem a atenção das pessoas. A completar o quadro notam-se as vozes de movimentos inorgânicos galvanizados pela expressão de indignação nas redes sociais que não poucas vezes tomam a forma de contestação anti-sistema, demagógica e populista.

É evidente que daí só pode resultar o empobrecimento do discurso público, tensões políticas desgastantes entre os poderes e tratamento imperfeito ou superficial de matérias cruciais devido à incapacidade de se chegar a compromissos e firmar acordos. Os problemas do país continuam sem serem devidamente equacionados e na falta de consenso sobre os seus contornos não se vê a possibilidade de se desenvolver um diálogo construtivo para os resolver definitivamente. Pior ainda, é que quando por alguma razão se consegue algum grau de clarificação de algum assunto como que se quer voltar atrás e deixá-lo outra vez indefinido e dessa forma propício para ser arma de arremesso, alvo de suspeições e material para teorias de conspiração.

Viu-se isso recentemente na reacção altamente negativa de certos sectores de opinião ao acto clarificador que foi o voto da suspensão do deputado em prisão preventiva. A verdade é que com a resolução da Assembleia Nacional já foi possível marcar o julgamento para o fim de Agosto e abrir o caminho para se ultrapassar a situação de desgaste das instituições que a perpetuação do problema estava a criar. Outros problemas com impacto gravoso a vários níveis têm sido trazidos à praça pública no meio desse mar de paixões como se pôde verificar ao longo da semana com as denúncias do sindicato de pilotos, as vicissitudes dos barcos da empresa CV Interilhas e a morte do adolescente evacuado por bote da Ilha Brava. São oportunidades de manifestação de indignação sobre matérias como os transportes aéreo e marítimo, evacuação médica e emergências nas diferentes ilhas e consequências de movimentação de mão-de-obra dentro do país e para o exterior, mas que depois não conduzem a praticamente nada. Não se traduzem em novas abordagens e disponibilidade para se chegar a entendimentos e resolvê-los. Simplesmente tendem a repetir-se quando o momento se oferecer.

Romper com este círculo vicioso implicaria disposição para clarificar as questões, contextualizá-las e abrir-se ao diálogo para as resolver. Em relação, por exemplo, à TACV já se vai em mais de três comissões parlamentares de inquérito nos últimos anos e certamente que como das outras vezes muito pouco vai sair daí. Na realidade, devia-se assumir que é praticamente impossível gerir uma empresa em que, entre várias coisas, ministros anunciam rotas, deputados fazem anúncios de actos de gestão da empresa, sindicatos montam uma feroz resistência a qualquer mudança e uma multidão de ex-trabalhadores faz valer os seus direitos adquiridos logo que a empresa tenta levantar-se de mais um revés. Não é à toa que a TACV acumula dívidas derivadas de todas essas ineficiências que continuam a ser ignoradas quando devia ser claro que o mercado da aviação dirigido fundamentalmente para nacionais e emigrantes dificilmente tem escala ao nível do tráfico para, sem subsídios, alimentar rotas para Europa, África e Américas como se insiste em apregoar.

No mesmo sentido devia-se ter em devida conta a natureza e dimensão do mercado cabo-verdiano quando se opta por um serviço público de ligação entre as ilhas. Há que assumir que com os enormes constrangimentos em termos de número de pessoas e de volume de carga expectável dificilmente será uma operação possível sem subsídios. Nunca é possível nas ilhas como bem mostram outros arquipélagos da Macaronésia. Isso, porém, tem que ser dito e assumido e não escamoteado para depois não se ter serviço de qualidade e muito ruído. Também deve-se ter uma visão compreensiva das necessidades de evacuações médicas, emergências e acções de busca e salvamento para não se estar com soluções ad hoc como fazer barcos comerciais pernoitar em ilhas mais isoladas para responder a eventuais acidentes ou usar aviões de passageiros para o mesmo fim.

Outras questões como as consequências da mobilidade da mão-de-obra no espaço nacional, os problemas criados tanto nas ilhas de origem das migrações como nas ilhas de destino devem ser encaradas com realismo e pragmatismo, visando a criação de empregos de qualidade e o desenvolvimento de uma base produtiva diversificada e geradora de riqueza. Da mesma forma deve ser vista a possibilidade da qualificação da mão-de- obra para emigração também numa perspectiva não estática, mas dinâmica com as vantagens que daí podem advir na diminuição do desemprego e no aumento das remessas. A opção por clarificar situações e evitar indefinições que deixam espaço para promessas fantasiosas e exploração demagógica retiraria pretexto para as ondas sucessivas de indignação que só servem para extremar posições, desgastar instituições e impedir soluções consensualizadas.

Outrossim, saber responder à ineficiência e a ineficácia de muitos serviços públicos essenciais ajudaria a conter a dívida pública e a melhorar a competitividade. Também seria essencial para renovar a confiança cívica tão necessária para acabar com o sentimento de insegurança e restaurar a autoridade pública sem a qual não irão diminuir os custos com os roubos sistemáticos de água e energia que têm reflexos transversais na economia e no bem-estar das pessoas. Já é claro que não é só com privatizações, identificação de parceiros e desagregação ou, no sentido inverso, com integração de empresas ou outras iniciativas similares que se vai conseguir os resultados pretendidos. Fazer as pessoas cair no real é essencial, mas o factor essencial para isso passa por confrontar os factos, ter o desejo de conhecer a realidade circundante e vontade para intervir e fazer as reformas necessárias.

Cada vez mais vai ser mais difícil fazer o que de necessário se impõe para que a esfera pública não se degenere mais nesses fitos de indignação e ressentimento. Como disse o filósofo canadiano Marshall McLuhan citado por Ezra Klein do New York Times “o meio é a mensagem” e assim como com o advento da televisão tudo se transformou em entretenimento também “as redes sociais nos ensinaram a pensar com a multidão”. Se não se souber comunicar de forma a focar a atenção no que interessa para além das paixões da multidão, os problemas vão-se manter. O esforço de quebrar o círculo vicioso é cada vez maior como se pode ver da actual situação em que se constata que nem com os efeitos gravosos da tripla crise há sinais de mudança de comportamento. Pior será se continuar com a tendência de exposição sem filtro aos efeitos das redes sociais como se pode depreender do entusiamo como são abraçadas por governantes e outros elementos da classe política do país. Razoabilidade e eficácia não se pode esperar muito daí. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1080 de 10 de Agosto de 2022.

segunda-feira, agosto 08, 2022

Momentos de clarificação

 

Na última sessão da Assembleia Nacional finalmente houve votação para suspender o deputado Amadeu Oliveira preso há pouco mais de um ano e permitir o seu julgamento em três processos distintos de que é visado. Há meses que o assunto estava a arrastar-se no parlamento e em Abril acabou por ser agendado, mas depois foi adiado.

Desta vez ainda houve tentativas de deixar a matéria para Outubro. A falta de vontade em avançar para o julgamento de casos de tão forte impacto mediático deixa a impressão que para certos sectores de opinião muitas vezes convém deixar certas matérias num estado de indefinição. A busca da verdade é substituída pelo atirar de suspeições, teorias de conspiração e falsidades.

De facto, com a votação da suspensão foram clarificadas duas coisas. Primeiro, agora já não há dúvida que o deputado em prisão preventiva está suspenso das suas funções. Durante muito tempo alimentou-se a ideia de que ele não teria sido suspenso com a resolução da comissão permanente de Julho de 2021 que autorizou a sua detenção para ser submetido a interrogatório judicial. A verdade é que um deputado detido ou em flagrante delito ou por autorização da Assembleia Nacional não tem condições para o exercício pleno do seu mandato e deve ser suspenso como deixa entender o nº 4 do artigo 166ª da Constituição.

Fere a dignidade do parlamento ter um deputado no activo preso além de mudar a configuração do parlamento tanto no número de deputados com na representação partidária saída das eleições legislativas. O parlamento tem funcionado com 71 deputados e a UCID esteve desfalcada de um representante e isso não é aceitável num órgão eleito. Com a falta de clarificação, o deputado Amadeu Oliveira não foi substituído durante todo este tempo.

Mas agora vai ser e é isso que parece ser uma das razões da irritação de muita gente. Uma outra coisa que resultou da votação é que finalmente vai-se ter o julgamento dos três processos de calúnia e difamação interpostos por magistrados, entre os quais juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça. Será a oportunidade para apresentação de provas das acusações feitas e que têm fragilizado bastante o sistema de justiça em Cabo Verde. Uma oportunidade até agora negada em vários adiamentos, o último dos quais quando o acusado se tornou candidato a deputado pela UCID nas legislativas de 2021.

Aparentemente ninguém devia opor-se à clarificação da situação que tem levado a muito desgaste das instituições incluindo o parlamento e o sistema de justiça. Curiosamente o que se vê é a tentação de ir mais a fundo e envolver o presidente da república pedindo que intervenha quando há uma decisão tomada no parlamento por voto secreto sobre o mandato de deputados que também são eleitos directamente pelo povo. Num outro sentido também grave procura-se visar o juiz que decidiu pela prisão preventiva incentivando um clima de hostilidade contra magistrados que não traz benefícios a ninguém.

A reacção excessiva à posição da Assembleia Nacional vinda de sectores da sociedade revela que não são só os políticos e partidos que querem manter indefinida uma série de situações como forma de tornar intermináveis e sem sentido certas discussões. Na sequência da votação alguns zangaram-se porque ficou claro que o deputado está suspenso e não é uma espécie de preso político. Também que o deputado agora vai a julgamento para apresentar provas das acusações em vez de as repetir sempre que tiver oportunidade e até a partir da plenária da Assembleia Nacional. Indefinições são mais apreciadas como se pode constatar ao longo dos debates sobre questões essenciais para o país em que, em vez de se cingir aos factos e se apresentar posições fundamentadas, vai-se para o secundário, recorre-se às emoções e envereda-se pela exploração de sentimentos populistas, anti-elitistas e anti-sistema.

Faz falta um sentido de responsabilidade constitucional que leve as pessoas, e em particular os detentores de cargos políticos, a sentir o quão fundamental é necessário cumprir as regras e defender o sistema. Sendo a democracia num certo sentido um jogo é evidente que não se pode ter um bom jogo atirando pedras contra o sistema e contra os árbitros e impedindo outros de fazer as suas jogadas. Dos “assistentes ou destinatários” desse jogo espera-se que exijam o cumprimento das regras porque com isso estão a garantir de que têm “um bom e gratificante espectáculo”. Momentos de clarificação das questões como o verificado com a votação na Assembleia Nacional são muito importantes porque evitam as derivas anti-sistémicas e permitem que se retome o debate construtivo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1079 de 3 de Agosto de 2022.

segunda-feira, agosto 01, 2022

Melhorar o estado da Nação

 É crença geral que face à desgraça ou mesmo a situações complicadas o espírito de solidariedade dos cabo-verdianos vem ao de cima. Séculos de secas e fomes teriam criado esse reflexo que ao longo dos tempos e no limiar da sobrevivência tornou possível a emergência nas ilhas de uma sociedade com uma natureza, uma cultura e uma fisionomia própria. Seria de esperar que, perante as três crises da seca, da pandemia e da guerra de Ucrânia, que se conjugam e se reforçam numa ameaça quase existencial, tal reflexo ancestral se revelasse mais uma vez.

Aparentemente os tempos são outros e a ausência desse espírito solidário transversal à toda sociedade sente-se no estado da Nação, hoje dominado por polarização extrema, excesso de protagonismo pessoal e partidário e corrida interesseira aos recursos públicos por vários actores.

É verdade que se continua a ver sinais múltiplos de solidariedade vindos de diferentes quadrantes da sociedade com particular destaque para os provenientes das comunidades emigradas que aumentaram significativamente as suas remessas para os familiares. Da parte do governo foi oficialmente declarada a situação de emergência social e económica há cerca de um mês com o objectivo principal de sensibilizar e canalizar a ajuda Internacional ao país. Posteriormente o primeiro-ministro avançou com a proposta de uma frente comum de organizações da sociedade civil, confissões religiosas, ONGs e câmaras municipais para enfrentar as crises. Mas os resultados dessas iniciativas e de eventuais gestos de solidariedade não serão devidamente potenciados se não houver uma viragem fundamental na forma como as pessoas, a sociedade e o Estado encaram a actual situação da tripla crise.

De facto, na ausência de um consenso básico quanto à natureza excepcional do desafio actual e quanto aos compromissos a serem assumidos para o enfrentar interesses divisivos irão limitar o impacto das medidas tomadas e levar ao desperdício de recursos. Na generalidade das democracias como por exemplo na Itália, na França, nos Estados Unidos acontece algo similar. A disputa entre os partidos e o activismo de grupos com posições extremas em matéria cultural e social não deixam espaço para muitos compromissos. Questões existenciais como a pandemia e alterações climáticas e desafios como a transição energética, utilização de energias renováveis e os efeitos de digitalização não são enfrentados com a urgência que merecem e de forma consistente e sistemática como seria de exigir. A diferença é que nesses países há alguma capacidade de acomodação dos prejuízos que advêm dessa atitude.

Em Cabo Verde, essa capacidade é mínima por razões designadamente de dimensão do país e do mercado, de localização e de fragilidade da base produtiva. Se em tempos normais esse facto deve ser sempre considerado, na situação actual é algo crítico que devia compelir os actores políticos, mas também os sociais como os sindicatos a uma outra atitude. De facto, não é comportável ter todos a guerrearem-se à volta de sectores-chave como transportes aéreos, transportes marítimos, electricidade e água com exigências irrealistas, posições rígidas e soluções fantásticas. Os dois maiores partidos já se alternaram no governo mais do que uma vez e deviam conhecer as limitações sérias do país para não se enveredarem por caminhos que só eternizam os problemas e têm levado repetidamente a perdas avultadas de recursos.

Infelizmente até agora as alternâncias não têm trazido mais maturidade para a governação do país no sentido de maior disposição para negociar e chegar a compromissos com outros actores políticos e sociais. Quem vai para o governo ou passa a ser oposição, tende a repetir as mesmas atitudes que anteriormente criticava. É facto que as repetidas maiorias absolutas têm garantido estabilidade governativa ao país e permitido cumprir mandatos de cinco anos, mas paradoxalmente não se têm prestado a uma governação em que as políticas implementadas a curto, médio e longo prazo se traduzam em ganhos estratégicos e sustentáveis. Pelo contrário, insiste-se num eleitoralismo quase permanente que faz de cada acto ou realização um ganho para o governo e uma perda para oposição e o resultado, para além do crescimento económico que ainda não satisfaz, são os elefantes brancos, as reformas inacabadas ou desconexas e o aumento da dívida pública.

Mais do que nunca urge ultrapassar a actual situação de deficiente cooperação, da falta de confiança e de solidariedade muito aquém do que historicamente o país se reclama e que justifica o epíteto de nação resiliente. Toda ajuda disponibilizada ao país e todo o esforço posto pelas pessoas só terão impacto se uma ordem social e legal for efectivamente mantida. Sentimento de insegurança a todos os níveis tem que diminuir e atentados à autoridade pública como o roubo escandaloso de energia eléctrica não podem continuar. Mas para se ter a ordem social indispensável para enfrentar a crise sem precedente vivida actualmente há que primeiro pôr fim à tensão perniciosa nas instituições que apaga aos olhos das pessoas as virtudes do pluralismo e as deixa expostas aos discursos anti-sistema e anti-partido de populistas e outros actores políticos com tendências autocráticas.

O exemplo deve vir das lideranças que devem primar pela verdade e pela aderência aos factos nas suas intervenções na esfera pública. Verdade e confiança andam juntos e não se compadecem com ilusionismos, ambições desenfreadas e arrogância de poder. O estado da Nação deve melhorar no sentido de valorizar mais a liberdade, a autonomia e a solidariedade para que a esperança de uma via melhor realmente se concretize. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1078 de 27 de Julho de 2022.