segunda-feira, julho 25, 2022

Sem riscos não se constrói o futuro

 

Diz-se muito vezes, particularmente agora que a palavra resiliência entrou no discurso oficial e das organizações internacionais, que Cabo Verde é um país resiliente. Com essa expressão quer-se provavelmente passar a ideia que, apesar das adversidades vividas das secas, das fomes, do isolamento e da perda de população, o país tem capacidade de absorção de choques externos e de recuperação para um ponto a partir do qual pode continuar a sua trajectória como nação. A história mais recente a partir do século XIX e com enfase em grande parte do século XX mostra perfeitamente isso e deixa perceber como tudo aconteceu.

Momentos particulares de entrosamento do país com a economia global, devido à importância mais ou menos duradoira da sua posição estratégica na navegação marítima e aérea, na pesca ou nas comunicações e ainda à exportação de alguns produtos com valor no mercado da época, trouxeram algum desafogo necessário para essa caminhada. A música, a literatura e a postura cívica e cultural do cabo-verdiano e das suas elites que resultaram daí dão testemunho dessa resiliência. Sobrevivência e afirmação cultural não são, porém, suficientes. É fundamental diminuir as vulnerabilidades e ir além das limitações impostas pela pequenez do país, do seu mercado e dos parcos recursos naturais para se conseguir prosperidade e desenvolvimento. Claramente que viver na dependência da generosidade dos outros não deve ser opção de existência.

Quebrar o círculo vicioso da pobreza não é fácil. Para alguns, deixar de contar só com a ajuda de Portugal no quadro do império colonial para beneficiar da generosidade mais alargada da ajuda internacional depois da independência seria suficiente para se dar o pontapé de saída em direcção ao desenvolvimento. A realidade posterior de mais uma década veio a demonstrar que não é assim. Opções de política incluindo estatização da economia, industrialização na base de substituição de importações e a hostilidade ao turismo e ao investimento directo estrangeiro trabalhavam contra isso. Apesar de algum aumento no rendimento médio das populações e alguma protecção contra choques externos como as secas a tendência era para crescimento anémico e para uma maior dependência das populações em relação ao Estado.

Como se veio a constatar nos anos posteriores, foi só com a liberalização da economia acompanhada de privatizações, de atracção de capital estrangeiro, industrialização para a exportação e abertura para o turismo é que se conseguiu elevar o potencial da economia nacional, criar riqueza e gerar rendimentos para as populações. Mesmo assim não foi suficiente para romper o círculo de pobreza. Ganhos de um momento no quadro de programas de luta contra a pobreza rapidamente cediam lugar a perdas face a qualquer revês ou choque externo como secas e inundações, expondo vulnerabilidades profundas. Também os sinais de avanço nos bons anos não diminuíam significativamente o grau de dependência das pessoas e do sector privado em relação ao Estado e custos de contexto continuavam a pesar sobre a competitividade e a produtividade das empresas e da economia.

A tripla crise da seca, da pandemia e da guerra na Ucrânia veio expor o quanto é que, de facto, não se rompeu com círculos viciosos que reproduzem a pobreza no país. Os avisos já vinham de longe e tornaram-se mais frenéticos em cada etapa desta crise. Mesmo assim foram praticamente ignorados e não é certo que agora estejam realmente a ser escutados. A tendência é para utilizar os recursos disponibilizados em tempos de carestia como sempre se fez e o resultado só pode ser o de aprofundamento da dependência, da perda de autonomia e de uma maior fragilização face a crises futuras. Romper significaria mudar de atitude de forma a fazer de Cabo Verde uma sociedade de aprendizagem e de adaptação com base no conhecimento e estar na disposição de correr risco na identificação e aproveitamento das oportunidades. A inércia institucional e sociopolítica tem-se mostrado difícil de vencer e ideologias prevalecentes que desincentivam o espírito crítico e limitam a capacidade de aprendizagem, prejudicando o processo cumulativo do conhecimento, central para o desenvolvimento do país.

É da maior importância para qualquer país atrair investimento externo que inclua capital, transferência de tecnologia e know how e acesso a mercado. Para os países mais pequenos, menos populosos e insulares como Cabo Verde, e por isso mesmo com fraca poupança interna, mercado doméstico minúsculo e custos acrescidos para o acesso a espaços continentais, é algo vital. Como qualquer opção de política, a atracção de investimento externo via privatização e abertura do capital social de empresas nacionais a capitais estrangeiros ou com incentivos fiscais e outros a investimento directo estrangeiro acarreta riscos próprios de todo e qualquer empreendimento de não ser bem-sucedida ou de ficar aquém dos objectivos pretendidos. O contrário que seria não correr riscos e fechar-se ao mundo como se fez nos tempos idos já se sabe que levaria a um futuro de estagnação ou então a um crescimento anémico.

Naturalmente que os riscos devem ser calculados e que em caso de falhas nas estratégias implementadas se procure averiguar o que correu mal, determinar as responsabilidades e aprender com os erros cometidos. Em todos os países onde se fizeram privatizações, sejam os do Ocidente a partir de 1979 com Margaret Thatcher no Reino Unido sejam os países comunistas no pós queda do Muro de Berlim, raros são os casos que com o olhar de hoje se pode dizer que o processo foi perfeito ou que não se cometeram erros. Também em Cabo Verde se privatizou primeiro para se fazer a transição de uma economia estatizada para uma economia de mercado e depois para modernizar e inserir o país na economia mundial.

Certamente entre os ires e vires nas orientações dos diferentes governos de Cabo Verde, para além dos casos de sucesso, evidente para todos, houve outros casos em que se cometeram erros e depois levaram a verdadeiras renacionalizações como foi o caso da Electra na primeira década deste século e agora da TACV. Do processo da Electra conduzido pelo governo do Paicv e altamente politizado ainda se está a pagar a rescisão do acordo com a EDP em tarifas elevadíssimas de energia, em investimentos não realizados e no atraso na implementação de uma política energética que melhor preparasse o país para a actual e futuras crises devido à transição energética. Do processo da TACV em pleno governo do MpD e também altamente politizado os custos não vão se resumir ao anunciado 1,46 milhões de dólares que resultou do acordo assinado com o grupo Icelandair. A distorção dos preços de transporte aéreo de Cabo Verde tanto doméstico como internacional ainda vai continuar por muito tempo e com reflexos negativos na economia do país e na sua atractividade para viagens, turismo e negócios.

A destruição de valor resultando de negligências, omissões e politização excessiva da gestão da transportadora de há muito que vem acontecendo. Aliás, as várias tentativas de privatização tiveram com um dos objectivos pôr fim a esse sugar aparentemente interminável de recursos públicos. Até agora sem sucesso porque em meio de grande volatilidade política não se consegue extrair lições de erros e abordagens anteriores, nem se tem a ousadia de realisticamente dimensionar a empresa para o papel que eventualmente poderá ter no quadro de uma política nacional de transportes aéreos. Há gente que com esses infortúnios na gestão de parcerias externas queira agitar o espantalho do risco na ligação com a economia mundial. Mas sem riscos não se constrói o futuro.

É preciso deixar claro que para Cabo Verde romper com o círculo de pobreza e diminuir a dependência externa tem que ir para além da resiliência e correr riscos para poder prosperar. As falhas na TACV não devem ser impedimento para que com mais sabedoria se avance com iniciativas de grande alcance como a concessão dos aeroportos. Quem ousa ganha.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1077 de 20 de Julho de 2022.

segunda-feira, julho 18, 2022

Cabo Verde, nação resiliente e com sentido de futuro?

 

Já na segunda metade do ano 2022 e ainda não é claro qual irá ser o futuro próximo. As incertezas tendem a manter-se, mas com contornos nem sempre previsíveis. Logo nos primeiros dias do corrente ano, no início de Janeiro, com mais um surto do SARS-Cov-2 na variante Ómicron já se tinha que lidar com incertezas quanto à retoma da economia devido a constrangimentos nas viagens, no turismo e nas cadeias de abastecimento.

Depois de 24 de Fevereiro e na sequência da invasão da Ucrânia e das sanções aplicadas à Rússia e da subida em flecha dos preços dos combustíveis e dos bens alimentares e, de modo geral, da inflação, a situação global agravou-se consideravelmente.

O facto de nesta matéria ainda não se ver um fim e, pelo contrário, de se correr o risco de uma escalada nas hostilidades entre a Rússia e o Ocidente, com impacto sócio económico profundo em particular nos países mais pobres e nas populações mais desprotegidas, mostra que o panorama geral não só não mudou como tende a priorar. Receia-se que o que aconteceu no Sri Lanka dias atrás com a destituição do governo por multidões nas ruas se venha a repetir em outros pontos do planeta. A ameaça de um alargamento brusco da insegurança alimentar e mesmo de situações de fome no mundo é real, se persistirem os estrangulamentos no abastecimento de cereais e no fornecimento de fertilizantes a partir da Ucrânia e da Rússia.

Entretanto, a pandemia não acabou e surtos de subvariantes do Ómicron cada vez mais contagiosos, mas aparentemente menos letais, continuam a acontecer. Em Cabo Verde apesar de na última semana se ter conseguido diminuir bastante o número de casos activos da Covid-19, registaram-se dezenas de hospitalizações e cinco mortos desde de Junho. De acordo com as autoridades sanitárias, constatou-se também a presença das subvariantes BA.4 e BA.5 que por serem particularmente capazes de evadir o sistema imunitário levam a reinfecções de pessoas já vacinadas e facilitam o contágio a partir de infectados, mas assintomáticos. Daí a necessidade de continuar a vacinar e a administrar “boosters” para evitar complicações principalmente entre os mais vulneráveis.

Não há ainda um regresso à normalidade. Mantém-se o estado de alerta e continua-se a impor algumas restrições que de uma forma ou outra interferem com a circulação e a concentração de pessoas e prejudicam a produtividade com as exigências de cinco ou sete dias em quarentena, em caso de infecção, afectando negativamente a possibilidade de uma plena retoma da economia. É verdade que as pessoas estão cansadas de quase dois anos de pandemia e estão ávidas de uma vida mais livre e espontânea, mas não se pode deixar cair a guarda. Para muitos especialistas o vírus ainda não acabou de evoluir e possibilidades de sequelas com o chamado Covid longo deviam aconselhar cautela e incentivar hábitos de uso de máscara em situações especiais, a par com regulamentação da ventilação e qualidade do ar em recintos fechados.

Num contexto de crises sucessivas, saber fazer as mudanças que se impõem para as enfrentar é fundamental. Também importante é adoptar a atitude certa que reforça a confiança, facilita a cooperação e traz ao de cima o espírito de solidariedade. Em qualquer país isso é inegável. Em Cabo Verde é crucial para se poder ultrapassar os extraordinários constrangimentos que se colocam a um pequeno país de parcos recursos naturais, diminuta população e baixa conectividade. De outra forma seria resignar-se com crescimento económico que não satisfaz, que não diminui as desigualdades e que não reduz as vulnerabilidades particularmente das pessoas no mundo rural. As projecções de crescimento do FMI, no documento que acompanha o crédito de 60 milhões de dólares assinado dias atrás, situam-se à volta de 5% nos restantes anos desta década, menos que os 7% consensualmente considerados pelos próprios partidos políticos como o mínimo necessário para um verdadeiro “take-off” do país.

A conjuntura internacional actual marcada por incertezas devia imprimir uma maior urgência na adopção de uma nova atitude. Momentos de crise são de grandes mudanças e não há crise mais claramente explícita do que a da Ucrânia que resulta de uma guerra aberta que, querendo ou não, vai pelas suas repercussões provavelmente desconstruir a actual ordem mundial e criar outras mutuamente hostis ou pouco colaborantes. Não é talvez muito arriscado pensar que poderão emergir mundos separados na base de segurança, de comércio, de ordem monetária e financeira, de energia e mesmo de internet. No processo quase que se vai forçar cada país a tomar partido. Saber adaptar-se às novas exigências vai ser crucial.

Entrementes todos vão sentir o choque provocado pelas placas geopolíticas em movimento na espiral inflacionista alimentada pelos altos preços dos combustíveis e dos bens alimentares, no aumento das taxas de juro, no movimento de capitais para fora dos países emergentes, na alta do dólar e no agravamento da situação dos países devedores. Outras consequências mais graves poderão vir de um agravamento do conflito na Ucrânia provocado pelo avanço das tropas russas no território ucraniano que iria obrigar a uma reacção mais robusta dos Estados Unidos e da Europa. No sentido contrário o eventual sucesso das tropas ucranianas com armamento fornecido pelo ocidente também iria colocar à Rússia um dilema de alargar a guerra ou de chegar a um cessar-fogo provavelmente difícil de manter, porque em território ucraniano ocupado. As próximas semanas dirão da sua justiça relativamente às duas hipóteses e se o pior cenário de uma guerra interminável e destruidora continuará a provocar os seus efeitos nefastos sobre todo o mundo.

A percepção de que a conjuntura internacional marcada por crises sucessivas e por incertezas várias dificilmente mudará para melhor a curto e médio prazo terá levado o governo de Cabo Verde a tomar a iniciativa de mobilizar confissões religiosas, organizações da sociedade civil, ONGs, câmaras municipais e outras instituições para o “Fórum Nacional – Emergência de uma Frente Comum para Enfrentar e Vencer as Crises”. A iniciativa peca por vir tardia. Há muito que se devia ter chamado a atenção da nação cabo-verdiana pelos particulares desafios que enfrentava. Já aquando da seca e das profundas consequências que teve no mundo rural devia-se ter interrogado como tão facilmente as vulnerabilidades das populações vieram à tona apesar de anos de investimento e crescimento económico. Não aconteceu.

Depois veio a pandemia, os “lockdown” e a violenta contracção da economia e não foi acompanhada de uma reflexão que levasse a focar a nação no que claramente era uma antevisão de problemas futuros de natureza global que careciam de um especial engajamento de todos para serem enfrentados. Continuou-se a fazer o mesmo e a desvalorizar a crise com anúncios de retoma que depois ficavam pelo caminho. Finalmente veio a guerra na Ucrânia e só quase cinco meses depois se está a alertar para as profundas consequências do conflito. Durante crises sucessivas o país deixou-se embalar na política altamente polarizada que não deixa muito espaço para compromissos e tende a fazer do discurso político um exercício estéril. Não se elegem os órgãos externos da competência da Assembleia Nacional, não se consegue chegar a entendimentos em matérias fulcrais para o país como a segurança, educação e transportes e deixa-se passar ao lado os múltiplos projectos financiados pela cooperação internacional sem uma discussão sobre os objectivos pretendidos e os resultados obtidos.

É de perguntar se ainda se vai a tempo de construir a vontade comum necessária para se enfrentar os extraordinários desafios que se colocam. Dizia-se que era preciso ultrapassar o ciclo eleitoral para se ter tranquilidade e serenidade para fazer reformas do Estado. Passaram as eleições, mas aparentemente não se aproveitou o período da suposta acalmia eleitoral para se construir consensos que podiam advir de uma responsabilidade constitucional partilhada por todos os partidos. Nem as crises sucessivas conseguiram criar tal milagre. A questão é saber o que é que o impede. Provavelmente não se vai descobrir e as próximas eleições já não estão tão distantes. Cabo Verde certamente que apreciaria a oportunidade de demonstrar que é, de facto, uma nação resiliente e com sentido de futuro. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1076 de 13 de Julho de 2022.

segunda-feira, julho 11, 2022

Datas comemorativas devem reforçar o sentido do destino comum

Ontem, pelas comemorações dos 47 anos de independência nacional, repetiu-se o habitual. Foi proclamado o dia maior de Cabo Verde mesmo que para se conseguir o 5 de Julho teve-se que, primeiro, negar aos caboverdianos o direito à autodeterminação e logo a seguir submetê-los a um regime autocrático que duraria 15 anos.

Constatou-se pela quadragésima sétima vez que a independência valeu a pena porque supostamente teria posto fim às fomes passando por cima do facto que desde a última em 1947, segundo José Vicente Lopes, no seu recente livro, não aconteceram mais. Assistiu-se à mais uma demonstração do culto de personalidade de Amilcar Cabral que semelhanças só tem com o culto de figuras revolucionárias como Lenine, Mao Tse Tung e Kim il Sung e como tal é naturalmente impróprio das democracias.

Ainda repetiu-se pela enésima vez a cantilena que muitos não acreditavam na viabilidade do Cabo Verde como país independente. Como se ao longo destes anos o país tivesse provado o contrário, diminuindo vulnerabilidades e dependência da ajuda externa a exemplo das Maurícias que recebeu uma advertência similar do Prémio Nobel da Economia James Meade, mas conseguiu prosperar com superior governança. Tudo isso no ritual costumeiro de glorificação dos auto-intitulados “melhores filhos do povo” e de demonstração de eterna gratidão que os retira qualquer responsabilidade pela forma como exerceram o poder durante anos e efectivamente desperdiçaram oportunidades e recursos do país.

A comemoração do dia da independência não devia servir para isso. De facto, numa democracia onde a legitimidade do exercício do poder político é dado pelo voto livre e plural não se espera apologia directa ou indirecta de regimes suportados em legitimidade histórica. E num Estado de Direito Democrático não se reconhece “Estado de Direito” em regimes com Lei do Boato, com a direcção nacional de segurança a deter cidadãos até cinco meses, com civis a serem julgados por tribunal militar, juízes nomeados por ministros e restrições efectivas à liberdade de expressão, de imprensa e de associação.

A celebração da independência é o momento para toda a comunidade político-nacional se ver una e não a revisitar as divisões do passado. Também deve ser para renovar o “contrato social” com base nos princípios e valores da liberdade, da democracia e do Estado de Direito” sem o qual não há suficiente consenso na república que possibilite o dissenso indispensável para se encontrar os caminhos para a prosperidade, respeitando a dignidade de todos. Se com cada comemoração se dá ou não um passo para enfrentar o presente e para construir do futuro vai depender do carácter da nação que se souber erigir.

Como dise John Kennedy esse caracter, tal qual o caracter do indivíduo, “é produzido em parte por coisas que fizemos e em parte pelo que nos foi feito. É o resultado de factores físicos, factores intelectuais e factores espirituais. Na paz, como na guerra, sobreviveremos ou fracassaremos” na medida em que se souber lidar com isso tudo. Não deixar que memórias e narrativas criadas para legitimar actos do passado desestruturem o presente é essencial para se manter a energia e o foco necessários para vencer os desafios actuais e não ser apanhado em círculos viciosos que reproduzem vulnerabilidades e aumentam a dependência.

A fragilidade que o país tem demonstrado perante as crises sucessivas deixa entender que ao longo de todos estes anos de independência não houve atitude e acção consistentes da parte de toda a nação e da sua governação que efectivamente permitisse ao país dar o salto para um outro patamar. Houve avanços, muita ajuda foi recebida, mas está-se muito aquém do ponto onde se devia estar. Num dia como o da independência nacional devia-se falar com clareza da realidade das coisas sem cair no jogo de pôr a culpa no outro e sem sentimentalismos que apenas servem para escamotear a realidade. O país precisa de factos, de honestidade e de motivação solidária para enfrentar os graves problemas da actualidade.

Para Michael J. Mazarr, cientista político sénior da Rand Corp, são sete os atributos necessários para o sucesso competitivo das nações: ambição e vontade nacional; identidade nacional unificada; oportunidade compartilhada; um Estado activo; instituições eficazes; uma sociedade de aprendizagem e adaptação; e diversidade competitiva e pluralismo. Cabo Verde com uma consciência nacional de séculos e sobrevivente de fomes sem nunca ter sucumbido ao fatalismo não devia ter dificuldade em mostrar ambição e vontade na consecução dos seus objectivos. Nesse sentido, prejudicial são as narrativas que ao alimentar sentimentos de vitimização e ressentimento deixam as pessoas presas em círculos viciosos de dependência e de pobreza. Pior ainda, são aquelas outras que em vez de ver riqueza na diversidade como bem cantou Antero Simas introduzem elementos de desestruturação de uma identidade nacional unificada em vez de a potenciar. Perde-se um factor de sucesso competitivo por causa de ideologias completamente alheias à formação da nação cabo-verdiana.

O contrato social que deve ser renovado em comemorações da independência, para ser efectivo e conseguir engajamento de todos, deve incluir a promessa da oportunidade compartilhada que não deixa ninguém de fora. De outra forma deixa-se campo aberto para os populistas que apresentando-se como anti-elitistas mais não fazem do que polarizar a sociedade sem resolver os problemas reais dos mais pobres. Nesse sentido, é essencial um Estado activo, mas eficiente e instituições eficazes nos diferentes sectores económicos sociais e culturais que propiciem um ambiente adequado para iniciativas individuais e empresariais e para manifestações criativas e inovações capazes de produzir riqueza e criar empregos de qualidade.

A suportar tudo isso deve-se alimentar o amor ao conhecimento e uma preocupação com a verdade e com os factos que depois se traduzam numa sociedade ávida de aprender e pronta a se adaptar a novos desafios. Imagine-se que para isso não se pode ter a realidade condicionada e distorcida por ideologias ultrapassadas no tempo, memórias ficcionadas e cultos de personalidade. Pior ainda, se suportadas por estruturas do Estado no sistema educativo e na comunicação social pública que estão sob o comando constitucional de não impor “directrizes filosóficas , estéticas, políticas, ideológicas e religiosas”.

O mundo está a mudar rapidamente e as incertezas são muitas e não se sabe qual será o rumo que as coisas vão tomar. Fixar-se em reforçar os factores de sucesso competitivo que Michael J. Mazarr apontou é fundamental para se ter a nação pronta para os enormes desafios que se colocam e suficientemente maleável para uma realidade em transformação a todos os níveis. Manter o ambiente sócio-político e económico diverso e plural sem cair em extremismos e divisões artificiais garante a dinâmica que a troca livre de ideias pode propiciar para se encontrar as melhores soluções para os problemas e situações difíceis que poderão estar à frente.

Cabo Verde é um país pequeno e frágil e não pode ficar simplesmente dependente da generosidade dos outros até porque já deve saber que há limite para isso. Contar consigo próprio e com a força, a energia e o sentido de destino comum que construiu durante séculos é fundamental para o país poder fazer o melhor das oportunidades e da ajuda que eventualmente receber do mundo. Datas comemorativas devem servir para o reforço desse espírito e não para impor narrativas, inibir o pensamento livre e alimentar realidades alternativas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1075 de 6 de Julho de 2022.

 

segunda-feira, julho 04, 2022

Salvar os oceanos e resolver o futuro

 

Na conferência sobre os oceanos que decorre em Lisboa ao longo desta semana até 1 de Julho representantes de todos os países do mundo reúnem-se para definir objectivos, traçar metas e encontrar vias para ultrapassar os males que hoje afligem os oceanos.

Na mira de todos estarão certamente a poluição, as ameaças à biodiversidade e os plásticos. Questões como as alterações climáticas serão discutidas. Considerando que os oceanos constituem 71% da superfície da Terra e a elevação do nível do mar afectará a todos com efeitos catastróficos em muitos lugares e particularmente nos espaços insulares. Sendo os oceanos grandes produtores de oxigénio e o maior centro de sequestro de carbono para além do seu potencial de produção de alimento, de energia e de metais valiosos, certamente que se procurará chegar a algum tipo de consenso quanto à sua gestão. Já há países que garantem que se vão responsabilizar por pelo menos 30% da sua zona exclusiva.

A dúvida é se realmente é desta vez que haverá o engajamento necessário para isso. A inacção nessas matérias que vem de muito atrás mereceu um pedido de desculpa do secretário-geral da ONU, António Guterres, logo no começo da conferência. Chegou mesmo a dizer, que “fomos lentos e muitas vezes relutantes a reconhecer que as coisas estavam a ficar piores”. Continuou afirmando que “ainda estamos na direcção errada”. Realmente depois da primeira conferência de Nova Iorque, em 2017, não se avançou muito no sentido de salvaguarda dos oceanos. Pelo contrário, houve retrocessos no que respeita aos acordos de Paris em matéria de alterações climáticas e agora na sequência da pandemia e da guerra na Ucrânia tornou-se mais difícil avançar com a transição energética.

Fala-se actualmente em aumentos dos investimentos nos combustíveis fosseis quando se devia estar a tratar da diminuição da sua utilização e da mudança para as renováveis. O caminho para o futuro, porém, tem que ser o que leva à descarbonização da economia e à redução dos riscos associados ao efeito de estufa e a variações extremas de temperatura. De outro modo é todo o planeta que fica à mercê da maior violência e frequência dos ciclones, das grandes e inesperadas inundações, de secas prolongadas, do degelo dos glaciares e consequente elevação do nível do mar com todas as consequências inerentes. É evidente que melhor posicionado para navegar e beneficiar desse futuro estarão os países que previram com devida antecedência a actual situação e souberam preparar-se no tempo certo com investimentos, tecnologias e mudanças comportamentais adequados.

Um futuro marcado pela importância central do mar na economia devia ser óbvio para um país arquipélago como Cabo Verde e para países com extenso litoral e tradição marítima como, por exemplo, Portugal. O facto de não o ter sido no caso de Portugal levou o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, numa intervenção no âmbito da conferência dos oceanos, a dizer aos jovens para não confiarem nos decisores e lutarem por si contra as alterações climáticas e a favor dos oceanos. Aparentemente a inacção das autoridades nessa matéria não se deve ao desconhecimento. Recentemente em Portugal até se criou um ministério do Mar precisamente para dar atenção especial aos problemas do mundo oceânico e procurar explorar os seus recursos de forma sustentada. Do que se pode depreender das reacções de Guterres e do presidente da república portuguesa é que talvez na prática não tenham sido consequentes em termos de políticas viradas para o sector. Algo similar terá acontecido também em Cabo Verde.

Cabo Verde em 1995 e muito antes de Portugal teve o seu primeiro ministério do Mar. O ministério desapareceu anos depois e voltou a reaparecer no governo que resultou das eleições de 2021. Por aí vê-se que durante a maior parte do tempo o sector não era tido como central, mas sim subsidiário de outros como se pode constatar no caso da sua junção ao ministério da agricultura ou quando foi integrado no sector dos transportes. É uma opção que não deixa de ser paradoxal num país arquipelágico e com uma vasta zona económica exclusiva. De facto, para suprir a falta de recursos em terra deveria fazer todo o sentido que se procurasse explorar as sinergias que actividades múltiplas com base no oceano designadamente a pesca, aquacultura, transportes, investigação científica, controlo da poluição, turismo e desporto náutico pudessem facultar.

Nem mesmo no campo da fiscalização das águas territoriais e da zona económica exclusiva do país, onde se devia exigir uma atenção especial porque de soberania, de segurança e de controlo dos recursos naturais, se soube fazer a aposta certa. A opção foi de se ter Exército “em terra” talvez com questões de regime e de segurança interna em mente. A Guarda Costeira criada nos anos 90 ficaria num estado incipiente enquanto deficiente se mantinha ao longo dos anos a fiscalização das costas, do mar territorial e da zona económica exclusiva do país. Isso sem falar em todas as outras missões que constitucionalmente foram-lhe atribuídas em matéria de busca e salvamento, protecção do meio ambiente e controlo da poluição marítima, de apoio à protecção civil e combate aos diferentes tráficos.

O resultado disso tudo é que Cabo Verde, com a sua secular vocação marítima, podia ter-se especializado na prestação de vários serviços de segurança no sector do mar e provavelmente ser útil nesta região do Atlântico Médio e da costa ocidental africana quando ainda hoje tem por estruturar e operacionalizar uma guarda costeira à altura das suas necessidades, ameaças e desafios. Uma boa notícia é que nos últimos dias se passou a ter um Contra-almirante na chefia das Forças Armadas e talvez se consiga finalmente adequar as FA ao que realmente o país precisa. Também em outros sectores a tradição de um país de marinheiros, de pescadores, de industrialização na base de conserveiras em várias ilhas, de escolas do mar podia ter sido potenciada. Infelizmente, as opções foram outras e o resultado é que, apesar dos enormes investimentos feitos, a capacidade de captura de peixe continua insuficiente, as conserveiras dependem de facilidades renovadas anualmente pela União Europeia, a formação profissional em diferentes sectores está aquém das necessidades do mercado e a investigação é incipiente.

Num mundo onde cada vez mais se fala da economia azul e da economia verde o facto de Cabo Verde não estar em posição de beneficiar com soluções próprias e testadas e ser um exemplo a seguir é revelador da falta de visão que terá marcado décadas de governação do país. A exortação de Marcelo Rebelo de Sousa também aqui se aplica. Convenhamos que não devia ser de hoje ter-se uma a estratégia para a transição energética. Eficiência energética e utilização eficiente da água há muito que deviam constituir uma prioridade das políticas do Estado e razão suficiente para mudanças comportamentais com impacto positivo na competitividade, na qualidade de vida e do meio ambiente e na diminuição da dependência de combustíveis fósseis.

Em áreas em que um país é claramente frágil ou mostra desvantagens, o facto de se encontrar soluções inovadoras para as ultrapassar pode revelar-se útil quando outros países se virem em situações similares e precisam de assistência. Michael Porter no livro “A Vantagem Competitiva das Nações” aponta o exemplo de Israel com as soluções de poupança de água e do Japão com os amortecedores para as más estradas do país que depois conquistaram o mundo. A via, porém, para lá chegar não pode ser o acumular de projectos que mais cumprem uma agenda de parceiros internacionais do que fazer parte de uma estratégia própria do país no quadro de uma agenda de futuro. Ao seguir sem critério, corre-se o risco de acabar por ficar com um “cemitério” de projectos e uma dívida pública pesada. Com uma agenda própria o futuro tem a chance de cumprir as promessas feitas.

Nestes tempos críticos, é fundamental não se deixar enredar em slogans ou simplesmente ir atrás das ofertas de dinheiro em nome do salvamento dos oceanos, das alterações climáticas e da transição energética. Resultados duráveis que beneficiam a todos exigem políticas consistentes e sustentáveis. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1074 de 29 de Junho de 2022.

segunda-feira, junho 27, 2022

Emergência económica e social também se aplica à segurança

 

Na segunda-feira quase sem aviso prévio o primeiro-ministro apareceu a declarar a situação de emergência social e económica de Cabo Verde.

Invocou a guerra na Ucrânia e o seu impacto na oferta e nos preços dos produtos alimentares e dos combustíveis. Na sua intervenção o PM disse que a iniciativa da declaração “vai permitir accionar junto dos parceiros instrumentos e mecanismos ajustados às respostas de emergência e mobilizar recursos”. Acrescentou ainda que também visa o reforço da consciencialização dos cabo-verdianos sobre a grave situação que o mundo vive e o seu impacto no país.

Avaliando a oportunidade da tomada de posição do governo pode-se dizer que, no que toca à consciencialização dos cabo-verdianos sobre a gravidade das ameaças e desafios com que Cabo Verde se depara, a declaração, não obstante as propostas pertinentes e sensíveis, provavelmente terá sido algo tardia. A emergência económica e social já vem da pandemia, dos sucessivos surtos, das dificuldades posteriores na retoma e das incertezas em relação ao futuro derivado do chão movediço em que o mundo procura apoiar-se nestes tempos. As tensões geopolíticas e a guerra subsequente só vieram agravar ainda mais a situação. Também a declaração terá sido omissa num renovado apelo à solidariedade de “todos para com todos”, algo que não se perde nada em repetir para assegurar que os recursos próprios são canalizados de melhor forma e que há total empenho para que a ajuda internacional concedida tenha a melhor utilização e atinja as pessoas que mais dela necessitam.

De facto, as crises sucessivas dos últimos anos durante as quais se tem a registar a contracção de quase 15% do PIB do país e o aumento na dívida pública acima dos 150% do PIB acabaram por deixar a nu as profundas vulnerabilidades do país e as dificuldades de a médio prazo as poder ultrapassar. Mas a particularidade de, mesmo com essas situações extremas, não haver a consciencialização desejável dos extraordinários desafios que se colocam impediu a mobilização de energias suficientes para os enfrentar de forma sistemática e decisiva. Ficou-se sempre na expectativa de ver a pandemia passar, de não haver mais surtos de coronavírus e de rapidamente se voltar à normalidade anterior. E qualquer sinal de actividade era tido como prenúncio de retoma. Não havia como cristalizar essa consciência das dificuldades e deixá-la crescer num ambiente desses, ainda para mais, em cima de eleições que por natureza são polarizantes.

Não espanta que logo que com o esvanecer da vaga da variante Ómicron em fins de Janeiro do corrente ano se tenha descortinado uma oportunidade para voltar às práticas anteriores. Vê-se isso no proliferar de festas com subsídio público, de viagens e de outros eventos provavelmente dispensáveis porque realmente não prioritários como tinha ficado provado durante a pandemia. O mundo, porém, de facto mudou e nem sempre para o melhor e as boas novas da vacina não eram suficientes para garantia completa de imunidade. Por outro lado, dificuldades inesperadas surgiram no abastecimento e nos preços devido a estrangulamentos nas cadeias de abastecimento e a inflação reapareceu a assombrar a todos, impactando negativamente no rendimento das pessoas em particular dos mais pobres. A guerra, as sanções e as incertezas vieram piorar ainda mais a situação. Sofre mais quem menos conseguiu ler os sinais dos tempos e não construiu resiliência económica, nem tão pouco resiliência cívica e solidária para enfrentar incertezas.

Num livro recentemente publicado “Gambling on development” (Apostando no desenvolvimento) o autor Stefan Dercon diz que a “característica definidora de um acordo para o desenvolvimento é o compromisso da elite do país, ou seja, daqueles com o poder de moldar a política, a economia e a sociedade, de lutar pelo crescimento e o desenvolvimento”. Segundo esse economista, é só com esse acordo de elite, por exemplo, é que a própria ajuda externa deixa de ser uma espécie de remendo para os problemas do país para se torna num factor impulsionador nos períodos de crescimento e amortecedor nos momentos difíceis. Infelizmente não há muitos sinais que exista tal acordo em Cabo Verde. É maior a tentação do jogo de soma zero em que um ganha com a perda do outro, ou seja, de se manter um processo subtractivo que prejudica ou mesmo inviabiliza a cooperação necessária para se adicionar eficiência e eficácia ao sistema político-económico com proveito geral. Em momentos de emergência social e económica como o actual, existir ou não um acordo dessa natureza é fundamental até para que a ajuda internacional tenha os benefícios desejados de mitigar os efeitos da crise internacional nos mais pobres e no país.

Um bom ponto de partida para se construir um tal acordo seria a luta contra a criminalidade. Os recentes homicídios na Cidade da Praia com destaque para o assassínio de um guarda prisional chamam a atenção para a necessidade urgente de se combater a insegurança na capital e em todo o país. Sem garantia de segurança a todos os níveis não há realmente possibilidade de desenvolvimento. E ordem e tranquilidade pública não são matéria que deva ser escamoteada sob que pretexto ou artifício for. Nem também deve ser objecto de confrontos entre as forças políticas que invariavelmente terminam deixando as coisas como estavam ou como eram feitas, salvando as aparências, enquanto recursos crescentes são sugados sem que haja benefício que justifique os maiores custos incorridos.

Resultados concretos em termos de diminuição da percepção de insegurança devem ser exigidos e não se ficar pelos efeitos mediáticos das mega operações policiais ou com declarações de “guerra” ao crime. Como bem refere o criminologista David Kennedy o que acaba por acontecer nas comunidades mais pobres quando se adopta certo tipo de tácticas e se militariza a polícia é que se cria uma dinâmica estranha de excesso de policiamento e de subprotecção das pessoas, deixando para trás um rasto de desconfiança que dificulta colaboração futura com as autoridades. Um grande avanço seria, sem dúvida, diminuir o que aparentemente é o acesso fácil a armas de fogo de fabrico artesanal e outras por parte de jovens e adolescentes. Em quase todos os crimes violentos fala-se do uso dos “Boka bedju”.

O governo anunciou na semana passada que vai propor alterações na lei para que, entre outros mecanismos de controle de uso e posse de armas, aumentar penas para a posse ilegal. Passaram nove anos depois da entrada em vigor da lei de armas em 2013 e quatro anos depois do comandante da polícia nacional na ilha do Sal, com prejuízo da sua carreira profissional, ter declarado que a lei vigente é amiga das armas na sequência de uns disparos feitos alegadamente por um jovem contra um carro de turistas. Não se tem a percepção que durante os anos seguintes diminuíram as armas em circulação ou são menos utilizadas em assaltos e conflitos entre pessoas e gangs. Pelo contrário.

Razão para que nestes tempos em que todos parecem reconhecer uma situação de emergência social se tomar uma posição de “desarmar a população” como já foi aconselhada em outros editoriais deste jornal e a exemplo do que países como o Reino Unido (1997), Canadá (2020), Austrália (1996) e Nova Zelândia (2019) e o próprio Brasil (2003) fizeram quando confrontados com escalada grave da criminalidade violenta. E esses são países com cultura de armas ou uma cultura de “fronteira” e não Cabo Verde, onde parece que o que alguns chamariam de masculinidade tóxica tem expressão na posse de armas, em assaltos, guerras de gang e, no extremo, ataque a polícias no intuito de roubar a pistola.

A próxima discussão da lei de armas na Assembleia Nacional pode ser a oportunidade para esse acordo da classe política no sentido de desarmar a população e acabar com o sentimento de insegurança no país. A seriedade que se deve mostrar a enfrentar a situação de emergência social e económica deve ser a mesma a ser posta na resolução do problema de insegurança sentida pelas pessoas. Não há uma coisa sem outra. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1073 de 22 de Junho de 2022.

segunda-feira, junho 20, 2022

Concentração de poderes não é salutar

 

O governo pelo decreto-lei nº 21/2022, publicado no Boletim Oficial de 10 de Junho, criou uma nova entidade reguladora independente, a Autoridade de Concorrência, com a missão de promoção e defesa da concorrência nos vários sectores económicos tendo em vista o funcionamento eficiente dos mercados, a afectação dos recursos e os interesses dos consumidores.

A exemplo do que vem acontecendo em vários países que recentemente e em particular nos anos noventa seguiram pelo caminho da liberalização da economia, supõe-se que com este e outros actos quer-se dar um outro impulso ao processo de transição de um Estado intervencionista para um Estado regulador da economia. Independentemente da pertinência e da oportunidade da criação neste momento da nova autoridade reguladora não deixa, porém, de ser curioso que a indicação para a nomeação dos membros do conselho de administração tenha sido atribuída ao ministro das Finanças.

O normal seria que fosse o ministro que normalmente reúne os sectores do comércio, da indústria e da energia como acontece noutras paragens. Aliás, o próprio diploma refere-se a atribuições antes exercidas por serviços desse ministério em matéria de concorrência que são passadas à nova autoridade reguladora. Também no caso recente da nomeação dos membros do conselho de administração da Agência Reguladora Multissectorial da Economia (ARME) a impressão com que se fica é que, apesar da lei estabelecer que a indicação dos membros do conselho de administração deve ser sob proposta dos membros de governo com responsabilidade nas áreas cobertas pela ARME, todo o protagonismo ficou com o titular das Finanças. Coincidentemente dois dos nomeados, incluindo o PCA, vieram directamente de posições-chave no ministério das Finanças.

Mesmo que se considere que esse papel reforçado seja uma opção do executivo há certas questões a ponderar. O ministro já tem competências abrangentes sobre os sectores financeiro e fiscal e é de se perguntar se não se torna problemático para o funcionamento eficiente e eficaz do país que ainda se acrescente outras noutros sectores de actividade. Para além de eventual ruído no próprio funcionamento do governo tendo em conta que os estatutos estipulam que a relação orgânica da ARME faz-se através do ministro da Economia é quase inevitável que tal concentração excessiva de poderes tenha outras consequências. Por outro lado, pode acabar por afectar de algum modo o desempenho de empresas públicas e privadas, a autonomia das entidades reguladoras, a competitividade do país e os próprios consumidores nas escolhas possíveis de produtos e serviços e nos preços a pagar.

Situações similares de sobreposição ou de algum conflito de competências já se tinham verificado anteriormente e viram-se as consequências na governação e na condução de certos dossiers como o da privatização da TACV. A resolução do governo nº 87/2017 de 3 de Agosto que dispôs 23 empresas públicas ou participadas pelo Estado para serem privatizadas ou cedidas em forma de concessão passou efectivamente a tutela dessas empresas para o ministério das Finanças. Na sequência dessa decisão e provavelmente em resultado das tensões criadas o então ministério da Economia que abrangia os vários sectores da economia foi dividido em três ministérios no quadro de uma remodelação ministerial que se verificou no fim do ano de 2017 e alguns dos seus serviços ou departamentos transferidos para o ministério das Finanças. A aparente intenção de dar um maior peso ao ministério da Economia na estrutura do governo implícita no desenho inicial sucumbiu à habitual dinâmica governativa em Cabo Verde que acaba sempre por afirmar uma posição quase hegemónica do ministério das Finanças sobre os outros departamentos governamentais.

Aconteceu no passado quando a instabilidade na área económica da governação visível no facto de se ter sete ministros de economia em 15 anos contrastava com a estabilidade nas finanças com três ministros. Voltou a mostrar-se no último governo com múltiplas mudanças de titulares e de configuração governamental nos sectores económicos mantendo-se o mesmo ministro das Finanças e cada vez mais reforçado na sua função de vice-primeiro-ministro. Com isso o país aparenta ter um viés na forma como a sua economia é estruturada e orientada que não só tende a mantê-lo institucionalmente débil e como também muito aberto à informalidade devido à fragilidade do seu tecido empresarial. Vive-se numa espécie de círculo vicioso que de alguma forma impede Cabo Verde tanto de conseguir taxas de crescimento que podiam construir uma base de criação de empregos e de aumento de rendimento como também de se diversificar para ganhar resiliência e enfrentar as suas vulnerabilidades e diminuir a precariedade das populações.

Mesmo antes da pandemia não se conseguiu chegar a crescer a economia a mais de 7 % do PIB, a taxa que consensualmente se considera necessário para, de facto, debelar a pobreza, combater o desemprego e prosperar. Não parou de crescer, porém, durante todo esse tempo, o escopo da actividade do ministro das Finanças. Com a crise que veio depois e a ajuda externa que foi mobilizada então é que se agigantou como se pode comprovar pelo frenesim de aparecimentos públicos em múltiplos eventos prodigiosamente cobertos pelos órgãos de comunicação e pelas redes sociais. O problema é que fazer essencialmente o mais do mesmo como anteriormente, mas agora numa escala ainda maior, não só tende a reproduzir as ineficiências do passado como muito provavelmente a agravá-las.

Em situações de crise a dependência em relação a quem gere recursos e disponibilidades acaba por afectar negativamente a participação e autonomia das outras partes, diminuindo a complexidade de todo o sistema e com ela a sua resiliência, capacidade adaptativa, a iniciativa e criatividade. No processo perde-se extraordinariamente em eficiência e eficácia mesmo que se esteja a nadar em recursos disponíveis. O próprio governo é afectado porque perde em colegialidade quando os seus membros são condicionados pela gestão que é feita num ministério das Finanças cada vez mais influente. O sistema do governo de base parlamentar enfraquece e perde as virtualidades derivadas de um exercício construtivo do contraditório quando a percepção de crise se generaliza e desencadeia uma corrida desenfreada aos recursos cada vez mais escassos.

Não é à toa que para além de não se ter conseguido o crescimento necessário, não se conseguiu travar o sentimento de precariedade e assiste-se ao degradar de sistemas como o de segurança, da justiça e da educação. A pandemia apesar dos seus efeitos nocivos trouxe a possibilidade de ajuda massiva no sector da saúde que ajudou o país a conter a percepção das deficiências. Nos grandes objectivos de redinamizar a economia com as privatizações como se cogitou na referida resolução nº 87/2017 das 23 empresas só realmente se concretizou o processo da privatização da TACV e pode-se claramente ver pelos resultados que, de facto, fracassou redondamente e resultou em mais dívida pública e destruição de valor em vários sectores de actividade conexas. Há que continuar a atrair investimento externo, construir parcerias e criar condições para servir uma procura externa de bens e serviços, mas aprendendo com os erros cometidos, sendo competitivos e adquirindo competências várias e garantindo segurança a todos os níveis, seja ela pessoal, jurídica, sanitária e regulatória.

Concentração de poderes em estruturas, funções e pessoas nunca é salutar. Perde-se extraordinariamente em eficiência e eficácia e inibe-se toda a criatividade, a capacidade de correr riscos e a energia necessária para sair da situação de crise e construir algo de novo. A crise que se vive actualmente é afinal várias crises juntas e ninguém garante que outras não vão aparecer. Não é repetindo os erros do passado recente que se vai contornar as dificuldades e enfrentar as incertezas. A construção de uma base sólida onde se possa apoiar para se conseguir o desenvolvimento sustentável e inclusivo irá requerer espírito de solidariedade, respeito pela diversidade, adesão aos princípios e valores da liberdade e democracia e uma verdadeira paixão pelo conhecimento. Um desafio que se coloca principalmente aos que detêm o poder e têm a responsabilidade de o exercer para o bem de todos e não para benefício pessoal. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1072 de 15 de Junho de 2022.

segunda-feira, junho 13, 2022

Os tempos clamam por um Estado mais eficiente em tudo

 Nos últimos dias vem-se desenvolvendo uma controvérsia à volta da participação do presidente da república numa cimeira da CEDEAO no Gana. Primeiro, através de um comunicado, os serviços da presidência da república anunciaram que por razões logísticas e financeiras o PR não iria estar presente no encontro de Chefes de Estado e de Governo marcado para o dia 4 de Junho.

Depois questionou-se se houve ou não cortes no orçamento da presidência da república no tom já habitual entre os protagonistas políticos que pouco esclarece, mas serve para alimentar especulações sobre possíveis tensões entre os dois órgãos de soberania. Curioso é que enquanto em Cabo Verde muitos se apoderam do tema com intervenções na comunicação social e nas redes sociais que acabam por configurar mais um “round” nos múltiplos jogos para manter activa de crispação política, a cimeira de Accra, sem ter conseguido chegar a acordo em relação à situação no Mali, Burkina Faso e Guiné-Conacri mostrou-se praticamente uma perda de tempo. Foi adiada para o próximo mês de Julho.

De qualquer forma, em todo este imbróglio a questão central sobre qual devia ser a participação de Cabo Verde, considerando as prioridades da política externa do país, e a que nível de representação, se do Chefe de Estado ou do Governo ou de Embaixador, é que aparentemente não foi discutida. Certamente que se tivesse sido esse o caminho seguido desde o início, para qualquer que fosse a opção adoptada encontrar-se-iam os meios financeiros para a concretizar, não obstante os constrangimentos orçamentais actuais do país. Tanto nesta como em outras situações é fundamental que se afirme que deslocações e viagens oficiais têm como objectivo principal razões de Estado e não protagonismo pessoal ou motivação partidária. Porque, de facto, tratando-se da utilização de recursos públicos, e estes são sempre escassos, a decisão para as realizar devia ser sempre devidamente ponderada.

A verdade é que há dúvida nas pessoas, que todos os dias assistem na televisão pública ao desfile dos políticos em frequentes e repetidas visitas às ilhas, encontros com população, auscultações, inaugurações, apresentações de planos estratégicos, aberturas e fechos de seminários, formações e socializações, se essas deslocações e viagens se justificam. Provavelmente algumas terão razão de ser, mas certamente que nem todas. Viu-se durante a pandemia, em particular durante os lockdown e as restrições nas viagens, que com alguns constrangimentos é certo, podia-se funcionar, fazer chegar mensagens às pessoas e resolver problemas candentes. A essa experiência muito concreta e real devia seguir-se mais contenção no que até o momento tinha sido uma prática de décadas.

As dificuldades que se seguiram com a retoma a não se verificar no ritmo esperado, com os surtos das variantes do SARS-CoV-2 a perturbar um regresso à normalidade, e depois com a invasão da Ucrânia pela Rússia acompanhadas das incertezas em relação a esses e outros constrangimentos que ainda se mantêm, deviam ter levado a uma mudança profunda de atitude. Não foi o que aconteceu e claramente que a tendência é voltar ao que sempre se fez. E continuará a ser assim enquanto não houver melhor ponderação nas decisões de viagem, considerando designadamente as prioridades de governação, a eficácia na execução da política interna e externa do governo, a representação do país e o dever de accountability, de responsabilização e de prestação de contas. Ficar-se-á na mesma também se não se cortar com práticas de responder sem razão justificada a convites feitos ou solicitados, de exercer funções públicas seguindo motivações pessoais ou partidárias ou deixar-se enredar em agendas de outras entidades porque é conveniente e não se tem uma agenda própria.

Muito do que acontece na política e em outras actividades públicas e em eventos diversos ao nível nacional e também local faz-se em modo de espectáculo e em geral põe-se mais ênfase nos protagonistas do que nos temas ou questões tratadas. Daí o desdobramento de certas personalidades por tudo o que é mediático resultando muitas vezes em excesso de exposição, banalização de funções e em custos evitáveis em deslocações e estadias. E não se pense que nisto tudo estão envolvidos apenas governantes, deputados, presidentes de câmara e outros políticos. O Primeiro-ministro na discussão do Orçamento do Estado a explicar os 630 mil contos para deslocações e estadias deixou claro que uma parcela significativa dessa soma é utilizada pela administração pública e outros serviços do Estado e o mais normal é que as práticas já estabelecidas levem a um maior prejuízo para as finanças públicas do que se pode claramente assacar aos políticos. Afinal eles são um alvo mais visível e atacável do que práticas e culturas organizacionais estabelecidas que muitos pouco ousam pôr em causa.

O privilégio de viajar dentro e fora do país com as correspondentes ajudas de custo foi sempre cobiçado nos vários níveis dos serviços do Estado. Visto por muitos como complemento de salários deliberadamente diminuídos nos primeiros anos da independência era procurado activamente pelos que tinham acesso de alguma forma a dirigentes e conseguiam integrar delegações. Aos outros num tempo que era de escassez ficava só a possibilidade de comprar produtos trazidos do exterior por colegas e adquiridos, supunha-se, com poupança nas ajudas de custo. Imagine-se a inveja que tudo isso provocava. Quando podiam, alguns privilegiados até instituíram uma espécie de escala de viagem. Não espanta que ainda hoje a questão de viagens e ajudas de custo seja matéria sensível seguida por largos sectores da população e por isso potencialmente explosiva e passível de aproveitamento nas lutas partidárias. Curiosamente não há muita preocupação com uma outra consequência dessa prática. A desconformidade entre integrantes das delegações e o objectivo da viagem, que vem de longe e ainda é perceptível em alguns casos, tem custos e explica muitas vezes a inutilidade, a falta de resultados ou a dificuldade de se fazer o seguimento de missões. Nem por isso, como se pode inferir da controvérsia actual, se procura preparar melhor as participações, fazer as concertações necessárias e mobilizar os recursos para o sucesso das mesmas.

Cabo Verde não precisa de distracções artificialmente criadas só para manter a virulência política que impede o debate de questões de substância e de futuro. No ambiente actual de preços elevados de todos os produtos e em particular dos bens alimentares e dos produtos energéticos o foco devia estar em ganhos de eficiência a todos os níveis não só para se ser mais produtivo como também para poupar nos recursos disponíveis. Obviamente que a poupança nas deslocações e estadias por serem mais visíveis e também matéria sensível pelas razões referidas deveria ser um objectivo central da governação na actual conjuntura.

Até ajuda que não se esteja num período pré-eleitoral em que a pressão partidária não é tão forte e que a reacção das pessoas perante as incertezas do momento é de maior contenção nas suas exigências. Para isso, porém, o exemplo deve vir de cima. E ao contrário do que disso o Primeiro Ministro em entrevista, as críticas devem ser escutadas para melhor se estar em condições de governar o país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1071 de 8 de Junho de 2022.

segunda-feira, junho 06, 2022

Mais pluralismo e menos crispação na comunicação social

 

Na última sessão da Assembleia Nacional de Maio foi agendado a pedido do governo um debate sob o tema comunicação social, democracia e desenvolvimento.

Como seria de esperar o que devia ser o debate entre os deputados e o governo transformou-se numa espécie de batalha campal em que jornalistas eram postos em colisão com o governo e deputados procuravam posicionar-se conforme as suas preferências político-partidárias de um lado ou de outro da barricada. A publicação dias antes do relatório dos Repórteres Sem Fronteiras que dava conta da queda de Cabo Verde de nove lugares no ranking da Liberdade de Imprensa no Mundo incendiou o que já por si seria um debate quente.

Não estranha por isso que mais uma vez se tenha ficado por manobras para mostrar quem é mais amigo dos jornalistas, quem se move contra a liberdade de imprensa e quem mais protege a comunicação social pública. Ao lado ficou o debate sobre o grau de pluralismo existente em Cabo Verde e em particular na comunicação social. O mesmo aconteceu com o papel do serviço público da rádio e da televisão, a eficácia da comunicação social como meio de fiscalização da acção governativa ou simplesmente como watchdog e a importância cada vez mais sentida de se ter uma comunicação social credível para contrabalançar os efeitos mais negativos das redes sociais.

A democracia, que precisa ser protegida de polarizações extremas que deixam o sistema político fragilizado, viu-se secundarizado num debate em que os protagonistas se desdobraram a desresponsabilizar-se por qualquer falha e, em simultâneo, a apontar o dedo ao outro. No mesmo segundo plano ficou o desenvolvimento que para acontecer não precisa que se confunda facto com opinião e se deixe de buscar a verdade. Nem que se procure alimentar a alienação das pessoas e da sociedade com posicionamentos anticientíficos e teorias de conspiração e promover atitudes que minam a confiança nas instituições, porque se quer com motivos escusos contornar a ordem democraticamente estabelecida.

É interessante notar que a disputa actual à volta da liberdade de imprensa que opõe jornalistas ao governo veio na sequência de denuncias trazidas à praça pública de um assassinato verificado em 2014 durante uma operação policial tida como supervisionada pelo então diretor-adjunto da polícia judiciária e actual ministro da Administração Interna. Acusados dois jornalistas de crime de violação do segredo de justiça e constituídos arguidos rapidamente a controvérsia deixou de ser o conteúdo das denúncias e o eventual envolvimento de um ministro para se concentrar na questão de saber se a violação de segredo de justiça pelos jornalistas é legal ou mesmo constitucional.

Seguiram-se denúncias de perseguição de jornalistas e entrou-se pelo caminho de confronto entre jornalistas e o governo já noutras ocasiões percorrido e que pode permitir constatações do tipo: os governos do MpD dão-se mal com a imprensa. Ou seja, a tensão criada pelas denúncias acabou por ceder à tranquilidade que de alguma forma a disputa política habitual entre os partidos traz a todos, socorrendo-se das reivindicações de alguma classe profissional mais mediática como arma de arremesso. O anúncio da queda dos nove lugares no ranking da liberdade de imprensa, tal qual a cereja em cima do bolo, funcionou como um bónus para se apressar no regresso ao “normal” em que questões essenciais são sempre adiadas.

Cabo Verde tem uma posição nos rankings da democracia, das liberdades e especificamente da liberdade de imprensa que não destoa muito de outros países tidos como democráticos. Aliás, muitas vezes está melhor classificado do que alguns deles com mais anos de regime democrático. Tentar compreender as razões das insuficiências ainda presentes devia ser matéria intensa de debate entre as forças políticas. Infelizmente prefere-se ficar por acusações mútuas e não agir concertadamente para ultrapassar os constrangimentos.

No que respeita por exemplo à comunicação social devia ser óbvio o peso excessivo da rádio e televisão públicas. O órgãos públicos absorvem enormes recursos por via de taxas e outras transferências do Estado e têm cativo grande parte do mercado de publicidade do país tanto de origem estatal como privada ocupando com isso uma posição hegemónica clara. Empecilhos fortes ao pluralismo são criados nessas circunstâncias devido à fragilidade económico-financeira dos órgãos privados e a dificuldade em competir na contratação de jornalistas. Uma outra consequência é que com tantos meios e recursos acompanhado de capacidade de influência das audiências torna-se praticamente impossível evitar suspeição de interferência governamental, independentemente de quem governa e de órgãos supostamente independentes criados para mediar a relação entre o governo e a direcção dos órgãos públicos.

A Constituição prevê um serviço público da rádio e televisão e impõe princípios de independência e de pluralismo interno. Não define qual deve ser a dimensão do serviço que fica ao critério dos governos, mas é evidente que se for esmagador o pluralismo é globalmente prejudicado. Da parte de quem governa vai sempre existir a tentação de alguma interferência e da parte da oposição haverá sempre acusações de manipulação. Se nem a BBC com um percurso reconhecido de isenção e imparcialidade está a salvo de acusações, imagine-se o que pode acontecer em Cabo Verde onde uma cultura de dependência do Estado foi instituída desde os primórdios da independência nacional em 1975. Conseguir um maior equilíbrio entre o órgãos públicos da comunicação social e os órgãos privados deveria ser o primeiro passo para se ultrapassar a situação.

As dificuldades para se avançar nesse sentido são à partida enormes, desde logo pela fragilidade dos privados. Órgãos de comunicação social privados e em particular rádios em S. Vicente e na Praia deixaram de existir poucos meses antes do 5 de Julho de 1975. Posteriormente, nos anos oitenta iniciativas embrionárias de televisão por particulares foram terminadas para dar lugar à televisão estatal. Nos anos noventa da democracia e da liberdade de expressão os privados tiveram de recomeçar praticamente do zero. Mesmo a cultura jornalística em grande parte moldada nos órgãos estatais do regime anterior e marcada pela dependência e pelo controlo ideológico não constituía grande ajuda para iniciativas com uma outra matriz.

Não é à toa que durante anos a prática do exercício dos direitos designadamente dos direitos de liberdade de expressão e de imprensa estabelecidos pela nova constituição tenha sito pontuada por choques entre o novo poder e os jornalistas. Entretanto a comunicação social do Estado manteve a sua posição hegemónica no sector apesar das tentativas de reforma. Provavelmente aprendeu a manobrar as forças políticas que se sucedem no governo de forma a absorver cada vez mais recursos e reforçar ainda mais a sua posição. Discutível, porém, continua a ser a qualidade da programação que não devia ser virada simplesmente para conquista de audiências e o grau de pluralismo atingido e que é traduzido nas correntes de opinião expressas.

Mudar a situação só podia vir de um amplo consenso dos partidos para se diminuir no acesso aos recursos do mercado publicitário a favor dos privados e apostar mais na qualidade dos programas informativos e de entretenimento e nos documentários. Ganhar-se-ia no pluralismo externo com uma maior diversidade de órgãos privados e também se diminuiria na crispação política derivada da disputa de quem mais tem influência na rádio e na televisão públicas. Coragem e visão para se agir nesse sentido é que parece faltar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1070 de 1 de Junho de 2022.

segunda-feira, maio 30, 2022

Por um jogo de soma positiva

 

Há um ano atrás tomava posse o novo governo saído das eleições legislativas de 18 de Abril. O país encontrava-se então em meio do surto da variante Delta do Sars-CoV-2, mas já se descortinava algum alívio das graves restrições de 2020 em resposta à pandemia que conduziram à contracção de 14,8% da economia nacional.

No discurso do primeiro-ministro apontava-se como prioridades sociais o emprego, a eliminação da pobreza extrema e a redução da pobreza absoluta e como prioridades económicas o crescimento, o alívio da dívida e a diversificação da economia. Com o desenvolvimento de vacinas e início de vacinação em grande escala, particularmente nos países emissores de turistas, perspectivava-se já um início da retoma que infelizmente não veio a se concretizar na dimensão esperada. Incertezas várias vieram baralhar tudo.

Primeiro surgiu a nova variante Ómicron altamente contagiosa e logo de seguida as tensões geopolíticas na Europa que depois desembocaram na invasão da Ucrânia pela Rússia. Reapareceram as restrições de viagem e os constrangimentos nas várias cadeias de abastecimento tornaram-se piores. O crescimento económico do ano 2021 ficou pelos 7% e as previsões para 2022 já de per si menos optimistas de 2021 sofreram uma quebra para um intervalo (3,5-4,5%) como aliás aconteceu ao nível global e também na generalidade dos países, de acordo com os dados de Abril do FMI/Banco Mundial.

Onde aparentemente não se notou mudança significativa foi nas políticas de antes da pandemia, que a todo o vapor se dá continuidade sem atender à conjuntura, e no tipo de confronto político que degrada o discurso e leva ao imobilismo mesmo perante problemas sérios e urgentes como a segurança. Também sem grandes alterações continuou a abordagem feita a questões essenciais do país que mexem com o futuro e a credibilidade das instituições. Opta-se em geral por varrer os problemas para debaixo do tapete. O próprio governo continua impávido com a mesma estrutura e o mesmo número de membros de há um ano atrás, salvo o reajuste devido a um pedido de demissão, não obstante as mudanças de conjuntura que obrigam a melhorar drasticamente a eficiência na utilização dos meios e recursos e a enviar sinais de contenção e solidariedade para a sociedade.

O facto de até agora não se puder prever como e quando se verá o fim do conflito na Ucrânia só tem aumentado as incertezas em relação ao futuro. No curto prazo já se percebe que todos são afectados pelos aumentos extraordinários dos preços em particular dos bens alimentares e energéticos. E que a verificar-se escassez de produtos em particular dos alimentares as consequências poderão ser desastrosas. Em face de tudo isto o mais natural é que houvesse uma disposição e uma motivação para fazer mudanças seja de comportamento, de políticas e de práticas. Paradoxalmente não é o que tem acontecido. Não se notaram as alterações na atitude das pessoas, instituições e países no sentido de mais cooperação e solidariedade que muitos esperavam ver por causa da pandemia e de outras ameaças como alterações climáticas. Em vários países o paradoxo é motivo de reflexão. Num país com as vulnerabilidades que Cabo Verde apresenta, compreender o que está por detrás do fenómeno é vital.

O mundo está a mudar rapidamente e em direcção difícel de prever. Há uma guerra em andamento que não se sabe como vai terminar ou como impedir que se alastre e sofra uma escalada para algo muito pior. Está-se a procurar isolar politica, económica e financeiramente um país, novas alianças militares tendem a formar-se e ordens económicas distintas podem vir a emergir. As disrupções ou convulsões que vão se processando enquanto o planeta procura outros equilíbrios afectam todos os países e em particular os mais pequenos, insulares, sem recursos naturais e sem economia diversificada. Num tal ambiente optar pelo imobilismo, por continuar a fazer o “mais do mesmo” e por transformar a política numa guerra de posições e num jogo de soma zero é o pior que se pode imaginar. Mas é precisamente por esses caminhos que se tem insistido em ir não obstante a seca, a pandemia, a recessão brutal de 2020, e a guerra na Ucrània e o seu impacto na inflação e na provável escassez de produtos básicos.

Viu-se recentemente a propósito da concessão dos aeroportos à Vinci. As forças políticas e a sociedade podem não discutir outros problemas cruciais do país como a educação, saúde, habitação e segurança, mas quando se trata da implementação de políticas económicas que incluem privatizações todas as paixões vêm à tona. Nessas circunstâncias fica-se com a impressão que não é propriamente a opção de política que se contesta. De facto, aproveita-se do assunto em questão para se renovar a divisão entre os que se assumem como “construtores” das infraestruturas nacionais os que são acusados de “vendedores” desses mesmos bens.

É claro que os supostos vendedores replicam que de facto o país na maior parte dos casos herdou elefantes brancos e dívida pública pesada contraída para os construir. Acrescentam ainda que uma solução possível para se conseguir dar utilidade a algumas dessas infraestruturas, criar riqueza nacional e conseguir receitas para pagar a dívida passa por atrair investimento externo através da venda ou concessão que traga capital, tecnologia, knowhow e mercado para os bens e serviços do país. O problema é quando a concretização desses propósitos falha estrondosamente como aconteceu com a CVA e os islandeses e cria-se o ambiente perfeito para se reproduzir a narrativa dos “vendedores da terra”. Com as paixões acirradas não há como reflectir sobre o que falhou, aprender com os erros e procurar posicionar-se melhor nas iniciativas futuras.

A pandemia e a perda do mercado externo que levou à maior recessão histórica de Cabo Verde e ao desemprego em massa de milhares de pessoas deviam ter sido instrumental para se compreender que Cabo Verde para prosperar terá que atrair investimento externo e mobilizar procura externa para os seus bens e serviços, ou seja, exportar. Todos os países, grandes e pequenos precisam de capital, tecnologia e mercados. Para os quase minúsculos e sem possibilidade de ter economias de escala como Cabo Verde não devia existir qualquer dúvida a esse respeito. Estranhamente, ou talvez não, aqui acredita-se que afinal se pode viver da ajuda externa ou que talvez o país seja “too small to fail”, demasiado pequeno para falir. É só ouvir e ver todos os dias na rádio e na televisão o entusiasmo e as demonstrações de autossatisfação com que são anunciados os milhões a serem investidos no âmbito da cooperação bilateral, multilateral e de instituições financeiras diversas.

Curiosamente, os objectos desses financiamentos sejam eles quais forem, em geral não são alvo das guerras de posições dos actores políticos apesar de em muitas áreas estabelecerem a agenda do país forçando opções de política que não passaram pelo crivo parlamentar. A política assim compartimentalizada permite que se vá avançando “a empurrar com a barriga” sem perturbar interesses instalados ao mesmo tempo que se reserva espaços de combate para luta pura pelo poder, sacrificando no processo o debate construtivo para a consecução do interesse nacional. Se em tempos normais os custos dessa postura dos actores políticos mesmo não sendo imediatamente visíveis acabam por pesar, afectando a credibilidade e eficácia das instituições e minando a confiança das pessoas, em tempos de transformações rápidas, como actualmente, podem ser um fardo terrível e ter efeitos desastrosos. No arrancar de mais um ano de governação, e com o mundo à beira de mudanças profundas, exige-se uma outra atitude e um patriotismo constitucional que não permita que a política se limite aos termos de um jogo de soma zero.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1069 de 25 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 23, 2022

Ano e mandato atípicos

 

Amanhã, 19 de Maio, a Assembleia Nacional que resultou das eleições de 18 de Abril de 2021 completa o primeiro ano de mandato. Nesse dia com a inauguração de uma nova legislatura e logo depois com um novo governo cumpria-se o segundo acto do ciclo eleitoral que tinha arrancado em Outubro com as eleições autárquicas e que iria terminar seis meses depois com as presidenciais.

As eleições tinham assegurado uma maioria absoluta ao MpD que, apesar de menos folgada do que na legislatura anterior, era suficiente para garantir a estabilidade da governação do país. Augurava-se então que, não obstante os problemas sem precedentes criados pela pandemia, num certo sentido e por algum tempo o exercício do mandato seria mais tranquilo, porque menos pressionado por eleições próximas. Infelizmente não é o que se veio a verificar e as razões não têm a ver somente com o aparecimento da variante Ómicron e seu impacto na retoma da economia e com os efeitos de tensões geopolíticas que depois levaram à guerra na Ucrânia.

Logo na sessão inicial e no processo de eleição do presidente e dos outros membros da Mesa da Assembleia Nacional ficou evidente para toda a gente que afinal a maioria saída das eleições não estava tão sólida como seria de esperar. A não aprovação do primeiro candidato a vice-presidente apresentado pelo grupo parlamentar maioritário deixou claro as fracturas internas no seu seio. Semanas depois, na discussão da moção de confiança ao governo era palpável o desconforto perante a possibilidade de não se ter a maioria absoluta necessária para a aprovar. O apoio explícito dos deputados da UCID à moção logo no início da sessão parlamentar ajudou a dissipar as dúvidas, mas a fragilidade da maioria ficou exposta e dificilmente seria recuperada. Aliás, incidentes posteriores como por exemplo na aprovação do Orçamento do Estado vieram demostrar que feridas internas não tinham sido saradas.

Com isso o espaço político que a relegitimação do poder nas urnas teria criado para o governo e a sua maioria e que lhes deveria permitir mais iniciativa, influência e capacidade de congregar vontades rapidamente se esvaziou. Cedeu lugar ao ambiente de crispação e de guerrilha política que existia antes das eleições, como se, para a minoria, a maioria que saiu das urnas não se concretizou. Já para as pessoas que se engajaram de uma forma ou outra nas eleições a crispação renovada foi mais um motivo de frustração porque é como se o seu voto não tivesse servido nem para mudar a postura dos actores políticos. Alguns deles continuavam a comportar-se como se não tivessem ganho e outros como se não tivessem perdido.

A realização das eleições presidenciais seis meses depois não foi muito propício a que se diminuísse o grau de crispação política que logo após as legislativas tinha voltado a instalar-se. Pelo contrário as fracturas reveladas da maioria constituíram incentivo para transformar as eleições presidenciais em mais um embate partidário. A vitória do candidato presidencial originário de quadrantes políticos da oposição acabou por enfraquecer ainda mais a dimensão da vitória nas legislativas e com ela a imagem do governo. As aparentes fragilidades demonstradas na relação com o novo presidente da república também não ajudaram. Se se acrescentar a tudo isso a incapacidade ou falta de vontade em reforçar a unidade e melhorar a prestação da maioria parlamentar e também de ajustar a estrutura governativa às exigências de um mundo a braços com desafios múltiplos, não é de estranhar que o maior partido da oposição mesmo à distância de vários anos das próximas eleições esteja a sinalizar para a sociedade que se prepara para regressar ao poder.

Como na generalidade dos países também em Cabo Verde a crise da democracia é fundamentalmente uma crise de representação e o seu epicentro é o parlamento. Com discursos antipartido e antielitistas quer-se fazer as pessoas acreditar que não são escutadas, nem os seus interesses tidos em consideração e que a solução é seguir cegamente líderes que primam pela autenticidade e ligação às pessoas. Após as eleições legislativas de 2016 a crise claramente que se aprofundou com o populismo e com o pessoalismo na política a dominar na actuação dos partidos. O fenómeno não apenas cabo-verdiano como se vê na eleição de Trump nos EUA, de Bolsonaro no Brasil e da ascensão de populistas na Itália, Hungria, Espanha e outros países europeus. A verdade é que com tudo isso a qualidade do trabalho parlamentar caiu muito comparativamente, dando mais argumentos aos costumeiros inimigos da democracia e do pluralismo. A par disso oferece-se oportunidade de questionar a utilidade do parlamento e de, a exemplo do que se passa nos países com líderes populistas, descredibilizar as instituições tomando como alvos preferenciais o parlamento, o sistema judicial e os médias.

De alguma forma algo mais consciente do desgaste provocado nas instituições e nos partidos políticos já se nota nas tentativas de inflectir o sentido das tendências actuais. No Paicv, na sequência da derrota nas legislativas, elegeu-se um novo líder com um claro mandato para reunir tendências, gerações e experiências para melhor se apresentar como alternativa credível nas eleições de 2026. No MpD, a revelar problemas internos por resolver, há, com o partido no governo, um caso possivelmente inédito, exceptuando nos sistemas parlamentares do tipo inglês, de uma possível disputa da liderança a meio do mandato. Combater as derivas populistas no interior dos partidos, porém não é suficiente. Há que fazer o parlamento exercer as suas competências em particular em relação a outros órgãos de soberania como foi o caso de reavaliação do veto do presidente da república e de eleição no tempo certo de órgãos externos da assembleia nacional para não se estar na situação de ter órgãos com mandatos terminados há quase um ano.

A credibilização do parlamento passa por se ultrapassar a imagem de crispação política existente e mostrar que é possível o exercício do contraditório sem que isso conduza ao bloqueio e à impossibilidade de negociar, construir consensos e firmar acordos em boa fé. Isso é essencial para a estabilidade governativa do país e para se ter de facto uma real fiscalização dos actos da governação. Também é importante para mostrar que ao funcionar com discurso aberto e com contraditório, dados transparentes e com foco no interesse público esta-se a evitar que verdades alternativas, teorias de conspiração e outras distorções da realidade ganhem proeminência na sociedade. Nesse aspecto foi uma falha lamentável na sessão da semana deixar passar a oportunidade de reparar imediatamente o chamado “erro material” detectado no código penal que deixou alguns crimes de corrupção passiva e activa e tráfico de influência com prazos de prescrição baixos. De acordo com a declaração de voto do Paicv a vontade unanimemente expressa do legislador na plenária e em sede da comissão especializada era precisamente no sentido contrário e para elevar para prazos máximos a prescrição desses crimes.

A iniciar um segundo ano de mandato é de toda a importância que a Assembleia Nacional assuma as suas funções como pilar fundamental do sistema de governo e contribua efectivamente para o cumprimento do princípio da separação e a interdependência dos órgãos de soberania. Enquanto órgão de soberania que representa todos os cidadãos na pluralidade das suas opiniões e na diversidade dos seus interesses deve agir decisivamente para se prosseguir com o jogo democrático, a única via para se encontrar soluções para os problemas de hoje e se construir o amanhã sem que a liberdade e a dignidade de todos sejam sacrificadas. O primeiro ano foi em certos aspectos algo atípico. Que o segundo que agora começa se reja pela normalidade democratica para que todos sejam ganhadores. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1068 de 18 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 16, 2022

Reescrever a parceria especial

 Nas mensagens divulgadas no dia 9 de Maio o Presidente da República e o Primeiro-ministro saudaram o Dia da Europa, o dia que celebra a paz e a unidade do continente europeu, e manifestaram a vontade de Cabo Verde de reforçar e aprofundar as relações com a União Europeia.

Na sua mensagem, o PR para além de caracterizar a Europa como parceiro estratégico diz que “está em gestação uma nova ordem mundial e Cabo Verde deve saber reposicionar-se e, desde logo, reescrever a parceria especial com a União Europeia”. Acrescenta ainda que o país deve agir inteligentemente para dar à parceria especial novos contornos, no sentido do seu aprofundamento e adequação aos desafios emergentes na arena internacional, com profundos reflexos num pequeno estado insular como o nosso”.

As mensagens deixam passar alguma apreensão e urgência. Compreende-se que seja assim. O aniversário da Europa que também significativamente quase que coincide com o dia do fim da segunda guerra mundial, 8 de Maio, acontece num momento em que a paz foi quebrada no velho continente com a agressão russa à Ucrânia. Já se vê que a resposta unânime da Europa manifestando solidariedade com luta dos ucranianos na defesa da integridade territorial do seu país e impondo pesadas e abrangentes sanções à Rússia vai ser um ponto de viragem nas políticas europeias com consequências designadamente nas políticas de alargamento e de defesa.

Outras consequências já se estão a verificar nos extraordinários aumentos de energia, de bens alimentares e de vários outros produtos. A prazo, os efeitos da inflação, o impacto da dívida pública e os efeitos dos estrangulamentos nas cadeias de abastecimento vão conjugar para diminuir os rendimentos das pessoas e baixar as taxas de crescimento económico. Em maior dificuldade ficarão os países em desenvolvimento a braços com a manutenção do ritmo da retoma pós-pandémica num ambiente movediço de rearranjo das relações económicas. Num tal contexto confiança e previsibilidade nas cadeias globais de valor e de abastecimento ganham importância fulcral. Crucial será poder prever os contornos dessa nova ordem mundial e saber como reposicionar-se tendo em conta que provavelmente o mundo tornar-se-á mais complexo, por que marcado por rivalidades geopolíticas e pela dinâmica de blocos económicos que obrigam a tomadas de partido e não deixam muito espaço para a ambiguidade e o equívoco nas relações internacionais.

Para Cabo Verde, o Banco Central (BCV), no relatório semestral de política monetária divulgado na semana passada, aponta riscos para a economia associados à escalada da guerra na Ucrânia e o apertar das sanções à Rússia. Neles o BCV inclui a escassez de matérias-primas e cortes na produção de sectores económicos dependentes desses produtos, as consequências de preços de importação muito mais altos e possíveis desabastecimentos e também as incertezas e a falta de confiança criadas que afectariam as decisões de consumo e de investimentos de empresas e pessoas. De acordo com o BCV, os riscos poderão agravar-se mais se a situação da covid-19 na China persistir, se a expectativa de inflação se mantiver e se houver o ressurgimento da pandemia com uma nova variante mais contagiosa e mais letal.

São alertas que deviam levar os actores políticos e a sociedade no seu conjunto a reflectir mais aprofundadamente sobre a conjuntura actual marcada ao nível nacional pela seca, pela pandemia e pela dívida pública e ao nível internacional pelas ondas sísmicas causadas pelos constrangimentos nas cadeias de abastecimento, pela inflação e pela guerra na Ucrânia e por tensões geopolíticas em vários pontos do globo. Até agora não se tem a impressão que foi dada a devida atenção a estas questões, pelo menos no que toca à mudanças de comportamento e de atitude. Continua-se a substituir discussões substantivas de políticas por exercícios de arremesso político e persiste-se com a prática da política-espectáculo e do eleitoralismo permanente. Não se apela suficientemente à solidariedade que os tempos exigem e que podia levar a mais contenção nos comportamentos e gastos, mais ponderação nas reivindicações e maior disponibilidade em encontrar vias e soluções para os múltiplos problemas que afligem o país.

Do BCV, para além dos alertas vêm as recomendações para reduzir o peso da dívida pública priorizando gastos essenciais e para avançar com reformas que resolvem problemas estruturais e aumentam o potencial da economia do país. Uma outra recomendação é que a perda de rendimento da economia seja compartilhada por trabalhadores e empresas para não se entrar numa espiral inflacionária que prejudicaria a todos. Aí, porém, as autoridades teriam que agir com um outro rigor na fiscalização económica para evitar a extracção de lucros excessivos pelas empresas num ambiente de aumento rápido de preços. Os trabalhadores, por seu lado, teriam que conter-se nas reivindicações salariais para se evitar pressão sobre os preços. Para conseguir isso talvez fosse necessário um pacto Estado, patronato e sindicatos para o crescimento e para o emprego. Implicaria provavelmente que os problemas do país e os desafios que se colocam na actual conjuntura fossem assumidos na sua plenitude por todos, ressalvando a diversidade dos pontos de vista e das estratégias a adoptar para os enfrentar. Também implicaria que o passado deixasse de ser objecto de nostalgia e motivo de ressentimento para se poder concentrar no presente e potenciar o que existe com vista à construção de um futuro inclusivo e sustentável.

Realismo e pragmatismo devem caracterizar as políticas de Cabo Verde neste momento particularmente desafiador em que o país, a sair da crise pós-pandémica, enfrenta uma conjuntura internacional de incertezas. Considerando que cerca de 80% das importações e exportações do país é com a Europa e que também daí vem o grosso da ajuda externa, das remessas dos emigrantes e do investimento externo e se situa o ponto de origem do fluxo do turismo que contribui para 25% da economia nacional, faz todo o sentido que seja o principal foco da atenção estratégica do país. Aumentar o potencial do país é fundamental assim como é de suma importância estar atento às mudanças e saber ajustar-se com vantagens.

O aprofundamento da parceria especial com a União Europeia que o PR incentiva no actual momento de viragem da União Europeia tem particular urgência neste momento em se está a sinalizar que a comunhão de valores e princípios democráticos e liberais é fundamental para a solidariedade entre as democracias e vai ganhar mais peso nas relações económicas futuras que se querem mais resilientes. Os tempos recentes da pandemia demonstraram como foi importante para Cabo Verde a solidariedade do Ocidente nas vacinas e na ajuda bilateral e multilateral para que o pior da crise fosse ultrapassado. O futuro próximo está cheio de incertezas e desafios importantes colocados, seja pela ameaça ainda presente do coronavírus e dos constrangimentos no abastecimento, seja pelas alterações climáticas e pela transição energética que para serem ultrapassados exigem que se reforce e se aprofunde a cooperação com outros países, em particular com aqueles com quem se partilham valores e se tem o maior nível de integração económica. Há que ser pertinente e inteligente para ser bem-sucedido. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1067 de 11 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 09, 2022

Mais responsabilidade constitucional

 No debate parlamentar com o Primeiro-ministro sobre Segurança que teve lugar na semana passada aconteceu um acto inédito. O PM fez um requerimento à Mesa da Assembleia Nacional para obrigar os deputados do Paicv a entregar provas das denúncias de escutas telefónicas ilegais e uso indevido de videovigilância.

O próprio PM confessou que não sabe se o governo pode solicitar um requerimento ao parlamento. De facto, o artigo 114º não inclui fazer requerimentos no uso da palavra pelos membros do governo enquanto para os deputados está claramente estabelecido na alínea g) do artigo 111º. Por outro lado, consideram-se requerimentos só os pedidos respeitantes ao processo de apresentação, discussão e votação ou ao funcionamento da reunião (artigo 121º). Não parece que tenham cabimento na dinâmica de um debate em sede de fiscalização política do governo em que “a uma acusação política se responde com uma refutação política”. Mesmo assim foi-se avante com o requerimento, mas ninguém espera que tenha quaisquer efeitos práticos.

Exigir entrega de provas das denúncias só contribuiu para cortar a meio o debate e para o transformar em mais um exercício de arremesso político prejudicando ainda mais a imagem já desgastada do parlamento. É seguir pelo caminho da judicialização da política que de facto atenta contra a liberdade de expressão dos deputados como bem referem vários constitucionalistas e põe em perigo a eficácia do parlamento como órgão de soberania que fiscaliza a acção governativa. Ainda bem que existem as imunidades incluindo a irresponsabilidade civil, criminal e disciplinar do deputado em relação a tudo o que é dito na plenária da assembleia nacional para que os pesos e contrapesos funcionem na democracia e haja accountability, ou seja, a responsabilização e a prestação de contas por todos os actos praticados por quem tem o mandato, os recursos e os meios para governar. Tentar coartar isso é que pode configurar um ataque às instituições democráticas em particular àquela onde os cidadãos estão representados no seu pluralismo e na diversidade dos seus interesses.

De facto, dar vazão a queixas ou denúncias de cidadãos de eventual uso ilícito e ilegal de escutas telefónicas ou outros meios de vigilância electrónica no quadro de um debate parlamentar com o PM não devia ser visto como ataque a serviços ou departamentos do Estado como a polícia e serviços de informação que estão sob a direcção ou superintendência do governo da república. Em causa estão direitos fundamentais dos cidadãos para cuja defesa todos os órgãos de soberania numa democracia liberal e constitucional têm especial obrigação de activamente contribuir. E a verdade é que possibilidades de abuso desses meios na investigação criminal e no âmbito da recolha de informações por razões de segurança existem sempre mesmo nas democracias mais maduras e com sistemas de controlo judicial e outros dos mais estritos.

São conhecidos casos que de tempos em tempos vêm a público na América e na Europa de atropelos diversos e que depois levam a inquéritos, revisão dos procedimentos e aprimoramento dos mecanismos de controlo. Recentemente foi revelado o caso de escuta dos telemóveis de ministros em Espanha e um pouco antes de um caso similar de escuta de personalidades da Catalunha que já tinha sido alvo de denúncias da oposição e dos separatistas catalães. No caso de Cabo Verde, em que a democracia é menos madura e em que se está praticamente no início da criação de uma cultura institucional respeitadora dos direitos, é fundamental que da parte do governo haja uma preocupação e uma disposição por fazer os serviços sob sua responsabilidade, cumprir o legalmente estabelecido e estar atento a todas insuficiências, omissões e uso ilícito dos meios disponibilizados. Para além das auditorias que por iniciativa própria deve promover, queixas e denúncias dos cidadãos devem ser investigadas como forma também de avaliar o sistema, tendo sempre em conta que do Estado se espera em primeiro lugar que garanta a segurança, a liberdade e a privacidade de cada cidadão.

Tomar denúncias no parlamento como ataques a departamentos e serviços do estado em vez de aproveitar para esclarecer situações e procedimentos existentes e também de refutar acusações se as houver ou avançar com investigação quando se mostrar necessário retira o aspecto construtivo do que legitimamente se devia esperar do debate entre situação e oposição. Pelo contrário, tende-se a personalizar as críticas feitas e tomá-las como sendo dirigidas aos profissionais do sector, sejam eles polícias, professores, médicos e enfermeiros ou outras classes de funcionários públicos. Na sequência, o que se nota é que o debate degradar-se, passando as partes a competir para mostrar quem é o melhor a proteger essas classes de profissionais em salários, benefícios e meios disponibilizados como se tudo isso se tratasse de uma corrida eleitoral para assegurar votos. Evidentemente que num ambiente assim as razões para o debate perdem-se pelo caminho e as questões reais e urgentes de segurança, de qualidade do ensino, eficácia da justiça, e de resultados de políticas em vários outros sectores passam para o segundo plano.

Recorrentemente as mesmas matérias regressam para o debate e invariavelmente acontece o mesmo. Privilegia-se o apelo a sentimentos e a identidades artificiais, factos não são reconhecidos ou vistos em contexto e no fim o que prevalece é a “cor da camisola” deixando pouco espaço para compromissos e consensos. Infelizmente as alternâncias na governação e na oposição não se têm prestado para melhorar a situação com diminuição da crispação e o firmar de acordos tácitos que permitisse quebrar o círculo vicioso actual. Parece faltar o que alguns chamam de “responsabilidade constitucional” que leva a que se cumpram as regras do jogo democrático para que as virtualidades do pluralismo, da diversidade e do exercício do contraditório se conjugam para realizar o interesse colectivo. Mais forte tem sido a tentação pelo personalismo na política que depois acaba por se traduzir em falhas repetidas no funcionamento de órgãos de poder político ao nível central e local e em protagonismos desajustados de figuras públicas com responsabilidade.

O facto de nem as sucessivas crises, com o seu impacto dramático e até assustador criando muitas incertezas para o futuro, se mostrarem suficientes para mudar o estado de coisas na esfera pública, é realmente preocupante. Ainda não se consegue focar nos desafios que se colocam ao país mesmo quando a conjuntura é terrível e incerta. Também não há atitude de contenção como se pode ver pelos festivais com dinheiro público já anunciados, tornando difícil nutrir o espírito de solidariedade que os tempos actuais exigem. Paradoxalmente, como se nada tivesse acontecido – guerra, aumentos brutais de preços, endividamento rápido do país - parece reinar ainda o eleitoralismo mesmo sem eleições à vista, como se viu na última sessão do parlamento. Em consequência, não se deixa que mesmo os problemas mais candentes e urgentes de Cabo Verde sejam tratados com seriedade e sentido de responsabilidade. Todos, porém, devem reconhecer que a situação do país e do mundo não permite que isso continue. Urge uma mudança de rumo e de atitude.   

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1066 de 4 de Maio de 2022.

segunda-feira, maio 02, 2022

Com a desglobalização em curso passos falsos pagam-se mais caros

 

As reuniões de Abril das instituições de Bretton Woods ficaram marcadas pela más notícias que dominam a actual conjuntura mundial. A previsão do crescimento mundial foi revista em baixa em cerca de 1,3%. Espera-se inflação à volta dos 5,7% nos países desenvolvidos e 8,7% nos países em desenvolvimento e um maior risco de incumprimento no serviço da dívida pública de muitos países, em particular os menos desenvolvidos. Fala-se abertamente do fim da globalização pelo menos na forma como se tem até agora processado e que se caracteriza pela capacidade de bens, pessoas e capital se moverem livremente para onde são mais produtivos. Nesse sentido, a expectativa é que o futuro seja de um mundo bipolar ou multipolar e com maior enfase na regionalização. Também é previsível que, no que alguns já chamam de nova ordem mundial, para além do aumento das tensões globais, haja perdas de eficiência na circulação dos produtos com impacto geral nos preços de bens e serviços.

Para a Secretária do Tesouro dos Estados Unidos da América, Janet Yellen, num discurso proferido uma semana antes das reuniões do FMI e do Banco Mundial (13 de Abril), a emergência de uma nova ordem internacional é já uma realidade incontornável. Por causa da invasão da Ucrânia, as sanções aplicadas à Rússia irão transformá-la num país pária ficando também de fora dessa nova ordem os países cúmplices nas tentativas de contornar as medidas punitivas do mundo ocidental. Segundo Yellen, se com a globalização aconteceu muito do offshoring das empresas no processo de construção das cadeias globais de valor, e mais recentemente as tentações proteccionistas clamaram por onshoring para recuperar postos de trabalho e rendimentos perdidos, agora a questão deve ser posta numa nova perspectiva que é de friendly-shoring.

A preocupação já não é só eficiência, mas também resiliência e isso é um compromisso que se consegue criando cadeias de abastecimento e de valor, mas só com países que comungam dos mesmos princípios e valores e dão garantias num quadro de uma ordem que funciona com regras estabelecidas em matéria designadamente de concorrência, respeito pela propriedade intelectual e regime laboral. Janet Yellen foi clara na sua intervenção que não é de admitir no novo bloco económico países que com força de mercado em matérias-primas, tecnologias ou outros produtos abusem desse poder e criem constrangimentos aos outros para ganhar vantagens geopolíticas. Aparentemente no quadro dessa nova ordem a selecção de países para o chamado friendly-shoring vai ser mais rigoroso, não deixando muito espaço para países que ora pendem para um lado, ora para outro, muito no estilo da política dos países não-alinhados dos tempos da Guerra Fria.

A verdade é que agora o que está em jogo não são só questões ideológicas ou mesmo rivalidades dos blocos militares de outrora. Trata-se de segurança económica e também de enfrentar desafios da transição energética, de se ajustar a um mundo dominado pelo digital, preparar-se para futuras crises pandémicas e de cooperar na resposta global às alterações climáticas. Não dá para ter parceiros em cima do muro. Essa é uma das razões para a forte reacção negativa do Ocidente à abstenção na matéria de suspensão da Rússia da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Dos 143 países que pouco tempo antes tinham condenado a invasão da Ucrânia só 93 concordaram em aprovar a resolução de suspensão. O facto é que a agressão da Rússia continua e ameaça alastrar-se ainda mais para assegurar o controlo do Leste e Sul da Ucrânia e possivelmente incluindo a Transnístria que é parte da Moldávia. E a situação perigosa que se desenha é de um conflito durável e mais alargado e com risco de envolver armas nucleares, possibilidade não excluída por muitos e que não deixa muito espaço para posições ambíguas que talvez antes eram possíveis.

Cabo Verde vai ter que encontrar o seu lugar nesta ordem emergente com características muito próprias e desafios ainda desconhecidos. No desenvolvimento de uma estratégia própria para se enquadrar no novo quadro mundial certamente que terá em perspectiva o seu ponto de partida. Cabo Verde é hoje uma democracia liberal e tem uma economia altamente integrada na economia do Ocidente, também democrático e liberal, para onde mais exporta, de onde mais importa e vem a quase totalidade do fluxo turístico e do investimento directo estrangeiro, de quem recebe a maior parte da ajuda externa e é a origem das remessas das suas comunidades emigradas. Actualmente, o país está ainda a sofrer o impacto de crises sucessivas, seca, covid-19 e guerra na Ucrânia que têm contribuído para o excesso da dívida pública, para alta de preços e para as dificuldades em fazer a retoma da economia. No meio de todas as incertezas presentes devia ser claro que não há espaço para posições equívocas quando democracias são ameaçadas. Também faz todo o sentido que se procure aproveitar as oportunidades que uma reconfiguração das cadeias de valor venha oferecer na lógica do friendly-shoring.

A parceria especial com a União Europeia tem merecido o consenso de todo os governos e certamente que haverá apoio generalizado para o seu reforço. Neste momento em que o processo de globalização sofre um recuo e possível reconfiguração em blocos económicos é de se servir da base extensa de interacção que já existe e da convergência de princípios e valores para se proceder numa ancoragem mais firme na zona económica em que efectivamente o país funciona. O foco nesse sentido não deve excluir a possibilidade de exploração de outras parcerias, mas sempre tendo em vista os constrangimentos existentes como bem apontou o secretário geral da Zona de Comércio Livre Continental Africana, ZCLCA, quando se referiu ao problema da conectividade das ilhas com as economias do continente. De facto, o comércio intercontinental é ainda menos que 20%, comparado com os mais 60% da Europa, 40% das Américas e 30% da Ásia. Sem um volume de comércio aceitável não há como sustentar tráfego marítimo e aéreo regular.

Qualquer estratégia para ser eficaz precisa fazer a devida ponderação das situações, ter sempre em mente os objectivos e saber a todo o momento quais as prioridades a atingir. Mais do que nunca, principalmente por causa dos grandes desafios que se colocam, esperam-se resultados e não exercícios do mais do mesmo em que governação efectiva é substituída por política de espectáculo. Eficiências exigidas nestes tempos de magros recursos conseguem-se evitando protagonismos excessivos e desencontrados que retiram consistência às políticas apresentadas, prejudicam a cooperação e mesmo a solidariedade entre os seus principais agentes e minam a confiança de quem quer ver coerência na governação. É preciso ter em atenção que no mundo polarizado de hoje passos falsos pagam-se mais caros e oportunidades perdidas não se repetem com facilidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1065 de 27 de Abril de 2022.